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Apresentando Julgamentos Feministas Brasileiros

Presenting Brazilian Feminist Judgments

Resumo

Esse artigo apresenta um dos primeiros projetos de julgamentos feministas no Brasil, explicando a metodologia empregada, expondo os objetivos esperados e comentando os julgamentos que compõem o presente dossiê. Projetos de julgamentos feministas vem sendo desenvolvidos no país e mundo afora e, em comum, todos adotam a metodologia de reescrever, a partir de uma ou mais perspectivas feministas, decisões judiciais prolatadas em casos reais observando todas as limitações factuais e legais presentes na data do julgamento. Esses projetos têm por objetivo contribuir para a construção de uma nova compreensão crítica sobre o direito a partir das perspectivas de sujeitas de carne e osso inseridas em estruturas sociais hierarquizadas. Assim, expomos como a realidade das instituições que compõem os sistemas de justiça atuais ainda está marcada por estereótipos diversos, inclusive de gênero.

Palavras-chave:
Teorias feministas do direito; Julgamentos feministas; Metodologias contra-hegemônicas

Abstract

This article introduces one of the first feminist judgment projects in Brazil, explaining the methodology used, the expected objectives and presenting the judgments that make up the present dossier. Feminist judgment projects have been developed in the country and around the world and, in common, they all adopt the methodology of rewriting, from one or more feminist perspectives, judicial decisions rendered in real cases, observing all the factual and legal limitations present on the date of the judgment. These projects aim to contribute to the construction of a new critical understanding of law from the perspectives of flesh-and-blood subjects embedded in hierarchical social structures. Thus, we expose the reality of the institutions that make up the current justice systems, still tainted by many stereotypes, including gendered ones.

Keywords:
Feminist legal theories; Feminist judgments; Counter-hegemonic methodologies

Introdução

Essa edição especial da REF torna pública nossa contribuição para um esforço brasileiro de produzir julgamentos feministas. Projetos dessa natureza se iniciaram no Canadá e já foram realizados em outros países como os Estados Unidos, Inglaterra, Irlanda, e mais recentemente, Escócia, Índia, Nova Zelândia, além de iniciativas regionais como a do continente africano (Aparna CHANDRA; Jhuma SEN; Rachna CHAUDHARY, 2021CHANDRA, Aparna; SEN, Jhuma; CHAUDHARY, Rachna. Introduction: the Indian feminist judgements project. Indian Law Review, v. 5, n. 3, 2021.; Māmari STEPHENS et al., 2017STEPHENS, Māmari et al. (eds.). Feminist Judgments of Aotearoa New Zealand - Te Rino: A Two-Stranded Rope. Oxford: Hart Publishing, 2017.; Rosemary HUNTER; Clare McGLYNN; Erika RACKLEY, 2010HUNTER, Rosemary; McGLYNN, Clare; RACKLEY, Erika (Eds.). Feminist judgments: from theory to practice. Oxford: Hart Publishing, 2010.; Mairead ENRIGHT; Julie MacCANDLESS; Aoife O'DONOGHUE, 2017ENRIGHT, Mairead; MacCANDLESS, Julie; O’DONOGHUE, Aoife (Eds.). Northern/Irish Feminist Judgments: Judges’ Troubles and the Gendered Politics of Identity. Oxford and Portland: Hart Publishing, 2017.; Vanessa MUNRO, 2020MUNRO, Vanessa. Feminist Judgments Projects at the Intersection. Feminist Legal Studies, Apr. 2020.). Aqui no Brasil, essa proposta prática-metodológica também vem angariando adeptas recentemente (Fabiana SEVERI, 2023SEVERI, Fabiana Cristina (org.). Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas: a experiência brasileira. Ribeirão Preto: IEA/FDRP-USP, 2023.; Luanna de SOUZA; Camilla GOMES, 2023SOUZA, Luanna Tomaz de; GOMES, Camilla de Magalhães. Dossiê - abordagens teórico-metodológicas de análise de decisões judiciais em perspectivas feministas. Revista de Direito Público, Brasília, v. 20, n. 106, abr./jun. 2023.)1 1 Escolhemos deixar os prenomes das pessoas citadas neste artigo de apresentação para fazer uma importante marcação de gênero das autoras e autores com quem dialogamos aqui, seguindo o exemplo da Revista de Estudos Feministas. . Cada um desses esforços reflete as particularidades dos sistemas jurídicos desses diferentes lugares, assim como suas diferentes realidades sociais. Mas todos compartilham de uma mesma metodologia em que decisões judiciais emitidas em casos reais são reescritas a partir de perspectivas feministas. Assim, quem reescreve o julgado toma para si as limitações factuais e legais às quais o/a magistrado/a do caso concreto estava submetido/a: ater-se aos fatos; considerar apenas as provas disponíveis naquela ocasião; observar a legislação material e processual em vigor à época; e cumprir as demandas legais e de estilo desse gênero textual específico.

