Acessibilidade / Reportar erro

Como gênero e raça estruturam o sistema prisional: Diálogos com Angela Davis sobre racismo e sexismo no controle punitivo brasileiro

Resumo

Apresentamos uma análise do fenômeno do encarceramento feminino no Brasil, situando-o como determinação concreta do modo de produção capitalista. Partimos da problemática a respeito de como as categorias de gênero e raça atuam como elementos estruturantes do controle penal brasileiro, a partir da leitura proposta por Angela Davis, em diálogo com autoras do pensamento feminista brasileiro. Para tanto, buscaremos inicialmente traçar debates acerca das opressões como estruturantes das relações sociais no modo capitalista de produção. Posteriormente, discutiremos as opressões de gênero e raça no contexto brasileiro, em especial considerando a sobrecarga de trabalhos reprodutivos, invisíveis e precários sobre as mulheres. Por fim, analisaremos a consolidação do controle punitivo brasileiro enquanto instrumento de gestão de corpos descartáveis e constante produção e reprodução de racismo e sexismo na cultura brasileira. Utilizaremos como metodologia, a análise materialista, com a interpelação crítica (momento ana-dialético do método) por meio do marco teórico analítico crítico do feminismo negro. Com as formulações apresentadas, poderemos concluir, em síntese, pela gestão violenta e racista do sistema penal de forma a manter sólida a estrutura social brasileira, sujeitando os corpos das mulheres negras ao maior processo de vulnerabilidade imposto pelo controle punitivo estatal.

Palavras-chave:
Criminologia; Feminismo negro; Racismo; Sexismo; Controle social penal

Abstract

We present an analysis of the phenomenon of female incarceration in Brazil, placing it as a concrete determination of the capitalist mode of production. We start from the issue of how the categories of gender and race act as structural elements of Brazilian penal control, based on the reading proposed by Angela Davis, in dialogue with authors of Brazilian feminist. For this reason, initially, we will promote initial debates about oppression as structures of social relations in capitalism. Subsequently, it will be necessary to discuss the oppression of gender and race in the Brazilian context, especially considering the overload of reproductive, invisible, and precarious work. Finally, we will analyze the consolidation of Brazilian punitive control as an instrument for the management of disposable bodies and the constant production and reproduction of racism and sexism in Brazilian culture. We will use materialistic analysis as a methodology, with the critical interpellation (ana-dialectical moment of the method) through the critical analytical, theoretical framework of the black feminism theory. With the formulations, we can conclude, in short, that the violent and racist management of the penal system maintains a solid Brazilian social structure, subjecting the bodies of black women to the harder process of vulnerability imposed by punitive state control.

Keywords:
Criminology; Black feminism; Racism; Sexism; Criminal social control

Introdução

“A prisão se tornou um ingrediente essencial no nosso senso comum. Ela está lá, à nossa volta. Não questionamos se deveria existir. Ela se tornou uma parte tão fundamental da nossa existência que é necessário um grande esforço de imaginação para visualizar a vida sem ela.” (DAVIS, 2018, p. 20)

Na obra “Estarão as Prisões Obsoletas?”, especialmente no capítulo intitulado “Como Gênero Estrutura o Sistema Prisional” Angela Davis nos provoca a não tomar gênero como, tão somente, um objeto de estudo marginal no campo criminológico, mas sim a refleti-lo enquanto um elemento que verdadeiramente estrutura as formas de punição modernas. Neste convite, Davis aponta que a punição é influenciada pelo gênero em um mesmo momento que reproduz a hierarquia generificada em nossa sociedade, em uma relação aqui compreendida como em constante movimento (DAVIS, 2019DAVIS, Angela. Estarão as Prisões Obsoletas? Tradução: Marina Vargas. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019., p. 65-66).

É, portanto, a partir de uma primeira inquietação originada do texto de Angela Davis que iniciamos este trabalho. Nesta obra, Davis afirma que são, de fato, urgentes as reflexões acerca do encarceramento feminino, principalmente considerando o aumento exponencial desta forma de controle social sobre as mulheres. A autora discorre ao longo do texto sobre as diferenças raciais que recaem sobre essas mulheres, pois os tratamentos a elas dispensados na prisão, embora violentos para todas, se perpetuam de maneiras distintas para mulheres brancas, negras e imigrantes1 1 Conforme Almeida (2018, p. 19), a noção de raça não é a mesma em todos os lugares, seu sentido é relacional e histórico, mas sempre com contingência, conflito, poder e decisão. Nos Estados Unidos o racismo toma as pessoas negras e imigrantes como grupo subalterno, sendo que os imigrantes são tomados também pela xenofobia. Já no Brasil, recai basicamente sobre os corpos de pessoas negras identificadas a partir de um conjunto fenotípico como cor da pele, traços do rosto, cabelo e essa forma de ler a negritude recai tanto sobre as pessoas negras nascidas no Brasil, como àquelas que migram e que enfrentam também a xenofobia. E não se pode esquecer dos povos indígenas, povos originários que o Estado brasileiro ainda mantém sob tutela, vilipendiando seus direitos mais básicos, bem como a sua própria existência e sobrevivência. Lembra Dussel (1993, p. 160-162), que de ambos os corpos são extraídos vida e o trabalho, para serem objetivados no valor original do capital. . Assim como nos Estados Unidos, o encarceramento feminino no Brasil é seletivo: os indicadores oficiais demonstram que a mulher encarcerada aqui é negra, jovem, com baixo nível de escolaridade, solteira e mãe (BRASIL, 2019; 2018; INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA (ITTC), 2019).

No entanto, pensar o gênero enquanto categoria analítica estruturante do sistema penal implica tecer um olhar sobre os corpos dissidentes que não performam a cisgeneridade ou a heterossexualidade compulsória. Vai além de pensar o gênero a partir e tão somente do encarceramento de mulheres, como propõe Davis em seu texto, mas incluir pessoas de gêneros não-binários, gays, lésbicas, orientações sexuais diversas e possibilidades queer. Para nós, em consonância com os estudos de João Manuel de Oliveira (2017OLIVEIRA, João Manuel de. Desobediências de gênero. Salvador/BA: Editora Devires, 2017., p. 27) a categoria gênero “[...] instala uma organização social marcada pela heteronormatividade e pela normatividade de gênero” definindo papéis sociais ou estereótipos de gênero e de modo não isento de outras matrizes de opressão, como raça ou classe, a heteronormatividade classifica as formas de sexualidade tomando como admissível ou natural, apenas a heterossexualidade e, como negativas ou inferiores, as demais.

É propondo uma ampliação do debate e no diálogo com Angela Davis que buscamos compreender como ela analisa todo o sistema de punição, incluindo, portanto, o encarceramento masculino, como fenômeno orientado a partir do gênero. Esta proposição, dada a sua complexidade, suscita inúmeros e relevantes objetos de análise, como também o faz Davis (2019), passando desde as revistas íntimas, trabalho de exploração sexual intramuros, relações entre as penas públicas e privadas, trabalho dentro das instituições prisionais e diversos outros temas.

Neste trabalho, buscamos traçar reflexões no sentido de pensar o sistema penal brasileiro a partir de uma leitura ampliada de gênero e das lutas antirracistas. Assim, o que se intenta é refletir acerca do próprio sistema de controle social a partir das epistemologias críticas, de modo a considerar as relações sociais de gênero e raça envolvidas no controle punitivo. Ressaltamos que as reflexões aqui contidas não se encerram na obra de Angela Davis. Embora esta seja uma das mais importantes e conhecidas pensadoras contemporâneas, seu trabalho nos fornece debates ainda mais ricos quando dialogados com outras pesquisadoras que também refletem acerca da posição dos corpos dissidentes, LGBTQIA+, das mulheres, em especial neste texto com enfoque sobre as mulheres negras, na sociedade capitalista e que, a exemplo de como será feito adiante, pensam sobre estas questões a partir da realidade brasileira.

Consideramos oportuno destacar que as reflexões contidas neste texto fazem parte de uma pesquisa mais abrangente que vem sendo realizada por uma das autoras, na qual buscamos compreender os reflexos do controle penal sobre as mulheres mesmo não estando elas encarceradas, mas sim os homens ou pessoas dos seus núcleos familiares. Dessa forma, o sistema de controle penal tem incidência não apenas sobre os indivíduos que encarcera, que captura, mas também sobre as mulheres que, num contexto de reprodução social, sustentam o funcionamento do controle penal. E, embora várias e diferentes mulheres, a atuação majoritária do sistema penal recai principalmente sobre aquelas que são negras e de baixa renda.

