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A construção da sociedade neoliberal brasileira: qual o lugar da democracia?

Resumo

O artigo visa analisar de que modo a democracia é estruturada no sistema capitalista neoliberal no contexto brasileiro. Enquanto o neoliberalismo requer liberalização dos mercados, redução do estado social e financeirização da vida, a democracia pressupõe igualdade política e econômica, aparato público e inclusão, desse modo, é necessário discutir sobre essa relação conflituosa. A primeira sessão do trabalho discute o sistema econômico, político e social do neoliberalismo, compreendendo suas exigências e características, contrapostas às pretensões democráticas, a fim de adentrar nas particularidades brasileiras. O segundo tópico analisa a construção da sociedade neoliberal, estabelecendo a investigação por meio do embate entre social-desenvolvimento e avanço neoliberal no Brasil. Por fim, examina a presença do capitalismo neoliberal desde os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) até os dois primeiros anos de governo Bolsonaro, questionando o lugar da democracia. Para isso, a pesquisa utilizou o método de abordagem dedutivo e tipo de pesquisa bibliográfica e documental, com abordagem qualitativa. Como conclusão, destaca-se o obstáculo que o neoliberalismo impõe à concretização de uma democracia substancial, igualitária e plural no Brasil, marginalizando seu poder e restringindo-a à esfera eleitoral.

Palavras-chave:
Democracia; Capitalismo neoliberal; Brasil; Financeirização; Justiça social

Abstract

The paper aims to analyze how democracy is structured within the neoliberal capitalist system in the Brazilian context. While neoliberalism requires market liberalization, reduction of the social state, and financialization of life, democracy presupposes political and economic equality, public apparatus, and inclusion; thus, it is necessary to discuss this conflicting relationship. The first session of the work discusses the economic, political, and social system of neoliberalism, understanding its requirements and characteristics, as opposed to democratic pretensions, to enter into Brazilian particularities. The second topic analyzes the construction of a neoliberal society in the country, establishing the investigation through the clash between social development and neoliberal advancement in Brazil. Finally, it examines the presence of neoliberal capitalism from the Partido dos Trabalhadores (PT) governments to the first two years of the Bolsonaro government, questioning the place of democracy. For this, the research used the deductive approach method and type of bibliographical and documentary research with a qualitative approach. In conclusion, we highlight the obstacle that neoliberalism imposes to realize a substantial, egalitarian, and plural democracy, marginalizing its power and restricting it to the electoral sphere.

Keywords:
Democracy; Neoliberal capitalism; Brazil; Financialization; Social justice

Introdução

A dificuldade de conciliação entre capitalismo e democracia é conteúdo abordado por diversos pesquisadores preocupados com a sobrevivência do princípio democrático no mundo capitalista, especialmente na era do capitalismo neoliberal. Se a democracia é o espaço da igualdade política e o sistema capitalista é pautado na criação de vencedores e perdedores, o oximoro do capitalismo democrático somente é possível mediante regulamentação forte e eficaz, capaz de compensar as desigualdades inerentes ao capitalismo por meio de justiça social (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman C. Santos. 1. ed. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 33; STREECK, 2018STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 103-108).

O termo “neoliberalismo” foi alcunhado pela primeira vez no Colóquio Walter Lippman, em 1938, ainda que sem uma precisão técnica definidora. A partir daí, suas discussões rompem com o liberalismo clássico do século XIX, objetivando mudar os pressupostos basilares desse sistema para lidar com o socialismo. Dessa forma, o neoliberalismo não é um continuador do laissez-faire, mas sim um refundador que nasce com a crise econômica, política e doutrinal que cercava o liberalismo (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 71-72).

Para Harvey, o neoliberalismo é uma teoria de práticas político-econômicas que requer a liberalização no âmbito governamental e individual pautada pelas liberdades, fundando uma estrutura institucional que prima pela propriedade privada, livres mercados e livre comércio. A função do Estado passa a ser o de protetor dessas práticas, aumentando seu domínio nas estruturas policiais, defensivas e legais para garantir os direitos de propriedade individuais, assegurando o desenvolvimento do mercado (HARVEY, 2014, p. 12-13).

Saad Filho e Morais (2018, p. 96-97) concebem o neoliberalismo enquanto um “sistema de acumulação dominante”, o qual apresenta quatro características: a financeirização enquanto diretriz à produção, à ideologia e ao Estado pela qual é medida pela eficiência, produtividade, concorrência e flexibilidade; a globalização da produção; a predominância do capital externo nas relações nacionais; e a instauração de políticas macroeconômicas que objetivam organizar as taxas de juros. Essas combinações resultam unicamente na elevação das formas de exploração em todo o mundo, mais violentas em países do Sul, como o Brasil.

Em que pese ser importante entender o neoliberalismo em seu aspecto econômico e político, Dardot e Laval (2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 17-18), influenciados por Foucault, argumentam que se precisa também compreendê-lo enquanto um sistema normativo que forma as relações sociais com base na lógica do capital, irradiando por todas as esferas da vida.

A dinâmica neoliberal fundada no capital financeiro e na abertura econômica, entretanto, acarretou a crise do Estado fiscal e a passagem ao Estado endividado, agora significativamente dependente de investimentos financeiros para a sua sustentação (STREECK, 2018STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 125-128). Ao passo que a nova formatação dos Estados-nação se torna dependente do mercado financeiro, este exige um ambiente sem a interferência de razões morais (justiça social), de um lado, e, de outro, uma atuação estatal forte em favor da justiça de mercado - operante segundo o critério de produtividade-limite individual, avaliado pelo próprio mercado e mantenedor de desigualdades.

Nesta conjuntura, a democracia resta constantemente testada, inclusive quanto ao seu lugar dentro de sociedades neoliberais, marcadas por conservadorismos, hierarquizações, explorações e violações a direitos humanos, em nome da manutenção do ciclo capitalista neoliberal. O momento reforça, pois, argumentações segundo as quais o tempo é o da pós-democracia (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 379-384).