Temos convicção de que as recentes divulgações dessa proposta no país, às quais se soma também esta, serão importantes para que perspectivas feministas deixem de ocupar as periferias do saber e da prática jurídica, superando as ainda insuficientes infiltrações no currículo comum dos cursos de graduação e pós-graduação de Direito ou nas práticas institucionais do sistema de justiça. O ambiente acadêmico jurídico nacional, com valorosas exceções, ainda se apresenta hermético a teorias alternativas que colocam grupos minorizados no centro de suas investigações e que pretendem entender criticamente as implicações das leis com a (re)produção de hierarquias sociais. O ensino e a prática jurídicas continuam na contramão dos direitos humanos e fundamentais que formalmente dizem proteger.

Certamente as palavras do professor Adilson José Moreira (2019MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019., p. 121), recontando seus tempos de faculdade, ressoa fortemente com nossas próprias experiências quando éramos alunas de graduação em Direito em uma universidade pública brasileira: “Minha experiência como estudante de direito e como um membro de uma minoria racial foi uma constante vivência de alienação, a mesma coisa que ocorria com membros de minorias sexuais”. E nada nos indica que fomos a última geração a sentir diferentes formas de epistemicídio em uma faculdade de direito. O treinamento jurídico ainda prepara novas gerações para atuar em um Brasil imaginário, em que um direito formal, desvinculado da história e da política e investido em uma suposta função de pacificação social, é instituidor de uma espécie de “fim da história”: as lutas por dignidade e reconhecimento teriam sido vencidas no passado, agora apenas nos restando a fiel execução das normas da ordem constitucional de 1988. Diante disso, torna-se “extrajurídico” invocar as experiências e olhares de mulheres, negros/as, pessoas com deficiência e outras minorias porque totalmente desimportantes, dizem eles, para uma ciência jurídica. A consequência nós já sabemos: teorias feministas do direito, teorias críticas raciais, críticas queer e teoria crip podem até existir, mas são tidas como desinteressantes ou secundárias para o fazer jurídico.

A organização de um projeto como esse no Brasil nasce, portanto, a partir do nosso contexto ferozmente violento e de uma vontade de nos apropriarmos de uma metodologia em construção para um esforço contestador ao direito como ele é tradicionalmente concebido aqui no Sul global. Vemos essa iniciativa como mais um elo na construção coletiva de um novo senso comum jurídico de acordo com o qual universalismos abstratos, individualismos atomísticos e igualdades formais não sejam mais tidos como desejáveis, naturais ou o máximo a que podemos aspirar enquanto sociedade (Martha FINEMAN, 2023FINEMAN, Martha Albertson. O sujeito vulnerável: ancorando a igualdade na condição humana. Tradução de Fabrizia Pessoa, Fábio Rezende Braga, Cecília Pazinato Marcon e Maria Fernanda Marques Oliveira Peixoto. Revista Direito e Práxis, v. 14, n. 2, 2023.). Ao contrário, desejamos tensionar o direito a partir de outras vozes: latino-americanas, decoloniais, antirracistas, anti-xenófobas e anticlassistas. O direito tem que partir de um lugar encarnado e consciente da inserção dos corpos vivos em estruturas sociais pré-existentes (mas passíveis de mudança): não é a vida que tem que caber nas normas jurídicas, mas o contrário.

