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Identidade negra: preto e branco no panafricanismo pelas lentes do Haiti

DÉUS, Frantz Rousseau. Paradoxo haitiano: identidade negra e “branqueamento” na contemporaneidade. Curitiba: Appris, 2021

A obra escrita por Frantz Rousseau Déus representa uma conclusão bem-acabada de um extenso trabalho de sociologia que envolve, diretamente, dois países (Haiti, país de origem do autor, e Brasil, local onde realizada a pesquisa), mas que tem a capacidade de debater os países da diáspora negra e - somando a esses os países do continente africano nos quais semelhantes problemas foram demonstrados no livro - aqueles pertencentes ao panafricanismo. O paradoxo haitiano, apresentado pelo autor, se traduz na contradição entre o esforço histórico de intelectuais e líderes políticos para apreciação dos aspectos culturais haitianos oriundos dos povos africanos e o fenômeno atual (talvez, não recente) do branqueamento. Mais especificamente, o paradoxo está na contradição entre as lutas dos haitianos pela libertação e abolição da escravização, daquele que foi o primeiro país negro a se libertar (por si só) das correntes da escravização, mas ainda está preso às correntes ideológicas em face do enraizamento de ideologias de superioridade branca.

O branqueamento1 1 Ainda que o autor comente que o branqueamento tratado se distingue do fenômeno histórico brasileiro com o mesmo nome (DÉUS, 2021: 23-24), é possível notar dissonância da terminologia. Certamente, o autor refere-se ao branqueamento no caso brasileiro como políticas de branqueamento dos governos brasileiros do século XIX e da primeira metade do século XX (como política de Estado). Esse fenômeno referia-se à imigração europeia ao Brasil para que a população brasileira se tornasse “mais branca”, o que, segundo incentivadores da política, tornaria o país mais civilizado e seus cidadãos mais aptos ao trabalho industrial. Contudo, é necessário destacar que o fenômeno do branqueamento como descrito no livro é também um fenômeno social no Brasil (FERREIRA e ALVES, 2018), mas, talvez devido à miscigenação, de menor impacto em relação ao Haiti. (ou despigmentação “voluntária” da cor da pele), nesse sentido, é a utilização de produtos estéticos para que a pele perca sua cor preta (ainda que os possíveis efeitos colaterais sejam graves), na tentativa de se afastar dos supostos signos negativos da negritude. A suposta voluntariedade deste fenômeno (marcada entre aspas de forma crítica pelo autor) identifica que se trata de um fenômeno social ou coletivo e histórico - “fenômeno socioantropológico” conforme Déus (2021: 24) -, no qual a vontade individual (consciente das causas da tentativa do branqueamento) tem pouca influência no fenômeno.

Para tal conclusão, a obra - que envolveu levantamento de documentos e de material midiático e pesquisa de campo - apresenta-se a partir de uma investigação histórica do pensamento social haitiano, a qual pavimenta o caminho até a análise dos materiais coletados para verificação do recente fenômeno do branqueamento. A correlação desta temática com a identidade negra (no Haiti) demonstra, ainda mais, sua profundidade, pois é nela que se encontra o paradoxo. Nesse sentido, o autor demonstra a construção da identidade (nacional-cultural do Haiti, mas também do negro) de maneira histórica.

Apresenta-se o que se entende por identidade. Trata-se de conceito mutável, como a própria ideia de identidade, e que pode ser apreensível pelos discursos e análises de representações sociais. Pode, pela mutabilidade, haver disputas pelo conceito de identidade, nos planos político, cultural ou psicológico (pode-se destacar a consciência individual da identidade e a influência externa na mesma identidade). Assim, a partir de pensadores haitianos como Jean Price-Mars, identifica-se identidade como uma categoria (em sua forma coletiva) capaz de acolher diferenças e diversidades existentes naquela sociedade.

Esse direcionamento específico dos pensadores haitianos ocorre em função da estrutura social formada pós independência e em relação ao período de dominação estadunidense da ilha (de 1915 a 1935). Após a independência, as elites haitianas disputaram as poucas riquezas restantes, mantiveram e reproduziram a estrutura social marcadas pelo histórico colonial e escravocrata; assim, manteve-se a opressão e violência sistemáticas antes encontradas, pelas quais alguns intelectuais negros haitianos se consideravam “franceses de cor” (DÉUS, 2021: 35). Isso, por si só, demonstra o desprezo cultural (ao menos da elite) pelas influências e elementos da cultura africana na cultura haitiana.