Por meio de um diálogo entre Angela Davis e autoras do pensamento feminista brasileiro e dos estudos de gênero, caracterizamos esse texto como uma análise feminista crítica, antirracista, anti-heteronormativa e marxista, que tem como objetivo analisar como as categorias de gênero e raça atuam enquanto estruturantes do controle penal brasileiro. Portanto, a metodologia empregada neste estudo é o materialismo histórico e dialético, na forma descolonial inferida de Marx por Enrique Dussel (2016DUSSEL, Enrique. La producción teórica de Marx. Ed. Digital. Caracas, Venezuela: Fundación Editorial El perro y la rana. 2016. Disponível em: https://enriquedussel.com/Libros_ED.html . Acesso em: 13 jan. 2023.
https://enriquedussel.com/Libros_ED.html...
): iniciamos com a ascensão à totalidade concreta, identificada no modo de produção capitalista, passando pelo momento do descenso explicativo das determinações do concreto, suas abstrações, aqui delimitadas na forma como o modo de produção determina as opressões de gênero e raça no Brasil. Como como se trata de uma crítica desde corpos periféricos, adotaremos o momento ana-dialético (mais além), terceiro momento do método em Dussel, que consiste no questionamento crítico, da Totalidade (horizonte hegemônico, capitalista, branco, masculino) e suas determinações, uma interpelação feita desde a Exterioridade (a periferia, ou seja, mais além do branco, do masculino, do mercantil). Essa interpelação crítica, representaremos por meio das epistemologias feministas negras, principalmente a partir dos possíveis e ricos diálogos que advém dessas teorias, inclusive com a crítica marxista, assumidas como perspectiva para análise do controle punitivo no Brasil.

Com base nessa metodologia, delimitamos a análise por meio de três objetivos específicos que serão investigados sucessivamente nas seções que dividem o desenvolvimento deste trabalho: começando por apresentar alguns debates iniciais acerca das opressões - gênero, raça, classe - enquanto estruturantes das relações sociais do modo capitalista de produção; a seguir, exporemos elementos teóricos a respeito das opressões de gênero e raça no contexto brasileiro, em especial considerando a sobrecarga de trabalhos reprodutivos, invisíveis e precários sobre as mulheres, ou seja, a forma específica como o modo de produção capitalista se manifesta em nossa sociedade periférica. Por fim, buscaremos demonstrar a hipótese desta pesquisa, qual seja: a consolidação do controle punitivo brasileiro enquanto instrumento de gestão de corpos descartáveis e constante produção e reprodução de racismo e sexismo na cultura brasileira. Para tanto, demonstraremos que a estrutura punitiva brasileira foi essencialmente organizada à manutenção da população negra em uma posição de subalternidade, de modo que racismo, sexismo e colonialismo estão impregnadas na lógica de funcionamento punitivo. É dizer, em síntese, que o sistema penal reflete e serve às estruturas e dinâmica do modo de produção capitalista, no qual confluem as formas de dominação de gênero, raça e trabalho.

Acreditamos que as reflexões ora propostas apresentam um caminho importante para uma melhor compreensão das relações entre sistema penal, gênero e, principalmente, raça, levando em conta que a análise se faz em um país cujo sistema penal foi forjado e estruturado pelo racismo, classismo, sexismo, machismo e diversas outras opressões que recaem sobre os corpos que escapam ao padrão cisheteronormativo, branco, cristão, capitalista, conservador. A oportunidade do estudo está na contribuição com uma leitura em criminologia feminista que supere as lacunas de suas expressões ditas tradicionais, nas quais entendemos haver um ocultamento das relações de racismo e controle feminino no sistema brasileiro. E é neste país, famoso pela construção da sua falaciosa democracia racial que se instaurou um encadeamento permanente de discriminações, exclusões e opressões, engendrando o necropoder2 2 Em que pesem as discussões teóricas entre o autor e as leituras marxistas, para uma maior compreensão desse conceito, sugerimos a consulta à elaboração da ideia de “Necropolítica” em Achille Mbembe (2018). de definir não só quem morre, mas quem pode ser capturado pelas tecnologias de controle sobre os corpos.

1 Opressões estruturais: debates introdutórios acerca de gênero e raça no sistema capitalista

Entendemos que as opressões de gênero e raça não são consequência, tão somente, das condições socioeconômicas de consolidação do modo capitalista de produção. Entretanto, para fins metodológicos e sem ignorar a importância relações de poder ou análises do âmbito das subjetividades, a delimitação que propomos para essa análise, concentra atenção nos aspectos socioeconômicos. Dessa forma, partimos do pressuposto de que as opressões de gênero e raça são estruturantes no modo capitalista de produção, aspectos que procuraremos apresentar nesta seção.

Silvio de Almeida (2018ALMEIDA, Silvio de. O Que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018., p. 131-132), ao fundamentar o racismo como um fenômeno estrutural, explica que as teorias econômicas, quando voltadas para a dimensão política, fornecem relevantes explicações para o racismo, indo além de uma perspectiva individualista. Levando isto em conta, podemos compreender a mercantilização enquanto um processo não natural e espontâneo, mas sim constituído por “relações históricas, estatais e interestatais”, a partir de relações em que gênero e a raça fazem parte.

Neste ponto, seguindo a lição de Silvia Federici quando faz suas análises de gênero, retomamos a crítica sobre a assim chamada acumulação primitiva em Marx, considerando que este processo de expropriação ainda em andamento hoje contém algumas relevantes chaves para a explicação da estrutura social contemporânea pautada no modo capitalista de produção. Em síntese, a acumulação primitiva (originária) é identificada como pré-condição para as relações capitalistas, um projeto da classe dominante europeia para responder à crise de acumulação e reestruturar as relações econômicas e sociais. Disso decorre que, sem concentração prévia de capital e trabalho, não teria sido possível o desenvolvimento do capitalismo e que, a fonte da riqueza capitalista está na dissociação entre trabalhadores e os meios de produção (FEDERICI, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017., p. 117-118).

A concentração de massas de capital e força de trabalho sob o controle de uma única classe é condição de existência não somente para a geração de mais valor, mas da própria existência do sistema capitalista. Para esta configuração social ser possível, e considerando que ela não existe desde os primórdios da sociedade, vamos assumir que houve, na história, momentos em que dinheiro e mercadoria não eram capital. Neste ponto, dois tipos diferentes de possuidores se encontraram: o possuidor dos meios de produção, de dinheiro e de meio de subsistência e, do outro lado, um possuidor de, tão somente, força de trabalho. Não havendo mais que isso, sua “melhor” opção foi realizar a venda dessa força de trabalho ao possuidor dos meios de produção. Marx identifica aqui uma polarização que dá as condições de existência do capitalismo, que produz e reproduz essa relação em escalas sempre maiores (MARX, 2017MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. Tradução: Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., pp. 785-787).

Desse momento histórico podemos extrair algumas reflexões. Em primeiro lugar, que ambos os possuidores desta relação social não estão em condições de igualdade, já que um deles (o possuidor dos meios de produção) está em ampla vantagem em relação ao que só possui sua própria força de trabalho. Ademais, devemos também observar que esta polarização não é natural, e sim resultado de um longo e complexo desenvolvimento histórico que, por fim, consolidou as condições para o desenvolvimento do capitalismo. Retomando aqui a noção de acumulação primitiva, essa pode ser compreendida então como o processo que separou o produtor - antes tido como servo no modo de produção feudal, dos meios de produção (MARX, 2017MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. Tradução: Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 786-787).

Ocorre que essa separação não teria, por si só, a estabilidade necessária para a consolidação de um novo modo de produção que se tornou mundial, de modo que foi essencial a criação de estratégias que pudessem dar estabilidade a essas novas relações sociais. Ademais, a criação destes mecanismos também buscou impedir as formas de resistência que pudessem vir a surgir - e efetivamente surgiram, com base no uso do aparelho estatal pela classe burguesa (MARX, 2017MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. Tradução: Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 808-809). Neste contexto, podemos identificar os primeiros movimentos de formação da classe trabalhadora e de novas formas de opressão e exploração sobre determinados corpos. Aqui situamos a exploração sobre os corpos das mulheres - sendo elas brancas ou negras, com modus de exploração diferentes - e da população negra.