Desde a chamada de trabalhos que iniciou o presente projeto, procuramos manter uma postura antinormativa quanto às diferentes perspectivas possíveis da práxis feminista, representadas pelos artigos deste dossiê. Embora os feminismos sejam múltiplos, o epíteto “feminista” é termo cheio de sentido e que encapsula tanto um aspecto descritivo crítico quanto um aspecto normativo utópico em comum a todas as suas correntes. Em sua dimensão descritiva crítica, todas elas partem de uma observação de vivências materiais, isto é, da realidade social de mulheres. Essas experiências deixam transparecer como elas vivem suas vidas como seres sociais inferiores: moedas de troca na criação e manutenção de relações de parentesco; cuidadoras primárias em sociedades capitalistas que excluem de seus cálculos econômicos os trabalhos de reprodução social; o acosso permanente de uma cultura de estupro que lê seus corpos como violáveis. A partir desses diagnósticos, vem a dimensão normativa utópica que é denominador comum a todos os feminismos: todos eles avaliam essas realidades como injustas e lutam para mudá-las, cada um à sua maneira.

Já prevemos algumas das críticas. Talvez a maior delas ponha em xeque a objetividade da metodologia: se assumidamente feminista, não pode ser objetiva; se não é objetiva, não é um esforço teórico válido sobre o fenômeno jurídico, muito menos por pretender reformar decisões judiciais que deveriam ser imparciais. Acreditamos que a resposta reside em se permitir pensar sobre as presunções que embasam certas noções atuais de direito e do positivismo jurídico. Em verdade, discutir o tópico requereria retroceder a importantes questões da filosofia da ciência sobre objetividade/subjetividade e a como as discussões dessa seara encontram caminho nas discussões sobre moralidade e legalidade, o que não é possível nessa introdução. Importa aqui dizer que, ao se tratar de práticas jurídicas em sociedades que se querem democráticas, um dos sentidos da objetividade é mais modesto, isto é, consciente dos limites intrínsecos da função jurisdicional e ativamente em busca de modos para reduzir os efeitos negativos dos vieses necessariamente ali presentes.

Tratando de teorias jurídicas que se querem plurais, um dos sentidos dessa objetividade modesta pode ser o da intersubjetividade, isto é, uma objetividade que deve ser construída através de discussões públicas, rigorosas e críticas levadas a cabo por uma pluralidade de indivíduos e grupos diferentemente posicionados. Nesse sentido, interessante estudo empírico que incluiu o Brasil confirmou as afirmações desenvolvidas por Pierre Legrand de que juízes possuem conceitos formados de maneira anterior aos julgamentos. Foi identificado também a existência da ideia de uma “objetividade modesta” no direito, como o conceito desenvolvido por Jules L. Coleman e Brian Leiter (Vito BREDA, 2017BREDA, Vito. The objectivity of judicial decisions: a comparative analysis of nine jurisdictions. Frankfurt am Main; New York: Peter Lang, 2017.). Em termos mais gerais, a teoria política tem vivenciado nos últimos anos uma virada em direção à noção de justificação pública e interpessoal, fortemente influenciada pelos escritos da quarta geração da Escola de Frankfurt e, mais especificamente, dos trabalhos do filósofo político Rainer Forst.

Essa preocupação com uma suposta falta de objetividade da metodologia aqui proposta em geral acompanha a lembrança do imperativo da imparcialidade do juiz. A noção comum desse princípio envolve ideias como um fazer jurisdicional objetivo, racional e focado apenas no que está nos autos, não permitindo ao juiz se condoer com as causas que chegam à sua mesa. O avesso disso é ser subjetivo, parcial, ativista, interessado na causa e, portanto, um mau juiz. Colocada nesses termos, a imparcialidade sobrevive enquanto construção discursiva, adquirindo contornos mais utópicos do que propriamente uma realidade observável no cotidiano forense. O perigo de ser visto como um juiz antiético gera, no entanto, efeitos concretos: em pesquisa empírica realizada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, constatou-se que os/as magistrados/as reconhecem a importância de sentimentos, preconceitos e valores ao julgarem demandas, porém relatam que estes “não podem ser explicitados aos atores processuais, nem escritos nos autos judiciais, porque a sua expressão contaminaria a aparência da imparcialidade que precisa existir para sustentar o mito da jurisdição desinteressada” (Bárbara BAPTISTA, 2013BAPTISTA, Bárbara. “A minha verdade é minha justiça” - dilemas e paradoxos sobre o princípio da imparcialidade judicial. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 22, 2013., p. 305). Sem esse mito fundante e sem um reforço performático por parte dos juízes, o Judiciário “fecharia suas portas”, como disse um dos magistrados participantes da mesma pesquisa (Bárbara BAPTISTA, 2020, p. 210).