No que diz respeito às elites, Jean Price-Mars as critica duramente e defende que elas deveriam construir pontes entre a miséria dos humildes e sua aparente riqueza. (PRICE-MARS, 1919PRICE-MARS, Jean. La vocation de l’élite. Port-au-Prince: Impr. Edmond Chenet, 1919.: 55-56). Foi somente durante a dominação estadunidense (motivada pelo clima de instabilidade política que culminou no assassinato do presidente Jean Jacques Dessalines) que a elite haitiana foi forçadamente colocada no mesmo patamar do povo haitiano - todos dominados por uma nova ocupação colonial. Neste contexto histórico, surge o indigenismo haitiano (ou indigénisme haïtien), do qual trata o primeiro capítulo da obra. A proposta deste movimento intelectual era a de construir uma identidade nacional que valorizasse e integrasse elementos da cultura africana (“cor da pele, cultura, valores, crença, religião” (DÉUS, 2021: 34-35), bem como investigasse e estudasse de forma objetiva e profunda as crenças e culturas africanas, o folclore haitiano, além das crenças populares dos camponeses. Price-Mars, então, chama a elite haitiana a construir, junto ao povo, “uma identidade sociopolítica e cultural libertadora” (DÉUS, 2021: 36). Interessante perceber que a construção de uma identidade se faz em negação ou oposição a outras (DÉUS, 2021: 77).

O indigenismo teve componentes e características humanista, sociocultural, literário, antropológico e político, tornando-se “uma reação contra o imperialismo estadunidense, contra a colonização física, moral, intelectual e espiritual e contra o racismo, em geral, e racismo colonial em particular” (DÉUS, 2021: 43-44). Em 1928, a publicação de Assim fala o tio (Ainsi parle l’oncle) de Jean Price-Mars causa revolução - junto a outras obras dele, o que o conferiu reconhecimento como principal teórico do indigenismo.

Os expoentes da Revue Indigène (publicação que se relaciona ao movimento indigenista, a partir de 1927) não ignoraram a contribuição da cultura francesa para o país, entendendo pela necessidade de criar identidade haitiana como uma cultura compartilhada (culture partagée) - valorizando a cultura de raiz africana ao mesmo ponto de elevação da cultura colonial. Assim, esse movimento não surgira apenas para combater a invasão estadunidense, mas pôs luz sobre as contradições sociais daquela sociedade. Destacam-se os legados da escravização e da colonização, que deixaram o país em conflito permanente, com marginalização da maioria de sua população e estereotipização negativa de valores, práticas culturais e crenças religiosas de origem africana (como o vudu, ou vodou) - dificulta-se a criação de uma identidade haitiana pela superação do dualismo negro e mulato. Era necessário, para o indigenismo, uma contraposição ao complexo de inferioridade do colonizado, integrando e dando uma conotação positiva a tudo que alimentava tal complexo.

O autor destaca a importância do escritor Stephan Alexis (parte do indigenismo) com o romance literário O negro mascarado (Le Nègre Masqué), que visa explicar como a colonização e a escravização deixaram uma máscara na sociedade haitiana, alienando os indivíduos. Déus faz referência à obra de Frantz Fanon “Pele negra, máscaras brancas”, na qual o pensador martinicano desvela a distinção entre o comportamento dos negros em Martinica (cujo componente populacional é semelhante ao Haiti), dividindo-se em grupos sociais, reproduzindo opressões sociais e não se enxergando nas opressões contra os negros caracterizadas pelas obras de cultura francesa; porém, a percepção deste mesmo negro se altera quando habita solo europeu (francês), percebendo-se negro (daí o entendimento que, em seu país de origem, alguns negros utilizam uma máscara branca) (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.: 130-131).

