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A judicialização da intolerância religiosa: Um estudo do caso “Edir Macedo”

The judicialization of religious intolerance: A study of the “Edir Macedo” case

Resumo

Diante dos inúmeros atos discriminatórios contra as religiões afro-brasileiras na atualidade, o Poder Judiciário tem sido cada vez mais provocado para dirimir essa demanda. Assim, o presente trabalho buscou analisar a judicialização da intolerância contra as religiões afro-brasileiras, tendo como caso empírico a análise do caso Edir Macedo julgado pelo Tribunal Regional da 1.ª Região, o qual traz à tona um conflito entre princípios constitucionais, que se originou devido a publicação e circulação do livro de sua autoria denominado “Orixás, caboclos e guias: Deuses ou demônios?”.

Palavras-chave:
Discriminação; Intolerância religiosa; Religiões de origem africana

Abstract

In view of the numerous discriminatory acts against Afro-Brazilian religions today, the Judiciary has been increasingly provoked to settle this demand. Thus, the present work sought to analyze the judicialization of intolerance against Afro-Brazilian religions, having as an empirical case the analysis of the Edir Macedo case judged by the Regional Court of the 1st Region, which brings up a conflict between constitutional principles, which originated due to the publication and circulation of his book called “Orixás, caboclos and guides: Gods or demons?”

Keywords:
Discrimination; Religious intolerance; Religions of African origin

Introdução

A atuação do Poder Judiciário, no Brasil, tem se intensificado há alguns anos em relação a casos que envolvem as religiões de origem africana e alguns casos tornaram-se emblemáticos, como, por exemplo, o caso da mãe Gilda, da legitimação do sacrifício de animais, bem como outros que foram judicializados. Esses e outros casos foram analisados e julgados pelo Poder Judiciário, cada um com suas particularidades. Neste artigo, atentaremos ao caso do Bispo Edir Macedo Bezerra e uma obra de sua autoria, a publicação do livro intitulado “Orixás, caboclos e guias: Deuses ou demônios?”. Através de uma Ação Civil Pública, o Ministério Público Federal (MPF) pleiteou a não circulação do livro, sustentando que o conteúdo era ofensivo às religiões afro. A obra do Edir Macedo Bezerra corrobora com a perpetuação da demonização das religiões afro e seus cultos, favorecendo, assim, a discriminação e a intolerância religiosa contra esse segmento religioso.

Diante desse fato, o presente trabalho buscou analisar a judicialização dos casos de intolerância às religiões de matriz africana no Brasil, tendo como caso empírico a análise do caso Edir Macedo Bezerra, qual fora julgado pelo Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF1), que traz à tona um conflito entre princípios constitucionais. Para tanto, fora realizada uma análise da subjetividade dos julgadores nas suas decisões no que se refere ao caso estudado. Durante o desenvolvimento da pesquisa, optou-se pela concepção teórico-metodológica de Formação Social, proposta por Milton Santos (1977)SANTOS, M. Sociedade e espaço: A formação social como teoria e como método. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo, n.54, p. 81-100, 1977., por entender ser fundamental analisar os fatos em sua totalidade, haja vista que não acontecem de forma isolada. À vista disso, realizou-se uma análise da literatura pertinente sobre o tema, bem como a análise de peças processuais judiciais dos órgãos e partes envolvidas no caso.

1 – A discriminação contra as religiões afro-brasileiras e seus adeptos no Brasil

Após a invasão dos portugueses ao território brasileiro, o Brasil passou a ter religião oficial, a qual estava entrelaçada ao Estado. De acordo com Simões e Salaroli (2017)SIMÕES, A. S. M.; SALAROLI, T. P. O retrato da intolerância religiosa no Brasil e os meios de combatê-la. Unitas Revista Eletrônica de Teologia e Ciências das Religiões, v. 5, p. 363-377, 2017., o Brasil, através da Lei de Padroado, passou a ser encarado como um Estado Católico, ou seja, confessional. O Estado confessional brasileiro ocasionou problemas ao povo negro, tendo em vista que esse povo, trazido ao Brasil forçadamente pelos portugueses do início do século XVI até a segunda metade do século XIX, trazia suas culturas, religiões, preceitos e características que faziam parte de sua identidade cultural e religiosa (BARANDELA, 2009BARANDELA, A. M. O sagrado de raízes africanas no realismo maravilhoso de Jorge Amado e Manuel Cofiño. Maceió: EdUFAL, 2009.). Assim, desde a colonização o povo negro fora impedido de manifestar suas crenças nas suas deidades por séculos.

Até o fim da Primeira República, o povo do axé, forma como os afro-religiosos se denominam e são conhecidos, desenvolveram diferentes maneiras para manter as tradições religiosas trazidas do território de origem e mantiveram os cultos as suas divindades africanas, os Orixás, Vonduns e Nnkisis. Dentre as estratégias desenvolvidas por esses povos, consoante Oliveira (2014)OLIVEIRA, I. M. Perseguição aos cultos de origem africana no brasil: o direito e o sistema de justiça como agentes da (in)tolerância. In: XXIII Encontro Nacional do CONPEDI/UFSC, 2014, Florianópolis. Sociologia, antropologia e culturas jurídicas: xxiii encontro nacional do conpedi. Florianópolis: CONPEDI, 2014. v. 1. p. 308-332, umas delas foi o sincretismo religioso e as alianças com o poder político. Ainda, conforme o autor, as estratégias foram necessárias devido as inúmeras infelicidades que o povo do axé sofreu por séculos no Brasil. As religiões de origem africana, consoante Barandela (2009)BARANDELA, A. M. O sagrado de raízes africanas no realismo maravilhoso de Jorge Amado e Manuel Cofiño. Maceió: EdUFAL, 2009., no Brasil, e até mesmo em outros países, instituíram-se através do sincretismo religioso, principalmente com o catolicismo, visto que o catolicismo era permitido no Brasil. Desta forma, o povo negro à época viveu dois mundos paralelos devido a perseguição da sua religiosidade.

Willeman e Lima (2010)WILLEMAN, E. M.; LIMA, Guiomar. O preconceito e a discriminação racial nas religiões de matriz africana no Brasil. Revista UNIABEU, v. 3, p. 71-99, 2010., revelam-nos que a partir do advento da República brasileira, momento em que, pelo menos em teoria, foi instituída a liberdade religiosa, foi o período em que mais ocorreu desrespeito aos religiosos de matriz africana.

O Código Criminal de 1830, não criminalizava a prática da feitiçaria, não tendo os legisladores, à época, a necessidade de reprimir os negros escravizados, até quando perdurou a escravidão no Brasil. Porém, após a abolição da escravatura, em 1888 e após a Proclamação da República em 1890, momento em que os negros já eram livres, estes passaram, pelo menos na teoria, a serem sujeitos de igualdade política e constitucional, todavia, nesse mesmo período o Estado passou a criminalizar a prática da feitiçaria por meio do Código Penal de 1890, onde os adeptos das religiões de matriz africanas enquadravam-se (DANTAS, 1988DANTAS, B. G. Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Oraal, 1988.).