Tal compreensão suscita, em termos práticos, atribuir a quem julga uma posição realisticamente impossível de ser mantida: ignorar o contexto histórico e social em que suas decisões produzirão efeitos, afastar-se das emoções que as narrativas do processo lhe causarem e procurar esquecer, ao decidir, as experiências prévias e visões de mundo formadoras que carrega ao ocupar a cadeira de juiz. Essa noção corrente de imparcialidade, portanto, vai muito além de servir apenas como garantia (absolutamente necessária, diga-se) contra tráficos de influência, favoritismos ou perseguições a uma das partes processuais e atos outros de corrupção no exercício do cargo. Assim entendida, a imparcialidade exige uma postura transcendental que, sendo um ideal extremamente vago na teoria e irrealizável na prática, provoca um hermetismo que rechaça qualquer discussão sobre a aptidão do direito na (re)produção de desigualdades e desconsidera a necessidade de sua abertura a novas perspectivas e experiências que precisam estar refletidas e avaliadas de forma consciente nas razões de decidir, e não obscurecidas no momento de sua aplicação. Assumir a importância dos lugares de fala na produção jurídica, nesse estado de coisas, torna-se algo politicamente custoso.

Afirmar a importância de assumir perspectivas feministas para interpretar o direito cumpre um papel fundamental de desvelamento de posições que, aparentemente neutras e ancoradas na lei, acabam por avançar desigualdades sociais em seu discurso e consagrar injustiças que, anteriormente, não eram identificadas. Estudos sérios não faltam para demonstrar como estereótipos impactam tanto nas discussões substantivas sobre direitos (o que juristas chamam de análise de mérito) quanto no próprio funcionamento dos tribunais e nas relações entre seus membros. Estereótipos de gênero como o da “mulher honesta” e da vítima ilegítima que mente, muda de versão e não tem uma conduta recatada, ainda constituem atalhos cognitivos para a tomada de decisões judiciais em processos sobre estupro, por exemplo (Gabriela de ALMEIDA; Sérgio NOJIRI, 2018ALMEIDA, Gabriela Perissinotto de; NOJIRI, Sérgio. Como os juízes decidem os casos de estupro? Analisando sentenças sob a perspectiva de vieses e estereótipos de gênero. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 8, n. 2, ago. 2018.). Estereótipos de gênero relativos à incompetência e à falta de conhecimento em desfavor das magistradas também podem explicar o fato de que os ministros homens do Supremo Tribunal Federal têm maior probabilidade de discordar do voto de ministras quando elas são as relatoras do caso sob julgamento (Juliana GOMES; Rafaela NOGUEIRA; Diego ARGUELHES, 2018GOMES, Juliana Cesario Alvim; NOGUEIRA, Rafaela; ARGUELHES, Diego Werneck. Gênero e comportamento judicial no Supremo Tribunal Federal: os ministros confiam menos em relatoras mulheres? Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, ago. 2018.). Estereótipos raciais em um Judiciário em que apenas 1,4% dos juízes se autodeclaram pretos e 14% como pardos, por sua vez, podem explicar o porquê de xingamentos com menções explícitas à raça e à cor de mulheres negras serem sistematicamente transformados em “piadas de mau gosto” e em “discussões acaloradas” que levam à absolvição do/a acusado/a (Marta MACHADO; Márcia LIMA; Natália SANTOS, 2019MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; LIMA, Márcia; SANTOS, Natália Neris da Silva. Anti-racism legislation in Brazil: the role of the Courts in the reproduction of the myth of racial democracy. Revista de Investigações Constitucionais, v. 6, n. 2, maio/ago. 2019.).