O caso brasileiro carrega particularidades típicas de um país colonizado, de passado autoritário, economia dependente e marcado pelo processo de transição democrática dos anos 70 e 80. Diante disso, a análise do desenvolvimento do neoliberalismo no Brasil não pode passar ao largo destas especificidades e tampouco ser investigado no sentido de aplicar integralmente ao contexto nacional, estudos voltados aos cenários norte-americano e europeu.

O contexto da redemocratização no Brasil foi marcado por (i) uma elite interessada na manutenção da estrutura de dominação existente; (ii) uma burguesia com dificuldades econômicas, dividida em dois grupos, um voltado à renovação da industrialização por substituição de importações (ISI) e outro de lógica neoliberal, o qual enxergava a restauração da democracia como necessária ao neoliberalismo; (iii) um governo militar interessado em sua anistia e na manutenção como guardião da segurança nacional; (iv) movimentos sociais de cunhos estudantil e trabalhista, principalmente. Nesse contexto, a lógica da abertura política gradual, proveniente dos altos escalões militares e das elites políticas, não pretendia a restauração democrática, mas a construção de base estável que permitisse a transferência do poder para líderes civis conservadores confiáveis aos militares (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 73-80).

Por um lado, o pacto político em torno da Nova República centrou-se na garantia de liberdades políticas e reconhecimento de cidadania aos pobres e trabalhadores, com o recebimento de ganhos econômicos marginais. Em contrapartida, manteve-se o sistema de desigualdades, dominação e hegemonia econômica das elites, bem como garantiu-se a proteção dos militares face às acusações de violação dos direitos humanos (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 79). Do ponto de vista do sistema político, a preservação do conservadorismo e das desigualdades foi sucessivamente garantida pelas elites políticas conservadoras.

De outro, é inegável a introdução do embrião social-desenvolvimentista no texto constitucional, por meio de normas programáticas e direitos sociais de caráter transformador, comprometidos com uma ideia de democracia social - demonstrando que os movimentos sociais também conseguiram imbricar, ainda que de forma desconexa, seus interesses na constituição de 1988 (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., 50-51). A promessa da justiça social estava, então, mais viva a partir da redemocratização.

A transição para a democracia (1975-1988) foi, no entanto, seguida pela transição para o neoliberalismo (1988-1999), esta última fundada em uma lógica excludente, de financeirização, concentração de renda, marginalização de determinados segmentos sociais e deterioração de condições de vida e de trabalho. Com a abertura do mercado, as privatizações e o incentivo ao consumo, uma específica forma de sociedade foi construída e mantida no Brasil, mesmo durante governos mais progressistas: uma sociedade de matriz neoliberal, pautada em conservadorismos novos e antigos; na reprodução de privilégios e hierarquizações; bem como na lógica de ascensão social meritocrática (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 117-130).

A quase simultaneidade entre os processos de transição democrática e neoliberal impõe inevitáveis questionamentos quanto à vigência do princípio democrático, enquanto modo de vida inclusivo e igualitário, no cenário brasileiro. Com a redemocratização, criou-se um ambiente palatável ao neoliberalismo, mas qual o lugar da democracia nesse contexto? Qual nível democrático aceitável dentro da sociedade neoliberal brasileira? Quais os limites impostos pelo neoliberalismo à democracia no caso brasileiro?

Este artigo pretende oferecer uma análise acerca da forma de democracia que vem sendo tolerada pela racionalidade neoliberal brasileira. Para isso, utilizamos o método dedutivo de investigação, e o tipo de pesquisa como bibliográfico e documental, com abordagem qualitativa, a fim de compreender, no âmbito da construção da sociedade neoliberal brasileira, em que medida a democracia é tolerada e inserida, considerando também uma avaliação comparativa entre governos com base nas principais políticas públicas desenvolvidas.

Estruturalmente, o trabalho é composto por três seções. Na primeira, buscamos analisar a correlação entre capitalismo e democracia, especialmente na era do neoliberalismo em um plano macro e mais global, a fim de compreender as bases do sistema neoliberal. Sequencialmente, analisamos como se deu a construção da sociedade neoliberal no Brasil, em paralelo com um possível projeto de social democracia, de forma a demonstrar a relação de tensão estabelecida entre capitalismo neoliberal e regime democrático no contexto de um país latino-americano de economia dependente. Ao final, faremos uma avaliação, do progressismo de esquerda dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) até a repercussão dos dois primeiros anos de governo Bolsonaro, demonstrando o que prevaleceu no embate entre a lógica excludente do neoliberalismo e o caráter inclusivo do projeto social-desenvolvimentista.

1. Capitalismo neoliberal e democracia: um equilíbrio (im)possível

O capitalismo neoliberal requer ser compreendido para além dos aspectos economicistas e financeiros, mas também por seus desdobramentos na política, na sociedade, na cultura e no meio ambiente (FRASER; JAEGGI, 2020FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. Tradução: Nathalie Bressiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 13-14). Diante dessa amplitude, sobretudo na sua versão neoliberal, questiona-se o lugar da democracia. Este tópico objetiva analisar essa relação em âmbito global, refinando as ideias para adentrar no caso brasileiro.

Analisar a democracia brasileira no cenário neoliberal exige a compreensão do contexto histórico pós ditatura. Até 1980 o país enfrentou o regime militar e conviveu com uma transição democrática lenta e frágil. Ainda após tal período, mesmo com a devolução do poder aos civis, a promulgação da Constituição de 1988 e as alternâncias de poder a partir de 1989, o alinhamento democrático brasileiro foi rompido com o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e, a partir disso, com severas restrições e constrangimentos, pelo interesse do capital financeiro (MIGUEL, 2022MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 7).

Miguel (2022MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 9) reflete que somente se entende a complexidade e a profundidade do que se quer dizer como democracia quando também se entende igualdade e desigualdade de maneira crítica. Compreender o cenário democrático como sinônimo do poder de um povo tido como homogêneo e não diferenciado é negar espaço de reflexões para as desigualdades que assolam o mundo social, sobretudo, países capitalistas periféricos, como o Brasil. Desse modo, para o autor, falar de democracia é necessariamente romper com as diversas desigualdades - renda, escolar, classe, gênero, étnica, raça - que dominam os meios sociais, ainda que não mais expressas na letra da lei.