A acusação de feitiçaria, em Dantas (1988)DANTAS, B. G. Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de Janeiro: Oraal, 1988., não apenas desqualificava social e simbolicamente práticas e crenças correntes entre as camadas populares, sobretudo entre os negros, como também as jogava na ilegalidade, pois o Código Penal incriminava feiticeiro. A acusação assumia assim um caráter coercitivo muito forte, pois se de um lado estigmatizava, de outro permitia o uso do aparato policial do Estado contra os terreiros acusados de centros de feitiçaria, prática ilegal segundo a legislação da época. (OLIVEIRA, 2014OLIVEIRA, I. M. Perseguição aos cultos de origem africana no brasil: o direito e o sistema de justiça como agentes da (in)tolerância. In: XXIII Encontro Nacional do CONPEDI/UFSC, 2014, Florianópolis. Sociologia, antropologia e culturas jurídicas: xxiii encontro nacional do conpedi. Florianópolis: CONPEDI, 2014. v. 1. p. 308-332, p. 314)

O Código Penal de 1940, o qual entrou em vigência no ano de 1942, trouxe a criminalização do exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica, charlatanismo e curandeirismo. Salienta-se que, a partir dessa época, não era todo e qualquer espírita, praticante de magia ou curandeiro que estava proibido de praticar e passível de punição, mas sim apenas àqueles que praticassem o mal. Isto é, ao entrar em vigor o Código Penal de 1940, começou a fazer uma distinção entre as condutas mediúnicas, as que praticavam o bem e as que praticavam o mal. Porém, as religiões de origem africana permaneceram com o estigma de fazer o mal, continuando a perseguição e criminalização dos seus adeptos. A partir disso, constata-se que o Estado, por meio dos seus representantes e autoridades, correlacionava os cultos das religiões de matriz africana com o mal, com o charlatanismo, como religião menos evoluída espiritualmente (FERNANDES, 2017FERNANDES, N. V. E. A raiz do pensamento colonial na intolerância religiosa contra religiões de matriz africana. Revista Calundu, v. 1, p. 117-136, Brasília, 2017.).

Portanto, desde o período colonial eurocêntrico encontram-se rastros perversos em relação ao desenvolvimento da liberdade religiosa e das religiões de matriz africana, provocando diversas transformações culturais e religiosas durante séculos, rastros esses que persistem na sociedade contemporânea (REIS; ANDRADE, 2018REIS, M. N.; ANDRADE, M. F. F. O Pensamento Decolonial: Análise, Desafios e Perspectivas. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico (Online), v. 17, p. 01-11, 2018.; ALMEIDA, 2018ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural?. 1. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2018.).

2 – Intolerância religiosa: uma face do racismo?

O racismo no Brasil trata-se de uma consequência da escravidão e do eurocentrismo, pois, mesmo com o fim da escravidão no país, através da Lei Aurea no ano de 1888, a sociedade reproduz um pensamento colonial, podendo ser percebido através das ações dos indivíduos, seja por meio das microagressões1 1 Consoante Moreira (2019, p.52-53), há três tipos de microagressões, os microassaltos, os microinsultos e, por fim, os microinvalidações. Os Microassaltos ocorrem através da demonstração de desprezo de uma pessoa para com a outra devido a sua origem social. Os microinsultos decorrem por meio de comunicação, de forma explicita ou implícita, onde os agressores tentam atingir a vítima ou um grupo de vítimas através da identidade cultural ou tradição, porém há nestas manifestações um sentimento de superioridade entre o agressor e a vítima. Por fim, as microinvalidações, as quais ocorrem por meio de determinados indivíduos que deixam de atribuir interesses no que se refere aos pensamentos, experiências de pessoa a qual pertença ao grupo não hegemônico. , bem como através do aparato institucional. Assim, pode-se afirmar que o racismo é resquício da escravidão. Desta forma, nota-se que o período colonial eurocêntrico deixou diversos rastros perversos na civilização dos colonizados, inclusive, ocasionando inúmeras alterações culturais e religiosas desses povos (REIS; ANDRADE, 2018REIS, M. N.; ANDRADE, M. F. F. O Pensamento Decolonial: Análise, Desafios e Perspectivas. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico (Online), v. 17, p. 01-11, 2018., e ALMEIDA, 2018ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural?. 1. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2018.).

A partir do atual contexto da intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana no Brasil, levando em consideração os inúmeros ataques que seus adeptos sofrem há anos, alvoreceu o debate acerca da denominação para intitular as agressões perpetradas contra essas religiões, tendo em vista que o termo “intolerância religiosa” está sendo incapaz de exprimir a violência sofrida pelo povo do axé.

Segundo Mota (2017)MOTA, E. G. Apontamentos sobre racismo religioso contra Religiões de Matrizes Africanas. In: 40º Encontro Anual da ANPOCS, 2017, Caxambu. Anais do 40º Encontro Anual da ANPOCS, 2017., mesmo com o passar do tempo, a violência contra as religiões de origem africana não se ausentou na sociedade, apenas modificou sua forma. Desta maneira, há autores, como, por exemplo, Monsores (2012)MONSORES, Luciana H. Os Desafios do Multiculturalismo no Cotidiano Escolar: O Preconceito contra as Religiões de Matrizes Africanas. Rio de Janeiro: UERJ, 2012, Trabalho de Conclusão de Curso., Oliveira (2014)OLIVEIRA, I. M. Perseguição aos cultos de origem africana no brasil: o direito e o sistema de justiça como agentes da (in)tolerância. In: XXIII Encontro Nacional do CONPEDI/UFSC, 2014, Florianópolis. Sociologia, antropologia e culturas jurídicas: xxiii encontro nacional do conpedi. Florianópolis: CONPEDI, 2014. v. 1. p. 308-332, Silva Jr. (2007), Fernandes (2017)FERNANDES, N. V. E. A raiz do pensamento colonial na intolerância religiosa contra religiões de matriz africana. Revista Calundu, v. 1, p. 117-136, Brasília, 2017. que se referem a esta violência como racismo religioso, pois não há como desassociar a intolerância religiosa que atinge as religiões oriundas do continente africano, do racismo, visto que os atos discriminatórios de cunho religiosos contra a religião afro estão vinculados com o racismo, uma vez que as religiões de matriz africana sempre foram e continuam sendo vistas como algo insignificante, inferior e coisa do demônio, sendo isso consequência da formação territorial, cultural, social e econômica do Brasil. Portanto, a formação da sociedade brasileira constituiu-se de atritos que perduram até a contemporaneidade, tendo como conflito mais intenso o racial, pela carga de exploração que a população negra sofreu.