A realidade que nenhuma abstração jurídica consegue conter é que as pessoas que percorrem os corredores, sentam nas cadeiras, minutam as decisões, falam em audiência, julgam em sessão e mandam prender e soltar, são de carne e osso e profundamente mundanas. As expectativas de um “bom juiz” - aquele que aliena sua própria personalidade e se oblitera para transcender a uma posição mais elevada que lhe permita tomar uma decisão justa - são arquetípicas de uma figura heroica e sobre-humana que efetivamente desumaniza e estigmatiza o/a magistrado/a falível que efetivamente existe (Jane PEREIRA; Renan de OLIVEIRA, 2018PEREIRA, Jane Reis Gonçalves; OLIVEIRA, Renan Medeiros de. Hércules, Hermes e a pequena sereia: uma reflexão sobre estereótipos de gênero, subrepresentação das mulheres nos tribunais e (i)legitimidade democrática do Poder Judiciário. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, ago. 2018.). Pretender oxigenar o pensamento e a prática jurídicas com perspectivas contra-hegemônicas como as dos feminismos não significa defender que juízes/as prejulguem qualquer demanda, atribuam qualquer sentido às normas jurídicas em vigor para que atendam a valores supostamente autorizados por um ou outro movimento social ou que sejam refratários/as a qualquer uma das partes processuais. Significa entender como algo desejável que cada intérprete tenha consciência de que traz consigo suas próprias visões de mundo e experiências para o momento da criação jurídica, o que pode permitir a essencial habilidade da autoconsciência dos próprios pré-conceitos e o enriquecimento do debate das leis, já que perspectivas múltiplas podem permitir enxergar nuances particulares dos fatos e das normas aplicáveis ao caso concreto (Allison HARRIS; Maya SEN, 2019HARRIS, Allison; SEN, Maya. Bias and Judging. Annual Review of Political Science, v. 22, 2019.). Significa também entender a diversidade de perspectivas não como uma ameaça, mas como a realização do próprio mandamento constitucional do respeito ao pluralismo político (art. 1º, V, da CF/88) e da promoção do bem de todos, sem discriminação (art. 3º, IV, da CF/88).

A metodologia usada aqui consiste na realização da compreensão feminista da crítica à pretensa neutralidade do direito, daí o interesse em reescrever julgamentos, com todas as contingências e limitações inerentes ao ato jurídico de decidir, exercitando, em termos práticos, como uma justiça de gênero poderia ter sido possível em casos reais que nos provocaram negativamente. Trata-se de uma aproximação entre a produção teórica crítica, o ensino jurídico e a prática forense, proporcionando uma forma interativa de compreender o processo de interpretação/aplicação do direito. Em projetos dessa natureza, não é sempre exigida a mudança do dispositivo das decisões judiciais: às vezes o desfecho permanece o mesmo, porém os caminhos tomados na fundamentação demonstram uma diferença qualitativa de justificação que efetivamente assume a igualdade de gênero e não avança estereótipos de variadas ordens. Nesse sentido, seguimos as mesmas diretrizes de outros projetos já realizados dentro e fora do país: a) somente as provas e o direito positivo disponíveis à época em que o julgamento original foi proferido, inclusive as regras processuais daquele momento, são consideradas na reescrita; b) atenção à forma estilizada dos atos decisórios, seguindo os parâmetros legais desse gênero textual, de modo que o novo julgado seja o mais plausível possível; c) atenção para a linguagem, evitando academicismos ao máximo (citações e notas de rodapé excessivas, por exemplo), típicas do gênero textual acadêmico.

Fixadas essas orientações, encaminhamos para as/os participantes do projeto (autoras/es e pareceristas) um conjunto de referências: diretrizes para a reescrita, referências bibliográficas e uma decisão estrangeira traduzida para o português para familiarização com a proposta. Pedimos para que todos os artigos se dividissem em duas partes: comentários sobre o caso escolhido e o julgamento reescrito propriamente dito. Na primeira parte, autoras/es explicam o porquê da escolha do caso em análise, apresentam as eventuais omissões ou equívocos na aplicação da legislação em vigor pela decisão original e, ainda, marcam definitivamente as diferenças entre o que efetivamente ocorreu e o que poderia ter sido caso uma perspectiva feminista tivesse sido adotada pelo/a magistrado/a do caso. Na segunda etapa, os artigos fazem esse exercício performático de vestir a toga e, diante dos fatos do caso escolhido, efetivamente escrevem outra decisão possível.