É sob esse viés o principal eixo de questionamento sobre a (in)compatibilidade entre democracia e capitalismo financeirizado neoliberal, o qual carrega em sua formação a desigualdade como regra. Não há como falar de democracia sem considerar o capitalismo e a formação de um Estado capitalista neoliberal que se forma pela naturalização das assimetrias (MIGUEL, 2022MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 11).

Desse modo, o capitalismo financeirizado requer a regulamentação política na economia, a fim de que o mercado seja prevalecido e imunizado das demandas sociais e políticas igualitárias, neutralizando-as (STREECK, 2018STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 104-105; MIGUEL, 2022MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 43). Assim, o neoliberalismo não demanda pela ausência de intervenção do Estado na esfera econômica como idealizado no liberalismo clássico. O mercado neoliberal não deve ser mais entendido como o lugar de circulação de mercadorias de forma natural e regido por leis naturais que tendem ao equilíbrio, indo de encontro com as ideias do laissez-faire. É um processo que articula intervenção política, isto é, Estado, bem como motivações psicológicas e competências específicas do sujeito (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 69).

O filósofo e economista neoliberal, membro da Escola Austríaca, Friedrich Hayek defendia que a ordem do mercado deveria ter como uma das principais sustentações a intervenção estatal por meio do seu auxílio jurídico, que mudasse as noções sociais e democráticas sobre os direitos. Isso conduziria a uma sociedade das liberdades e dos direitos individuais, a qual prima e protege a propriedade privada, os mercados e os comércios livres, retirando todo o aparato social, tido como uma patologia e anomalia. Esse projeto, dessa forma, deveria ser arquitetado ainda que houvesse a destruição da democracia, uma vez que, para o autor, a única forma admissível de democracia é a limitada e que não obstaculiza as liberdades mercadológicas e a propriedade privada (HAYEK, 1981HAYEK, Friedrich von. Democracia, El Mercurio, Hayek, Pinochet, Ronald Reagan. [Entrevista concedida a] Adrián Ravier. El Mercurio, Santiago do Chile, 1981., n.p; DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 183-185).

A partir disso, compreende-se que a democracia somente é aceita se não atrapalha a lógica da produção e da concentração de renda, de riqueza e de propriedade. Por um lado, serve como mero instrumento de escolha eleitoral com o viés de funcionamento normal das instituições democráticas. Por outro, é esvaziada do seu propósito de proteção dos direitos sociais e coletivos, no momento em que o Estado e suas instituições rompem com esse compromisso político, atendendo ao mercado e despolitizando as massas.

A democracia capitalista nos países ricos que se via equilibrada até 1970 cedeu lugar a esses arranjos, imunizando a economia contra as bases da democracia de massa, legitimando a maior liberalização mercadológica em detrimento do Estado de bem-estar. Com base nisso, a relação entre capitalismo e democracia, longe de encontrar estabilidade com o passar do tempo, demonstrou uma forte tensão, a qual se torna ainda mais intensa com o avanço neoliberal (STREECK, 2018STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 45-49).

Esse “equilíbrio” só foi possível nos países ricos e fruto da exploração dos países do Sul pelas trocas internacionais desiguais, pela redução do valor da força de trabalho e pela superexploração dos negros e povos tradicionais, a fim de que o capital circulasse em direção aos países ricos e “comprasse a paz” até meados dos anos 1970. Desse modo, desde logo percebia-se no Brasil e em demais países periféricos que “em vez dos regimes de concorrência eleitoral, o capitalismo na periferia optou por formas menos ou mais veladas de autoritarismo. Ou de democracia, quando a havia, severamente limitada” (MIGUEL, 2022MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 35).

A ideia de “capitalismo democrático” surgida após a Segunda Guerra Mundial foi aceita por um período curto e territorialmente selecionado. Nesse sentido, a economia política do “capitalismo democrático” pautava-se na combinação improvável de dois opostos, os quais Streeck denomina de “justiça de mercado” e “justiça social”. A primeira implica na distribuição dos resultados de produção conforme avaliação por parte do mercado acerca do desempenho individual dos envolvidos. A justiça social, por outro lado, leva em consideração as concepções de igualdade, honestidade e reciprocidade, entendendo que todos fazem jus a um mínimo para viver, independentemente do desempenho individual em nível econômico, além de reconhecer os direitos civis e humanos; políticas essas aplicadas com desigualdades territoriais, de gênero, de raça e de classe (STREECK, 2018STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 104; MIGUEL, 2022MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 35).

Enquanto a “justiça de mercado” verifica as exigências de justiça social como perigosas ao funcionamento do mercado - à medida que vincula os resultados econômicos a parâmetros morais de igualdade. O princípio da “justiça social” entende a luta de classes no regime democrático como indispensável à correção de desigualdades distributivas, centrando o debate no âmbito político com base nas relações de poder que diferenciam cada pessoa. Os mercados, ao contrário, se veem como apolíticos, diante disso, sua distribuição atende a parâmetros universais, compreendendo as pessoas como abstratas, sem considerar as clivagens sociais, históricas e opressoras que as acompanham. Sob o ponto de vista da racionalidade formal do mercado, a “justiça social” é observada como uma constante ameaça, à medida que pode alcançar o poder do Estado por maioria democrática e alterar o seu modo de funcionamento (STREECK, 2018STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 104-106).

A defesa por essa “justiça do mercado” ganha cada vez mais adeptos no capitalismo neoliberal. Diante da propaganda de que o mercado não é corrupto nem conduzido por ódios e preconceitos, apoia-se na distribuição de rendas e de riquezas por parâmetros objetivos, imparciais e gerais e na liberdade do contrato de trabalho. Com base nisso, propaga-se, especialmente pelos economistas, que o mercado é livre de exploração, pois trata a todos como iguais e com iguais capacidades de produzir cada vez mais, para assim aumentar seus ganhos, afastando a necessidade da intervenção política e social pelo debate democrático (STREECK, 2018STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 104-106).