[...] pode-se defender o uso do termo “racismo religioso” como o mais adequado para caracterizar as ações de discriminações/intolerância contra as religiões afro-brasileiras, uma vez que [...] a africanidade das práticas vinculadas ao contexto histórico colonial racista são as principais motivações das ações praticadas. (FERNANDES, 2017FERNANDES, N. V. E. A raiz do pensamento colonial na intolerância religiosa contra religiões de matriz africana. Revista Calundu, v. 1, p. 117-136, Brasília, 2017., p. 132)

Consoante Silva e Soares (2015SILVA, L. C.; SOARES, K. A. A intolerância religiosa face às religiões de matriz africana como expressão das relações étnico-raciais brasileiras: o terreno do combate à intolerância no município de Duque de Caxias. Revista educ- faculdade de Duque de Caxias, v. 1, p. 1-13, 2015., p. 3), “[...] o processo de aculturamento rompeu a escala do tempo e persiste até os dias de hoje, sob uma prática de repulsa e intolerância àquilo que é ‘inferior’, negando qualquer valor à cultura de outros povos não inseridos na raça ‘branca’, com ascendência europeia”. Assim, esse processo de aculturamento enraizou de uma forma estrutural que, mesmo passados séculos, persiste, sendo manifestado, dentre algumas formas, através do racismo religioso.

A intolerância religiosa, na modernidade, pode ser compreendida pela não aceitação de algumas religiões por certo indivíduo ou por determinado grupo de religiosos, consequentemente, não considerando a genuinidade das outras religiões, pois, de acordo com Simões e Salaroli (2017)SIMÕES, A. S. M.; SALAROLI, T. P. O retrato da intolerância religiosa no Brasil e os meios de combatê-la. Unitas Revista Eletrônica de Teologia e Ciências das Religiões, v. 5, p. 363-377, 2017., a discriminação religiosa está presente em qualquer ambiente e classe social, onde a perseguição, o menosprezo e a inferiorização de determinadas religiões são acompanhadas pela ofensa, seja ela física ou moral.

Almeida (2018)ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural?. 1. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2018. entende a intolerância religiosa como desdobramento de um fenômeno maior, o racismo. O racismo, para Almeida (2018)ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural?. 1. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2018., trata-se de uma ação organizada de discriminação que ocorre de maneira consciente ou inconsciente, discriminação essa que acarreta privilégios e vantagens para indivíduos de determinada raça, qual seja, a raça branca. Esse fenômeno social apresenta-se de forma dinâmica, a manifestação do racismo pode variar devido ao contexto histórico e pela questão regional, inclusive, através de piadas e brincadeiras em tom de humor, o famoso racismo recreativo2 2 Moreira (2019, p. 95), assegura-nos que “[...] o racismo recreativo é uma política cultural característica de uma sociedade que formulou uma narrativa específica sobre relações raciais entre negros e brancos: a transcendência racial. Esse discurso permite que pessoas brancas possam utilizar o humor para expressar sua hostilidade por minorias raciais e ainda assim afirmar que elas não são racistas, reproduzindo então a noção de que construímos uma moralidade pública baseada na cordialidade racial”. , pois o racismo é um fator tão enraizado e cultural que determinados atos de cunho discriminatórios passam despercebidos. Entretanto, o intuito do racismo, independente da forma de sua manifestação, continua sendo o mesmo, manter o sistema de privilégios raciais para o grupo racial hegemônico.

3 - A liberdade religiosa e o ordenamento jurídico

O pluralismo religioso e os adeptos de toda e qualquer religião devem ser respeitados, uma vez que se trata de inclinações interiores, tendo em vista que a expressão crença “denomina-se fé religiosa, ação de crer na verdade ou na possibilidade de uma coisa, convicção íntima, opinião que se adota com fé e convicção” (FERREIRA, 2004FERREIRA, A. B. de H. 6 edição. Dicionário Aurélio. Curitiba: Pongral, 2004., p. 275), cabendo, desta maneira, cada indivíduo optar por qual religião seguir, cabendo os demais indivíduos, concordando ou não, respeitar.

A liberdade religiosa só veio ter caráter de princípio universal em meados do século XX, com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada no ano de 1948, e com a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e de Discriminação com base na Religião ou Crença (CALDAS; CARVALHO; OLIVEIRA, 2014CALDAS, K. H. S.; CARVALHO, J. L. S.; OLIVEIRA, I. M.; Liberdade religiosa versus intolerância: reflexões sobre a judicialização da religiosidade afro-brasileira. Interfaces Científicas - Direito, v. 2, p. 71-80, 2014.).

A Declaração Universal foi considerada um marco histórico no que se refere ao direito à liberdade religiosa, tendo em vista que o tema liberdade religiosa começou a ser amplamente discutida no mundo a partir dela e serviu como base para outros documentos e/ou legislações nacionais e internacionais, os quais trataram sobre a temática.

A Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e de Discriminação com base na Religião ou Crença, a qual, de maneira ampla, assegura, assim como a Declaração Universal, o direito à liberdade de religião, bem como a de manifestar a religião, seja ela qual for, tanto em local privado quanto público através de culto. A Declaração das Nações Unidas também prevê, em seu artigo-2, parágrafo 1.º, que “Ninguém será objeto de discriminação por motivos de religião ou convicções por parte de nenhum estado, instituição, grupo de pessoas ou particulares”.

O Brasil, além da Constituição Federal de 1988, possui alguns mecanismos punitivos infraconstitucionais que visam assegurar o direito à liberdade religiosa, como, por exemplo, a Lei nº.7.716 de 5 de janeiro de 1989, conhecida também como Lei Caó, a qual, a princípio, criminalizava apenas os crimes que se referiam a raça e cor, sendo retificada no ano de 1997, através da Lei n.º 9.459/97, onde editou o artigo 1.º e artigo 20.º e seus incisos, onde atualmente tipifica, também, as condutas discriminatórias e preconceituosas de caráter religioso. Esses aparatos punitivos visam assegurar o direito à liberdade religiosa e, consoante Caldas, Carvalho e Oliveira (2014CALDAS, K. H. S.; CARVALHO, J. L. S.; OLIVEIRA, I. M.; Liberdade religiosa versus intolerância: reflexões sobre a judicialização da religiosidade afro-brasileira. Interfaces Científicas - Direito, v. 2, p. 71-80, 2014., p. 74), “[...] fica evidente que as diversas manifestações individuais e coletivas de expressão da religiosidade, sejam por meio de orações, liturgias, rituais ou cultos, não podem ser obstadas, mas devem ser livremente exercidas”.

Entretanto, conforme Caldas, Carvalho e Oliveira (2014)CALDAS, K. H. S.; CARVALHO, J. L. S.; OLIVEIRA, I. M.; Liberdade religiosa versus intolerância: reflexões sobre a judicialização da religiosidade afro-brasileira. Interfaces Científicas - Direito, v. 2, p. 71-80, 2014., os aparatos jurídicos existentes, atualmente não estão sendo suficientes para assegurar o direito à liberdade religiosa, como consequência, não estão impedindo as condutas discriminatórias e preconceituosas contra os religiosos da religião de matriz africana.

4 - A intolerância religiosa em pauta no Poder Judiciário: Caso Edir Macedo Bezerra

O Estado brasileiro possui mecanismos punitivos para assegurar aos cidadãos usufruir, de forma livre e plena, o direito à liberdade religiosa e, consequentemente, punir as pessoas que cometem intolerância religiosa. Esses mecanismos visam diminuir a discriminação religiosa, no entanto, é fácil perceber que o efeito não tem sido o esperado, visto que no Brasil os casos de discriminação religiosa têm aumentado de forma muito alarmante, como pode ser vislumbrado através dos dados do “Disque 100”, serviço vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos que recebe, analisa e encaminha as ocorrências que são noticiadas para os órgãos competentes para tomar as devidas providências das ocorrências em que os Direitos Humanos são violados.

