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Profissionalismo, gênero e diferença: uma reflexão sobre as causas da disparidade de gênero nos Tribunais brasileiros

Professionalism, gender, and inequality: An inquiry into the causes of gender disparity in Brazilian courts

Resumo

Este artigo discute as causas da patente disparidade de gênero nos Tribunais brasileiros. Partindo do trabalho seminal de Maria da Glória Bonelli, atualizam-se os dados de composição por gênero do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). Feito isso, compara-se a evolução dos dados nas justiças estadual e federal, e discute-se a tese proposta por Bonelli para explicá-los. Argumenta-se que sua tese, centrada no ideal do "profissionalismo", é falseada pela evolução recente dos dados, que mostram uma involução na justiça federal e um pequeno progresso no âmbito estadual. Além disso e por fim, discutem-se duas hipóteses para explicar os dados: (i) uma maior interferência do Poder Executivo na Justiça Federal; e (ii) o efeito de mecanismos sutis nas regras de seleção e promoção na carreira.

Palavras-chave:
Desigualdade de gênero; Mecanismos de fechamento generificado; Judiciário; Profissionalismo; Hipóteses causais

Abstract

This article discusses the causes behind the patent gender inequality in Brazilian Courts. Based on the seminal work of Maria da Glória Bonelli, it updates data on gender composition of the São Paulo Court of Justice (TJSP) and the Federal Regional Court of the 3rd Region (TRF3). State and federal courts' data evolution is then compared, and Bonelli's previous thesis to explain the findings is discussed. Showing evidence of increasing gender inequality at the federal level and only a small progress at the state level, the article argues this new data contradicts her "professionalism" centered thesis. In addition, two hypotheses are discussed to explain the phenomenon: (i) a greater Executive branch interference in the Federal Justice; and (ii) the effect of subtle legal-related mechanisms both at the entry and the intermediate career levels.

Keywords:
Gender inequality; Gendered closure mechanisms; Judiciary; Professionalism; Causal hypotheses

1. Introdução1 1 Por discussões e comentários feitos a versões preliminares deste texto, os autores gostariam de agradecer a Bianca Tavolari (Insper), Gabriel Maia (USP) e Luciana Ramos (FGV-SP).

Nos dias de hoje, é impertinente disputar o diagnóstico sobre a desigualdade de gênero nas carreiras jurídicas brasileiras. São mais de 15 anos de estudos que atestam a sub-representação feminina em várias áreas da prática jurídica e em posições da hierarquia profissional. Com isso, não se quer dizer que a questão da desigualdade de gênero está resolvida ou que ela vai se resolver naturalmente com o tempo, mas, sim, que o volume de dados que já foi coletado, analisado e publicado não permite mais discutir a constatação da desigualdade. A insistência nesse ponto denota um problema de leitura, não a inexistência de um fato amplamente atestado. Por isso, este texto pretende dialogar com a literatura que parte desse fato, que discute seriamente as causas dessa desigualdade e os meios de transformá-la, e que continua a coletar dados para acompanhar o impacto das medidas de transformação.

A reflexão em torno da sub-representação feminina nas carreiras jurídicas tem sido feita no campo da Sociologia das Profissões Jurídicas. No Brasil, a construção e o desenvolvimento desse campo têm uma liderança notória: Maria da Gloria Bonelli. Essa posição de referência se deve ao pioneirismo de Bonelli no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Fontainha e Loss Leite, 2019FONTAINHA, Fernando; LOSS LEITE, Maria. “Profissões, gênero e Sociologia do Direito”. Entrevista com Maria da Glória Bonelli. Plural, v. 26, n. 2, 2019. Disponível on-line em: <https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.165728>. Acesso em 10/4/2022.
https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099....
, p. 289), à sua capacidade de formar pesquisadores(as)2 2 Somente no campo da Sociologia das Profissões Jurídicas, Bonelli orientou pelo menos 25 iniciações científicas, dez mestrados e cinco doutorados. Destes, ao menos Fabiana Luci de Oliveira e Humberto Nanaka tornaram-se professores(as) universitários(as) e atuam no mesmo campo de conhecimento. Tais informações foram obtidas do CV Lattes de Maria da Glória Bonelli (atualizado em 25/6/2020) e dos doutores(as) orientados(as) por ela. Acesso em 10/4/2021. e à sua produção acadêmica. Dentre as várias obras publicadas, uma será privilegiada no debate ora proposto: Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, artigo publicado por Bonelli em 2011. Com alterações, esse trabalho foi republicado na coletânea Profissionalismo, gênero e diferença nas carreiras jurídicas (2013a), que traz dados e análises de várias carreiras jurídicas. Para além de permitir uma ampla comparação entre os níveis de desigualdade de gênero de grupos ocupacionais raramente cotejados em pesquisas de corte latitudinal, esses trabalhos exploram de modo combinado estratégias de fechamento social das profissões jurídicas, que em geral são tratadas isoladamente.

Ao avaliar se o discurso que enaltece o saber como capital impessoal e objetivo neutralizou características pessoais e subjetivas de gênero no ambiente de trabalho, Bonelli reúne dois debates: o domínio de conhecimento abstrato como elemento constituidor da ideia de “profissão”3 3 Na literatura do campo, o termo "profissão" designa um tipo específico de trabalho especializado, associado a uma expertise (Freidson, 1996). Exemplos paradigmáticos são o direito e a medicina. Entre as características comuns das profissões estão: sua associação com um conjunto abstrato e especializado de conhecimentos; a autonomia do profissional em relação ao processo de trabalho; a autorregulação; o estabelecimento de normas que restringem o acesso à profissão e à prática dela. e o impacto de alguns marcadores sociais da diferença nas hierarquias profissionais. Ao fazê-lo, a autora investiga se o discurso da expertise está sendo usado como estratégia para promover desigualdades nos espaços profissionais estudados.

Recheada de dados demográficos sobre carreiras jurídicas, a obra de Bonelli permite comparações entre a advocacia privada e a advocacia pública, entre o Ministério Público (MP) e a Magistratura e outras. Além de cotejar grupos ocupacionais distintos, contrasta profissionais de diferentes esferas do sistema de justiça. Uma das comparações mais interessantes é a do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) com o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). Os dados são de 2011:

Quadro 1
TJSP versus TRF3 em 2011

Chamam a atenção os números da segunda instância: enquanto a disparidade de gênero é gritante no TJSP (96% vs. 4%), no TRF3 parece haver uma relativa igualdade (54% vs. 46%). Bonelli explica as diferenças entre a proporção de desembargadoras no TJSP e a proporção de mulheres na segunda instância do TRF3 por meio de vários argumentos: poder profissional, autonomia política, insulamento da carreira etc. Mas o que dá unidade à sua explicação é o conceito de profissionalismo. Para Bonelli, “a consolidação do profissionalismo em um momento precedente ao ingresso feminino na carreira é o fator explicativo das barreiras à feminização no [TJSP]” (2013a, p. 17).

O TJSP é bem mais antigo do que os Tribunais Regionais Federais, tendo sido instalado em fevereiro de 1874, com o nome de Tribunal da Relação de São Paulo e Paraná. Passa a ser designado como Tribunal de Justiça de São Paulo em 1891, com a separação judiciária dessas duas províncias.4 4 A história é contada no site do Tribunal: < Quem Somos | Apresentação >. Acesso em: 06/01/2022. Os Tribunais Regionais Federais, por sua vez, foram instituídos em 1988, quando substituíram o antigo Tribunal Federal de Recursos (1946-88)5 5 Constituição da República Federativa de 1988 (CF88), art. 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. , descentralizando e organizando regionalmente a Justiça Federal no Brasil. Atualmente, são seis TRFs, cada um deles responsável por um conjunto de estados da federação. O TRF3, objeto do estudo de Bonelli, atende aos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul.

A tese de Bonelli é que a reforma institucional da Justiça Federal criou condições para que se compusesse um tribunal com menos desigualdade de gênero do que o TJSP, ainda que a reforma não tenha estabelecido critérios sobre representatividade de gênero. Como dito, isso teria ocorrido em razão dos diferentes momentos em que o profissionalismo se consolidou nesses tribunais: a “velhice institucional” do TJSP, criado cerca de cem anos antes dos TRFs, explicaria sua maior desigualdade de gênero quando comparado ao TRF3. Neste último, a “novidade institucional” teria permitido um ingresso feminino na carreira antes que o profissionalismo ali se consolidasse e criasse barreiras à feminização.

Dez anos se passaram da pesquisa que deu origem ao artigo de Bonelli (2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., 2013a). Neste texto, pretende-se revisitá-lo. Nas próximas seções, serão feitas uma retomada e uma discussão de sua tese e de seu argumento, seguidas de uma apresentação dos números atualizados da composição por gênero do TJSP e do TRF3. À luz dessa retomada e desses novos dados, argumenta-se que, apesar de a desigualdade de gênero ser patente, ainda não se tem uma compreensão clara do mecanismo causal que explica as disparidades em cada um dos tribunais estudados. Contesta-se, assim, a tese da “novidade institucional” como explicação das diferenças entre TJSP e TRF3 quanto à desigualdade de gênero.