A expropriação dos meios de subsistências dos trabalhadores europeus, a escravização dos povos americanos e africanos, a transformação do corpo em máquina de trabalho e a consolidação das mulheres enquanto seres destinados ao papel reprodutivo da força de trabalho foram meios de acumulação de capital, quando foram procedidas grandes transformações na posição social das mulheres. Todo esse momento histórico não só serviu à consolidação de um novo meio de produção como marcou enormes diferenças dentro da classe trabalhadora, por meio de hierarquias de gênero, raça e idade (FEDERICI, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017., p. 117-119).

No escopo deste texto é preciso situar este debate a partir do violento processo colonial estabelecido desde o século XV na América Latina e Caribe, colocando lentes esmeradas sobre o Brasil. Colonialismo. Violência. Exploração. Dominação. A experiência da tragédia colonial deixou marcas e feridas que sangram e estão expostas até hoje. Quando Césaire (2010CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Anísio Garcez Homem. Florianópolis: Letras Conteporâneas, Livros & Livros, 2010., p. 31) atribuiu a equação “colonização = coisificação”, demonstrou de imediato que entre colonizador e colonizado só havia espaço para dominação, intimidação e violência. Não havia, segundo o autor, nenhum contato humano. O colonizado-objeto foi tão somente um instrumento de produção. De acordo com Quijano (2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005., p. 107):

[...] a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziu à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados.

Desse modo, a raça se converteu no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Neste mundo colonizado cindido em dois, o limite fronteiriço é estabelecido pela ordem3 3 “Nas colônias, o interlocutor legítimo e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o policial ou o soldado.” (FANON, 2015, p. 54) e pelas clivagens sociais que tem seu nascedouro na noção de raça. Na obra “Os condenados da Terra”, Fanon elenca algumas características que marcaram a experiência colonial tanto para colonizados, como para os colonizadores e faz uma interpretação em diálogo com a teoria marxista, e propondo um elastecimento dessa, aponta algumas lacunas que precisam ser preenchidas quando se pensa o cenário da vida nas colônias, diante do qual, mesmo as sociedades pré-capitalistas também precisariam ser repensadas. É que as diferenças de status que se estabelecem nas colônias são de uma ordem diferente. Do processo histórico de colonização, decorre que a classe dirigente não se caracteriza de imediato pelas fábricas, propriedades ou contas bancárias, mas sim, por ser aquela classe que “vem de fora” e não se parece com os autóctones, é sempre um estranho (FANON, 2015, p. 56-57)

Para Fanon (2015, p. 56) aquilo que fragmenta o mundo no contexto colonial é primeiro o fato de pertencer ou não a determinada raça. Por isso ele reforça sua tese de que neste mundo colonial, fragmentado e dividido em dois a “infraestrutura econômica é também uma superestrutura. A causa é consequência: alguém é rico porque é branco, alguém é branco porque é rico.” (FANON, 2005FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Enilce Albergaria Rocha, Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005., p. 56) Negros da diáspora africana e os povos originários foram tomados como os “Outros”. “Ser o Outro, neste processo de subjetivação relacional, é ser inferior perante aquele que se estabelece como o corpo padrão normativo e atende ao ideal da brancura.” (FELIPE; LIMA, 2021LIMA, Fernanda da Silva; FELIPE, Delton Aparecido. Insurgências e insubordinações negras no ensino superior: as cotas raciais e o tensionamento dos currículos nas universidades. Revista Culturas Jurídicas, Rio de Janeiro, v. 8, n. 20, p. 877-904, mai./ago. 2021. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/52393/30557 . Acesso em: 13 jan. 2023.
https://periodicos.uff.br/culturasjuridi...
).

Nem só classe, nem só raça. A divisão marcada pelo mundo moderno colonial é arregimentada à noção de gênero. A confluência desses três eixos - trabalho, raça e gênero - é conceituada por Aníbal Quijano (1992QUIJANO, Aníbal. Colonialidade e Modernidade/Racionalidade. Perú Indíg., v. 13, n. 29, 1992, p. 11-20. Disponível em: http://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf . Acesso em: 13 jan. 2023.
http://www.lavaca.org/wp-content/uploads...
) como “colonialidade” e caracteriza o padrão de dominação e exploração na modernidade, um padrão que decorre (e subsiste após o fim) do colonialismo. Nesse padrão, apenas o eixo “trabalho” tem a dominação/exploração como característica invariável. Podemos concluir, portanto, que a subsunção do gênero e da raça no trabalho moderno (modo de produção capitalista), impõe, inevitavelmente, uma relação de dominação, já que, a dominação é condição de possibilidade de toda forma de exploração (QUIJANO, 2010QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: 2010. p. 84-130.).

É sob esta perspectiva crítica que Federici (2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017., p. 292), ao fazer uma análise de gênero e raça, aponta como o trabalho reprodutivo das mulheres contribuiu para a acumulação primitiva do capital e como na violenta relação colonial, tanto a discriminação de raça como a discriminação de gênero foram importantes marcadores de hierarquização e de exploração a favor do capital, determinando papéis sociais diferentes, mas marcadamente opressores às mulheres brancas e, ainda mais, às mulheres colonizadas (negras e indígenas). Considerando a permanência dessas relações ao longo da modernidade, podemos concluir que o colonialismo, como sistema formal de dominação em nosso país se encerrou, mas a perversidade da colonialidade se mantém viva, como avalia Quijano (1992QUIJANO, Aníbal. Colonialidade e Modernidade/Racionalidade. Perú Indíg., v. 13, n. 29, 1992, p. 11-20. Disponível em: http://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf . Acesso em: 13 jan. 2023.
http://www.lavaca.org/wp-content/uploads...
) como forma ainda mais eficaz de dominação do que foi o próprio colonialismo. Ao analisar a diferença colonial, em seus aspectos materiais, econômicos, políticos e culturais, principalmente nos aspectos relativos à colonialidade do poder, María Lugones (2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, setembro-dezembro/2014.) elabora o conceito de "sistema moderno/colonial de gênero”.

A modernidade organiza o mundo ontologicamente em termos de categorias homogêneas, atômicas, separáveis. A crítica contemporânea ao universalismo feminista feita por mulheres de cor e do terceiro mundo centra-se na reivindicação de que a intersecção entre raça, classe, sexualidade e gênero vai além das categorias da modernidade. Se mulher e negro são termos para categorias homogêneas, atomizadas e separáveis, então sua intersecção mostra-nos a ausência das mulheres negras - e não sua presença. Assim, ver mulheres não brancas é ir além da lógica “categorial”. Proponho o sistema moderno colonial de gênero como uma lente através da qual aprofundar a teorização da lógica opressiva da modernidade colonial, seu uso de dicotomias hierárquicas e de lógica categorial. (LUGONES, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, setembro-dezembro/2014., p. 935).

O sistema moderno-colonial de gênero constrói uma epistemologia feminista permeada pela colonialidade do poder que violentamente inferioriza as mulheres colonizadas (não brancas). A autora questiona a prática política do feminismo tradicional/hegemônico, pois é limitado a uma única visão do que é ser mulher, tomando como base as experiências das mulheres brancas e ocidentais. Conforme reportado em muitos dos seus textos, María Lugones constrói a sua teoria sobre gênero ancorada nos saberes produzidos pelas feministas negras afro-americanas e toma emprestado a categoria da interseccionalidade para questionar não só um suposto patriarcado universal, como para demonstrar as desigualdades e opressões estabelecidas entre as próprias mulheres. (LIMA; CHAGAS; SOUSA, 2022LIMA, Fernanda da Silva; CHAGAS, Maria Eduarda Delfino das; SOUSA, Leandra da Silva. Corpos-manifestos: feminismo negro decolonial epistêmico. Revista de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, Campinas, v. 3, e225415, 2022.).

É prestando atenção nestas diferenças estabelecidas pelas próprias mulheres que Angela Davis (2016DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe [recurso eletrônico]. Tradução Heci Regina Candiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 219-220) aponta o surgimento da figura da “dona de casa” como um subproduto de uma radical transformação na economia, porém esta construção social vinha na contramão da realidade de milhares de trabalhadoras imigrantes (racializadas) nos Estados Unidos que, durante parte do dia eram assalariadas e, durante outra fração do tempo, cumpriam suas obrigações domésticas. A “dona de casa” refletia uma realidade parcial, pois ela era, na verdade, um símbolo da prosperidade econômica de que gozavam as classes médias emergentes. Não obstante, ainda que a figura da dona de casa não tenha sido hegemônica, a ideologia vigente no século XIX conseguiu estabelecer como universais o ambiente doméstico e a maternidade para as mulheres brancas.