Salienta-se que a maioria das vítimas de discriminação religiosa são adeptos das religiões de origem africana. As discriminações contra esse segmento religioso, ocorrem de várias formas, tanto de forma individual, por meio de agressão verbal e/ou física, bem como de forma coletiva, atacando todas as religiões afro, através da demonização e outros meios, como ocorreu por parte do Bispo Edir Macedo Bezerra ao escrever seu livro. Insta salientar que as formas de discriminação religiosa se modificaram no decorrer do tempo, podendo ocorrer de diversas formas, menos agressiva, através de atitudes disfarçadas, as quais sucedem por brincadeiras, piadas, inconsciente ou consciente, assim como podem acontecer de forma taxativa e mais agressiva.

Assim, a intolerância passou a fazer parte do cotidiano desses grupos. Segundo dados do disque 100 (Disque Direitos Humanos), serviço de atendimento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, os registros de intolerância contra as religiões afro-brasileiras cresceram em 2012 na ordem de 626% em relação a 2011, totalizando 109 casos. Em 2013 foram registradas 228 denúncias, das quais 35,39% das vítimas eram negros, ligados a religiões de matriz africana. Já em 2015, houve um aumento de 69,13% em relação ao ano anterior, com 252 denúncias recebidas (SILVA; SEREJO, 2017SILVA, A. S.; SEREJO, J. A. M. A Intolerância Religiosa contra as Religiões Afro-Brasileiras e os impactos Jurídicos do caso ‘Edir Macedo’. Cadernos do programa de pós-graduação em direito - PPGDIR./UFRGS, v. 12, p. 230-255, 2017., p. 236)

No que se refere aos anos supervenientes ao de 2015, os números de ocorrências permaneceram altos. Em 20163 3 No ano de 2016, houve uma campanha intitulada “Filhos do Brasil”, a qual foi uma ação em defesa da liberdade de crença e de culto, assim, explicam que por isso ocorreu o recorde no registro do Disque 100. , o ano que houve mais ocorrências registradas pelo “Disque 100”, foram 759 registros de números absolutos, desse número, 177 pessoas que noticiaram a discriminação religiosa se identificaram como pessoas da religião de matriz africana. Em 2017, comparado com 2016, houve uma pequena redução dos registros, mesmo assim o número foi considerado alto, foram 537 ocorrências no geral, desse número, 144 vítimas se identificaram como pessoas pertencentes a religião de matriz africana. Os dados do “Disque 100” estão disponibilizados até o ano de 2017. Salienta-se que a maioria das ocorrências registradas no serviço foram de pessoas que não informaram a religião a qual pertence, no ano de 2016 foram 478 ocorrências, em 2017 foram 275 ocorrências.

Tendo em vista o aumento considerável da discriminação religiosa, de maneira consequente, o aparato judicial tem sido cada vez mais provocado para solucionar essa demanda que envolve as religiões de origem africana. No item abaixo analisou-se, de maneira pormenorizada, o livro intitulado “Orixás, caboclos ou guias: Deuses ou demônios?”, de autoria do Bispo Edir Macedo Bezerra, bem como as decisões dos magistrados através de seus votos, que, em grau de recurso, deu provimento ao agravo de instrumento, o qual foi manejado por uma das partes do polo passivo da ação.

4.1 - Análise do livro “Orixás, caboclos e guias: Deuses ou demônios?” de autoria do Bispo Edir Macedo Bezerra

O livro em análise, “Orixás, caboclos ou guias: Deuses ou demônios?”, de autoria do Bispo Edir Macedo Bezerra, ajuda a perpetuar a demonização das religiões afro e seus cultos, bem como contribui com à discriminação e a intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana.

De início, logo na introdução, o autor, Edir Macedo Bezerra (2017)BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017. sustenta que sempre desejou expressar em livro toda a dita “verdade” no que se refere aos Orixás ou entidades das religiões de origem africana, pois as pessoas, segundo o autor, são enganadas, bem como dedicou o livro aos babalorisás e as Iyalorisás, tendo em vista que eles são pessoas desinformadas sobre as suas religiões e precisam ser esclarecidos, para que usem suas lideranças sacerdotais corretamente.

Ainda, de acordo com Edir Macedo Bezerra (2017BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017., p. 23), “Os orixás, os caboclos e os guias, na realidade, nunca fazem bem em favor do seu ‘cavalo’. Exigem obediência irrestrita e ameaçam de punição aquele que não estiver ‘andando na linha’. Vivem castigando seus seguidores e não têm benção alguma para dar”. Em outras palavras, o autor afirma que as deidades e entidades das religiões de origem africana, não possuem nada de bom a oferecer aos seus fies, pelo contrário, “Os demônios causam tragédias na vida das pessoas que deles se aproximam [...]” (BEZERRA, 2017BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017., p. 119).

Para Edir Macedo Bezerra (2017BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017., p. 23), “[...] orixás, caboclo e guias – sejam lá quem forem, tenham o nome mais bonito – não são deuses. Os exus, os pretos-velhos, os espíritos de crianças, os caboclos ou os ‘santos’ são espíritos malignos sem corpos [...]”. O autor persiste em afirmar que as divindades e entidades fazem apenas o mal, asseverando que pomba gira, uma das entidades referenciada nas religiões afro-brasileiras, principalmente na Umbanda, são responsáveis por causar doenças em mulheres, nos órgãos femininos, bem como pode influenciar mulheres a praticarem atividades sexuais ilícitas relacionadas a sexualidade “pecaminosa” (BEZERRA, 2017BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017.).

Além dos trechos supracitados, faz-se necessário a transcrição de mais alguns para, de forma mais precisa, vislumbrarmos o quão preconceituoso e discriminador o Bispo Edir Macedo foi ao redigir seu livro.

Muitas pessoas piedosas são enganadas pelos demônios. A alma da mãe de santo, por exemplo, é vendida ao orixá. Há uma chantagem diabólica nesse meio, que obriga a pessoa que faz santo a renunciar, enquanto vive, a todas as coisas, inclusive a salvação. (BEZERRA, 2017BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017., p. 24) (Grifo nosso)

[...]

Com nomes bonitos e cheios de aparatos, os demônios vêm enganando as pessoas com doutrinação diabólicas. Chamam-se orixás, caboclos, pretos-velhos, guias, espíritos familiares, espíritos de luz etc. Dizem ainda ser exus, espíritos de crianças, médicos e poetas famosos, mas na verdade são anjos decaídos, na diabólica missão de afastar a humanidade de Deus [...] (BEZERRA, 2017BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017., p. 34) (grifo nosso)

[...]