O autor destaca, a partir deste conceito de máscaras, que há uma supervalorização mundial do branco e de sua cultura, principalmente nos países e povos que sofreram com a colonização e a escravização -razão para compreender que se trata de um fenômeno relativo ao panafricanismo, ainda que a sua perspectiva inicial seja a sociedade haitiana2 2 Gilles Lipovetsky (2015, p. 357-359) destaca um outro paradoxo, no qual o declínio da hegemonia econômica do ocidente implica na hegemonia de seus padrões e práticas estéticas por diversos países - que é parte do que ele denomina como “capitalismo artista mundializado”. Dentre vários exemplos deste fato, o pensador francês apresenta o branqueamento como realidade na Jamaica e em países africanos. Frantz Déus (DÉUS, 2021: 133) destaca a prática existente no Congo, denominada maquillage, mas que também representa o branqueamento. . É possível, ainda, relacionar esse fenômeno aos conceitos de “véu” e “duplo consciente” apresentados pelo pensador estadunidense W.E.B. Du Bois em “Almas do povo negro”. Identifica-se que o colonialismo deixa marcas tão profundas em uma sociedade que a identidade negra é inferiorizada em relação à identidade branca (entenda-se, também, a cultura e os costumes) não somente nas sociedades miscigenadas (como no Brasil) ou de ampla convivência (como Estados Unidos), mas também naquelas em que os negros são, se não totalidade, maioria. A máscara para o negro nessa sociedade, principalmente em relação ao conceito fanoniano, tem a função do véu (não permitir enxergar a negritude da sociedade como sua, nem a sua própria cor) e do duplo consciente (sabe-se haitiano, mas se reivindica francês-haitiano).

O autor menciona intelectuais (Dantès Bellegarde e León Laleau) que se opuseram à invasão estadunidense desde o início e antes da Revue Indigène (fora do indigenismo). Inclusive, dentre tais intelectuais, havia maior defesa à cultura francesa (em detrimento da estadunidense), que representaria parte da identidade haitiana em conjunto à cultura africana. Mesmo antes do indigenismo, manifestaram-se “contra a brancomania e a contra a negrofobia” (DÉUS, 2021: 51). A distinção destes escritores prévios ao indigenismo (1915-1927) para os indigenistas (1927-1934) é que estes colocam em xeque a origem francesa da cultura haitiana, criticando a ideia da elite haitiana de que o haitiano seria um francês de cor.

O posicionamento da raça ou da cor da pele como questão central não se trata de mera retórica em busca de identidade haitiana, mas se impõe como ideia primordial para contrabalancear o imaginário e teorias criadas a partir de representações na cultura e história europeias com a escravização. Portanto, em razão do colonialismo, o racismo se torna estrutura das sociedades do panafricanismo, mesmo após a independência de seus países ou eventual desocupação pelos povos europeus e seus descendentes. As ideias baseadas na superioridade europeia estavam enraizadas no imaginário haitiano, motivo pelo qual, para Price-Mars, havia necessidade de “desalienação do povo haitiano” (DÉUS, 2021: 55-56).

Para Price-Mars, o antídoto ao racismo seria a consciência nacional, o resgate do folclore - destacando que haveria uma crise moral, não intelectual, no Haiti da invasão estadunidense. Entretanto, esse resgate não busca construir uma identidade haitiana a partir de uma essencialidade cultural de maneira ontológica, mas é uma disputa política, visando a integração das categorias sociais excluídas - categorias que foram colocadas no local de dominadas após a independência, em reprodução da dominação colonial extinta3 3 O autor destaca o pensamento do antropólogo e historiador haitiano Michel-Rolph Trouillot, aduzindo que o Estado haitiano se constrói em oposição à nação haitiana, em postura predatória ao povo. (DÉUS, 2021: 64) .

Ao analisar o pensamento dos autores da Revue Indigène, o autor concluiu que os projetos políticos desenvolvidos pelas elites ao longo da história não tiveram como objetivo promover a inclusão social da massa. As elites haitianas não demonstraram interesse em criar condições para incluir a maioria de haitianos/as camponeses/as negros/as, mas a exploraram para depois a excluírem, deixando-a morrer na miséria crônica (DÉUS, 2021: 63).

Após o fim da invasão estadunidense em 1934 e enfatizando o problema do racismo, os pensadores da revista Les Griots apresentaram uma revisão dos pensamentos e propostas daqueles da Revue Indigène. Lorimé Denis e François Duvalier na obra “O problema das classes através da história do Haiti” (Le Problème des Classes à travers l’Histoire d’Haïti) “demonstram a preferência pelos políticos negros em detrimento dos mulatos” (DÉUS, 2021: 67). Assim, pela ideologia noiriste, negros deveriam tomar o poder político dos mulatos, o que levou Duvalier, na segunda metade do século XX, a conquistar a Presidência do Haiti - ao contrário do pensamento de Price-Mars, o regime duvalierista apresentou um “essencialismo grosseiro” na pretensão de uma “identidade racial” (DÉUS, 2021: 68).