As mulheres negras, entretanto, pagaram um preço alto pelas forças que adquiriram e pela relativa independência de que gozavam. Embora raramente tenham sido “apenas donas de casa”, elas sempre realizaram tarefas domésticas. Dessa forma, carregaram o fardo duplo do trabalho assalariado e das tarefas domésticas - um fardo duplo que sempre exige que as trabalhadoras possuam a capacidade de perseverança de Sísifo (DAVIS, 2016DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe [recurso eletrônico]. Tradução Heci Regina Candiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 220).

Já no século XX as lutas feministas branco/burguesas foram narradas a partir da perspectiva das ondas teóricas que marcaram as reivindicações pelo sufrágio universal, direitos inerentes ao próprio corpo e ao prazer, direito ao trabalho fora de casa, pela participação política, entre outras. No Brasil, no que tange ao mercado de trabalho para as mulheres, Lélia González (2020a) afirma que este feminismo liberal ‘libertou as mulheres brancas’ do lar, mas ignorou as demandas das mulheres negras que não conseguiam acesso formal aos trabalhos de maior prestígio obstaculizados pela pecha da ‘boa aparência’. É neste sentido, que Lélia, confirmando os indicadores sociais atuais, vai dizer que este feminismo manteve as mulheres negras ‘confinadas’ como empregadas domésticas. Foi a mulher negra “[...] quem possibilitou e ainda possibilita a emancipação econômica e cultural da patroa dentro do sistema de dupla jornada. [...] A libertação das mulheres brancas, tem sido feitas às custas das mulheres negras.” (GONZÁLEZ, 2020a, p. 43). Corroborando com o pensamento de Lélia González, a intelectual Françoise Vergès chama este feminismo branco/ burguês de feminismo civilizatório e afirma:

Todos os dias, em todo lugar, milhares de mulheres negras racializadas, ‘abrem’ a cidade. Elas limpam os espaços de que o patriarcado e o capitalismo neoliberal precisam para funcionar. Elas desempenham um trabalho perigoso, mal pago e considerado não qualificado, inalam e utilizam produtos químicos tóxicos e empurram ou transportam cargas pesadas, tudo muito prejudicial à saúde delas. (VERGÉS, p. 18, 2020VERGÈS, François. Um Feminismo Decolonial. Traduzido por Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.).

Há, portanto, na realidade material vivida cotidianamente pelas mulheres negras no Brasil - e as mulheres racializadas em outras partes do globo -, que impõe uma divisão sexual e racial do trabalho no mundo moderno-capitalista. São eixos de opressão dissimulados por força das abstrações operadas pelo modo de produção capitalista. O amplo movimento de circulação de mercadorias se consolidou a partir desse e de outros processos históricos, bem como da divisão do trabalho, melhoria dos meios e comunicação e do desenvolvimento das trocas. Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução: Paula Vaz de Almeida. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.) explica que esse contexto representa o estreitamento dos vínculos sociais e o aumento da organização social, que têm o seu ápice no Estado burguês organizado. Neste ponto, a propriedade burguesa deixa de ser frágil e instável para se tornar um direito absoluto, que encontra suas ferramentas de proteção e garantia na legislação e no sistema judiciário.

Seguindo nas ideias de Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução: Paula Vaz de Almeida. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.), temos a constatação de que as relações sociais, constituídas sob essa modalidade imposta pelo capitalismo, requerem pessoas em condição de igualdade nos polos de negociação. Especificamente no momento da troca de mercadorias, é necessário que as partes reconheçam umas às outras como proprietárias. O poder do Estado, na sua forma jurídica, aparece aqui enquanto um elemento de constituição desta igualdade formal por meio de uma coerção externa, ainda que esta mesma igualdade não se manifeste materialmente nas relações sociais. Ora, conforme discutimos, há que se reconhecer que o proprietário dos meios de produção e subsistência, além de dinheiro, está em uma situação de vantagem em relação a quem tão somente detém sua própria força de trabalho, de modo que a condição de desigualdade é expressa. Essas premissas são importantes para se compreender as opressões de raça e gênero dentro de um contexto capitalista de produção, que se constituiu a partir de alicerces que pudessem estruturar uma sociedade pautada na mercantilização e na exploração.

Retomamos aqui Silvio de Almeida (2018ALMEIDA, Silvio de. O Que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.), quando esse aponta que essas relações sociais se pautam em elementos objetivos, que são as possibilidades materiais do desenvolvimento dessa forma de produção, e também subjetivos quando os indivíduos submetidos a essa realidade são constituídos para a reprodução dessas relações sociais e naturalização do seu local nessa configuração social, passando pela absorção de preconceitos e discriminações. O racismo, dentre diversas outras nuances e explicações, aqui serve à constituição de uma ideologia que naturaliza a suposta inferioridade de negros e indígenas, bem como torna costumeira a exploração extremada da força de trabalho dos indivíduos racializados como negros (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Silvio de. O Que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018., pp. 132-133). Quando falamos que o racismo é estrutural, portanto, queremos dizer que a ideologia que determina a inferioridade das pessoas negras, ainda que coberta pelo véu da igualdade formal, é um elemento essencial para a consolidação da sociedade pautada na divisão de classes e na exploração da força de trabalho daqueles que tão somente a possuem.

Com os elementos trazidos na primeira seção, buscamos estabelecer algumas premissas que serão de grande valia para o desenvolvimento do trabalho, e para a intenção de pensar as categorias de gênero e raça enquanto um dos elementos estruturantes do sistema penal. Não trabalhando inicialmente o controle punitivo, que situamos nesta análise como determinação do concreto, buscamos antes localizar o debate em um contexto material de produção que sustenta seu funcionamento e sua lógica de exploração nas opressões de gênero e raça, sendo esse contexto a Totalidade concreta, o todo estruturado e dialético (KOSIK, 2002KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.) que determina as partes, suas abstrações.

2 Gênero e raça em debate: a centralidade das opressões de gênero e raça para a configuração social brasileira

Feitas breves considerações iniciais acerca dos elementos teóricos de substrato para um embasamento das opressões enquanto estruturais na sociedade brasileira, consideramos que cumpre, neste momento, localizar a discussão com mais atenção no âmbito nacional, dando também mais expressão às discussões de gênero. Para tanto, buscamos estabelecer alguns diálogos entre as teóricas do feminismo negro e do feminismo materialista. Para tanto, levamos em conta que nem sempre existe uma separação rígida entre as formulações, na medida em que diversas articulações foram estabelecidas entre estas teorias ao longo do tempo.

A crise das formas de organização social tem sua base material centrada no capitalismo, na medida em que este sistema de produção se constituiu sobre a exploração do trabalho humano, sobre a destruição da natureza4 4 Conferir a discussão de Wolkmer e Ferrazzo (2018) a respeito dos “paradoxos do desenvolvimento”, que, no modo de produção capitalista não apenas intensificam a dominação e a miséria econômica dos países periféricos, como também, têm conduzido à humanidade a uma tragédia ambiental planetária. e, como já abordamos, do racismo e da exploração das mulheres, principalmente por meio do trabalho reprodutivo não remunerado. Nesse contexto social, embora se reconheça que o capitalismo não criou os fenômenos de exploração das mulheres, cumpre reconhecer que foi sob este modo de produção que novas formas de exploração feminina foram estabelecidas, de maneira que capitalismo e sexismo se encontram intrinsecamente conectados (ARRUZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019ARRUZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRAER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.).

O trabalho reprodutivo, em que pese essencial à manutenção da força de trabalho e, portanto, à existência do próprio trabalho produtivo, é constantemente renegado. As trabalhadoras submetidas a ele são alocadas a um papel de subordinação não apenas ao capital, mas também a trabalhadores ou trabalhadoras que tenham condições de pagar pelos serviços domésticos. Essa estrutura social depende, portanto, da existência dos papeis de gênero para sua manutenção. Ocorre que esta divisão de trabalho não é tão somente sexual, mas também racial, de modo que mulheres negras e indígenas5 5 Em sua Ética da Libertação, Dussel (1992, p. 420) traz o “exemplo testemunhal” de Rigoberta Menchú, Prêmio Nobel da Paz em 1999, a poderosa representação dessas formas de opressão, já que Rigoberta tem o corpo de “a) Uma mulher dominada, b) pobre, da classe camponesa, c) maia, como etnia conquistada há 500 anos, d) de raça morena, e) de uma Guatemala periférica e explorada pelo capitalismo norte-americano. Cinco dominações simultâneas e articuladas!”. foram, ao longo da história, forçadas a fornecer seu trabalho a custos mínimos até mesmo para mulheres brancas (ARRUZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019ARRUZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRAER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.).