Ao passo que as pessoas são livres no âmbito jurídico, isto é, estão livres para serem contratadas, estão também livres ao acesso dos meios de produção e subsistência. Jessé Souza reflete que o interesse capitalista a partir do fim do século XIX no país era a instauração da mão de obra livre. Com a abolição formal da escravatura em 1888 instaura-se o mercado competitivo que tem como figura central o contrato. Por meio desse instrumento jurídico alcança-se a base do trabalho livre, que no Brasil construiu-se, sobretudo, com a cultura cafeeira (SOUZA, 2019SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019., p. 78).

Ocorre que a ideia de liberdade dos ex-escravizados no Brasil é também acompanhada com a sua intensa precarização. A liberdade, apenas no âmbito formal, não ocorreu concomitantemente a uma verdadeira emancipação democrática, em vista da ausência de um projeto comprometido com uma verdadeira transformação social. A ideia de ser livre para os negros no Brasil veio em sintonia com um destino de pobreza e de marginalização sob a economia financeirizada. Souza percebe que a tida modernização capitalista é “eufemizar a realidade para negar formas de dominação que tendem a se eternizar” (SOUZA, 2019SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019., p. 85).

O capitalismo neoliberal mercantiliza os valores da vida, desenraizando os direitos sociais, econômicos e políticos, a fim de que o capital seja o sujeito, tido como justo, para alocar as riquezas. A igualdade e a liberdade prometidas pelo capitalismo são estruturadas de modo universalizante, ignorando as diferenças - nos âmbitos de raça, classe, gênero, etnia, nacionalidade - que só podem ser amenizadas ou reduzidas pela regulação estatal de proteção de bases mínimas de distribuição de renda e riquezas, isto é, dentro do âmbito democrático e não mercadológico (STREECK, 2018STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 125).

A sociedade capitalista compromete a participação democrática e a tomada de decisão coletiva. Ao constituir o capital como o sujeito das decisões sobre o excedente da produção trunca-se o poder coletivo e a agenda política democrática, restringindo o poder e a autonomia coletivos, colocando sob o controle dos sujeitos e das instituições do mercado neoliberal - sustentados pelo Estado - os aparatos sociais, políticos, jurídicos e econômicos, legitimando a igualdade formal que sustenta a exploração e a consequente desigualdade econômica (FRASER; JAEGGI, 2020FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. Tradução: Nathalie Bressiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 94-95).

Nesse sentido, Miguel (2022MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 42-43) compreende que as democracias nas sociedades capitalistas combinam veto e voto. De um lado, o voto representa a vontade da maioria - ainda que essa possa ser influenciada pelas ideologias dominadoras e pela ausência de informações legitimas na formação de sua decisão eleitoral. De outro, o veto representa a submissão do Estado aos interesses do capital, ainda que isso resulte na restrição de direitos, a fim de resguardar a acumulação.

Ainda que o voto não seja totalmente blindado dos interesses do capital, o veto vem ganhando essas disputas nos últimos anos em razão do predomínio neoliberal na gestão e na formação das decisões estatais. Uma das principais ferramentas da materialização do veto é por meio do esvaziamento dos espaços de representação e de escuta da voz popular, abrindo espaços para decisões tecnocratas que não vislumbram as desigualdades e a heterogeneidade do corpo social e decidem com base nos interesses do mercado e na lógica universalizante da meritocracia (MIGUEL, 2022MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 42-43).

Ao compreender que um dos pilares da democracia é o equilíbrio econômico na sociedade, como salienta Sitaraman (2018SITARAMAN, Ganesh. Economic inequality and constitutional democracy. In: GRABER, Mark; LEVINSON, Sanford; TUSHNET, Mark (Eds.). Constitutional democracy in crisis? Oxford: Oxford University Press, 2018., p. 536-541), percebe-se que a economia neoliberal não satisfaz essa condição e muito menos a pretende. Com base nisso, a democracia é estruturada e bem-vinda apenas ao legitimar, por meios democráticos, que resultados não democráticos sejam realizados pelo mercado. Por isso, Streeck argumenta que se vive o “processo de desdemocratização do capitalismo por meio de deseconomização da democracia”, retirando o poder democrático contra as exclusões do capital (STREECK, 2018STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 55).

Nesse sentido, o capitalismo neoliberal requer um Estado forte que proteja os interesses do mercado, colocando-o como instrumento político necessário para que o aparato social seja reduzido. Isso não se dá apenas no plano institucional do Estado, mas também na forma como o neoliberalismo impõe a reeducação dos cidadãos, para que se vejam responsáveis em produzir cada vez mais e por sustentarem seus custos de vida sem o auxílio estatal. A partir disso, compreende-se as políticas de austeridade pelo desmantelamento dos setores sociais de educação, saúde, previdência social, flexibilização das leis trabalhistas e degradação do poder sindical, contrárias a igualdade política exigida pela democracia (FRASER; JAEGGI, 2020FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. Tradução: Nathalie Bressiani. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 123; STREECK, 2018STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 104-105; BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman C. Santos. 1. ed. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 53).

Dessa forma, é preciso, ainda, analisar os aspectos que minam a democracia não só no aporte econômico e político como traçado até aqui, considerando que o neoliberalismo é um sistema econômico, mas também social, cultural e político, que constrói subjetividades conforme a sua lógica.

A justiça social é o único meio de manter a democracia, sempre nunca cumprida e ainda mais corroída no capitalismo neoliberal. O neoliberalismo nega distribuição adequada, igualdade política e cria sujeitos que são considerados livres e auto responsáveis, o que justifica que o estado social seja reduzido para mercantilizar todas as esferas da vida. O desmantelamento neoliberal das garantias básicas é visto quando se nega a existência da sociedade/povo, quando se privatiza o estado social e quando se usa do discurso das liberdades para legitimar as ingerências do mercado (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman C. Santos. 1. ed. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 41-51).