Dois são os principais argumentos a sustentar essa posição: em primeiro lugar, argumenta-se que não há clareza suficiente quanto ao nexo causal entre a consolidação do profissionalismo nas respectivas instituições e a desigualdade de gênero observada; em segundo, argumenta-se que, mesmo que houvesse tal clareza, a evolução mais recente dos dados parece falsear a tese de Bonelli. Dada a inegável disparidade de gênero existente, conclui-se ser necessário mais estudos sobre o tema, visando a investigar os mecanismos causais por trás desse fenômeno. A fim de contribuir para tanto, discutem-se duas possíveis hipóteses para explicá-lo: (i) uma maior interferência do Poder Executivo na Justiça Federal; e (ii) a atuação de mecanismos sutis nas regras de seleção e promoção no judiciário estadual.

2. Desenvolvimento e discussão

2.1 Profissionalismo e desigualdade de gênero: há nexo casual?

Como visto no quadro apresentado na seção introdutória, em 2011, dos 2064 juízes da primeira instância do TJSP, 64% eram homens, sendo a disparidade ainda maior na segunda instância: de 354 desembargadores, 96% eram do sexo masculino. No TRF3, a situação na segunda instância era bastante diferente: de 41 desembargadores, 54% eram homens. Apesar disso, os números na primeira instância aproximavam-se dos do TJSP, com 62% de homens em um universo de 301 juízes. Constatada a disparidade de gênero existente no TJSP e no TRF3, assim como as diferenças entre esses Tribunais, pergunta-se: qual é, mais especificamente, a tese de Bonelli para explicar tais dados?

Baseando-se na literatura do campo, ela nos diz que há três padrões distintos por meio dos quais se dá o fechamento generificado: (i) a estratificação, (ii) a segmentação e (iii) a sedimentação. Os conceitos foram retirados de Bolton e Muzio, que definem fechamento (closure) como:

"‘the process by which social collectives seek to maximize rewards by restricting access to rewards and opportunities to a limited circle of eligibles’ (Parkin, 1974: 3). This implies the institution and enforcement of a body of covert and overt rules that can legitimize monopolistic practices and sanction exclusionary dynamics (Murphy, 1988), thus closing off opportunities to outsiders, undesirables and ineligibles" (2007, p. 50).

Essa estratégia de fechamento é essencial para a definição e o exercício das profissões, como o direito e a medicina. No entanto, ela também pode servir para segregar não apenas os leigos de médicos e advogados, por exemplo, mas também para engendrar dinâmicas excludentes dentro dos próprios grupos profissionais. O fechamento generificado designa esse processo em relação às mulheres. No caso, ele se refere às barreiras que elas enfrentam para atingir uma participação igualitária nas carreiras jurídicas. Para Bolton e Muzio, essas barreiras seriam produzidas por diferentes mecanismos de fechamento interno, não sendo meros "acidentes do patriarcado" (2011, p. 54).

Os principais padrões de divisão generificada do trabalho são os três citados anteriormente: sedimentação, segmentação e estratificação - “[which] are used as powerful internal closure mechanisms by the legal profession, thus maintaining and protecting the masculinized professional core, ensuring that women remain as ‘other’ and have minimum impact upon the masculine code of the legal profession" (Bolton e Muzio, 2007BOLTON, Sharon C.; MUZIO, Daniel. Can’t live with ‘em; can’t live without ‘em: gendered segmentation in the legal. Sociology, [s. l.], v. 41, n. 1, p. 47-64, Feb. 2007., p. 54).

A sedimentação “dá-se com as profissionais recorrendo ao essencialismo como forma de organizar a identidade de gênero em enclaves” (Bonelli, 2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., p. 110). Nessa chave, o trabalho rotineiro e as atividades que demandam cuidado e zelo estariam relegados às mulheres, ao passo que o trabalho especializado e as atividades que exigem assunção de risco caberiam aos homens.

A segmentação “processa-se na linha horizontal, formando guetos com as mulheres sendo confinadas a áreas menos valorizadas (direito de família x direito de negócios)” (Bonelli, 2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., p. 110). Por ocorrer horizontalmente, a segmentação também é denominada segregação horizontal. Kahwage e Severi a relacionam aos estereótipos de gênero “que delimitam o que deve ou não ser exercido por homens e mulheres no âmbito da profissão jurídica” (2019, p. 55). Esse tipo de segregação se associa ao que se denomina parede de cristal: o “impedimento de acesso a determinadas áreas ou postos no ambiente de trabalho, e consequente sujeição à atuação em determinados ramos” (Kahwage e Severi, 2019, p. 55).

Por fim, a estratificação “ocorre na linha vertical, negando-se às mulheres acesso ao topo da ocupação” (Bonelli, 2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., p. 110). Por isso, também é denominada segregação vertical, consistindo na sub-representação feminina em cargos de maior responsabilidade, como decorrência do que na literatura comumente se chama de teto de vidro: as “barreiras sutis e imperceptíveis, mas suficientemente sólidas, que impedem a ascensão profissional e obstam as oportunidades nas carreiras de mulheres” (Kahwage e Severi, 2019KAHWAGE, Tharuell Lima; SEVERI, Fabiana Cristina. Para além de números: uma análise dos estudos sobre a feminização da magistratura. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 56, n. 222, p. 51-73, abr./jun. 2019., p. 55).

Em seu artigo, Bonelli afirma que não se notam a segmentação e a sedimentação nos Tribunais estudados (2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., p. 111)6 6 O texto de Bonelli parece desconsiderar o modo como o trabalho é dividido no Tribunal de Justiça. Por mais que o conceito de “segmentação” lance luz sobre um fenômeno bastante visível no mercado jurídico, não parece fazer muito sentido sua aplicação à realidade do TJ, em que o trabalho é dividido simplesmente por Seções de Direito Criminal, Direito Público e Direito Privado (Art. 2º, RI-TJSP). Esses campos de trabalho, assim recortados, não representam guetos de atuação profissional. O que talvez haja é uma presença ainda mais masculinizada nas Câmaras Reservadas de Direito Empresarial, pelo nível de especialização. Mas é algo ainda a se investigar. . O fechamento generificado se daria, então, apenas por meio da dupla estratificação/teto de vidro, sendo “resultado da hegemonia do profissionalismo no tribunal, que precedeu à incorporação da diferença” (2011, p. 110).

Essa tese é formulada diversas vezes ao longo de seu artigo, com ligeiras variações, conforme se nota pelos exemplos abaixo:

“Onde a consolidação da autonomia profissional precedeu a inclusão do ‘outro’ no corpo da magistratura, observa-se um fechamento generificado, com mais estratificação. (...) Argumenta-se que o profissionalismo é o diferencial na composição de gênero desses tribunais [TRF3 e TJSP] (...), havendo maior participação feminina onde o processo de profissionalização está menos consolidado” (2011, pp. 104-05).

De maneira mais direta: “A consolidação do profissionalismo em um momento precedente ao ingresso feminino na carreira é o fator explicativo das barreiras à feminização no [TJSP] (...)” (Bonelli, 2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., p. 107).

Diante dessas formulações, duas perguntas se impõem. A primeira delas relaciona-se ao conceito de profissionalismo, central à explicação dada: o que se entende por “profissionalismo”, mais exatamente? No artigo, Bonelli não define o termo de maneira precisa, limitando-se a se referir a Freidson. Faz-se necessária, portanto, uma retomada mais detida do conceito para que se possa avançar na discussão da tese mencionada.

Em Professionalism: the third logic (2001), Freidson concebe o profissionalismo como um método logicamente distinto de se organizar e controlar as circunstâncias sociais, econômicas e culturais relacionadas a um trabalho (entendido aqui como o exercício de um saber ou técnica). Para ele, o profissionalismo seria uma lógica específica, concebida em contraste com a lógica legal-racional weberiana, que representaria o gerencialismo (managerialism), e com a lógica smithiana do livre mercado, que representaria o consumerismo (consumerism) (2001, p. 179). Ao lado dessas duas, o profissionalismo seria uma "terceira lógica" de organização e controle do trabalho e de suas circunstâncias (2001, p. 7). Essa lógica é definida ideal-tipicamente7 7 Trata-se, portanto, de uma abordagem que é metodologicamente weberiana. Para Weber, “an ideal type is formed by the one-sided accentuation of one or more points of view and by the synthesis of a great many diffuse, discrete, more or less present and occasionally absent concrete individual phenomena, which are arranged according to those one-sidedly emphasized viewpoints into a unified analytical construct. In its conceptual purity, this mental construct cannot be found empirically anywhere in reality. It is a utopia. Historical research faces the task of determining in each individual case, the extent to which this ideal-construct approximates to or diverges from reality (...). When carefully applied, those concepts are particularly useful in research and exposition” (1949, p. 90, itálico no original). por meio de cinco características constantes e de um conjunto de possíveis variáveis que a ela se associam contingencialmente (seja para estabelecê-la, seja para fortalecê-la):

"The defining elements of the ideal type, the theoretical constants, are, first, a body of knowledge and skill which is officially recognized as one based on abstract concepts and theories and requiring the exercise of considerable discretion; second, an occupationally controlled division of labor; third, an occupationally controlled labor market requiring training credentials for entry and career mobility; fourth, an occupationally controlled training program which produces those credentials, schooling that is associated with “higher learning” segregated from the ordinary labor market, and provides opportunity for the development of new knowledge; and fifth, an ideology serving some transcendent value and asserting greater devotion to doing good work than to economic reward” (2001, p. 180)8 8 Sobre as variáveis contingenciais que se associam ao tipo, vide Freidson, 2001, p. 180. .