O autor ressalta que durante o governo de Duvalier os até então oprimidos (negros) viraram opressores dos mulatos e dos camponeses, estes últimos que, em tese, seriam protegidos e teriam seus direitos garantidos pelo novo governo. Assim, apesar do surgimento como parcialmente adeptos do indigenismo, os pensadores da revista Les Griots, em defesa do noirisme e com centralidade nos pensamentos e ações políticas de Duavlier, ignoraram completamente a ideia de cultura compartilhada e as análises sobre os problemas sociais que tornariam essa ideia essencial para a reconstrução da sociedade haitiana. Por tal motivo, a dificuldade em inserir tais pensadores como representantes do indigenismo.

A etapa seguinte do movimento é representada pelos afro-indigenistas revoltados (Afro-indigenistes révoltés), que foram influenciados também pelo marxismo e pela revolução russa. As ideias destes pensadores não visaram somente a construção de uma identidade haitiana, mas a tomada de consciência da classe operária. O esforço de Jacques Stephan Alexis e Jacques Roumain foi de “desmistificar psicológica e espiritualmente a massa da população haitiana”, com a finalidade de superar o status quo (DÉUS, 2021: 74).

No segundo capítulo, ao tratar do processo de racialização no Haiti, o autor destaca (DÉUS, 2021: 79) que a categoria raça é uma construção sócio-histórica, sendo consolidada primeiramente (século XVIII) em volta do corpo (natureza e biologia) e depois (século XIX) tornada fundamental pelo pensamento racista europeu. Com base nesses conceitos as diversas sociedades latino-americanas e caribenhas foram cunhadas, centralizadas na escravização e desumanização dos negros e indígenas - o que implicava na inferiorização destas culturas, sendo a escravização, segundo o autor, precursora da desigualdade racial ou racismo, sendo que estes surgiriam para justificar aquela (DÉUS, 2021: 82).

Durante o processo de independência, a Constituição política haitiana conceberia os haitianos como negros independentemente da tez. Isso, pois o negro haitiano seria quem não compartilhava ideais de escravização e colonização - um paradoxo, pois os mulatos reivindicaram a herança dos colonizadores, impondo dominação social sobre negros. Desde a sua independência, o debate racial (tentando exaltar a raça negra) sempre teve grande relevância, ainda que afastado do debate político, mesmo quando a disputa se mostrava como culturalista. Entretanto, o imaginário de superioridade e “ideal da perfectibilidade” (DÉUS, 2021: 87) criados em torno da raça branca com a colonização e escravização persistem, ainda que uma sociedade não seja miscigenada nem conviva com brancos.

Por isso o fenômeno do branqueamento torna-se relevante e - à medida que se compreende o esforço histórico dos pensadores haitianos para elevar a cultura africana e a raça negra no Haiti - se mostra como um paradoxo. O fenômeno é estudado no terceiro capítulo, que reforça “a problemática da cor da pele” como um “elemento estruturador” da sociedade haitiana (DÉUS, 2021: 89). A partir da propagação midiática4 4 O autor entende que a propaganda publicitária não apenas era utilizada para ratificar a beleza do branco, mas também para reforçar a suposta inferioridade do negro com relação ao branco apresentando o negro de forma selvagem, grotesca e pejorativa. A violência colonial, sequelas da escravização e o excesso de propaganda publicitária atingiram diretamente o imaginário coletivo, a autoestima e confiança do negro que ao internalizarem essas representações grotescas, pejorativas etc., muitas pessoas negras sentiram uma necessidade de se livrar de suas próprias características físicas para se aproximar do branco. (DÉUS, 2021: 97) (sejam mídias tradicionais ou sociais), o autor nota o problema da despigmentação “voluntária” como uma questão social relevante, consistente na prática de uma pessoa (por iniciativa própria) buscar desfazer a pigmentação fisiológica de sua pele, não com a ideia de se tornarem brancos, mas de se aproximarem a eles, diminuindo a sua cor preta (DÉUS, 2021: 90-91).