Os teóricos neoliberais como Von Mises e Hayek consideram que a máquina econômica tende ao equilíbrio quando não perturbada por moralismos ou intervenções sociais e políticas, de forma coerente com o que se argumentou até aqui diante da sua posição universalista e abstrata na distribuição de rendas e riquezas. Ocorre que para essa conformação social, forma-se a lógica subjetiva da concorrência (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 284 e ss).

Dessa forma, a competência exigida pelos cidadãos, por meio de processos psicológicos, é a formação do sujeito empreendedor. O sujeito não é da troca, que se preocupa com a equivalência, mas sim o que visualiza uma oportunidade, faz escolhas e obtém lucro. Esse processo não está apenas no âmbito econômico de maximização do valor empreendido, mas também em uma dimensão “extraeconomizante” de escolha de boas oportunidades. Assim, o mercado, composto por ambas as vertentes, conduz a formação do eu competidor, produtivo, estratégico, atento e apartado do coletivo (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 111 e ss).

Apreende-se que cada sujeito é um empreendedor em potencial em todas as esferas da sua vida, fazendo escolhas para maximizar resultados. O sujeito do neoliberalismo é o ser competidor; discurso, esse, que uniformiza a todos com base nos pressupostos de uma empresa. O neossujeito é aquele que se engaja por completo em sua atividade profissional, de modo que compreenda que trabalha para si e não para uma empresa, por isso, todo o seu esforço, dedicação, sacrifício não são contestados, ocultando a exploração do mercado capitalista neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 145 e ss).

O sujeito se compreende como “empresa de si mesmo” ao se dispor a agir com objetivos de uma empresa, que busca sempre o lucro, a adaptabilidade e boas oportunidades, com isso, o sentimento de alienação é afastado, já que o indivíduo não age para a empresa, mas para si, ainda que alimente a empresa. A relação contratual e a necessidade de uma docialidade dos corpos ao trabalho já não são mais os meios usados, pois o sujeito neoliberal rompe com essas necessidades ao dispor se envolver inteiramente com a sua atividade, fortalecendo cada vez mais seu capital humano, isto é, a sua propriedade: a força de trabalho (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 145 e ss).

Com base nisso, o sujeito se vê como responsável pela proteção e valorização da sua propriedade, afinal, não é mais o proletário que não tem nada. Nesse sentido, molda-se para ser aberto e estratégico para fazer as suas escolhas, promovendo a sua produtividade e eficácia, tornando-o o único responsável por tudo o que lhe acontece. A estratégia neoliberal é a formação subjetiva para que cada sujeito se veja como responsável pelo seu sucesso e fracasso (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 145 e ss), consolidando a ideia meritocrática de que o esforço, o diferencial e a produtividade são os caminhos únicos e necessários para a ascensão individual, ignorando as diferenças de gênero, de raça, de etnia, de nacionalidade e de classe como pontos cruciais que não colocam todos no mesmo patamar sem o aporte de uma democracia material.

A hegemonia neoliberal destrói o social e com ele todos os instrumentos de garantias, de reivindicações públicas e de aparatos coletivos que possam questionar essa realidade excludente e produtora de dominações, desigualdades e opressões. O apagamento desse cenário pelo neoliberalismo confunde as subjetividades e propicia que o social não seja mais defendido. A racionalidade neoliberal entende o social e seus instrumentos como a tirania do politicamente correto, o que reconfigura o entendimento de igualdade e de inclusão (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman C. Santos. 1. ed. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 48-49).

Esse ataque ao social é o meio para um processo de desdemocratização, em virtude das forças do mercado que legitimam que o Estado seja construído contra a democracia, aprofundando as desigualdades, as opressões e as dominações, as quais são inerentes ao sistema capitalista e esgarçadas no neoliberalismo (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman C. Santos. 1. ed. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 33-40)1 1 Sobre o assunto ver VERBICARO, Loiane Prado. Reflexões Acerca das Contradições entre Democracia e Neoliberalismo. Revista de Direito Público (RDP): Dossiê “Direito ao Desenvolvimento, Estado Neoliberal e Políticas Públicas”. Brasília, v. 18, jan/fev. 2021, pp. 23-51. . A democracia requer igualdade política como forma de consolidar uma justiça redistributiva e de reconhecimento adequado (FRASER, 2015FRASER, Nancy. Fortunas del feminismo. Tradução: Cristina Piña Aldao. 1. ed. Equador: Instituto de Altos Estudios Nacionales del Ecuador, 2015., p. 240-242). Percebe-se que esse caminho de emancipação pela democracia está tortuoso diante das forças neoliberais.

A democracia confrontada e reduzida pelo neoliberalismo traduz-se para além de uma ideia de democracia mínima ou restrita à esfera eleitoral, mas sobretudo substancialmente ligada à ideia de igualdade política. Embora não propusemos um conceito nem um modelo fechado de democracia para este trabalho, entendemos que a democracia ameaçada pelo neoliberalismo refere-se a todos os aspectos democráticos de defesa dos direitos sociais, econômicos e políticos, embasada em políticas de distribuição equitativa, em reconhecimento e em representação de direitos humanos e de grupos sociais em instituições formais equitativamente (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman C. Santos. 1. ed. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 68-79; FRASER, 2015FRASER, Nancy. Fortunas del feminismo. Tradução: Cristina Piña Aldao. 1. ed. Equador: Instituto de Altos Estudios Nacionales del Ecuador, 2015., p. 240-242).

Wendy Brown analisa que a democracia reduzida pelo neoliberalismo é a que luta pela justiça social e pela realização dos direitos sociais. Desta forma, a autora sustenta que a democracia requer um vínculo necessário com o político, para poder administrá-lo como um governo do povo e para o povo. Democracia, deste ponto de vista, baseia-se na deliberação, na contestação e na troca de valores inclusivos que garantem igualdade, pluralismo, laicidade e inclusão. Assim, a igualdade política constitui a base do regime político democrático, que presta atenção às disparidades sociais, econômicas e culturais, para focalizar e defender a justiça social (BROWN, 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Tradução: Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman C. Santos. 1. ed. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019., p. 68-79).