Dentro da Umbanda, da Quimbanda, do Candomblé e de todas as formas de espiritismo, as pessoas são possessas. Possessão é o estado em que uma pessoa é possuída por espíritos imundos. Nessas formas de espiritismo, há espíritos que se dizem deuses, como os orixás, e há aqueles que se dizem desencarnados (BEZERRA, 2017BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017., p. 75). (Grifo nosso)

[...]

Você entenderá então por que alertamos quanto à prática do espiritismo e suas ramificações. Essa religião, tão popular no Brasil, é uma fábrica de loucos e uma agência onde se tira passaporte para morte e uma viagem para o inferno. (BEZERRA, 2017BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017., p. 99) (Grifo nosso)

[...]

Às vezes, antes mesmo da criança nascer já está prometida aos demônios, e estes dela se acercam durante toda a sua vida. Quando os pais são adeptos das práticas de macumbaria e feitiçaria, ou outra religião pagã, costumam oferecer seus filhos aos cuidados de demônios [...]. (BEZERRA, 2017BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017., p. 129) (Grifo nosso)

Por meio dos trechos apanhados do livro, ora em análise, nota-se que o referido autor defende que as religiões de origem africana visam o mal e ratifica veementemente que essas religiões não possuem Deuses, mas sim demônios. Segundo Edir Macedo Bezerra (2017)BEZERRA, Edir Macedo. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?. 17. ed. Rio de Janeiro: Unipro Editora, 2017., a Umbanda, a Quimbanda, o Candomblé e qualquer outra prática espírita, são as principais intermediárias dos demônios.

Desta maneira, percebe-se que o intuito maior do Bispo em seu livro, além de tentar convencer – muitas vezes através do medo – que sua religião é a única genuína e a salvadora da humanidade, o autor também ataca sem o menor pudor e de forma pejorativa as religiões de origem africana.

4.2 - Teses levantadas pelos julgadores do caso do Bispo Edir Macedo Bezerra

Antes de mais nada, faz-se necessário uma breve síntese da decisão agravada, para, assim, entendermos o porquê de o caso ter chegado no Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF1).

O MPF aforou uma ação civil pública tendo como partes rés o Bispo Edir Macedo Bezerra, a Editora Gráfica Universal Ltda e a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A Ação civil pleiteava a imediata retirada de circulação, a suspensão de triagem, a venda em qualquer estabelecimento, a revenda ou a entrega gratuita da obra de autoria do Edir Macedo. O MPF alegou que o conteúdo do referido livro é ofensivo às religiões de matriz africana, pois possui um conteúdo extremamente preconceituoso e discriminatório, podendo contribuir com o aumento dos atos discriminatórios e errôneos que as religiões sofrem há séculos.

Em caráter liminar, sustentando que o conteúdo do livro lesiona o direito dos adeptos das religiões de matriz africana, assim como a sociedade como todo, pois a temática abordada na obra tem cunho preconceituoso e discriminador no que se refere aos praticantes das religiões afro-brasileiras, a juíza de primeira instância, na sua decisão interlocutória, deferiu os pedidos do MPF, quais sejam, a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda, revenda e entrega gratuita, bem como o recolhimento de todos os exemplares existentes em estoque de qualquer estabelecimento, dando 30 (trinta) dias como prazo para o cumprimento da sua decisão. Caso não fosse cumprindo no prazo estabelecido, os réus sofreriam pena em multa diária fixada no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

Noticia, na exordial, que o primeiro demandado elaborou obra de cunho religioso denominada “Orixás, Caboclos e Guias, deuses ou demônios? ” e que as demais rés patrocinaram e editaram, pondo em circulação, referida obra, findando por lesionar, dado o conteúdo do escrito, direito dos adeptos das religiões afro-brasileiras e da sociedade como um todo - que teria direito à diversidade e à coexistência pacífica entre todas as formas de cultos e crenças de natureza religiosa, sem olvidar o direito à preservação do patrimônio cultural (considerada a reconhecida parcela de contribuição dos povos africanos na formação dos costumes da nação brasileira)-, na medida em que transmite mensagem preconceituosa e discriminatória em relação aos adeptos de religiões como o candomblé, a umbanda e a quimbanda, além de estimular a intolerância religiosa dos seguidores da congregação dirigida pelo autor do livro àqueles que se dedicam às mencionadas crenças.

Ilustra, através de vários trechos coletados do aludido livro, a orientação transmitida aos leitores no sentido de que as religiões afro-brasileiras seriam voltadas ao mal, à destruição do homem, à escravização dos seguidores relativamente às entidades cultuadas, à obtenção de vantagens ilícitas ou imorais e, ainda, a concepção preconceituosa no que toca aos adeptos, apondo sobre eles a pecha de loucos e seguidores do demônio ou de seitas demoníacas. (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
, p. 4-5). (Grifo nosso)

No decorrer da decisão interlocutória, a juíza, também, alega que o réu Edir Macedo Bezerra foi além do seu direito constitucional, no caso, a liberdade religiosa, haja vista que o conteúdo do livro não se resume a elucidação e difusão das ideias cristã, mas sim, como podemos notar, através dos trechos supracitados, referiu-se de maneira depreciativa a outras religiões, bem como aos seus adeptos, portanto, ajudando a alastrar, por meio dos conceitos errôneos e negativos, a discriminação religiosa contra, principalmente, o candomblé e a umbanda, as quais sofrem há séculos.

A magistrada do juízo a quo, em sua decisão liminar, no que se refere ao limite do direito fundamental da liberdade religiosa, afirma-nos que:

[...] o limite em questão termina exatamente quando e onde começa o direito de outro cidadão a fazer o mesmo (em igualdade de condições, portanto), sem que sofra qualquer atentado discriminatório, sem que seja desrespeitado e ultrajado, sem que sobre sua consciência e sua conduta moral haja questionamentos ou sem que, por isso, sejam tachados pejorativamente e sem que seja desencorajado de professar a sua fé ou, ainda, sem que se veja sujeito de qualquer incisiva persuasiva para seguir outra orientação religiosa. (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
, p. 7).

Para a magistrada, o limite da liberdade religiosa está nela mesma, pois o cidadão ao manifestar sua religiosidade, seja onde for, não pode extrapolar esse direito e invadir o âmbito de outrem que tenha uma religião diferente da sua de forma pejorativa ou discriminatória, pois, caso ocorra isto, desta maneira, não se fala mais em manifestação da liberdade religiosa, mas sim devemos tratar disso como abuso e extrapolo do ordenamento nacional e internacional que tratam sobre a temática (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
).

[...] a liberdade religiosa, como derivação da liberdade de consciência, encontra seus limites em si mesma, vale dizer, na mesma prerrogativa que tem o outro cidadão - dotado do mesmo acervo de direitos - de comportar-se, em igualdades de condições, em um mesmo plano, livremente como determina sua consciência, dentro dos lindes legais, professando uma ou nenhuma fé, dedicando-se a qualquer ou a nenhum culto, de modo desembaraçado, sem peias, sem constrangimentos impostos pelos semelhantes que, do mesmo modo, têm idêntico espaço de manifestação. (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
, p. 10)

Por fim, após a análise detalhada e a devida fundamentação jurídica, a magistrada deferiu os pedidos do MPF em caráter liminar.