Silvia Federici chama de “trabalho oculto” as funções exercidas por milhares de mulheres em todo o mundo, nas escolas, fábricas, escritórios e minas, de modo que as mais diversas instituições são verdadeiramente movidas pela força de trabalho feminina. Esta constatação nos permite identificar que o trabalho doméstico e a família são pilares do desenvolvimento capitalista (FEDERICI, 2018, pp. 68-69).

Ocorre que este trabalho reprodutivo é distribuído de maneira desigual mesmo entre as mulheres. Logo nas primeiras páginas de suas formulações na obra “Um Feminismo Decolonial”, François e Vergès chama atenção a essa temática. Cotidianamente, o mundo inicia seu regular funcionamento em universidades, hospitais, empresas e os mais diversos estabelecimentos comerciais porque um contingente invisível de mulheres realiza o árduo trabalho de limpeza, função realizada, em sua maioria, por trabalhadoras negras, em condições de risco e de má remuneração. A naturalização dos papéis domésticos impostos em um processo histórico sobre as mulheres muitas vezes esconde a carga exacerbada de exploração destes sujeitos, que têm suas próprias vidas tidas como descartáveis (VERGÉS, 2020VERGÈS, François. Um Feminismo Decolonial. Traduzido por Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.). No prefácio à edição brasileira do texto, a autora contextualiza o processo histórico de construção desses sujeitos descartáveis:

Essa economia do esgotamento dos corpos está historicamente ancorada na escravatura, período no qual o ventre das mulheres negras, cuja exploração é indissociável da reprodução social (como mostram tantas feministas negras), foi transformado em capital. A fabricação de uma vulnerabilidade diferenciada para uma morte prematura, analisada por Ruth Wilson Gilmore, é o próprio sinal dessa economia: morte prematura de vidas negras, morte prematura de recursos. A escravatura fabrica vidas supérfluas, nas quais nem a vida nem a morte importam, corpos-húmus do capitalismo. Para essa economia simbólica e material, o status de pessoa supérflua das mulheres negras associa-se a uma existência necessária, eis aí todo o paradoxo aparente das vidas necessárias e invisibilizadas (VERGÉS, 2020VERGÈS, François. Um Feminismo Decolonial. Traduzido por Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 13).

Em toda a América Latina, e especialmente no Brasil, a violência de cunho colonial que foi sistematicamente perpetrada contra mulheres negras e indígenas é elemento estruturante da identidade nacional. Sueli Carneiro explica que a violência sexual é o “cimento” das hierarquias de gênero e raça em nossa sociedade, sendo tal elemento um fato vivo e em constante reprodução no imaginário social (CARNEIRO, 2011).

Com isto, buscamos estabelecer neste trabalho que, pensando em elementos estruturantes da sociedade brasileira, não abordar o contexto, as vivências e as violências que atravessam a história das mulheres negras, significa incorrer em uma mesma leitura homogeneizada da figura feminina que se consolidou na formação do capitalismo na Europa. Ademais, não se pode deixar de lado que a exploração extrema das mulheres negras na sociedade brasileira, mais do que um recorte de análise, é um dos principais elementos de formação do Brasil enquanto sociedade e reflete modo como se estrutura o sistema penal.

Neste sentido, consideramos essencial retomar as lições de bell hooks6 (2020hooks, bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres Negras e Feminismo. 5. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020., p. 28) quando explica que, em diversos momentos da história, o uso da palavra “mulher” ou também “mulheres” se refere tão somente a mulheres brancas, o que, para além de ser uma escolha consciente ou não, acaba por perpetuar o racismo na medida que apaga as determinações históricas específicas das mulheres negras, ou as homogeneíza em relação às mulheres brancas. Além disso, acaba-se tendo por pressuposto que as mulheres brancas não têm raça, colocando a branquitude enquanto característica universal.

Lélia Gonzalez já afirmava a existência de uma forte violência sobre as mulheres negras na medida em que sujeitas ao racismo articulado com o sexismo. Utilizando como exemplo as festividades de carnaval, a autora explica que as mulheres negras, nesta ocasião, se transformam em “mulatas” endeusadas, fortemente sexualizadas.

Não obstante, o mito da democracia racial oculta a violência simbólica que é exercida sobre estas mesmas mulheres quando transfiguradas em empregadas domésticas. Mulata e doméstica, diz Lélia, são atribuições de um mesmo sujeito. São estas mulheres que, no Brasil, sofrem condições de vulnerabilização extrema, sobrevivendo de prestação de serviços, “segurando a barra familiar praticamente sozinhas” e lidando com a perseguição policial sistemática (GONZALEZ, 2020bGONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020b. p 75-93., p. 79-83). Levando isto em conta, retomamos os escritos de Sueli Carneiro para perceber que o mito da fragilidade feminina, em que pese venha num sentido homogeneizador da condição das mulheres, construído historicamente, como delineamos acima, não corresponde à experiência histórica das mulheres negras (CARNEIRO, 2011). Pela relevância da reflexão e o vigor do texto, trazemos suas palavras:

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados (CARNEIRO, 2011).

Retomando Lélia Gonzalez (2020cGONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020c. p. 49-64., p. 55-56), percebemos que ser uma mulher negra no Brasil significa estar exposta há pelo menos três formas de opressão que se imbricam e constituem suas identidades, que se articulam na forma do sexismo, do racismo e da exploração de classe. Com efeito, a autora identifica, nas diferentes configurações econômicas de acumulação de capital vividas no país, um desenvolvimento desigual e dependente que, para além de produzir um exército industrial de reserva, produz uma massa marginal crescente frente ao setor de trabalho hegemônico.

Em que pese possa ser observado um crescimento nos setores de classe média no Brasil a partir dos anos de 1950, a autora destaca que a população negra se viu excluída da participação deste desenvolvimento econômico, seguindo, majoritariamente, em baixas condições de vida no que tange à moradia e saúde, além de sujeitos à forte precarização de condições de trabalho. A autora denuncia, portanto, que enquanto ser homem negro significa uma maior sujeição à violência policial e repressão, a mulher negra vê um reforço da situação de inferioridade por meio do trabalho doméstico realizado nas famílias de classe média e alta (GONZALEZ, 2020cGONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020c. p. 49-64., p. 58-59).

Lélia Gonzalez, em seu artigo “Por um feminismo afro-latino-americano” ressalta que a noção de igualdade presente na legislação brasileira é tão somente formal, na medida em que a sofisticação do racismo latino-americano mente a hierarquia social organizada de modo que negros e indígenas ocupem as posições de subordinação. Neste ponto, a ideologia do branqueamento é essencial à reprodução da ideologia que classifica os valores da cultura branca enquanto superiores. Neste contexto, o mito da democracia racial no Brasil se apresenta como uma construção que visa a garantia dessa hierarquia social, de forma que a ideia de harmonia entre as raças é protegida pela igualdade perante a lei (GONZALEZ, 2020dGONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020d. p. 139-150., p. 143-144). É dentro deste contexto que Lélia ressalta que a consciência da opressão começa, antes de tudo, pela raça, sendo, junto com a exploração de classe, uma referência básica de luta comum entre homens e mulheres que pertencem a grupos étnicos subordinados.

A experiência histórica da escravidão negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e mulheres, sejam crianças, adultos ou idosos. E foi dentro da comunidade escrava que de desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular por libertação. O mesmo reflexo é válido para as comunidades indígenas (GONZALEZ, 2020dGONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020d. p. 139-150., p. 147).

Não obstante, a autora nos explica que nesse contexto de participação em movimentos por libertação que se evidencia o sexismo, muitas vezes cometidos por parceiros de luta, de onde se extrai a necessidade de pensar teorias e práticas feministas (GONZALEZ, 2020dGONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020d. p. 139-150., p. 148). Do exposto, buscamos resgatar as principais premissas teóricas do pensamento feminista brasileiro para compreender de que modo as relações de gênero e raça se articulam nesse contexto. Destacamos que o trabalho reprodutivo, historicamente construído enquanto um papel feminino, não pode ser lido tão somente pelo viés do gênero, na medida em que são as mulheres negras que, em sua maioria, exercem os trabalhos invisíveis e desvalorizados no capitalismo. As heranças coloniais e escravistas no país, que ainda vão ser retomadas e analisadas sob outras perspectivas, aqui já se mostram determinantes para a configuração de uma excessiva carga de opressão sobre as mulheres negras.