Antunes (2000ANTUNES, Ricardo. Trabalho e precarização numa ordem neoliberal. In: La Ciudadania Negada. Políticas de Exclusión en la Educación y el Trabajo. Buenos Aires: CLACSO, 2000., p. 38) resume que o receituário neoliberal que cumula desregulamentação, flexibilização, terceirização e desconstitucionalização de direitos sociais, próprias do mundo empresarial, é sintomática de uma lógica societal onde o capital tem importância e a força de trabalho apenas possui expressividade enquanto parcela imprescindível para a reprodução deste capital, isto porque o capital não é capaz de sozinho realizar sua auto-valorização sem usar do trabalho humano que precariza. Por consequência, para o neoliberalismo, principalmente aquele aplicado em países latino-americanos, os quais para se “integrar” à chamada mundialização, destroem-se socialmente, é esperado e projetado que se diminua o trabalho vivo, mas não o elimine, assim como é possível precarizá-lo e subjugar parcelas imensas, mas sem as extinguir.

Para Miguel (2022MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 8) “a desigualdade é o limite da democracia no Brasil. Enfrentar uma aumenta o risco de perder a outra”. A democracia quando não problematiza e estrutura-se pela derrubada das desigualdades, das hierarquias e dos privilégios é, no mínimo, uma democracia pela metade. Por conta disso, fala-se na crise da democracia brasileira sob três vieses, as quais são próprias dos países periféricos.

Primeiro, há o elemento econômico, o qual impede a formação de uma sociedade capitalista que não seja baseada na superexploração da mão de obra, convivendo, assim, com a vulnerabilidade extrema do corpo social. Segundo, há o componente simbólico em que as democracias, nesses países, são desestabilizadas com maior facilidade, em vista de que os instrumentos de protestos e de reversão pelos setores sociais são mais singelos. Terceiro, há o elemento político, o qual a burguesia brasileira acomoda-se como parceira - ainda que com reduzida interferência - do capital internacional em nada contribuindo para um projeto nacional de democracia e de igualdade (MIGUEL, 2022MIGUEL, Luis Felipe. Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2022., p. 15).

Primar pela democracia é carrega-la sob o manto da igualdade - não apenas legal, mas, sobretudo, de renda, de classe, de gênero, de etnia e de raça - e isso trava os interesses do capitalismo neoliberal. Em razão disso, o compromisso democrático no Brasil, enquanto país latino-americano de passado colonizado e ditatorial, é frágil. Ao longo do tempo, a democracia brasileira apresentou tanto momentos de otimismo, como quando da promulgação da Constituição de 1988, quanto períodos de regressão, à exemplo da ascensão do bolsonarismo, enquanto movimento de extrema-direita oposto ao compromisso democrático.

Leonardo Avritzer (2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 21-48), por exemplo, compreende a democracia brasileira como um pêndulo, à medida que “(...) alterna momentos de forte expansão democrática com momentos de regressão democrática.”. Isso porque, a despeito da celebração de importantes acordos político-democráticos, “(...) aspectos fundamentais da nossa estrutura de poder permanecem intactos, tais como um sistema econômico permeado por privilégios políticos, um Judiciário impermeável à modernização democrática (...)”, além de um ordenamento de polícias militares que impede a generalização de direitos civis e de forças armadas que “(...) trocaram a interferência direta na política pelo corporativismo e alguns projetos militares sem transparência alguma” (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 22-23).

Determinados atores no Brasil possuem um compromisso democrático facilmente relativizável, os quais estão localizados no mercado e na política, de maneira que possam desencadear movimentos antidemocráticos, movimentando o pêndulo da democracia em sentido regressivo, quando “perdem acesso ao Estado ou na medida em que o Estado se abre na direção de atores políticos ou econômicos considerados não desejáveis” (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 23). Impõe-se questionar, neste quadro, como se dá o (des)equilíbrio entre justiça social e neoliberalismo?

Diante disso, torna-se fundante discutir as bases neoliberais e democráticas no contexto brasileiro - ainda que já brevemente explanadas nesse tópico - as quais detém peculiaridades sobre seu sistema político, social e econômico, a fim de compreender, levando em conta os pressupostos discutidos nesta seção, a (in)compatibilidade entre democracia e neoliberalismo no Brasil.

2. Transição democrática e neoliberalismo no Brasil: do caráter transformador à acomodação em uma sociedade neoliberal

A estrutura estatal brasileira é marcada por elementos de patrimonialismo, neoliberalismo e social-desenvolvimentismo, que estabelecem forte tensão entre si e expressam conflitos distributivos inerentes às sociedades capitalistas. Para compreendermos tal estrutura necessitamos, antes, de uma dose de história.

Para Avritzer (2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., 81-88), o patrimonialismo no país tem uma linha histórica bem definida, a qual baseia-se, principalmente, em centralizar empreiteiras como as principais parceiras econômicas; entrelaçar o campo estatal e o privado não só nas áreas produtivas, mas também nas estruturas do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Banco Central e bancos públicos; bem como fortalecer o Poder Judicial, mantendo a estrutura clientelista.

A estrutura patrimonialista remonta aos anos de 1930 e está associada ao histórico processo de “apropriação do Estado brasileiro por diferentes grupos estatais ou paraestatais”. Na década de 30, o governo Vargas iniciou processos de modernização burocrática estatal e de organização desenvolvimentista, pautados no clientelismo. Nesta fase, o Estado exerceu as funções de regulador das atividades econômicas e construtor de infraestrutura. Juscelino Kubitschek continuou o processo de modernização econômica com grandes obras estruturais, por meio de contratos não transparentes e de grande vulto econômico com empreiteiras, demarcando ações patrimonialistas (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p.77-80).