Em contraste com as duas outras lógicas de organização e controle do trabalho, o profissionalismo pode ser sintetizado por meio do seguinte quadro:

Quadro 2
As três lógicas de organização e controle do trabalho

Em suma, o profissionalismo, enquanto terceira lógica de organização e controle do trabalho, é um conjunto de instituições que possibilitam seu controle ocupacional:

"I use the word ‘professionalism’ to refer to the institutional circumstances in which the members of occupations rather than consumers or managers control work. (...) Professionalism may be said to exist when an organized occupation gains the power to determine who is qualified to perform a defined set of tasks, to prevent all others from performing that work, and to control the criteria by which to evaluate performance. (...) The organized occupation creates the circumstances under which its members are free of control by those who employ them" (Freidson, 2001______. Professionalism: the third logic. Cambridge, UK: Polity Press, 2001., p. 12).

Essa retomada do termo, buscando seu sentido mais preciso em Freidson, se fez necessária para discutir a tese de Bonelli: como dito, de acordo com ela, o fechamento generificado no TJSP teria se dado por meio da estratificação/teto de vidro, sendo “resultado da hegemonia do profissionalismo no tribunal, que precedeu à incorporação da diferença” (2011, p. 110). Retomado o conceito, pergunta-se: o que, no profissionalismo, implica essas barreiras à feminização na Justiça Estadual?

À primeira vista, partindo apenas da definição de Freidson, não há uma relação evidente entre profissionalismo e barreiras à feminização. Bonelli parece relacionar o profissionalismo a um ideal de neutralidade baseado na expertise, apontando seu uso instrumental para a estratificação generificada do TJSP:

"O ideário do profissionalismo enfatiza os sentimentos comuns partilhados pelos pares, dando destaque à neutralidade da expertise para suplantar interesses específicos. (...) A consolidação do profissionalismo e de seu ideário de neutralidade antes do ingresso feminino na carreira atuou para não dar visibilidade às diferenças e para estratificar a profissão segundo o gênero no tribunal estadual. (...) No TJSP, a hegemonia do profissionalismo precedeu a incorporação da diferença e estratificou acentuadamente o tribunal. No TRF3, essa hegemonia não estava constituída, suplantando as marcas de gênero na progressão" (2013, p. 125 e 128).

Como interpretar essa tese? A estrutura do argumento parece ser a seguinte: há uma premissa fática e duas consequências que explicariam a diferença entre TJSP e TRF3:

  • Premissa fática: no TJSP, a dupla "profissionalismo-neutralidade" se consolidou antes do ingresso feminino na carreira. Esse fato é causa de duas consequências:
    • Consequência 01: invisibilidade das diferenças no TJSP;

    • Consequência 02: estratificação da profissão segundo o gênero no TJSP.

Mas o que isso quer dizer, mais especificamente? Que o ideal do profissionalismo não era algo a afetar as pessoas envolvidas na estruturação e na composição da Justiça Federal? Não há evidências disso. Ao contrário, partindo do conceito de profissionalismo, é plausível pressupor que esse ideal é algo que permeia todo o campo das profissões jurídicas, sendo essencial para sua própria constituição. O conceito ideal-típico proposto por Freidson parece estar voltado muito mais para uma análise das diferentes profissões (do modo como se estabelecem, se consolidam, disputam espaços de atuação, organizando e controlando tais espaços de trabalho) do que propriamente para uma análise de mecanismos excludentes que operam dentro de instituições (como é o caso dos tribunais):

"In the most elementary sense, professionalism is a set of institutions which permit the members of an occupation to make a living while controlling their own work. (...) The two most general ideas underlying professionalism are the belief that certain work is so specialized as to be inaccessible to those lacking the required training and experience, and the belief that it cannot be standardized, rationalized or, as Abbott (1991b: 22) puts it, 'commodified'" (Freidson, 2001______. Professionalism: the third logic. Cambridge, UK: Polity Press, 2001., p. 17)10 10 A segunda dessas ideias que subjazem ao profissionalismo vem sendo colocada em questão. Vide, por exemplo, os trabalhos de Susskind: 2010, pp. 27-57; 2013, pp. 23-38. .

Como se nota pela leitura do excerto, não há uma relação evidente entre profissionalismo e barreiras à feminização, sendo necessária uma mediação, uma explicitação mais detalhada dos mecanismos que ligariam essa lógica específica de organização e controle do trabalho à desigualdade de gênero nos tribunais estudados.

Quando especifica fatores que se associam às barreiras à feminização, Bonelli aponta para a existência do teto de vidro (2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., p. 109). Mas isso é um fato, não uma explicação. Mais adiante, aponta também para uma associação entre promoção na carreira e necessidade de mobilidade (mudanças de cidades), o que prejudicaria desproporcionalmente as mulheres - essa sim uma possível explicação:

“outro fator que constrange a progressão feminina no âmbito da justiça estadual é o padrão de mobilidade geográfica que as carreiras de juiz/a e de promotor demandam, sendo mais difícil para elas combinarem o exercício profissional e a vida privada. (...) Embora haja mobilidade espacial nas carreiras federais, os profissionais chegam mais rápido a grandes e médias cidades, havendo menos dispersão das varas por inúmeras localidades, como na estrutura da justiça estadual” (2011, pp. 109-10).

Ainda que possa ser verdadeira11 11 Trata-se de uma hipótese, não se tendo conhecimento de um estudo que a teste. Há, porém, casos semelhantes que a colocam em dúvida, como o da Procuradoria do Município de São Paulo. O cargo de Procurador do Município é disputado, bem remunerado (média de R$ R$ 36.245,88, considerando os três níveis em conjunto e registrando-se que parte desse valor se deve a honorários advocatícios) e ainda permite ao ocupante o exercício da advocacia privada em paralelo. Apesar de não exigir mobilidade espacial (mudanças de cidade), trata-se de carreira predominantemente masculina (61% de homens, segundo dados colhidos do portal http://transparencia.prefeitura.sp.gov.br/funcionalismo/, acesso em 22/3/2022). Se a exigência de ampla mobilidade espacial fosse a causa da baixa participação de mulheres na magistratura, esperar-se-ia que a disparidade de gênero não pudesse ser observada em carreiras semelhantes (como a da Procuradoria do Município de São Paulo) que não tivessem essa exigência. Mas esse não é o caso: tanto no Judiciário, quanto na Procuradoria, a predominância masculina é notável. Portanto, ou a mobilidade espacial não é o fator a explicar a diferença, ou existem outras variáveis que interferem no caso, de modo a termos um resultado diferente do esperado. , é preciso notar que essa explicação não tem a ver com a velhice da Justiça Estadual (i.e., com o fato de o profissionalismo ter se consolidado no TJSP antes do ingresso feminino), mas com o simples fato de ela ser estadual: é preciso que a Justiça Estadual tenha mais capilaridade que a Federal, independentemente de quando tenham sido organizadas.

Com esse ponto, chegamos ao segundo argumento contra a tese de Bonelli: não só não parece haver um mecanismo causal claro que mostre que a consolidação anterior do profissionalismo explica o fechamento generificado nos Tribunais, como também a evolução recente dos dados parece falsear essa explicação.

2.2 A evolução recente dos dados: TJSP e TRF3 (2011-2020)

O site do Tribunal de Justiça de São Paulo conta com uma lista de desembargadores por antiguidade12 12 Disponível on-line em: < Tribunal Pleno >. Acesso em: 05/01/2022. . Apesar de ela não especificar a data de ingresso na segunda instância, é possível depreender o comportamento das nomeações ao longo dos anos. Dividindo-se a lista dos 354 desembargadores ao meio, obtém-se uma lista dos mais antigos e uma dos mais novos no Tribunal. Na metade mais antiga, há apenas oito desembargadoras (4,5% de 177); na mais recente, 23 (13% de 177). Quanto à forma de ingresso, oito foram indicadas pelo quinto constitucional13 13 O “quinto constitucional” está previsto no art. 94 da CF88, aplicando-se tanto ao TRF3 quanto ao TJSP: “Art. 94. Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes.” da advocacia, sendo que quatro delas foram empossadas na metade mais antiga da lista. Pelo quinto constitucional do Ministério Público, vieram três desembargadoras, sendo duas entre os desembargadores da metade mais antiga da lista. Vinte desembargadoras, portanto, chegaram à segunda instância por progressão na carreira da magistratura (mas apenas duas foram indicadas na metade mais antiga da lista).

Esses números permitem duas conclusões sobre o controle de portas do TJSP. Em primeiro lugar, pode-se dizer que por muito tempo o Tribunal praticamente não reconhecia as mulheres como capacitadas a desempenhar a função de juízas e desembargadoras. A primeira juíza ingressou no Tribunal no início dos anos 1980, ao passo que outros Estados da Federação já contavam com mulheres ocupando cargos na magistratura (Bruschini, 2007BRUSCHINI, Maria Cristina A. (2007), Elas chegaram para ficar. Difusão de Idéias. Fundação Carlos Chagas, outubro, pp. 1-7., p. 4). Além disso, dados mostram que, em 1990, as mulheres representavam 41,8% (10.154) dos concluintes do curso de direito, proporção que, no ano seguinte, chegou a 45%, ultrapassando 50% em 1998 (Bruschini, 2007, p. 3). Não há que se falar, portanto, que a baixa participação feminina se justificava por seu ingresso tardio no ensino superior.

Em segundo lugar, pode-se perceber uma mudança na forma das indicações: na metade mais antiga da lista, a maioria das mulheres chega à segunda instância por reconhecimentos localizados fora do Poder Judiciário (seis de oito casos). Na metade mais recente, o cenário é oposto: das 23 indicações feitas no período, 18 vieram de promoções na própria carreira da magistratura, o que constitui um sinal de melhora.