Um obstáculo comum ao processo de reescrita de várias das decisões aqui apresentadas, e que também foi registrado em projetos realizados em outros países, foi a dificuldade de acesso: primeiro, aos documentos dos processos judiciais escolhidos (em especial de casos que correram em sigilo); segundo, e mais especificamente, às falas das mulheres que foram partes desses processos. Embora o Brasil já conte com um grande número de processos judiciais eletrônicos, nem todos os documentos pertencentes a esses processos são digitalizados e disponibilizados em ambiente virtual. Dessa maneira, relatórios produzidos por psicólogas e assistentes sociais, por exemplo, podem não ser facilmente acessados de forma remota pelas pesquisadoras, ficando dependentes dos relatórios constantes nas decisões judiciais caso não possam se deslocar até os fóruns ou não consigam permissão para estudar esses documentos.

Ao todo, foram cinco decisões reescritas. Algumas delas revisitam temas que podem ser considerados clássicos relativos aos direitos humanos e fundamentais das mulheres, já outras abordam temáticas que ainda merecem uma virada paradigmática sob os olhares feministas. A primeira, de Mônica de Melo, retoma o tópico dos direitos reprodutivos ao oferecer uma defesa desses direitos baseada em normas jurídicas positivadas após décadas de lutas dos movimentos feministas a nível internacional, regional e nacional. Tornada um dever estatal no Brasil por ser entendida como obrigação formadora do direito social à saúde, o acesso das mulheres à saúde reprodutiva não pode ser legitimamente restringido frente a investidas religiosas de acordo com as bases normativas internacionais, regionais e constitucionais em vigor. O tema escolhido (a distribuição de anticoncepção de emergência por Municípios), o realce de normativas internacionais e regionais que transcendem fronteiras e a sua caracterização como um dever estatal de prestação social torna a reescrita dessa decisão especialmente oportuna visto que direitos reprodutivos que acreditávamos terem sido conquistados há décadas estão sendo postos em risco - ao tempo da escrita, o emblemático caso Roe vs. Wade foi superado pela Suprema Corte estadunidense após uma virada à direita dos seus membros componentes, confirmando a fragilidade de basear direitos reprodutivos em noções individualistas de privacidade.

A segunda decisão reescrita, de Soraia da Rosa Mendes, Léa Ciarlini e Bruno Amaral Machado, aborda a questão da interseccionalidade, considerada um dos principais insights do feminismo negro do final do século XX. Apesar da unanimidade em torno de sua importância na contemporaneidade, ainda é um trabalho em progresso transcrever essa ideia em termos práticos e essa decisão reescrita é um brilhante esforço nesse sentido. O caso original versava sobre a condenação de uma mulher negra pela prática do crime de atentado ao pudor. Isso porque durante um evento da Marcha das Vadias, famoso protesto de rua pelos direitos das mulheres contra violências e a favor de liberdades sexuais, ela desnudou a parte superior de seu corpo, deixando seus seios à mostra. Os autores da decisão reescrita utilizaram uma sensível lente epistemológica interseccional e decolonial para incluir nas considerações a situacionalidade e historicidade das mulheres negras brasileiras, reconhecendo nas formas de protesto e de liberdade de expressão protegidas constitucionalmente a categoria de “dororidade” e decidindo pela atipicidade da conduta.