A ordenação patrimonialista e desenvolvimentista manteve-se no Brasil, sob o sistema de acumulação da industrialização por substituição de importações (ISI)2 2 A ISI foi o segundo sistema de acumulação que se estabeleceu no Brasil. O primeiro deles foi o crescimento primário-exportador que perdurou de 1822 a 1930. A partir do governo Vargas, nos anos 30, a industrialização por substituição de importações se estabeleceu dentro de um Estado desenvolvimentista, mantendo-se até os anos 1980, quando o Brasil foi cooptado por um novo sistema de acumulação, o neoliberalismo (SAAD FILHO; MORAIS, 2018, p. 25). , mesmo quando o país sucumbiu ao autoritarismo em 1964. O período ditatorial brasileiro foi sistematicamente reprodutor de desigualdades, mantendo essa ordem por meio da coerção militar. Neste quadro, a inflação funcionava como importante mecanismo de reprodução dos padrões desiguais históricos de distribuição de renda e de garantia do rápido crescimento, exigidos pelo sistema de acumulação da época, a ISI (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., p. 31).

O quadro de crescente inflação iniciado em 1970 levou o Brasil a atingir a taxa inflacionária de mais de 300% em 1986, contando ainda com a grande dificuldade de estabilizar a economia brasileira. O cenário hiper inflacionário, associado à indexação diferencial de preços e rendimentos, também intensificou o quadro de desigualdades, acirrando os conflitos distributivos (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 64-69). A persistência das taxas inflacionárias elevadas, resultantes de eventos internacionais (os dois choques do petróleo e o choque Vocker) e do fracasso dos planos de estabilização, levaram a um cenário no qual a inflação já não exercia o seu papel de instrumento central no arranjo de desigualdades brasileiro, mas, ao contrário, ameaçava a sobrevivência do país e prejudicava os grupos historicamente favorecidos por este mecanismo (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., p. 36-37).

Quando a hiperinflação, somada ao endividamento externo e a consequente crise da ISI, deixa de gerar o crescimento acelerado, a sustentação do regime autoritário encontra sérias dificuldades de manutenção e as exigências de democracia tanto ganham a forma de manifestações político-sociais contundentes, quanto adquirem espaço junto às elites, posto que o regime militar já não assegurava seus interesses e sua hegemonia econômica (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 75-77).

Noutros termos, conjuntamente estavam postos três fenômenos: hiperinflação, crise do modelo nacional-desenvolvimentista (ISI) e exigência da redemocratização. Dessa maneira, o processo redemocratizante não pode ser estudado de forma apartada à crise do sistema de acumulação outrora vigente (nacional-desenvolvimentismo na lógica da industrialização por substituição de importações), pois estes influenciaram-se mutuamente. A respeito desta correlação, Saad Filho e Morais (2018, p. 22-23), observam dois processos ocorrendo de forma quase simultânea: a transição para a democracia (1974-1988) - que seguiu o rumo da expansão da cidadania e implementação de um Estado de bem-estar social (1988-1989) - e a transição para o neoliberalismo - segundo uma lógica excludente de financeirização, concentração de renda e deterioração das condições de trabalho.

Enquanto a pressão decorrente da crescente oposição ao governo militar crescia, os militares e as elites buscavam formas de controlar o processo de redemocratização e manter suas posições no regime porvir. Dentro desta estratégia, Geisel deu lugar a uma abertura política lenta, gradual e controlada, cujo objetivo era “(...) construir uma base estável que apoiasse a transferência do poder para líderes civis conservadores que os militares considerassem confiáveis”, no intento de estabelecer um acordo constitucional que mantivesse as Forças Armadas como guardiãs da segurança nacional e lhes garantisse a anistia (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 75). Não à toa, a convocação da Assembleia Nacional Constituinte aconteceu via emenda à Constituição autoritária de 1967 (EC 26/1985), que ampliou a anistia em benefício dos militares.

No momento constituinte, contudo, restou claro que o Congresso Nacional não seria capaz de se isolar completamente das demandas sociais, nem controlar de modo sistemático o trabalho. A organização do funcionamento interno da Constituinte, nos moldes estabelecidos em seu regimento interno3 3 Segundo o regimento interno, o processo constituinte seria dividido em duas etapas. Na primeira fase, os constituintes eram distribuídos em oito comissões temáticas, sendo cada uma delas subdividida em três subcomissões. O trabalho resultante de cada comissão seria remetido à Comissão de Sistematização, que tinha por função organizar e apresentar o projeto de constituição. A segunda fase consistia na deliberação e votação, em plenário, acerca do projeto apresentado pela comissão de sistematização (VIEIRA, 2018, p. 146). , permitiram ampla mobilização e participação social na sua primeira fase. Graças à abertura às demandas da sociedade e à articulação de Mário Covas no sentido de indicar para a relatoria das comissões e subcomissões temáticas parlamentares mais alinhados ao seu posicionamento político de viés progressista, foi possível incorporar ao projeto de constituição determinadas exigências de cunho substantivamente igualitário. O Congresso Constituinte, entretanto, era composto por uma maioria conservadora, a qual, no momento da votação em plenário, promoveu uma grande articulação política (“centrão”) a fim de alterar o regimento interno - para facilitar a modificação do projeto de constituição - e barrar dispositivos que fossem progressistas demais à elite política conservadora (BARBOSA, 2012BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012, capítulo 02., p. 222-226).

Ainda assim, como bem afirma Nobre (2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., p. 50-51), na Constituição de 1988 plantou-se um embrião de social desenvolvimentismo. Por um lado, o mero cumprimento das formalidades eleitorais e a alternância de poder político não correspondem com a proposta de democracia constitucional inscrita na Constituição de 1988, que tem viés transformador e sustenta uma vida política substancialmente democrática (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., p. 9-10). Dessa forma, a avaliação da saúde constitucional brasileira adequada depende, ao menos, de dois elementos, a saber, a estabilidade constitucional e o desempenho de seus objetivos sociais (MAGALHÃES; FERREIRA, 2022, p. 2174). Nesse sentido, o texto constitucional de 1988 estava inserido em um conceito democrático substancial, comprometido com a efetivação de direitos e a redução de desigualdades, ainda que de forma embrionária e dependente da ação positiva do Estado para implementar tais disposições constitucionais.