Apesar de lenta, essa evolução, combinada com os dados mais recentes do TRF3, parece contrariar a tese de Bonelli: não só houve uma melhora no quadro do TJSP, como também houve uma deterioração na representatividade de mulheres no Tribunal Federal. Ainda que a novidade institucional pudesse explicar a composição inicial do TRF3 (com menos assimetria que a encontrada no mesmo momento no TJSP), sua fotografia recente talvez nos mostre que sua “novidade” deu lugar à “velhice institucional” antes que se chegasse a um ponto de equilíbrio. Se uma leitura mais otimista do argumento de Bonelli poderia sinalizar que a inovação institucional resolveria (ou ao menos minoraria) o problema da desigualdade de gênero, os dados mostram, ao contrário, que ao menos no TRF3 as conquistas obtidas com a novidade institucional se erodiram com o tempo. Os números são de 2020 e permitem uma avaliação comparativa com os de 2011, apresentados anteriormente no Quadro 1:

Quadro 3
TJSP versus TRF-3 em 2020

A porcentagem de juízas na primeira instância do TJSP (40%) tornou-se maior do que no TRF3 (38%), diferentemente da situação apurada por Bonelli em 2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23. (2011; 2013a). Além disso, foi revertida a relativa igualdade então constatada na segunda instância do TRF3: atualmente, 79% de seus 42 desembargadores são homens (ante um percentual anterior de 54%). De 2011 a 2020, a participação feminina na segunda instância do TJSP dobrou (embora isso ainda represente parcos 9% do total de cadeiras), enquanto no TRF3 ela surpreendentemente diminuiu mais de 50%, caindo de 46% para 21%. A involução observada se deu mesmo diante de um ingresso maior de mulheres na primeira instância e da ampliação do debate e das lutas por paridade de gênero.

Se a explicação para a disparidade estiver mesmo ligada ao profissionalismo e à velhice institucional, como interpretar a evolução recente do TJSP e a involução do TRF3? Esse resultado parece fortalecer uma explicação alternativa, à qual a própria Bonelli faz alusão: a diferença entre os tribunais (TRF3 e TJSP) seria explicada simplesmente por uma peculiaridade da Justiça Federal. Ela não é explicada pela novidade ou velhice institucional em si, mas pelo fato de as indicações para a cúpula da Justiça Federal serem mais afetadas pela política, “cabendo ao governo federal a decisão sobre a criação de novas varas, o local onde serão instaladas e a decisão sobre promoção para a segunda instância” (Bonelli, 2011, p. 108). Os dados de 2011 seriam efeito, em parte, de escolhas do Poder Executivo.

Bonelli alude a esse tipo de explicação quando afirma que: "características do profissionalismo (Freidson, 2001______. Professionalism: the third logic. Cambridge, UK: Polity Press, 2001.), como o poder profissional, a autonomia, o controle jurisdicional, a definição dos critérios de progressão e o insulamento da carreira marcam as diferenças entre o TJSP e o TRF‑3" (Bonelli, 2011, p. 107). O profissionalismo agiria por meio de um maior isolamento dos tribunais estaduais em relação ao Executivo, assim como por meio de mecanismos sutis nas regras de seleção e progressão na carreira, diferenciando-os dos tribunais federais. Mas Bonelli não indica mecanismos específicos, nem tenta descrevê-los. Retorna-se, assim, à pergunta da seção anterior: o que, no profissionalismo, implica essas barreiras à feminização na Justiça Estadual? Como se dá esse mecanismo causal, mais especificamente? Na próxima seção, discutem-se em mais detalhes essas duas possíveis hipóteses: (i) uma maior interferência do Executivo na Justiça Federal; e (ii) a atuação de mecanismos sutis nas regras de seleção e promoção no Judiciário Estadual.

2.3 Possíveis hipóteses para explicar os dados

2.3.2. Menor insulamento do TRF3 em relação ao Executivo?

Uma possível hipótese mencionada por Bonelli (2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., p. 108) para explicar os dados de 2011 dos tribunais estudados seria o menor insulamento do TRF3 em relação ao Poder Executivo quando comparado ao TJSP. Será uma hipótese plausível?

Nos tribunais federais, a escolha dos desembargadores de carreira cabe ao Presidente da República, que o faz a partir de listas tríplices elaboradas pelos tribunais segundo os critérios de antiguidade e merecimento14 14 Art. 93, inc. III, da CF88. . A escolha dos desembargadores que entram pelo quinto constitucional também é feita pelo presidente, a partir de listas tríplices feitas pelos tribunais, que, por sua vez, são elaboradas a partir de listas sêxtuplas enviadas pelas classes de advogados e promotores15 15 Art. 94 da CF88. .

No TJSP, a seleção dos desembargadores que entram pelo quinto também é feita pelo chefe do Executivo (o governador do Estado) a partir de listas tríplices. Estas são feitas pelo Conselho Superior do TJSP a partir de listas sêxtuplas elaboradas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo Ministério Público (MP), e então votadas pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça, composto por 25 desembargadores16 16 Arts. 8; 13, inc. II, al. “l”; 16, incs. I e II do RI-TJSP. . A elaboração das listas de promoções de juízes da primeira para a segunda instância também é de competência do Conselho Superior, cabendo a escolha ao Órgão Especial.

Em suma, as vagas são preenchidas por duas vias: pelo quinto constitucional ou por promoção na carreira de acordo com os critérios de antiguidade e merecimento. As vagas do quinto são escolhidas pelo chefe do Executivo (seja estadual, seja federal) dentre as três opções constantes da lista que lhe é submetida. As vagas de carreira, as 80% restantes, são preenchidas, como dito, por antiguidade e merecimento. No primeiro caso, o tribunal envia um único nome ao chefe do Executivo. Trata-se, portanto, de um preenchimento com pouquíssima margem de discricionariedade: para que o magistrado mais antigo não seja indicado, são necessários os votos da maioria absoluta do Tribunal (ou de seu órgão especial), repetindo-se a votação até que se chegue a um nome17 17 Art. 80, §1º, inc. III da LOMAN; art. 93, inc. II, “d” da CF88. . Por sua vez, as indicações pelo critério de merecimento avaliam o mérito, o talento e o desempenho da pessoa por meio de indicadores que são, ao menos em tese, objetivos: são considerados a conduta do juiz, sua eficiência (a “operosidade”)18 18 Art. 80, §1º, inc. II, da LOMAN. A Constituição prescreve que o merecimento seja aferido conforme o “desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento” (art. 93, II, c). no exercício do cargo, o número de vezes que figurou em outras listas por merecimento e seu desempenho em cursos internos de aperfeiçoamento. Nesse caso, três nomes são enviados ao chefe do Executivo, que faz sua escolha19 19 Uma matéria publicada pela Folha de S. Paulo (01/12/2010), em blog especializado em assuntos jurídicos (Para entender Direito), explica em termos simples como funciona a promoção de magistrados: < Como funciona a promoção de um magistrado? - Para Entender Direito >. Acesso em 15/01/2022. . Por força de disposição constitucional, quem figurar por três vezes consecutivas (ou cinco vezes alternadas) em listas tríplices de merecimento deve ser obrigatoriamente promovido20 20 Art. 93, inc. II, “a”. .

Como as vagas de carreira são preenchidas, alternadamente, por antiguidade e merecimento, conclui-se que ⅗ do total de vagas são preenchidas por escolha do Executivo mediante lista tríplice que lhe é submetida pelo tribunal (⅕ das vagas referindo-se ao quinto constitucional e ⅖ às vagas preenchidas por merecimento), sendo os outros ⅖ preenchidos por antiguidade, com menos ingerência do Executivo.

Portanto, ainda que condicionada a nomes previamente selecionados, a interferência do Poder Executivo se dá tanto no TRF3 quanto no TJSP - o que não se leva em conta no artigo de Bonelli (que parece tratar o Tribunal Federal como um caso à parte, menos insulado em relação ao Poder Executivo).

Independentemente disso, os dados de nomeação para o TRF3 parecem sugerir que o padrão de nomeações que resultou em uma diminuição do número de mulheres no tribunal não está relacionado a quem ocupa a chefia do Executivo. Conforme se observa no gráfico abaixo, a diminuição do número de mulheres (de 18 em 2011 para 7 em 2022) ocorreu majoritariamente sob o comando do Partido dos Trabalhadores, no governo Dilma Rousseff:

A situação de relativa igualdade observada em 2011 foi sendo modificada à medida que desembargadoras se aposentavam, sendo substituídas por homens. Com exceção da desembargadora Regina Helena Costa (que foi nomeada para o cargo de Ministra do STJ em 2013), quinze juízas deixaram o TRF3 por terem se aposentado: Eva Regina (31/3/11), Suzana Camargo (17/7/12), Ramza Tartuce (6/12/12), Leide Polo (29/2/12), Marianina Galante (6/12/12), Vera Jucovsky (2/9/13), Vesna Kolmar (23/07/13), Salette Nascimento (5/1/15), Alda Basto (11/8/15), Cecília Mello (8/9/17), Ana Pezarini (15/1/19), Tania Marangoni (13/9/19), Cecília Marcondes (16/3/20), Lucia Ursaia (27/11/21) e Diva Malerbi (27/12/2021).