Essa prática é vista com críticas por quem não a adota, seja em razão de possíveis problemas de saúde, ou de entenderem pela existência de conceito estético negativo do negro com causa histórica (que leva à falta de aceitação de si). Há fator econômico, pois a indústria cosmética utiliza do dualismo branco-positivo/negro-negativo para gerar lucros, mesmo causando sentimento de inadequação estética em africanos(as) e seus descendentes em favorecimento aos ideais brancos de beleza impostos pelo ocidente. Em comparação a estudos brasileiros, destaca-se um entendimento de que o papel da publicidade “é vender produtos ao maior número possível de pessoas e não mudar estereótipos” (DÉUS, 2021: 95).

Entretanto, o autor destaca que há nas publicidades um papel importante de criar ou reforçar os falsos estereótipos, tanto negativos (aos negros), quanto positivos (aos brancos). Isso, faz com que as pessoas internalizem as representações publicitárias (mesmo grotescas e pejorativas), fazendo com que o branco tenha mais “certeza” do seu suposto lugar social e que o negro queira cada vez mais se parecer com o branco para fugir do seu lugar de dominado. É nesse sentido que Silvio Almeida (2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.: 50) destaca a importância da criação e recriação do imaginário, para a propagação ou para a subversão da estrutura social.

O branqueamento cumpre, ainda, papeis distintos aos indivíduos (em uma sociedade patriarcal), conexos às relações sociais. Há uma aderência feminina ao branqueamento pela ideia de que homens negros preferem ter relacionamento com mulheres de pele clara5 5 Em uma das entrevistas coletadas pelo autor, uma mulher haitiana respondeu da seguinte forma no que diz respeito ao branqueamento estar vinculado a sedução: “Entrevistadora: Você fala é porque você queria ser mais bonita, ter pele clara, você já encontrou alguém (namorado, por exemplo) que exigiu que você se despigmentasse? Entrevistada: Não encontrei nenhuma pessoa que me exigiu fazer isso, mas no Haiti, muitas pessoas gostam das pessoas com pele clara, achando-as mais atraentes e mais bonitas.” (DÉUS, 2021: 111) - o que faz com que homens encorajem suas companheiras à despigmentação (DÉUS, 2021: 109); e aderência masculina por prestígio social na esfera produtiva, garantindo status social em função da pele clara6 6 Um homem entrevistado pelo autor vinculou a beleza a “ter um cabelo swa-liso e pele clara”. (DÉUS, 2021: 115).

No que diz respeito ao envolvimento afetivo da mulher negra, ao analisar a sociedade brasileira do final do século XX, Beatriz Nascimento explica que em uma sociedade plurirracial, que privilegia padrões estéticos femininos como ideal de um maior grau de embranquecimento (desde a mulher mestiça até a branca), o trânsito afetivo da mulher negra é extremamente limitado (NASCIMENTO, 2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombos e movimentos; organização Alex Ratts. - 1ª ed. - Rio de Janeiro: Zahar, 2021.:235). Neste ponto de vista, a opção pelo embranquecimento evidencia uma necessidade da mulher negra se livrar dos nefastos efeitos da desigualdade racial e sexual que as aflige.

Lélia Gonzalez se debruçou sobre as particularidades da mulher latino-americana no contexto de uma sociedade patriarcal e racista e diagnosticou que dentro da estrutura das profundas desigualdades raciais existentes no continente, a desigualdade sexual está inscrita e muito bem articulada. Trata-se de uma dupla discriminação de mulheres não brancas na região: as amefricanas e as ameríndias. O caráter duplo de sua condição biológica - racial e/ou sexual - as torna as mulheres mais oprimidas e exploradas em uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente (GONZALES, 2020: 145).

A intelectual brasileira também diagnosticou em estudo realizado na década de 70 algo comum nos países da diáspora negra: a mulher negra ganha menos que a mulher branca e está submetida a trabalhos autônomos ou trabalhos não remunerados na agropecuária (GONZALES, 2020: 193-194).