Portanto, consideramos que, para analisar o gênero enquanto estruturante do sistema penal, cumpre buscar também as perspectivas de raça. Isto porque ao pensar o controle penal brasileiro, deparamo-nos com um sofisticado mecanismo de gestão de corpos descartáveis através do genocídio. Não evidenciar o elemento racial enquanto uma das determinações essenciais de aplicação de controle social seria, no sentido da crítica trazida por bell hooks, uniformizar experiências sociais distintas e promover um verdadeiro apagamento do racismo que permeia o controle punitivo, como analisaremos com mais destaque a seguir.

3 Articulações essenciais entre controle punitivo brasileiro, racismo e sexismo

Conforme já abordamos em momentos anteriores do trabalho, pensar as relações sociais brasileiras demanda uma análise atenta às heranças colonialistas e escravagistas do país, haja vista a sua constante reprodução na estrutura social atual. Não é diferente ao se pensar o sistema penal e o controle que promove sobre as classes subalternas. Zaffaroni aponta que os sistemas penais da América Latina como um todo são verdadeiramente marcados pelo genocídio e etnocídio, produzindo mortes em massa nos setores mais vulneráveis dessas sociedades até os tempos atuais. O caso brasileiro em nada difere dessa constatação. Com efeito, o processo de incorporação de nosso continente ao modo de produção global que se consolidava à época, possuía como marca o genocídio dos povos latino-americanos, o que foi herdado pelos sistemas de controle sociais locais. Enquanto ferramenta de legitimação das mortes em massa, a ciência da época validava a inferioridade dos povos africanos e latino-americanos (ZAFFARONI, 1991ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução: Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991., pp. 118-125).

Ana Luiza Pinheiro Flauzina aponta que existe uma conexão entre o controle penal latino-americano e o pacto social a que ele promove sustentação, bem como existe conformidade entre as ações penais e os destinatários dessa política. É o racismo, portanto, o elemento fundamental de sustentação do caráter genocida do sistema penal no continente, da mesma forma que, conforme leciona Lélia Gonzalez, o racismo sustenta todo o processo histórico latino-americano (FLAUZINA, 2006FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito). Pós Graduação em Direito - Universidade de Brasília. Brasília, 2006., pp. 30-32).

O que se pode chamar de um primeiro sistema penal no Brasil se formou no período colonial-mercantilista, e possuía um caráter doméstico bem demarcado, caracterizado, principalmente, pelo exercício do poder de propriedade sobre as pessoas escravizadas. Os castigos corporais eram aplicados de maneira extremamente violenta como uma estratégia de dominação deste grupo social (SERRA, 2009SERRA, Marco Alexandre de Souza. Economia Política da Pena. Rio de Janeiro: Revan, 2009., p. 161-162). Estes primeiros passos, dados no período de 1500 a 1822, articularam a “espinha dorsal” da atuação penal no Brasil (FLAUZINA, 2006FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito). Pós Graduação em Direito - Universidade de Brasília. Brasília, 2006., p. 46).

A necessidade do aumento das formas de trabalho livre, a fim de aumentar o mercado consumidor brasileiro, não foi o suficiente para acabar de vez com o regime escravista, de modo que diversos mecanismos legais buscaram estender ao máximo esta forma de trabalho forçado. O sistema penal do Império brasileiro caracteriza-se, portanto, pela organização da gestão do contingente populacional negro enquanto corpos descartáveis. As leis criminais, em especial o Código Criminal do Império, marcou a leitura dos escravizados enquanto “pessoas” frente à lei penal, ao passo que seguiam lidos como objetos de posse no âmbito da lei civil (FLAUZINA, 2006FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito). Pós Graduação em Direito - Universidade de Brasília. Brasília, 2006., p. 53-55). Serra nos explica que o cárcere brasileiro refletia a estrutura social vigente, sendo palco de precárias condições de higiene e ventilação, superlotação e uso da violência física como forma de manutenção da ordem institucional. As piores acomodações eram reservadas aos escravizados e ex-escravizados, e a política criminal avançou fortemente sobre os que eram considerados desocupados (SERRA, 2009SERRA, Marco Alexandre de Souza. Economia Política da Pena. Rio de Janeiro: Revan, 2009., p. 179-183).

No período republicano, passou-se de uma atuação abertamente racista para um funcionamento pautado pelo mito da democracia racial. O incentivo à migração para o Brasil correspondia à necessidade de mão-de-obra caraterística do período de industrialização, mas a intensa exploração do trabalho de pessoas negras ainda marcava as relações sociais no campo. O controle penal foi fortemente orientado pela dualidade branco-produtor versus negro-ocioso, garantindo que a violência assegurasse a ordem social vigente (FLAUZINA, 2006FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito). Pós Graduação em Direito - Universidade de Brasília. Brasília, 2006., pp. 67-68). Serra (2009SERRA, Marco Alexandre de Souza. Economia Política da Pena. Rio de Janeiro: Revan, 2009., p. 192-193) destaca que o período foi marcado pela continuidade nas estratégias de exploração anteriores, adaptando a necessidade de controle de escravos revoltosos para o controle dos negros libertos e dos pobres, tomando como classes perigosas aquelas não incorporadas ao sistema de produção. Por isso, Flauzina (2006FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito). Pós Graduação em Direito - Universidade de Brasília. Brasília, 2006., p. 71-72) aponta que o sistema punitivo republicano seguiu pautado na dimensão racial, demarcando as posições de dominação e subalternidade na sociedade brasileira.

Destas formulações, se extrai importantes elementos para a compreensão do sistema penal brasileiro enquanto estruturado na gestão dos corpos negros, tidos como descartáveis. O caráter violento e genocida, conforme denunciado por Zaffaroni, marca a consolidação do controle social no Brasil, marcas que seguem reproduzidas cotidianamente na atual institucionalidade penal. Neste sentido, consideramos essencial a formulação feita por Carla Benitez Martins (2018MARTINS, Carla Benitez. Distribuir e Punir: capitalismo dependente brasileiro, racismo estrutural e encarceramento em massa nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016). Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Cidade de Goiás, 2018., p. 120), quando afirma que o sistema penal brasileiro faz mais do que reproduzir racismo, sendo também um verdadeiro produtor deste. A autora destaca, ademais, que a violência enquanto uma prática política permanente no Brasil sustenta a ordem social racista e concentradora de riquezas, de modo que a forte utilização do aparato repressivo aparece como uma regra de funcionamento do próprio Estado (MARTINS, 2018MARTINS, Carla Benitez. Distribuir e Punir: capitalismo dependente brasileiro, racismo estrutural e encarceramento em massa nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016). Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Cidade de Goiás, 2018., p. 141).

Lélia Gonzalez, estudando a juventude negra brasileira e o desemprego, afirma que a perseguição e violência do sistema penal é uma das maiores fontes de crueldade a que pessoas negras são submetidas, de modo que a lógica de atuação policial é pautada pela noção de que “todo negro é marginal até que se prove o contrário” (GONZALEZ, 2020eGONZALEZ, Lélia. A juventude negra brasileira e a questão do desemprego. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020e. p. 45-49., p. 46). Retomando o trabalho de Angela Davis (2019DAVIS, Angela. Estarão as Prisões Obsoletas? Tradução: Marina Vargas. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019., p. 70), cujas provocações deram origem às reflexões aqui propostas, a autora aponta que o controle estatal exercido sobre as mulheres através do cárcere é, muitas vezes, renegado à condição de marginalidade, comumente justificado pela baixa porcentagem de mulheres presas. Contudo, a autora atenta para o fato de que as mudanças políticas ocorridas a partir do ano de 1980 promoveram, nos Estados Unidos, um aumento do encarceramento feminino.

Com efeito, no Brasil, dados do INFOPEN Mulheres demonstram o aumento de 576% da população carcerária feminina entre os anos 2000 e 2017, chegando a 37.380 mulheres presas. No mesmo período, o encarceramento masculino cresceu 220% (BRASIL, 2018, p. 10). O mesmo relatório aponta a sobrerrepresentação das mulheres negras nos cárceres brasileiros, sendo estas 68% da população prisional, ao passo que a população negra no Brasil corresponde a 51% (BRASIL, 2018, p. 24). Davis aponta que a criminalidade e, consequentemente, a punição pública masculina sempre foi vista com maior normalidade quando comparada à transgressão feminina. O mau comportamento das mulheres é visto como mais ameaçador à sociedade do que o masculino, porém as formas de punição a elas aplicadas não eram, historicamente, consideradas como formas públicas (2019, p. 71).