Assim, não satisfeita, a IURD, uma das rés do processo, interpôs recurso de agravo de instrumento para reformar a decisão interlocutória do juízo a quo. A recorrente, suscitou algumas preliminares, no entanto, no que se refere ao mérito do processo, alegou que o Bispo Edir Macedo Bezerra, em seu livro, apenas interpretou a bíblia, assim, apenas exerceu o livre direito à liberdade religiosa, através das suas convicções pessoais no que se refere as religiões de matriz africana, sem discriminar e impedir seus cultos.

Em âmbito recursal, no TRF1, os desembargadores da 6.ª turma, reconheceram que havia uma colisão entre direitos fundamentais da Carta Magna de 1988, são eles o inciso IV do art. 5º, o qual assegura a manifestação do pensamento e o inciso VI do mesmo art., o qual prevê a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assim redigidos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

[...]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (CF, 1988)

Assim, devido a esta colisão entre direitos resguardados pela CRFB/88, faz-se necessário, segundo o relator do agravo de instrumento, tendo em vista que esses direitos não são absolutos, que os magistrados façam a ponderação no caso concreto, “[...] de modo a que se alcance um ponto de equilíbrio nesse exercício, a fim de que se possa obter uma solução harmonizante dos direitos fundamentais aparentemente em conflito” (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
). Ainda, no que tange ao conflito das garantias constitucionais, o desembargador Daniel Ribeiro, afirmou que,

[...] quanto ao mérito, observo, como também o fez o eminente Relator, que se trata de dois princípios fundamentais que se apresentam aparentemente em conflito previstos, respectivamente, nos incisos IV e VI do art. 5º da Constituição Federal. O primeiro dispõe que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e o segundo a dizer que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
, p. 1)

Dessa maneira, cada julgador analisou o caso a partir das suas convicções e embasamento jurídico, fez a ponderação dos princípios conflitantes e, através dos votos, colocou seu entendimento no que se refere ao caso concreto.

O desembargador relator do caso, Souza Prudente, afirmou, ao analisar o pedido liminar em caráter recursal, que a decisão agravada não merecia reparos, tendo em vista que sua fundamentação era sólida e lúcida. Desta mesma forma, ratificou seu entendimento, em caráter definitivo, através de seu voto.

O desembargador relator, assim como a juíza, sustentou em seu voto, no decorrer da fundamentação jurídica, que a obra impugnada, ou seja, o livro de autoria do Bispo, extrapolou o limite do exercício da liberdade religiosa, causando um risco as religiões afro-brasileiras, como a umbanda, candomblé e outras, pois o conteúdo fere à liberdade religiosa dos adeptos dessas religiões. O relator do caso, afirmou que

[...] na espécie dos autos, em que pese toda a argumentação deduzida pela agravante, no sentido de que a obra literária em referência não violaria a liberdade de consciência e de crença e cultos religiosos, garantida em nossa Constituição Federal, restaram demonstrados, no teor da decisão agravada, os excessos da obra impugnada, com manifesto risco de danos à garantida liberdade de consciência, de crença e de cultos religiosos, integrantes de nosso patrimônio histórico cultural, a não suportar quaisquer manifestações discriminatórias e ofensivas da prevalência dos direitos humanos (CF, arts. 3º, IV, e 4º, II), posto que as liberdades públicas não são incondicionais e a liberdade de expressão, especificamente, não se revela em termos absolutos, como garantia constitucional, mas deve ser exercida, nos limites do princípio da proporcionalidade, proibindo-se os excessos nocivos à salvaguarda do núcleo essencial de outros direitos fundamentais, como no caso em exame. (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
, p. 15) (grifo nosso)

Assim, observando os ordenamentos jurídicos vigentes, tanto os nacionais como os internacionais, tendo em vista que o Brasil é signatário de diversos pactos internacionais, bem como é inserido em sistemas globais, como, por exemplo, Organização das Nações Unidas, e em sistema regional, Organização dos Estados Americanos, o Brasil não deve relativizar casos que se refere a crença e culto (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
), trazendo à tona alguns dispositivos que visam garantir a liberdade de crença, bem como combater e prevenir atos de discriminação religiosa.

Além do mais, o relator lembra em seu voto, que o Estado brasileiro adota uma política nacional de promoção de igualdade racial, a qual possui o intuito de diminuir as desigualdades raciais no território brasileiro.

Salienta, ainda, que um possível descumprimento de obrigações assumidas em diplomas internacionais, o Brasil pode ser responsabilizado e, assim, sofrer uma série de penalidades, aliás, perante a Corte Internacional de Direitos Humanos (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
).

Por fim, no dispositivo do seu voto, o relator assegurou que as religiões afro-brasileiras são resguardadas pela CRFB/88, bem como suas liturgias. Assim, por esse fato previsto na referida Carta Magna, essas religiões merecem a proteção do Estado brasileiro, para que assim elas possam exercer livremente a garantia constitucional dada pelos legisladores originários. Observando que o livro possui um conteúdo que atenta aos exercícios dos cultos das religiões brasileiras e a liberdade de expressão e a liberdade religiosa encontra limite em si mesma, ou seja, limite da proporcionalidade, o relator do processo, em seu voto, negou o provimento do recurso interposto por uma das rés do processo originário.

Em sentido contrário ao relator do caso, o juiz federal Leão Aparecido Alves (julgador convocado), votou dando provimento ao recurso da recorrente, tendo como fundamentação jurídica, em sentido geral, a laicidade do Estado brasileiro, o qual não pode tomar partido religioso, a liberdade religiosa e a liberdade de expressão.

No que se refere a laicidade do Estado, o juiz afirma que, com exceção da Constituição imperial de 1824, todas as constituições tinham como princípios a ser seguidos a separação entre a igreja e o Estado, bem como a liberdade de culto. Porém, como se sabe, a liberdade de culto era seletiva, pois os adeptos das religiões afro, como candomblé e umbanda, por exemplo, não podiam exercer livremente esse direito, pois sempre foram perseguidos. No que se refere a laicidade do Estado, o magistrado afirmou em seu voto que

[...] não pode haver dúvida quanto ao caráter laico do Estado, bem como de que não cabe a ele estabelecer política de qualquer ordem em matéria de crença religiosa. As crenças religiosas pertencem ao indivíduo, e não ao Estado, donde decorre que na atuação inerente ao ofício público, a crença religiosa não tem lugar, porquanto caracteriza opção individual, que integra o complexo de direitos personalíssimos que consubstanciam a dignidade humana, na medida em que todas as religiões (estatísticas afirmam a existência de mais de 4.000 diferentes religiões) representam a manifestação mais evidente da eterna busca da humanidade para duas questões transcendentais: De onde viemos? Para onde vamos? (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
, p. 5-6)

Salienta-se que este princípio, está previsto na CRFB/88, em seu artigo 19, onde determina que o Estado não pode perseguir e nem favorecer, de forma alguma, nenhuma doutrinação religiosa, seja ela qual for.