Para além do papel social que cumpre, o branqueamento destaca desigualdades socioeconômicas: os produtos que cumprem com imposições de controle sanitário são muito mais caros e inacessíveis que outros despigmentantes comprados em mercado paralelo e de baixa qualidade (DÉUS, 2021: 122). Assim, a população de menor renda sofre problemas dérmicos ainda mais graves. Há novo paradoxo, pois a busca pelo branqueamento não acontece apenas para adequação ao padrão de beleza mundializado, mas para pertencimento a uma categoria social mais privilegiada na sociedade haitiana (DÉUS, 2021: 131). Deve-se lembrar que o espólio colonial haitiano foi partilhado reproduzindo as suas estruturas de dominação, inferiorizando o negro e privilegiando o mulato. Para o autor (DÉUS, 2021: 135), o branqueamento representa também um ódio por si, causando uma rejeição e um desejo de adquirir as características do outro, que é admirável e respeitável.

No quarto e último capítulo, o autor investiga as implicações da estrutura e da ideologia racista da sociedade haitiana sobre o branqueamento. Ressalta que a cor da pele e o fenótipo era critério de diferenciação social e símbolo de sucesso até final do século XX (DÉUS, 2021: 138). Entretanto, entende-se que a cor da pele é, talvez, menos definidora da dicotomia mulato-negro que a posição social. Isso se traduziria no ditado popular haitiano “Um mulato pobre é um negro, um negro rico é um mulato” (DÉUS, 2021: 139). Ainda assim, o autor afirma que “ser aceito como rico/a ou ocupar uma posição privilegiada não exclui a possibilidade de que uma pessoa negra sofra preconceitos de cor ou racismo” (DÉUS, 2021: 140), vez que o ocidente construiu uma representação sub-humana do negro.

Como já afirmado, houve um esforço teórico no Haiti, desde o século XIX, para (além de combater e criticar a escravização e colonização) desconstruir a noção de raça do pensamento ocidental. Esse esforço influenciou pensadores como Fanon, que se baseia no pensamento de Balandier, para quem o colonialismo é fenômeno social que compreende dimensões econômicas, políticas, culturais e psíquica de dominação. Apesar do grande esforço para subverter esse olhar ocidental durante todo o século XX, não houve, segundo o autor, intenção dos atores políticos negros (aqueles que realmente acessaram postos de poder) em realizar mudanças estruturais e políticas públicas para que se melhorassem as condições de vida da massa da população (DÉUS, 2021: 142).

O fenômeno do branqueamento - que expressa tensões dos grupos sociais hierarquicamente postos na estrutura social do Haiti e desejo de algumas pessoas em “se afirmarem como seres humanos dignos” (DÉUS, 2021: 146) - representa completa “inversão do imaginário social positivo herdeiro das grandes figuras revolucionárias haitianas que lutavam para combater a escravização” (DÉUS, 2021: 145). Daí a importância de se compreender a dimensão e o enraizamento do racismo, que, em suas dimensões cultural e estrutural, mantém lógicas de dominação nas sociedades [panafricanas] pós-coloniais e pós-escravagistas, independentemente de condutas individuais racistas.

Ainda que o branqueamento possa estar relacionado à não aceitação de si mesmo, o autor destaca que não é possível atribuir esse fenômeno como uma conduta que culpabiliza os indivíduos que se submetem a esses processos. É justamente a estrutura racista (com sua dimensão política, econômica e psicossocial), herdada da colonização europeia, que deve ser a base do entendimento para esse fenômeno, descaracterizando, inclusive, a nomenclatura “voluntária” em “despigmentação voluntária” (DÉUS, 2021: 158).

O paradoxo exposto desde o título da obra de Frantz Déus é genuinamente haitiano, pois o fenômeno do branqueamento inverte e subverte a grandeza do povo negro pelo ideal de libertação dos escravizados na revolução e independência do Haiti no início do século XIX. Porém, a identidade negra como objeto visualizado a partir do fenômeno do branqueamento deve ser relacionada a todos os povos panafricanos (dos países do continente africano e aqueles descendentes da diáspora africana). Isso, pois todos esses povos foram afetados diretamente pela colonização e escravização europeias. A partir destes fenômenos históricos, o Ocidente impôs (e continua a impor) padrões culturais, sociais, organizacionais e estéticos que alcunha simplesmente como “civilização”.

Como bem pontuou Deivison Mendes Faustino no prefácio desta obra: o paradoxo haitiano é também o paradoxo da identidade. Uma crise de aceitação e pertencimento oriundos das diversas invasões e abusivos físicos e morais que este valente povo foi submetido.