Baratta aponta que, no contexto capitalista, a esfera produtiva é essencialmente destinada aos homens, quando às mulheres resta o trabalho reprodutivo. O controle penal público surge como uma forma de controle das relações sociais de trabalho produtivo, de modo que o controle social majoritariamente exercido sobre as mulheres era o informal, no contexto familiar. Em outras palavras, os destinatários do sistema penal eram os homens (BARATTA, p. 45, 1999BARATTA, Alessandro. O Paradigma de Gênero: da Questão Criminal à Questão Humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Editora Sulina, 1999.). Davis alerta que:

Antes do surgimento da prisão como a principal forma de punição pública, era comum que quem violasse a lei fosse submetido a castigos corporais e muitas vezes penas capitais. O que não se costuma reconhecer é a conexão entre o castigo corporal imposto pelo Estado e as agressões físicas a mulheres nos espaços domésticos. Essa forma de disciplinamento corporal continua sendo infligida a mulheres de forma mais rotineira no contexto dos relacionamentos íntimos, mas raramente é encarada como algo relacionado à punição estatal (DAVIS, 2019DAVIS, Angela. Estarão as Prisões Obsoletas? Tradução: Marina Vargas. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019., p. 74).

Como se vê, o aumento do encarceramento feminino volta-se, majoritariamente, sobre as mulheres brasileiras negras. Deste modo, podemos observar que analisar tão somente o gênero enquanto estruturante do sistema penal sem as devidas discussões raciais poderia nos levar a leituras erradas acerca do alvo do controle penal brasileiro.

Com efeito, uma leitura cuidadosa das estatísticas do encarceramento feminino mostra que o controle social sobre as mulheres brancas ainda, de fato, é majoritariamente exercido no âmbito privado. A força pública insurge-se sobre as mesmas mulheres que, historicamente, sofreram com a aplicação de punições domésticas no contexto escravagista e colonial. Ocorre que é justamente no seio da execução da pena doméstica que o sistema penal brasileiro se estrutura, conforme nos alerta Flauzina. Assim, não é só o mito da fragilidade feminina que corresponde a uma generalização da figura das mulheres na sociedade brasileira a partir da experiência das mulheres brancas. A ideia de controle social restrito ao âmbito doméstico também não contempla as vivências das mulheres negras no Brasil. Apontando a necessidade de se analisar o controle social sobre as mulheres negras a partir de categorias estruturantes, Franklin (2017FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da criminologia positivista de Nina Rodrigues. 2017. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2017., pp. 45-46) destaca que as leituras em criminologia feminista tradicional apresentam lacunas, ocultando as relações de racismo e controle feminino através do âmbito estatal.

No Brasil, analisar as possíveis contribuições de uma criminologia feminista negra deve perpassar, também, as deficiências interpretativas da tese de que o controle penal possui apenas caráter residual no controle das mulheres, por estas estarem restritas ao ambiente doméstico é uma crítica baseada apenas nas experiências das mulheres brancas, que mascara processos históricos bastante complexos no que tange ao racismo enquanto sistema que estrutura os fenômenos no campo criminal (FRANKLIN , 2017FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da criminologia positivista de Nina Rodrigues. 2017. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2017., p. 45).

O trabalho de Godoi (2017, p. 193) demonstra que a presença das famílias no âmbito da execução das penas é essencial na viabilização do sistema de punição, possuindo verdadeira centralidade que não é contemplada quando se coloca a experiência das famílias das pessoas encarceradas como um efeito colateral ou secundário. Ou seja, a articulação entre o sexismo e o racismo no sistema penal brasileiro não é um reflexo das dinâmicas punitivas, mas sim verdadeiros estruturantes do sistema penal.

Portanto, podemos ler do trabalho do autor que a proximidade com a família, a manutenção dos vínculos de afeto e o impacto positivo nos aspectos materiais apresentam-se como parte da experiência de cumprimento de pena para as pessoas reclusas. Contudo, em outro aspecto, os fluxos de pessoas que visitam seus familiares presos, informam o funcionamento interno da prisão (GODOI, 2017, p. 193).

Dessa perspectiva, o quadro que se esboça não é o da imposição de uma pena sobre uns que, por faltas ou excessos, acabaria por contaminar tantos outros, mas de uma administração ampliada das penas que implica igualmente uns e outros, presos e familiares, também agentes civis e estatais - que operam, em grande medida, gerindo os múltiplos e indispensáveis fluxos de pessoas, bens e informações que entram e saem da prisão precisamente para fazê-la funcionar (GODOI, 2017, p. 193).

Disso, observamos que a manutenção diária da população prisional, supostamente a cargo do Estado durante a execução da pena intramuros, mobiliza uma série de atividades dentro e ao redor das instituições de reclusão, que vão desde a alimentação, vestuário, higiene pessoal, limpeza do ambiente e outros.

E grande parcela da responsabilidade pela manutenção das atividades de reprodução social no âmbito do sistema punitivo fica a cargo das famílias das pessoas encarceradas, que realizam, ao momento das visitas, um verdadeiro abastecimento de itens de subsistência nos estabelecimentos de reclusão. Ocorre que este exercício de controle social por meio do sistema penal também atinge majoritariamente a população negra, principalmente as mulheres, a quem historicamente se atribui o exercício do trabalho reprodutivo.

É possível afirmar que o papel historicamente atribuído às mulheres negras abrange tanto a esfera doméstica, a partir da atribuição da responsabilidade pelo trabalho reprodutivo invisibilizado, como também a esfera pública e produtiva, quando se vê que estas são integrantes do mercado de trabalho nas posições mais precárias. Neste âmbito, o discurso de igualdade formal, adotado pelo aparato legislativo, oculta a aplicação discricionária do controle punitivo sobre as mulheres negras, mas além disso, camufla a articulação essencial do sistema penal brasileiro com a configuração social desigual que se quer ver garantida.

Desta forma, ainda que o sistema penal não atue em primeira instância no encarceramento massivo de mulheres, quando comparado com os números de encarceramento masculino, podemos afirmar que as relações de gênero compõem as estruturas do controle punitivo a partir do momento que este é historicamente organizado e gerido para dar sustentação a uma ordem social que, em última instância, condiciona as mulheres negras à posição de subalternidade e vulnerabilidade acentuada.

Considerações finais

A partir das provocações de Angela Davis, buscamos refletir acerca de como a categoria de gênero poderia ser analisada quando considerado o controle punitivo brasileiro. Para isso, em um primeiro momento, estabelecemos algumas premissas teóricas que orientaram este estudo, a partir da noção de que as relações sociais desenvolvidas sob o capitalismo se sustentam, para além das explorações de classe, pelas opressões de gênero e raça. Assim, vimos que a constituição dos indivíduos negros enquanto inferiores, bem como a atribuição do trabalho reprodutivo como obrigação feminina, aparecem como mecanismos de organização da acumulação de capital.

Posteriormente, analisamos com mais ênfase a opressão de gênero no Brasil em articulação com a de raça, evidenciando que as posições de maior vulnerabilidade social são impostas às mulheres negras. O mito da fragilidade feminina, em que pese tenha alcançado sucesso histórico, não corresponde à realidade da totalidade das mulheres. Com efeito, a experiência das mulheres negras não permite identificar que estas foram “poupadas” de compor o mercado de trabalho, em serviços pesados e precários, ainda que, de fato, mesmo estas mulheres tenham sofrido com a imposição do trabalho reprodutivo. O que se vê, portanto, é uma sobrecarga de exploração colocada sobre a população feminina negra.

Por fim, expondo os principais eventos históricos da conformação do poder punitivo no Brasil, pudemos perceber que a gestão do braço armado do Estado foi feita em paralelo ao controle, principalmente, da população negra e pobre. Assim, não podemos dizer que as mulheres negras compartilham da experiência feminina de maior sujeição ao controle doméstico quando comparado ao público. Com efeito, ainda que, em números absolutos, não sejam submetidas ao encarceramento em uma mesma proporção que homens, as mulheres negras sofrem com uma maior incidência de controle estatal do que as mulheres brancas.