No que se refere ao direito à liberdade religiosa, o magistrado alega que desde 1890, por meio do Decreto 119-A, ou seja, antes mesmo da Constituição de 1891, o Estado brasileiro já havia revogado a Lei Padroado e, assim, as autoridades estatais, pelo menos em tese, não podiam mais, a partir de então, intervir no que se referisse a matéria religiosa.

Para o magistrado, pelo fato do livro tratar sobre religiosidade e por expor a sua doutrinação religiosa, não pode o Estado, por meio do judiciário, intervir e, consequentemente, censurar o autor da obra, tendo em vista que se trata apenas de uma manifestação da liberdade de crença, garantida pela CRFB/88.

Na fundamentação a qual o magistrado mais se apegou, a liberdade de expressão, bem como da liberdade da manifestação do pensamento, de início, ele afirma que “Na atualidade, somente as ditaduras mantêm lista de livros proibidos”, isto é, ratifica que o conteúdo do livro, não extrapola nenhum direito fundamental, apenas o exerce e caso o judiciário intervisse e proibisse a circulação do livro estaria cometendo um ato ditatorial, ferindo, desta maneira, a CRFB/88. Assim, afirma-nos, em seu voto:

[...] a tentativa, ainda que com a melhor das intenções, de estabelecer critérios sobre o que pode ou não pode ser escrito, constitui um passo no caminho tenebroso para o retorno aos tempos nada saudosos da censura neste País, mediante a atuação do Estado na repressão à atividade intelectual, caminho seguro para o obscurantismo, as perseguições e a destruição dos alicerces da democracia. Com efeito, a atuação estatal na imposição de censura literária é a marca registrada de todas as ditaduras, as quais são levadas a cabo pelo grupo dos que se julgam sabedores de todas as verdades a ponto de se arvorarem do poder de calar a voz dos demais. A História da humanidade está recheada, e inclusive a Bíblia, de maus exemplos no tocante à irracionalidade e ao perigo da intolerância para com as diferenças. (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
, p. 12)

Todavia, vale salientar que o problema não está no livre exercício de qualquer direito fundamental previsto pela CRFB/88, mas sim seu extrapolar, seu uso desproporcional, como colou a magistrada federal de primeira instância e o relator do processo no TRF1, pois, conforme trechos do livro, o autor da obra exagerou em seu conteúdo. Destarte, devido ao conteúdo ofensivo e discriminatório do livro, caso o judiciário determinasse a não circulação dele, não se equipararia a uma ditadura, pois estaria resguardando a CRFB/88, haja vista que em caso de colisão de direitos fundamentais, como já dito, deve levar em consideração o princípio da proporcionalidade e fazer a ponderação deles, para que, assim, possam viver harmonicamente.

Vale dizer que o magistrado, no decorrer do seu voto, reconhece que o conteúdo do livro chega ser “chocante”, ou seja, algo que causa espanto, podendo ser também entendido como algo ofensivo4 4 Conforme o dicionário on-line de português, a definição da palavra “chocante” pode ser: “Que choca, melindra, fere; desagradável, ofensivo: palavras chocantes”. Disponível em <https://www.dicio.com.br/chocante/>. Acesso em 22 de dezembro de 2019. . Desta maneira, mesmo reconhecendo que o conteúdo é ofensivo, não reconhece que o Bispo extrapolou os limites dos direitos fundamentais constitucionais, bem como os Direito Humanos e, por consequência, não reconhece a discriminação e incitação da discriminação religiosa, apenas alega que o Bispo, por expor doutrina religiosa, realizou proselitismo.

Também não existe ofensa aos princípios consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 18), na Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções (artigos 2º, 3º e 4º) e na Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica (artigo 12, itens 1 e 2), porque o autor desenvolve, apenas, os argumentos de uma doutrina religiosa amparada na interpretação literal de textos tidos por sagrados por bilhões de pessoas ao redor do globo. Da exposição dessa doutrina religiosa, apesar de seus termos chocantes, não decorre discriminação contra os praticantes dos cultos afro-brasileiros, pois constitui apenas proselitismo, ou ainda um convite a eles para que passem a crer na doutrina evangélica, como resulta da exortação feita pelo autor do livro em causa [...]. (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
, p. 12)

Afirmando, ainda, que os adeptos da religião afro-brasileira possuem o direito de editarem livros que combatam o proselitismo agressivo dos adeptos da IURD, assim, ao afirmar que o proselitismo do livro é agressivo, reconhece, automaticamente, que o conteúdo é ofensivo contra as religiões de origem africana. Assim, entende-se que o proselitismo ofende sim aos adeptos das religiões de origem africana.

Diante da fundamentação jurídica, o magistrado, divergindo do relator, deu provimento ao recurso de agravo de instrumento interposto pela recorrente.

Seguindo o entendimento do juiz federal Leão Alves, o voto do desembargador Daniel Paes Ribeiro, foi no sentido que o Bispo Edir Macedo apenas realizou seu direito Constitucional, assegurando que:

[...] deve prevalecer o princípio da livre manifestação do pensamento ou da liberdade de expressão, já que me parece que a proibição da divulgação do livro, no caso, representa uma censura não admitida pela Constituição Federal. Observo ainda que, diferentemente do eminente Relator, entendo que a decisão é satisfativa, no sentido de que determina o recolhimento de todos os exemplares da obra e proíbe a sua divulgação por qualquer meio, e observo, por fim, que, embora o livro contenha expressões de caráter preconceituoso contra as religiões afro- brasileiras, como foi lido pelo eminente Relator, mas a divulgação dessa obra se dá num ambiente restrito aos seguidores da Igreja Universal do Reino de Deus que, certamente, por serem seus seguidores, estão de acordo com a manifestação do seu líder maior, que é o autor do livro. Não vejo, pelo menos neste exame preliminar, superficial, ofensa ou violação à liberdade de crença religiosa na divulgação da obra. (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
, p. 10) (grifo nosso)

O desembargador Daniel Paes, assim como o juiz federal, quem antecedeu seu voto, reconheceu que no livro há termos de cunho preconceituoso contra as religiões afro-brasileiras e seus adeptos, como podemos notar no trecho supracitado.