Ao longo do período analisado, foram feitas 25 nomeações (a maioria delas, 16, no governo de Dilma Rousseff). Em 2010, ainda no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, foi nomeado Fausto de Sanctis; em 2012: Paulo Fontes; em 2013: Mônica Nobre, Toru Yamamoto, Marcelo Saraiva, Tânia Marangoni, Souza Ribeiro e David Dantas; em 2014: Maurício Kato, Gilberto Jordan, Hélio Nogueira e Paulo Domingues; em 2016, ainda sob o comando de Dilma Rousseff: Carlos Delgado, Wilson Zauhy, Ana Pezarini, Nelson Porfírio e Valdeci dos Santos; em 2018, já no governo de Michel Temer, Inês Virgínia; por fim, em 2020-22, sob o comando de Jair Bolsonaro, tomaram posse os desembargadores José Carlos Francisco, João Batista Gonçalves, Leila Paiva Morrison, Marcelo Vieira de Campos, Victório Giuzio Neto, Ali Mazloum e Herbert Cornélio Pieter de Bruyn Júnior.

Ou seja, apenas cinco mulheres foram promovidas ao cargo de desembargadora no intervalo analisado: três por merecimento, uma por antiguidade e uma em vaga destinada ao MP. Mesmo respondendo por boa parte do período (2010-16), apenas três dessas nomeações ocorreram com o Poder Executivo sob o comando do Partido dos Trabalhadores, à esquerda do MDB de Michel Temer e do governo de Jair Bolsonaro. O resultado não parece, portanto, se explicar pelo maior ou menor insulamento do TRF3 em relação ao Poder Executivo - seja pela análise das normas que regulam as promoções, seja pela análise dos números e das indicações do TRF3 na última década.

Em novembro de 2021, foi promulgada a Lei 14.253, que transformou cargos vagos de juiz federal substituto em cargos de desembargador, criando 57 novas vagas de desembargadores federais, 12 delas no TRF3. Trata-se de aumento de 41% do número de vagas de desembargador federal, que saltaram de 139 para 196.22 22 Em outubro de 2021, foi promulgada a Lei 14.226/21, que criou o TRF-6. Composto por 18 novos desembargadores, o tribunal é responsável pelo estado de Minas Gerais. Contando com estes, o número total de desembargadores federais passou a ser de 214. As vagas do TRF-6 já foram todas preenchidas, resultando em um tribunal composto por 15 homens e 3 mulheres. Destas últimas, duas foram nomeadas por merecimento: Luciana Pinheiro Costa e Simone dos Santos Lemos Fernandes. A terceira é Mônica Sifuentes, ex-integrante do TRF-1 que optou pela remoção para o TRF-6. A lista completa está disponível neste link: < Presidente Bolsonaro nomeia 17 desembargadores federais para primeira composição do TRF6 (stj.jus.br) >. Algumas nomeações foram feitas em 2022 pelo presidente Jair Bolsonaro e ainda há vagas a serem preenchidas pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, com base em listas tríplices que lhe serão submetidas pelos tribunais.

Como já explicado, as vagas reservadas à magistratura são preenchidas mediante lista em que juízes federais se inscrevem com base nos critérios de antiguidade e merecimento. No caso da antiguidade, os tribunais federais apresentam ao Presidente da República um único nome; já no caso do merecimento, três nomes lhe são apresentados, cabendo-lhe a escolha. As vagas do quinto constitucional, por sua vez, são preenchidas mediante indicações do Ministério Público e da OAB, por lista sêxtupla. A partir dessa lista, os tribunais elaboram outra, com três nomes, que são apresentados ao Presidente da República. Portanto, a interferência do Executivo, apesar de existente, é limitada (ao menos no plano formal). No plano político, porém, sabe-se que a influência do Presidente da República é significativa23 23 Em 2021, noticiava-se que o Senador Flávio Bolsonaro (filho do ex-presidente) e o Ministro Nunes Marques (indicado por Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal) eram atores-chave na negociação dos nomes que comporiam as listas. < Bolsonaro nomeará 75 desembargadores, na maior canetada da história recente - 10/11/2021 - Mônica Bergamo - Folha >. , e será interessante comparar a evolução dos dados, a fim de verificar se haverá alteração no padrão de nomeações pelo governo Lula 3.

2.3.2. Mecanismos sutis nas regras de seleção e promoção?

Em seu artigo, Bonelli ressalta que “o TJSP aprovou o ingresso da primeira juíza na carreira no início dos anos de 1980. Percorrendo os degraus da progressão, só em 2003 duas juízas chegaram ao pleno do tribunal” (2013, p. 128). Essa afirmação nos leva a uma segunda possível hipótese para explicar os dados referentes aos tribunais estudados: a atuação de mecanismos sutis nas regras de seleção e promoção no Judiciário Estadual. Consolidado o profissionalismo no TJSP antes do ingresso feminino no tribunal, a autonomia dele decorrente (que marca a profissão e permite o controle de acesso, dentre outros poderes) teria permitido aos incumbentes restringir o acesso de mulheres por meio dessas regras.

Como bem lembram Kahwage e Severi, “é possível que nos critérios de ingresso e promoção da carreira estejam presentes espaços de discricionariedade que causam desigualdades entre os gêneros no interior da carreira e na composição de gênero dos tribunais de justiça no País” (2019, p. 57). A própria Bonelli relata que, até 1996, os candidatos ao ingresso na magistratura eram identificados pelos nomes em todas as fases. Quando foram substituídos por códigos numéricos nos exames escritos, observou-se um aumento da aprovação feminina, a ponto de já em 2011 chegarem ao exame público oral uma porcentagem maior de mulheres do que de homens (nessa etapa, porém, mais homens seriam aprovados) (Bonelli, 2011, pp. 105-06)24 24 As fontes dessas informações não são citadas no artigo. . Kahwage e Severi, comparando carreiras em diferentes tipos de tradições jurídicas, formulam a hipótese de maneira mais explícita:

"Apesar das pequenas diferenças em cada tipo de tradição [civil law e common law], a carreira das mulheres tende a estagnar-se nos escalões inferiores da magistratura - elas permanecem, em geral, nas primeiras instâncias (segregação vertical). Mesmo com processos de seleção judicial totalmente diferentes, os baixos percentuais de mulheres que ascendem na carreira sugerem a existência de espaços de discricionariedade que possibilitam que os homens se perpetuem em cargos mais altos e impeçam as mulheres de alcançar tais posições" (2019, p. 58).

A fim de avaliar essa hipótese para os casos do TRF3 e do TJSP, será necessário descrever as regras que estão por trás (e que, portanto, condicionam) as nomeações e promoções no Poder Judiciário brasileiro.

Conforme mencionado pela própria Bonelli (2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., p. 112), há mais degraus na carreira estadual quando comparada à federal. Para quem ingressa no TJSP, são quatro degraus: juiz substituto, entrância inicial, entrância intermediária e entrância final. Já no TRF3, a carreira está estruturada com um degrau a menos: juiz substituto, juiz auxiliar e juiz titular. Assim, quem ingressa na carreira da magistratura começa na condição de juiz substituto. De acordo com Bonelli, “a estratificação por gênero que se observa no TJSP começa na entrância final, que conta com 28% de juízas, sendo muito acentuada na segunda instância, onde estão os desembargadores” (2011, p. 112). Conforme os dados já apresentados (relativos aos anos de 2011 e 2020), a desigualdade de fato é menor na entrada, com cerca de 60% de homens e 40% de mulheres nos dois tribunais estudados25 25 Em 2011, a primeira instância do TJSP tinha 64% de homens, contra 62% do TRF3. Em 2020, 60% no TJSP e novamente 62% no TRF3. Na magistratura como um todo, houve melhora nas últimas décadas: segundo dados do CNJ (2019, p. 42), a participação feminina na magistratura saltou de 24,6% em 1988 para 38,8% em 2018. . No mesmo sentido apontam os dados apresentados no Censo do Judiciário (2013-2014):

Gráfico 2
Percentual de magistrados segundo o tipo de carreira (Brasil, 2013)

Nota-se que o primeiro degrau (juiz substituto) é o que conta com maior percentual feminino (42,8%), que diminui à medida que a carreira progride, chegando a apenas 21,5% no cargo de desembargador26 26 Passados cinco anos do Censo, os números continuam praticamente os mesmos: dados do próprio CNJ mostram que, em 2018, as mulheres representavam 44% dos juízes substitutos, 39% dos titulares e 23% dos desembargadores (CNJ, 2018, p. 8). Tais dados sugerem que é duvidosa a tese de que “a chegada das mulheres aos tribunais e aos órgãos do poder judiciário é uma questão de tempo”, tal como afirmaram Bruschini (2007, p. 7) e Fragale, Moreira e Sciammarella (2015, p. 74). .