Em seguida, o trabalho de Ana Carolina Brito Brandão e Mariana Albuquerque, trata de um tema que à primeira vista pode levantar questionamentos quanto ao seu pertencimento - danos morais coletivos em uma ação de reintegração de posse é assunto a ser tratado através de teorias feministas? Sim, é a resposta contundente da quarta decisão que compõe o presente dossiê. Afinal, uma reintegração violenta que fere o direito constitucional social à moradia não pode ser discutida no Poder instituído por causa de uma decisão sem resolução de mérito. O impasse processual levantado constituiu mera burocracia, aplicada de maneira objetiva e imparcial, ou, como uma perspectiva feminista demonstra, criada e efetivamente utilizada no caso concreto para defender interesses patrimoniais patriarcais e racistas? A decisão reescrita funciona como uma lente através da qual é possível distinguir com mais clareza esse segundo argumento, fortalecido quando os primeiros parágrafos nos lembram que o empecilho processual levantado foi posteriormente rechaçado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

O artigo de autoria de Márcia Nina Bernardes, Luciana Fernandes e Maisa Sampietro assume um olhar decolonial para rever a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, que teve desfecho em 2017. O caso emblemático retrata mais um episódio de brutalidade policial contra pessoas negras no Brasil, inclusive com a utilização instrumental de violências sexuais contra jovens mulheres faveladas. Embora a Corte tenha declarado a responsabilidade do Estado brasileiro pela violação de diversos artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos, as autoras apontam para as reais consequências da falta de uma lente decolonial que permita entender a violência policial contra jovens negros enquanto modus operandi regular e estrutural (e não uma falha ocasional) chancelado pelos órgãos essenciais da justiça, em especial o Ministério Público (instituição responsável pelo controle externo da atividade policial). Segundo elas, se a Corte tivesse incorporado as dimensões da raça e do gênero como lentes de análise, outras violências e outras medidas de reparação teriam sido consideradas no caso.

Ana Lúcia Sabadell, Lívia de Meira Paiva e Thamires Vieira, por sua vez, enfrentam a cultura do estupro, dando subsídios para enfrentar estereótipos duradouros segundo os quais mulheres e meninas vítimas de violências sexuais precisam corresponder a um padrão imaginado para que as violações a seus direitos sejam levadas a sério. Mais uma vez se fundamenta a necessidade de que em processos judiciais de natureza criminal as discussões foquem na materialidade dos fatos e na autoria da conduta criminosa e não no caráter moral da vítima, repetidamente atrelado a construções patriarcais de pureza e de virgindade para que possamos superar o que as autoras nomeiam acertadamente como patriarcalismo jurídico. A atualidade do tema se evidencia pela leitura de qualquer jornal brasileiro, noticiando casos de violências machistas contra a dignidade sexual de mulheres e meninas, assim como a revitimização delas perante o sistema de justiça. Ao tempo dos trabalhos, o emblemático caso de Mariana Ferrer, gravado em vídeo por ocasião dos arranjos institucionais feitos por conta da pandemia, indignava a nação, mas a responsabilização dos operadores do direito que atuaram no caso até a data do fechamento do presente projeto ainda estava inconclusa.

Desde as primeiras movimentações deste projeto em 2019, tivemos o privilégio de poder contar com juristas importantes da teoria crítica feminista do direito brasileiro que, apesar de todas as dificuldades adicionais provocadas pela pandemia do novo coronavírus e das demandas pessoais que se avolumaram nesse período, continuaram dispostas a participar do projeto. Agradecemos também àquelas/es que, por circunstâncias impostas pelo momento extraordinário que vivemos nos últimos anos, tiveram que desistir dessa iniciativa no meio do caminho, seja enquanto autoras/es ou enquanto pareceristas. Contando com a participação de muitas mulheres, ficou claro como a privatização das tarefas de cuidado em torno da família cai sobremaneira nos ombros delas, muitas vezes obstando-lhes percorrer concomitantemente outros caminhos. Tivemos que nos adaptar às novas demandas de trabalho virtual e à necessidade de desempenhar outros trabalhos remunerados para além da pesquisa e prática jurídicas para garantir a sobrevivência econômica de nossas famílias. Vivemos as enormes dificuldades de tentar manter a nós e aos nossos aqui. Como organizadoras, agradecemos imensamente às que precisaram se afastar do projeto e desejamos que estejam bem. E nos alegramos junto às/aos participantes que puderam continuar conosco até esta publicação.

Referências bibliográficas

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  • 1
    Escolhemos deixar os prenomes das pessoas citadas neste artigo de apresentação para fazer uma importante marcação de gênero das autoras e autores com quem dialogamos aqui, seguindo o exemplo da Revista de Estudos Feministas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2024
  • Aceito
    04 Fev 2024
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