Diante do conteúdo ofensivo do livro e por ter se referido as religiões de origem africana de forma pejorativa, no momento que incrimina conceitos negativos pré-concebidos no tangente a fé propagada pela religião afro, o autor do livro, ultrapassou os limites da liberdade religiosa, conforme consta no voto do desembargador Souza Prudente (relator):

Vale registrar que a orientação lá contida em nada acresce o conteúdo religioso da própria “fé-evangélica” - salvo o estampado fim de “angariar almas” através da dissidência e de preservar, pelo temor, aqueles já conquistados -, nada diz quanto ao fim, de fato, evangelizador e nada tem de manifestação que lhe seja particular (própria à religião - ressalvada a descrença quanto às entidades do credo originário da África); é dizer que as passagens escritas pelo primeiro réu voltam-se não para a fé que professa, para a religião que adota, mas sim para o exterior, para as demais religiões, em particular, para aquelas atualmente conhecidas como afro-brasileiras (o candomblé, a umbanda e a quimbanda), atacando-as de modo depreciativo jocoso e discriminatório e estimulando perigosamente a segregação por motivo de crença e a intolerância religiosa, fonte inesgotável de conflitos, inclusive, internacionais. (BRASIL, 2006BRASIL. Tribunal Federal da 1ª Região. Agravo de instrumento nº 2005.01.00.069605 8/BA. 6ª Turma. Desembargador Federal Souza prudente (Relator). Brasília, 2006. Disponível em: <http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p1=2005.01.00.069605-8 >. Acesso em: 01 de dezembro de 2019.
http://arquivo.trf1.jus.br/default.php?p...
, p. 8)

A partir do trecho descrito acima, o desembargador relator, entendeu que o conteúdo do livro extrapola o proselitismo, pois a obra não fica apenas limitada a professar e ressaltar a fé cristã, a qual o autor é adepto, mas sim ataca as religiões distintas da sua, de maneira particular, as religiões de origem africana. Diante disso, entende-se que o Bispo Edir Macedo extrapolou à liberdade religiosa, tendo em visto que esta liberdade consiste em manifestar a sua religião e não falar de forma negativa sobre as religiões as quais não divergem da sua, muito menos propagar a discriminação religiosa.

Diante da tese sustentada pelo desembargador Daniel Ribeiro, a qual compactua com a tese levantada pelo juiz federal, acompanhou o voto deste e deu provimento ao recurso da recorrente.

O que chama bastante atenção e causa inquietação, é que os dois magistrados, mesmo reconhecendo o caráter ofensivo do conteúdo levantado pelo Bispo, ou seja, extrapolando seus limites constitucionais, trataram o caso como proselitismo e não reconhecendo a incitação à violência que o livro pode causar aos adeptos de religiões de origem africana, assim, ajudando a perpetuar algo que causa sofrimento a diversas pessoas, inclusive, levando à morte, como foi o caso da Iyalorisá Gilda, que teve, de forma indevida e descabida, sua cara estampada em jornal religioso da IURD, gerando violência e difamações, pois a trataram como uma charlatona. Devido a esta exposição por parte do jornal intitulado “Folha Universal”, de propriedade da IURD, a Iyalorisá Gilda teve um ataque cardíaco e veio a falecer.

Considerações finais

A partir do breve panorama da perseguição e das práticas discriminatórias que as religiões de origem africana e seus adeptos sofrem constantemente, demonstra-se que a liberdade de crença e de culto ainda são desrespeitados de forma corriqueira no Brasil, em pleno século XXI.

Assim, o Estado necessita intensificar os meios de combater toda e qualquer intolerância religiosa e, sobretudo, o racismo religioso, fenômeno que tem uma relação étnico-racial com a religiosidade, em virtude de muitas vezes o racismo encontrar-se disfarçado de intolerância.

Diante da tamanha violência e do grande número dos ataques contra as religiões afro-brasileiras e seus adeptos, muitos dos praticantes dessas religiões tem omitido sua religiosidade com medo de perseguições e de ser alvo da discriminação.

Fica evidente que é necessário, aliado aos mecanismos punitivos do Estado, a elaboração de políticas públicas voltadas à prevenção e coerção das condutas de cunho preconceituosas e discriminatórias devido a religiosidade. Pois, mesmo com as condutas tipificadas como crime no ordenamento penal vigente e outros dispositivos, as agressões físicas e verbais, a demonização das religiões afro-brasileiras e suas divindades, inclusive, ataques aos terreiros ocorrem de forma constante.

Por conta da subjetividade diante dos casos que são apreciados pelos julgadores do Poder Judiciário, muitos dos adeptos podem ter seu direito ao culto restrito, trazendo consequências gravíssimas à sociedade afro-religiosa, pois levando em consideração os votos dos desembargadores, nota-se que há uma subjetividade, a qual fica evidente no embasamento dos votos.

Há três teses distintas que foram levantadas pelos desembargadores pelo mesmo fato. Uma foi que o Bispo Edir Macedo ao redigir o livro estava exercendo seu direito constitucional de livre manifestação do pensamento, apesar de ter conteúdo de cunho preconceituoso. Segunda tese defendida, foi que o bispo estava usando seu direito constitucional fundamental de liberdade de consciência e de crença, ou seja, tudo que ele dissertou no livro, o julgador alega que foi em virtude de proselitismo. E, por fim, a terceira tese e mais sensata, o desembargador relator alegou em seu voto que o bispo, através do conteúdo ofensivo de cunho religioso, extrapolou à liberdade de religião, pois o seu objetivo não era propagar ou professar sua religião, mas sim menosprezar e atacar outras religiões, acarretando incitação ao preconceito e discriminação religiosa.

Assim, a partir das teses arguidas pelos desembargadores, fica evidente que o íntimo dos julgadores, ou seja, a não neutralidade deles, pode acarretar mais prejuízos a uma comunidade religiosa a qual sofre com a discriminação há séculos, porém que já têm seus direitos assegurados pela CRFB/88, que as vezes é necessário o Poder Judiciário intervir para garantir o real exercício desses direitos.

  • 1
    Consoante Moreira (2019MOREIRA, A. J. Racismo Recreativo. 2. ed. São Paulo: Pólen Livros, 2019., p.52-53), há três tipos de microagressões, os microassaltos, os microinsultos e, por fim, os microinvalidações. Os Microassaltos ocorrem através da demonstração de desprezo de uma pessoa para com a outra devido a sua origem social. Os microinsultos decorrem por meio de comunicação, de forma explicita ou implícita, onde os agressores tentam atingir a vítima ou um grupo de vítimas através da identidade cultural ou tradição, porém há nestas manifestações um sentimento de superioridade entre o agressor e a vítima. Por fim, as microinvalidações, as quais ocorrem por meio de determinados indivíduos que deixam de atribuir interesses no que se refere aos pensamentos, experiências de pessoa a qual pertença ao grupo não hegemônico.
  • 2
    Moreira (2019MOREIRA, A. J. Racismo Recreativo. 2. ed. São Paulo: Pólen Livros, 2019., p. 95), assegura-nos que “[...] o racismo recreativo é uma política cultural característica de uma sociedade que formulou uma narrativa específica sobre relações raciais entre negros e brancos: a transcendência racial. Esse discurso permite que pessoas brancas possam utilizar o humor para expressar sua hostilidade por minorias raciais e ainda assim afirmar que elas não são racistas, reproduzindo então a noção de que construímos uma moralidade pública baseada na cordialidade racial”.
  • 3
    No ano de 2016, houve uma campanha intitulada “Filhos do Brasil”, a qual foi uma ação em defesa da liberdade de crença e de culto, assim, explicam que por isso ocorreu o recorde no registro do Disque 100.
  • 4
    Conforme o dicionário on-line de português, a definição da palavra “chocante” pode ser: “Que choca, melindra, fere; desagradável, ofensivo: palavras chocantes”. Disponível em <https://www.dicio.com.br/chocante/>. Acesso em 22 de dezembro de 2019.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    18 Fev 2020
  • Aceito
    23 Out 2020
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