Esses dados objetivos estão em linha com as percepções subjetivas das juízas. A grande maioria delas pensa que os concursos para ingresso na carreira são imparciais, não discriminando entre homens e mulheres: o Censo constatou que 84,6% das juízas do TJSP concordam totalmente ou concordam que “os concursos para magistratura são imparciais em relação às candidatas mulheres”, número que chega a 87% no TRF327 27 Embora interessante, esse dado deve ser tomado com alguma cautela. Como o Censo do CNJ considera apenas as candidatas aprovadas, há um possível viés de seleção na amostra, conhecido na literatura como “viés de sobrevivência” (survivorship bias). Esse viés pode ser definido como “um atalho cognitivo que ocorre quando um grupo visível que obteve sucesso é erroneamente tomado como sendo todo o grupo, em razão de o subgrupo dos que foram malsucedidos não ser visível. O nome do viés vem do erro que alguém comete quando, em um conjunto de dados, considera somente as observações ‘sobreviventes’, desconsiderando aquelas que não sobreviveram a determinado evento” (The Decision Lab - The Survivorship Bias, explained - tradução própria). . Esses percentuais são praticamente os mesmos (com pequenas variações para mais ou para menos) de acordo com o ramo da justiça (2014, p. 87), as faixas de idade das respondentes (2014, p. 93), com o fato de se a magistrada possui ou não filhos (2014, p. 99) e com o tipo de cargo que ocupa (2014, p. 105). A título de exemplo, segue gráfico com os dados por ramo da justiça:

Gráfico 3
Percentual de magistradas segundo a concordância ou discordância com a afirmação "os concursos para magistratura são imparciais em relação às candidatas mulheres", por ramo de Justiça (Brasil, 2013)

De acordo com o art. 93, inc. I, da Constituição, o ingresso na magistratura se dá mediante concurso público de provas e títulos, com a exigência de pelo menos três anos de experiência jurídica comprovada pelo bacharel em direito. Além disso, o art. 78, §2º, da Lei Orgânica da Magistratura prevê que os candidatos sejam “submetidos a investigação relativa aos aspectos moral e social, assim como a exame de sanidade física e mental”. Cinco são as etapas do concurso, conforme a Resolução nº 75/09 do CNJ: (i) prova objetiva de caráter eliminatório e classificatório; (ii) duas provas escritas, também eliminatórias e classificatórias; (iii) sindicância da vida pregressa e investigação social, exame de sanidade física e mental e psicotécnico, com caráter eliminatório; (iv) prova oral, com caráter eliminatório e classificatório; e (v) avaliação de títulos, apenas classificatória.

Como já citado, Bonelli (2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., pp. 105-16) constatou um viés na segunda etapa à época em que os candidatos ainda eram identificados nominalmente, o que se resolveu por meio da substituição dos nomes por uma identificação numérica. Se, tal como apontam Kahwage e Severi, há algum espaço de discricionariedade que dificulte a entrada de mulheres, ele estaria nas etapas de sindicância e/ou na prova oral. De fato, segundo o art. 10, parágrafo único, da Res. nº 75/09 do CNJ, fica eliminado quem for contraindicado na etapa de sindicância, havendo que se investigar se um número desproporcional de candidatas é eliminado nesta etapa.

Quanto à prova oral, a resolução do CNJ prescreveu que ela deve ser feita em sessão pública e gravada por qualquer meio que possibilite sua posterior reprodução (art. 64, caput e parágrafo único) - uma medida que dificulta arbitrariedades28 28 Apesar disso, cabe ressaltar que, de acordo com o art. 70, §1º, da Res. nº 75/09 do CNJ, “é irretratável em sede recursal a nota atribuída na prova oral”. . Cabe à Comissão Examinadora avaliar o domínio do conhecimento jurídico do candidato, a adequação de sua linguagem e a articulação de seu raciocínio, assim como sua capacidade de argumentação e o uso correto da língua portuguesa (art. 65, §3, da Res. nº 75/09 do CNJ). A nota final atribuída ao candidato é calculada pela média aritmética simples das notas atribuídas pelos examinadores. Apesar de as regras diluírem a possibilidade de vieses (pelo fato de a sessão ser pública e gravada e pela nota ser a média das notas atribuídas por um conjunto de pessoas), há relatos de que homens são desproporcionalmente mais aprovados na etapa oral do concurso (Bonelli, 2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23., pp. 105-06).

De todo modo, tanto os dados objetivos citados acima, quanto as percepções subjetivas das magistradas apontam que a desigualdade, apesar de existir no momento de ingresso na carreira29 29 Muito embora a proporção de mulheres esteja estagnada perto dos 40%, números do CNJ sugerem algum progresso: "a distribuição de gênero de acordo com o período de ingresso na carreira mostra que entre os magistrados ativos que ingressaram até 1990, a proporção de mulheres é de apenas um quarto. Para os que ingressaram de 1991 a 2000, a proporção de mulheres atinge 40%. As mulheres representam 41% dos ingressantes entre 2001 e 2010; e 37% dos que entraram na carreira a partir de 2011" (CNJ, 2018, p. 8). Além disso, em pesquisa realizada em 2020 sobre a participação feminina nos concursos para a magistratura, concluiu-se que "nos últimos anos as mulheres começam a apresentar percentuais de aprovação idênticos aos dos homens, ainda que o baixo percentual de ambos represente aumento de concorrência" (2020, p. 27). , é mais patente na progressão.

As promoções são realizadas conforme descrito na seção anterior, seguindo os critérios de antiguidade e merecimento previstos na Constituição Federal (art. 93), na Lei Orgânica da Magistratura (art. 80) e na Resolução 106/2010 do CNJ. Esta última revogou a Resolução nº 6 de 2005, que regulamentava anteriormente a aferição do merecimento para promoção de magistrados e acesso aos Tribunais de 2º grau. O contraste entre o nível de detalhamento da atual e da antiga resolução é gritante. A Resolução de 2005 se limitava a repetir os preceitos constitucionais, delegando o estabelecimento de critérios mais específicos para os Tribunais por meio da edição de atos administrativos próprios, o que daria maior margem para discricionariedade. Já a Resolução nº 106/10 prevê uma série de critérios objetivos e específicos para a aferição do merecimento. Seu art. 4º prevê quatro grupos de critérios: critérios de desempenho (aspecto qualitativo da prestação jurisdicional); de produtividade (aspecto quantitativo da prestação jurisdicional); de presteza no exercício das funções; e de aperfeiçoamento técnico. Para cada um deles, a resolução traz uma série de parâmetros específicos (respectivamente nos arts. 5º, 6º, 7º e 8º). Os magistrados inscritos para promoção, após tomarem conhecimento das informações relativas a todos os concorrentes, podem impugnar o processo (art. 13). Todos os debates e fundamentos da votação são registrados e disponibilizados (art. 14).

A promulgação da resolução coincide temporalmente com a pesquisa de Bonelli, o que faz com que seus resultados não captem algum possível efeito dessas regras. De todo modo, basta observar a composição atual da segunda instância para perceber que o problema persiste. A descrição e a leitura minuciosa das regras que balizam o processo sugerem que o problema talvez não esteja tanto na falta de transparência ou em brechas que permitem vieses, mas sim nos tipos de critérios estabelecidos, que penalizam indiretamente as mulheres (se não no âmbito da carreira, ao menos na vida pessoal)30 30 Fragale, Moreira e Sciammarella parecem apontar nessa direção (2015, pp. 61-26). De acordo com dados do CNJ, 14% das magistradas são divorciadas e 13% são solteiras, contra 6% e 8% dos homens (2018, p. 11). . Exemplo disso é o critério previsto no art. 6º, parágrafo único, da Res. nº 106/10, que prevê que:

“Na avaliação da produtividade deverá ser considerada a média do número de sentenças e audiências em comparação com a produtividade média de juízes de unidades similares, utilizando-se, para tanto, dos institutos da mediana e do desvio padrão oriundos da ciência da estatística, privilegiando-se, em todos os casos, os magistrados cujo índice de conciliação seja proporcionalmente superior ao índice de sentenças proferidas dentro da mesma média”.

Apesar de bastante objetivo, o critério adotado pode acentuar o trade-off entre carreira e maternidade, por exemplo31 31 Em todos os ramos da justiça, o percentual de juízas sem filhos supera o percentual de seus pares do sexo masculino: 35% vs. 27% na Justiça Federal, 25% vs. 18% na Justiça Estadual e na Justiça do Trabalho, e 29% vs. 17% em outros ramos da justiça (CNJ, 2018, p. 14). . De acordo com o Censo do CNJ, 53,6% das juízas do TRF3 pensam ter sua vida pessoal afetada pelo trabalho em maior medida que a de seus pares do sexo masculino, número que chega a 55,1% no TJSP. No geral, embora a maioria das magistradas relatem enfrentar as mesmas dificuldades que seus colegas juízes nos processos de remoção e promoção na carreira, esse número é menor entre as magistradas que possuem filhos:

Gráfico 4
Percentual de magistradas segundo grau de dificuldade nos processos de remoção e promoção na carreira em comparação com magistrados, segundo se possui ou não possui filhos (Brasil, 2013)

3. Conclusão

Em editorial de 06/01/22, intitulado "Toga mais diversa"32 32 Disponível on-line: Toga mais diversa - 06/01/2022 - Opinião - Folha. Acesso em: 17/01/22. , o jornal Folha de São Paulo ressaltou a disparidade de gênero existente no Poder Judiciário brasileiro, em especial nos cargos mais elevados. O problema não é novo e os avanços têm se mostrado lentos, mesmo diante da ampliação do debate e das lutas por paridade de gênero. Nesse contexto, são importantes os estudos que tentam entender os mecanismos por trás do fenômeno: investigando suas possíveis causas, torna-se mais fácil revertê-lo. Dentre tais estudos, destaca-se o artigo Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, de Maria da Glória Bonelli, publicado em 2011______. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais, Contemporânea, n. 1, Jan-Jun., 2011, pp. 103-23. e republicado na coletânea Profissionalismo, Gênero e Diferenças nas Carreiras Jurídicas (2013b).