Para além disso, pudemos concluir que a estrutura punitiva brasileira foi essencialmente organizada à manutenção da população negra em uma posição de subalternidade, de modo que racismo, sexismo e colonialismo estão impregnadas na lógica de funcionamento punitivo. Ao invés de promover o controle social feminino negro através de instâncias informais, “poupando-as” da sujeição a um mecanismo de controle extremamente violento e genocida, o Estado brasileiro atua, historicamente, com a mesma crueldade sobre as mulheres negras, mantendo firme o pacto social de desigualdade. É dizer, em síntese, que o sistema penal reflete e serve às estruturas e dinâmica do modo de produção capitalista, no qual confluem as formas de dominação de gênero, raça e trabalho.

Referências

  • ALMEIDA, Silvio de. O Que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
  • ARRUZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRAER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.
  • BARATTA, Alessandro. O Paradigma de Gênero: da Questão Criminal à Questão Humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Editora Sulina, 1999.
  • BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Painel Banco Nacional de Monitoramento de Prisões: BNMP 2.0. Brasília: Sistema Carcerário, Execução Penal e Medidas Socioeducativas, 2019. Disponível em: https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shBNMPIIMAPA Acesso em: 13 jan. 2023.
    » https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shBNMPIIMAPA
  • BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Infopen Mulheres 2017. Brasília, 2018. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf Acesso em: 13 jan. 2023.
    » https://www.justica.gov.br/news/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf
  • CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Disponível em: https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero/. Acesso em: 13 jan. 2023.
    » https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero
  • CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Anísio Garcez Homem. Florianópolis: Letras Conteporâneas, Livros & Livros, 2010.
  • DAVIS, Angela. Estarão as Prisões Obsoletas? Tradução: Marina Vargas. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2019.
  • DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe [recurso eletrônico]. Tradução Heci Regina Candiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade, conferências de Frankfurt. Petrópolis: Vozes, 1993.
  • DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 4. Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
  • DUSSEL, Enrique. La producción teórica de Marx. Ed. Digital. Caracas, Venezuela: Fundación Editorial El perro y la rana. 2016. Disponível em: https://enriquedussel.com/Libros_ED.html Acesso em: 13 jan. 2023.
    » https://enriquedussel.com/Libros_ED.html
  • FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Enilce Albergaria Rocha, Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.
  • FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.
  • FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução: Trabalho Doméstico, Reprodução e Luta Feminista. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019b.
  • FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito). Pós Graduação em Direito - Universidade de Brasília. Brasília, 2006.
  • FRANKLIN, Naila Ingrid Chaves. Raça, gênero e criminologia: reflexões sobre o controle social das mulheres negras a partir da criminologia positivista de Nina Rodrigues. 2017. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
  • GONZALEZ, Lélia. A juventude negra brasileira e a questão do desemprego. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020e. p. 45-49.
  • GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020c. p. 49-64.
  • GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020a. p. 25-44.
  • GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020d. p. 139-150.
  • GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (orgs). Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020b. p 75-93.
  • hooks, bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres Negras e Feminismo. 5. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.
  • INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA (ITTC). Mulheres Sem Prisão: enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal. São Paulo: ITTC, 2019. Disponível em: http://ittc.org.br/wp-content/uploads/2019/05/mulheresemprisao-enfrentando-invisibilidade-mulheres-submetidas-a-justica-criminal.pdf Acesso em: 13 jan. 2023.
    » http://ittc.org.br/wp-content/uploads/2019/05/mulheresemprisao-enfrentando-invisibilidade-mulheres-submetidas-a-justica-criminal.pdf
  • KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
  • LIMA, Fernanda da Silva; CHAGAS, Maria Eduarda Delfino das; SOUSA, Leandra da Silva. Corpos-manifestos: feminismo negro decolonial epistêmico. Revista de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, Campinas, v. 3, e225415, 2022.
  • LIMA, Fernanda da Silva; FELIPE, Delton Aparecido. Insurgências e insubordinações negras no ensino superior: as cotas raciais e o tensionamento dos currículos nas universidades. Revista Culturas Jurídicas, Rio de Janeiro, v. 8, n. 20, p. 877-904, mai./ago. 2021. Disponível em: https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/52393/30557 Acesso em: 13 jan. 2023.
    » https://periodicos.uff.br/culturasjuridicas/article/view/52393/30557
  • LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, setembro-dezembro/2014.
  • MARTINS, Carla Benitez. Distribuir e Punir: capitalismo dependente brasileiro, racismo estrutural e encarceramento em massa nos governos do Partido dos Trabalhadores (2003-2016). Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Cidade de Goiás, 2018.
  • MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O Processo de Produção do Capital. Tradução: Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
  • MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido por Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.
  • OLIVEIRA, João Manuel de. Desobediências de gênero. Salvador/BA: Editora Devires, 2017.
  • PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução: Paula Vaz de Almeida. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
  • QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: 2010. p. 84-130.
  • QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.
  • QUIJANO, Aníbal. Colonialidade e Modernidade/Racionalidade. Perú Indíg., v. 13, n. 29, 1992, p. 11-20. Disponível em: http://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf Acesso em: 13 jan. 2023.
    » http://www.lavaca.org/wp-content/uploads/2016/04/quijano.pdf
  • SERRA, Marco Alexandre de Souza. Economia Política da Pena. Rio de Janeiro: Revan, 2009.
  • VERGÈS, François. Um Feminismo Decolonial. Traduzido por Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
  • WOLKMER, Maria de Fátima S.; FERRAZZO, Débora. O paradoxo do desenvolvimento: direito ambiental e bens comuns no capitalismo. Veredas do Direito, v.15, n.33, set./dez. 2018, p.163-189. Disponível em: http://revista.domhelder.edu.br/index.php/veredas/article/view/1269 Acesso em: 13 jan. 2023.
    » http://revista.domhelder.edu.br/index.php/veredas/article/view/1269
  • ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução: Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
  • 1
    Conforme Almeida (2018ALMEIDA, Silvio de. O Que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018., p. 19), a noção de raça não é a mesma em todos os lugares, seu sentido é relacional e histórico, mas sempre com contingência, conflito, poder e decisão. Nos Estados Unidos o racismo toma as pessoas negras e imigrantes como grupo subalterno, sendo que os imigrantes são tomados também pela xenofobia. Já no Brasil, recai basicamente sobre os corpos de pessoas negras identificadas a partir de um conjunto fenotípico como cor da pele, traços do rosto, cabelo e essa forma de ler a negritude recai tanto sobre as pessoas negras nascidas no Brasil, como àquelas que migram e que enfrentam também a xenofobia. E não se pode esquecer dos povos indígenas, povos originários que o Estado brasileiro ainda mantém sob tutela, vilipendiando seus direitos mais básicos, bem como a sua própria existência e sobrevivência. Lembra Dussel (1993DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade, conferências de Frankfurt. Petrópolis: Vozes, 1993., p. 160-162), que de ambos os corpos são extraídos vida e o trabalho, para serem objetivados no valor original do capital.
  • 2
    Em que pesem as discussões teóricas entre o autor e as leituras marxistas, para uma maior compreensão desse conceito, sugerimos a consulta à elaboração da ideia de “Necropolítica” em Achille Mbembe (2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido por Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.).
  • 3
    “Nas colônias, o interlocutor legítimo e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o policial ou o soldado.” (FANON, 2015, p. 54)
  • 4
    Conferir a discussão de Wolkmer e Ferrazzo (2018WOLKMER, Maria de Fátima S.; FERRAZZO, Débora. O paradoxo do desenvolvimento: direito ambiental e bens comuns no capitalismo. Veredas do Direito, v.15, n.33, set./dez. 2018, p.163-189. Disponível em: http://revista.domhelder.edu.br/index.php/veredas/article/view/1269 . Acesso em: 13 jan. 2023.
    http://revista.domhelder.edu.br/index.ph...
    ) a respeito dos “paradoxos do desenvolvimento”, que, no modo de produção capitalista não apenas intensificam a dominação e a miséria econômica dos países periféricos, como também, têm conduzido à humanidade a uma tragédia ambiental planetária.
  • 5
    Em sua Ética da Libertação, Dussel (1992, p. 420) traz o “exemplo testemunhal” de Rigoberta Menchú, Prêmio Nobel da Paz em 1999, a poderosa representação dessas formas de opressão, já que Rigoberta tem o corpo de “a) Uma mulher dominada, b) pobre, da classe camponesa, c) maia, como etnia conquistada há 500 anos, d) de raça morena, e) de uma Guatemala periférica e explorada pelo capitalismo norte-americano. Cinco dominações simultâneas e articuladas!”.
  • 6
    Em letras iniciais minúsculas, conforme decisão política da autora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2022
  • Aceito
    17 Jan 2023
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com