Portanto, a identificação e propagação de uma identidade negra deve ser feita a partir da desestigmatização das culturas africanas e daquelas originadas delas, afastando todo e qualquer conceito negativo imposto pela cultura europeia mundializada. No viés cultural, a negritude deve ser exaltada; no viés estético, o preto deve ser exaltada; no viés político e econômico, a identidade negra somente será forjada e mantida (com dignidade para os povos negros) a partir da compreensão e das mudanças dos problemas estruturais.

Referências bibliográficas

  • ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
  • DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. São Paulo: Veneta, 2021.
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
  • FERREIRA, Geniane Diamante; ALVES, Érica Fernandes. O corpo negro como um lócus da negação da identidade. Graphos, João Pessoa, vol. 20, n. 2, 2018. DOI: https://doi.org/10.22478/ufpb.1516-1536.2018v20n2.44131. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/graphos/article/view/44131/22091 Acesso em: 27 jan. 2023.
    » https://doi.org/10.22478/ufpb.1516-1536.2018v20n2.44131. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/graphos/article/view/44131/22091
  • GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flavia Rios, Márcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
  • LIPOVETSKY, Gilles. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombos e movimentos; organização Alex Ratts. - 1ª ed. - Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
  • PRICE-MARS, Jean. La vocation de l’élite. Port-au-Prince: Impr. Edmond Chenet, 1919.
  • 1
    Ainda que o autor comente que o branqueamento tratado se distingue do fenômeno histórico brasileiro com o mesmo nome (DÉUS, 2021: 23-24), é possível notar dissonância da terminologia. Certamente, o autor refere-se ao branqueamento no caso brasileiro como políticas de branqueamento dos governos brasileiros do século XIX e da primeira metade do século XX (como política de Estado). Esse fenômeno referia-se à imigração europeia ao Brasil para que a população brasileira se tornasse “mais branca”, o que, segundo incentivadores da política, tornaria o país mais civilizado e seus cidadãos mais aptos ao trabalho industrial. Contudo, é necessário destacar que o fenômeno do branqueamento como descrito no livro é também um fenômeno social no Brasil (FERREIRA e ALVES, 2018), mas, talvez devido à miscigenação, de menor impacto em relação ao Haiti.
  • 2
    Gilles Lipovetsky (2015, p. 357-359) destaca um outro paradoxo, no qual o declínio da hegemonia econômica do ocidente implica na hegemonia de seus padrões e práticas estéticas por diversos países - que é parte do que ele denomina como “capitalismo artista mundializado”. Dentre vários exemplos deste fato, o pensador francês apresenta o branqueamento como realidade na Jamaica e em países africanos. Frantz Déus (DÉUS, 2021: 133) destaca a prática existente no Congo, denominada maquillage, mas que também representa o branqueamento.
  • 3
    O autor destaca o pensamento do antropólogo e historiador haitiano Michel-Rolph Trouillot, aduzindo que o Estado haitiano se constrói em oposição à nação haitiana, em postura predatória ao povo. (DÉUS, 2021: 64)
  • 4
    O autor entende que a propaganda publicitária não apenas era utilizada para ratificar a beleza do branco, mas também para reforçar a suposta inferioridade do negro com relação ao branco apresentando o negro de forma selvagem, grotesca e pejorativa. A violência colonial, sequelas da escravização e o excesso de propaganda publicitária atingiram diretamente o imaginário coletivo, a autoestima e confiança do negro que ao internalizarem essas representações grotescas, pejorativas etc., muitas pessoas negras sentiram uma necessidade de se livrar de suas próprias características físicas para se aproximar do branco. (DÉUS, 2021: 97)
  • 5
    Em uma das entrevistas coletadas pelo autor, uma mulher haitiana respondeu da seguinte forma no que diz respeito ao branqueamento estar vinculado a sedução: “Entrevistadora: Você fala é porque você queria ser mais bonita, ter pele clara, você já encontrou alguém (namorado, por exemplo) que exigiu que você se despigmentasse? Entrevistada: Não encontrei nenhuma pessoa que me exigiu fazer isso, mas no Haiti, muitas pessoas gostam das pessoas com pele clara, achando-as mais atraentes e mais bonitas.” (DÉUS, 2021: 111)
  • 6
    Um homem entrevistado pelo autor vinculou a beleza a “ter um cabelo swa-liso e pele clara”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2023
  • Aceito
    11 Mar 2023
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