No artigo, Bonelli compara a presença feminina no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). Após constatar uma menor desigualdade de gênero no âmbito federal, argumenta que "a consolidação do profissionalismo em um momento precedente ao ingresso feminino na carreira é o fator explicativo das barreiras à feminização no [TJSP]" (2013a, p. 17). Para Bonelli, a reforma institucional da Justiça Federal teria criado condições para que se compusesse um tribunal com menos desigualdade de gênero do que o TJSP. Isso teria ocorrido em razão dos diferentes momentos em que o profissionalismo se consolidou nesses tribunais: a “velhice institucional” do TJSP, criado cerca de cem anos antes dos TRFs, explicaria sua maior desigualdade de gênero quando comparado ao TRF3. Neste último, a “novidade institucional” teria permitido um ingresso feminino na carreira antes que o profissionalismo ali se consolidasse e criasse barreiras à feminização.

Neste artigo, revisitou-se o estudo de Bonelli. Passados dez anos da pesquisa que deu origem a seu trabalho, avaliou-se se houve uma diminuição da desigualdade de gênero no TJSP e no TRF3 e o modo como esses tribunais se comportaram relativamente um ao outro na última década. Após uma retomada cuidadosa da tese e do argumento de Bonelli, sustentou-se que, apesar de a desigualdade de gênero nos tribunais ser patente, ainda não se tem uma compreensão clara do mecanismo causal que explica as disparidades em cada um dos tribunais estudados. Contestou-se, assim, a tese da "novidade institucional" como explicação das diferenças entre TJSP e TRF3 quanto à desigualdade de gênero.

Dois foram os principais argumentos para embasar essa posição. Em primeiro lugar, argumentou-se que não há clareza suficiente quanto ao nexo causal entre a consolidação do profissionalismo nas respectivas instituições e a desigualdade de gênero observada; em segundo, argumentou-se que, mesmo que houvesse tal clareza, a evolução mais recente dos dados parece falsear a tese de Bonelli. Dada a inegável disparidade de gênero existente, conclui-se serem necessários mais estudos sobre o tema, visando a investigar os mecanismos causais por trás do fenômeno. Como lembram Kahwage e Severi, essa não é uma tarefa fácil:

“a explicação sobre a persistência das desigualdades entre mulheres e homens nas relações laborais é complexa, uma vez que as práticas discriminatórias (barreiras/obstáculos às carreiras) resultam de múltiplos mecanismos difíceis de analisar e demonstrar (BARBERÁ RIBERA; ESTELLÉS MIGUEL; DEMA PÉREZ, 2009)" (2019, p. 58).

Mas isso não é razão para que se desista. A fim de contribuir para a elucidação do fenômeno, discutiram-se duas possíveis hipóteses para explicá-lo: (i) uma maior interferência do Executivo na Justiça Federal; e (ii) a atuação de mecanismos sutis nas regras de seleção e promoção no Judiciário Estadual. No primeiro caso, com base nas regras que disciplinam a promoção na carreira e nos dados de nomeação para o TRF3 na última década, concluiu-se que a interferência política do Executivo não é, ao menos formalmente, uma boa hipótese para explicar as diferenças desse período entre o tribunal federal e o TJSP.

A segunda possível explicação parece ser uma hipótese mais promissora: no acesso à carreira, há margem para possíveis discricionariedades que prejudiquem as mulheres nas etapas de sindicância e da prova oral33 33 Cabe, porém, ressaltar que um estudo feito pelo CNJ concluiu que a quantidade de mulheres aprovadas “não guarda relação ou tendência com o percentual de mulheres em comissões organizadoras ou em bancas avaliadoras [dos concursos para a magistratura]” (2020, p. 28). ; quanto à promoção, os critérios que aferem merecimento são bastante objetivos, indicando-se que o problema talvez não esteja tanto na falta de transparência ou em brechas que permitem vieses, mas sim nos tipos de critérios estabelecidos, que podem penalizar indiretamente as mulheres (se não no âmbito da carreira, ao menos na vida pessoal). Uma vez mais, dada a inegável disparidade de gênero existente, conclui-se ser necessário mais estudos sobre o tema34 34 O CNJ deu passo importante ao editar a Resolução Nº 255 de 04/09/2018, que institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Nos últimos anos, o órgão tem feito importantes estudos sobre o tema (CNJ, 2019; 2020). .

Independentemente dos mecanismos causais específicos que estão por trás da disparidade constatada, os dados nos permitem dizer que são louváveis iniciativas como a tomada pela OAB-SP, que adotou a paridade de gênero na elaboração de suas listas sêxtuplas para indicação de vagas de juízes para o TJSP. Visando a minorar o problema, o Ministério Público deveria assumir o mesmo compromisso. Como destacado ao longo deste texto, 20% das vagas na segunda instância são preenchidas tendo por base as listas sêxtuplas elaboradas por advogados e promotores.

No mesmo sentido, seria importante uma medida que assegurasse o preenchimento, por candidatas mulheres, das vagas de desembargadoras que se aposentam: como mostrou a análise dos números do TRF3 de 2011 a 2020, a involução na disparidade de gênero no tribunal é explicada pelo fato de as desembargadoras que se aposentaram (e que já eram minoria no tribunal) terem sido substituídas majoritariamente por homens. Também são válidas as discussões sobre medidas como a regulamentação do teletrabalho (home office), que, de acordo com algumas juízas, pode contribuir para o atingimento dos critérios de produtividade sem impor um demasiado sacrifício à vida familiar e pessoal35 35 Conforme relatado em reportagem do jornal Folha de São Paulo: "’Numa perspectiva de gênero, se é fato que o teletrabalho confundiu o que já era confuso, que são esses planos do público e privado, flexibilizou e facilitou tarefas que as mulheres já exerciam’, afirma a juíza Clara Mota, secretária-geral da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), e diretora da comissão Ajufe mulheres. Ela diz que a maioria das magistradas defende a regulamentação”. Disponível online: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/01/judiciario-vive-dilema-sobre-manutencao-de-trabalho-remoto-e-audiencias-online.shtml?origin=uol >. Acesso em 17/01/22. .

Apesar de ser possível entrever uma melhora nos dados (sobretudo na primeira instância), uma informação citada no editorial mencionado sintetiza bem o problema: segundo levantamento realizado em fevereiro de 2020, o TJSP tinha mais desembargadores chamados Luiz (32) do que mulheres (31) - isso sem contar outros sete magistrados de nome Luís, com “s”! Espera-se que este artigo contribua para o debate, incentivando novos estudos sobre o tema, assim como trazendo informações para a adoção de medidas concretas que visem a diminuir a disparidade existente.

Referências

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  • WEBER, Max. The Methodology of the Social Sciences, trad. eng. por Edward A. Shils and Henry A. Finch. New York: Free Press, 1949.
  • 1
    Por discussões e comentários feitos a versões preliminares deste texto, os autores gostariam de agradecer a Bianca Tavolari (Insper), Gabriel Maia (USP) e Luciana Ramos (FGV-SP).
  • 2
    Somente no campo da Sociologia das Profissões Jurídicas, Bonelli orientou pelo menos 25 iniciações científicas, dez mestrados e cinco doutorados. Destes, ao menos Fabiana Luci de Oliveira e Humberto Nanaka tornaram-se professores(as) universitários(as) e atuam no mesmo campo de conhecimento. Tais informações foram obtidas do CV Lattes de Maria da Glória Bonelli (atualizado em 25/6/2020) e dos doutores(as) orientados(as) por ela. Acesso em 10/4/2021.
  • 3
    Na literatura do campo, o termo "profissão" designa um tipo específico de trabalho especializado, associado a uma expertise (Freidson, 1996FREIDSON, Eliot. Para uma análise comparada das profissões: a institucionalização do discurso e do conhecimento formais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 11, n. 31, 1996.). Exemplos paradigmáticos são o direito e a medicina. Entre as características comuns das profissões estão: sua associação com um conjunto abstrato e especializado de conhecimentos; a autonomia do profissional em relação ao processo de trabalho; a autorregulação; o estabelecimento de normas que restringem o acesso à profissão e à prática dela.
  • 4
    A história é contada no site do Tribunal: < Quem Somos | Apresentação >. Acesso em: 06/01/2022.
  • 5
    Constituição da República Federativa de 1988 (CF88), art. 27 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
  • 6
    O texto de Bonelli parece desconsiderar o modo como o trabalho é dividido no Tribunal de Justiça. Por mais que o conceito de “segmentação” lance luz sobre um fenômeno bastante visível no mercado jurídico, não parece fazer muito sentido sua aplicação à realidade do TJ, em que o trabalho é dividido simplesmente por Seções de Direito Criminal, Direito Público e Direito Privado (Art. 2º, RI-TJSP). Esses campos de trabalho, assim recortados, não representam guetos de atuação profissional. O que talvez haja é uma presença ainda mais masculinizada nas Câmaras Reservadas de Direito Empresarial, pelo nível de especialização. Mas é algo ainda a se investigar.
  • 7
    Trata-se, portanto, de uma abordagem que é metodologicamente weberiana. Para Weber, “an ideal type is formed by the one-sided accentuation of one or more points of view and by the synthesis of a great many diffuse, discrete, more or less present and occasionally absent concrete individual phenomena, which are arranged according to those one-sidedly emphasized viewpoints into a unified analytical construct. In its conceptual purity, this mental construct cannot be found empirically anywhere in reality. It is a utopia. Historical research faces the task of determining in each individual case, the extent to which this ideal-construct approximates to or diverges from reality (...). When carefully applied, those concepts are particularly useful in research and exposition” (1949, p. 90, itálico no original).
  • 8
    Sobre as variáveis contingenciais que se associam ao tipo, vide Freidson, 2001______. Professionalism: the third logic. Cambridge, UK: Polity Press, 2001., p. 180.
  • 9
    Freidson afirma que oscila entre os termos “firma” e “burocracia”, a fim de deixar claro que ele não se refere somente às empresas privadas capitalistas. O tipo engloba qualquer organização formal que faça um controle gerencial do trabalho, aí incluídas tanto as firmas ou empresas, quanto a burocracia estatal (2001, p. 4, nt. 1).
  • 10
    A segunda dessas ideias que subjazem ao profissionalismo vem sendo colocada em questão. Vide, por exemplo, os trabalhos de Susskind: 2010SUSSKIND, Richard. The End of Lawyers? Rethinking the Nature of Legal Services. New York: Oxford University Press, 2010, cap. 2, p. 27-57., pp. 27-57; 2013, pp. 23-38.
  • 11
    Trata-se de uma hipótese, não se tendo conhecimento de um estudo que a teste. Há, porém, casos semelhantes que a colocam em dúvida, como o da Procuradoria do Município de São Paulo. O cargo de Procurador do Município é disputado, bem remunerado (média de R$ R$ 36.245,88, considerando os três níveis em conjunto e registrando-se que parte desse valor se deve a honorários advocatícios) e ainda permite ao ocupante o exercício da advocacia privada em paralelo. Apesar de não exigir mobilidade espacial (mudanças de cidade), trata-se de carreira predominantemente masculina (61% de homens, segundo dados colhidos do portal http://transparencia.prefeitura.sp.gov.br/funcionalismo/, acesso em 22/3/2022). Se a exigência de ampla mobilidade espacial fosse a causa da baixa participação de mulheres na magistratura, esperar-se-ia que a disparidade de gênero não pudesse ser observada em carreiras semelhantes (como a da Procuradoria do Município de São Paulo) que não tivessem essa exigência. Mas esse não é o caso: tanto no Judiciário, quanto na Procuradoria, a predominância masculina é notável. Portanto, ou a mobilidade espacial não é o fator a explicar a diferença, ou existem outras variáveis que interferem no caso, de modo a termos um resultado diferente do esperado.
  • 12
    Disponível on-line em: < Tribunal Pleno >. Acesso em: 05/01/2022.
  • 13
    O “quinto constitucional” está previsto no art. 94 da CF88, aplicando-se tanto ao TRF3 quanto ao TJSP: “Art. 94. Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes.”
  • 14
    Art. 93, inc. III, da CF88.
  • 15
    Art. 94 da CF88.
  • 16
    Arts. 8; 13, inc. II, al. “l”; 16, incs. I e II do RI-TJSP.
  • 17
    Art. 80, §1º, inc. III da LOMAN; art. 93, inc. II, “d” da CF88.
  • 18
    Art. 80, §1º, inc. II, da LOMAN. A Constituição prescreve que o merecimento seja aferido conforme o “desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento” (art. 93, II, c).
  • 19
    Uma matéria publicada pela Folha de S. Paulo (01/12/2010), em blog especializado em assuntos jurídicos (Para entender Direito), explica em termos simples como funciona a promoção de magistrados: < Como funciona a promoção de um magistrado? - Para Entender Direito >. Acesso em 15/01/2022.
  • 20
    Art. 93, inc. II, “a”.
  • 21
    Disponível em < Integrantes da Corte: Tribunal Regional Federal da 3ª Região >. Acesso em: 10/01/2022. Apesar de o TRF3 contar com 43 cargos de Desembargador (Art. 1º do RI-TRF3), as listas fornecidas pelo próprio tribunal enumeram apenas 42 cargos.
  • 22
    Em outubro de 2021, foi promulgada a Lei 14.226/21, que criou o TRF-6. Composto por 18 novos desembargadores, o tribunal é responsável pelo estado de Minas Gerais. Contando com estes, o número total de desembargadores federais passou a ser de 214. As vagas do TRF-6 já foram todas preenchidas, resultando em um tribunal composto por 15 homens e 3 mulheres. Destas últimas, duas foram nomeadas por merecimento: Luciana Pinheiro Costa e Simone dos Santos Lemos Fernandes. A terceira é Mônica Sifuentes, ex-integrante do TRF-1 que optou pela remoção para o TRF-6. A lista completa está disponível neste link: < Presidente Bolsonaro nomeia 17 desembargadores federais para primeira composição do TRF6 (stj.jus.br) >.
  • 23
    Em 2021, noticiava-se que o Senador Flávio Bolsonaro (filho do ex-presidente) e o Ministro Nunes Marques (indicado por Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal) eram atores-chave na negociação dos nomes que comporiam as listas. < Bolsonaro nomeará 75 desembargadores, na maior canetada da história recente - 10/11/2021 - Mônica Bergamo - Folha >.
  • 24
    As fontes dessas informações não são citadas no artigo.
  • 25
    Em 2011, a primeira instância do TJSP tinha 64% de homens, contra 62% do TRF3. Em 2020, 60% no TJSP e novamente 62% no TRF3. Na magistratura como um todo, houve melhora nas últimas décadas: segundo dados do CNJ (2019, p. 42), a participação feminina na magistratura saltou de 24,6% em 1988 para 38,8% em 2018.
  • 26
    Passados cinco anos do Censo, os números continuam praticamente os mesmos: dados do próprio CNJ mostram que, em 2018, as mulheres representavam 44% dos juízes substitutos, 39% dos titulares e 23% dos desembargadores (CNJ, 2018, p. 8). Tais dados sugerem que é duvidosa a tese de que “a chegada das mulheres aos tribunais e aos órgãos do poder judiciário é uma questão de tempo”, tal como afirmaram Bruschini (2007BRUSCHINI, Maria Cristina A. (2007), Elas chegaram para ficar. Difusão de Idéias. Fundação Carlos Chagas, outubro, pp. 1-7., p. 7) e Fragale, Moreira e Sciammarella (2015, p. 74).
  • 27
    Embora interessante, esse dado deve ser tomado com alguma cautela. Como o Censo do CNJ considera apenas as candidatas aprovadas, há um possível viés de seleção na amostra, conhecido na literatura como “viés de sobrevivência” (survivorship bias). Esse viés pode ser definido como “um atalho cognitivo que ocorre quando um grupo visível que obteve sucesso é erroneamente tomado como sendo todo o grupo, em razão de o subgrupo dos que foram malsucedidos não ser visível. O nome do viés vem do erro que alguém comete quando, em um conjunto de dados, considera somente as observações ‘sobreviventes’, desconsiderando aquelas que não sobreviveram a determinado evento” (The Decision Lab - The Survivorship Bias, explained - tradução própria).
  • 28
    Apesar disso, cabe ressaltar que, de acordo com o art. 70, §1º, da Res. nº 75/09 do CNJ, “é irretratável em sede recursal a nota atribuída na prova oral”.
  • 29
    Muito embora a proporção de mulheres esteja estagnada perto dos 40%, números do CNJ sugerem algum progresso: "a distribuição de gênero de acordo com o período de ingresso na carreira mostra que entre os magistrados ativos que ingressaram até 1990, a proporção de mulheres é de apenas um quarto. Para os que ingressaram de 1991 a 2000, a proporção de mulheres atinge 40%. As mulheres representam 41% dos ingressantes entre 2001 e 2010; e 37% dos que entraram na carreira a partir de 2011" (CNJ, 2018, p. 8). Além disso, em pesquisa realizada em 2020 sobre a participação feminina nos concursos para a magistratura, concluiu-se que "nos últimos anos as mulheres começam a apresentar percentuais de aprovação idênticos aos dos homens, ainda que o baixo percentual de ambos represente aumento de concorrência" (2020, p. 27).
  • 30
    Fragale, Moreira e Sciammarella parecem apontar nessa direção (2015, pp. 61-26). De acordo com dados do CNJ, 14% das magistradas são divorciadas e 13% são solteiras, contra 6% e 8% dos homens (2018, p. 11).
  • 31
    Em todos os ramos da justiça, o percentual de juízas sem filhos supera o percentual de seus pares do sexo masculino: 35% vs. 27% na Justiça Federal, 25% vs. 18% na Justiça Estadual e na Justiça do Trabalho, e 29% vs. 17% em outros ramos da justiça (CNJ, 2018, p. 14).
  • 32
    Disponível on-line: Toga mais diversa - 06/01/2022 - Opinião - Folha. Acesso em: 17/01/22.
  • 33
    Cabe, porém, ressaltar que um estudo feito pelo CNJ concluiu que a quantidade de mulheres aprovadas “não guarda relação ou tendência com o percentual de mulheres em comissões organizadoras ou em bancas avaliadoras [dos concursos para a magistratura]” (2020, p. 28).
  • 34
    O CNJ deu passo importante ao editar a Resolução Nº 255 de 04/09/2018, que institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Nos últimos anos, o órgão tem feito importantes estudos sobre o tema (CNJ, 2019; 2020).
  • 35
    Conforme relatado em reportagem do jornal Folha de São Paulo: "’Numa perspectiva de gênero, se é fato que o teletrabalho confundiu o que já era confuso, que são esses planos do público e privado, flexibilizou e facilitou tarefas que as mulheres já exerciam’, afirma a juíza Clara Mota, secretária-geral da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), e diretora da comissão Ajufe mulheres. Ela diz que a maioria das magistradas defende a regulamentação”. Disponível online: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/01/judiciario-vive-dilema-sobre-manutencao-de-trabalho-remoto-e-audiencias-online.shtml?origin=uol >. Acesso em 17/01/22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2022
  • Aceito
    25 Fev 2023
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