Por outro lado, o tom patrimonialista continuava presente no novo regime constitucional, mediante o fortalecimento das instituições do sistema de justiça, especialmente pelo excesso de benefícios conferidos à corporação jurídica (poder e autonomia funcional), representando uma nova forma de apropriação privada do Estado, cujo núcleo tem previsão constitucional (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 92-95). Em sentido semelhante, Saad Filho e Morais (2018, p. 79-82) destacam que o pacto político sustentador da Nova República atendia às demandas imediatas da esquerda (garantia ampla liberdade política, reconhecia a cidadania dos pobres e do proletariado, além de conferir-lhes ganhos econômicos marginais), todavia ignorava em grande medida as exigências econômicas que tinham o tom redistributivo.

O terceiro elemento da estrutura estatal brasileira é introduzido em nosso país sob o discurso e justificativa da estabilização monetária, segundo o qual a superação tanto da hiperinflação, como da vulnerabilidade econômica externa do Brasil, somente seria possível mediante a modernização da economia e da sociedade segundo a lógica do neoliberalismo, isto é, com a redução da intervenção do Estado no espectro econômico - o que seria feito por meio da liberalização econômica (comércio, finanças e fluxos internacionais de capital), das amplas privatizações e da redução das despesas pela via das reformas tributária e de seguridade social. A chancela política do neoliberalismo no Estado brasileiro, por sua vez, se deu com as eleições presidenciais de 1989, quando o programa neoliberal de Fernando Collor derrotou eleitoralmente a campanha do candidato de esquerda, Luiz Inácio Lula da Silva. Embora o ex-presidente Collor tenha se envolvido em escândalos de fraude e corrupção, que implicaram em seu impeachment, o seu breve período de governo, assim como de seu sucessor, Itamar Franco, foi marcado por uma política monetária contracionista, no intuito de controlar a inflação, atrair o capital estrangeiro e gerar excedentes exportáveis (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 101-103).

Com o Plano Real, veio a abertura econômica do país e o vergalhão ideológico do neoliberalismo, significando tratar-se de um projeto econômico-político de dimensões globais. Sob a lógica neoliberal, o Fernando Henrique Cardoso (FHC) apresentou o Plano Real como inevitável e, para ter êxito neste discurso, se valeu do controle da inflação - o que possibilitou significativo apoio popular - e de aliança com a elite política conservadora - a fim de conseguir implementar as reformas constitucionais necessárias à efetivação do projeto de estabilização (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., p. 70-73).

É a partir do Plano Real que autores como Saad Filho e Morais (2018, p. 102-103) constatam a consolidação do neoliberalismo no Brasil, como nova forma de sistema de acumulação de capital, em substituição à antiga industrialização por substituição de importações (ISI). Para estes autores, o plano iniciado em 1994 teria implementado estratégia econômica totalmente neoliberal, fornecendo os substratos político e ideológico necessários para a legitimação política do neoliberalismo, especialmente a partir do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso.

O inicial sucesso do Plano Real, devido à redução da inflação e implementação de reformas neoliberalizantes, não gerou ganhos apenas às elites, mas também para as classes pobres (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 103-109). Não demorou muito, porém, para que o Plano Real sinalizasse seu colapso: as mudanças nos fluxos de capital internacional, principalmente nos anos de 1997 e 1998, associadas às fragilidades criadas pelas reformas neoliberais, levaram a crise do plano de estabilização iniciado por Fernando Henrique Cardoso em 1994 (SAAD FILHO; MORAIS, 2018, p. 111-113). Ainda, após a transição para o neoliberalismo, “(...) a economia brasileira permaneceu desigual, dependente e geradora de pobreza (...)”, com um plus de baixo crescimento, à medida que o seu desempenho é limitado pela ameaça de crises cambiais e de balanço de pagamentos (SAAD FILHO; MORAIS, 2018, p. 128-132).

Apesar dos indicativos de liberalização da economia e dos discursos alinhados ao neoliberalismo que foram utilizados quando da introdução do Plano Real no Brasil, não podemos afirmar a sua completa introdução e consolidação já a partir do período FHC. Como vimos até aqui, a vertente patrimonial estabeleceu-se de forma muito contundente no Brasil, desde a era Vargas, de forma que não tenha sido superada nem mesmo quando da redemocratização brasileira. De igual modo, o “consenso neoliberal” ajustado nos governos FHC não foi capaz de romper com o patrimonialismo, uma vez que a aposta liberal não envolveu inovação econômica, nem admitiu a regulação da propriedade.

Além disso, as privatizações do período não apenas foram articuladas pelo Estado, como financiadas pelo mesmo. Neste período, o Estado brasileiro também desempenhou a função de controlador de super empresas, como a Petrobras e Eletrobrás, e financiador de grandes empreendimentos, mediados por empréstimos do BNDES, além de contar com uma nova estrutura do patrimonialismo relacionada à ampliação dos benefícios da corporação jurídica. No âmbito das privatizações, os setores de energéticos, elétricos, de petróleo e quase todos os bancos públicos mantiveram-se sob o controle estatal, de maneira que a privatização tenha alcançado tão somente áreas secundárias da política de desenvolvimento (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 81-87).

Dessa forma, é possível classificar, em conjunto com Marcos Nobre (2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., p. 100), a utilização da ideologia neoliberal de forma pragmática e oportunista por FHC, uma vez que, além dos fatores já mencionados, o governo se valeu de instrumentos incompatíveis com a ortodoxia neoliberal (irresponsabilidade fiscal e socorro a empresas incapazes de competir no mercado internacional). Ao mesmo tempo, utilizava-se do discurso da inevitabilidade do neoliberalismo para sustentar o seu projeto de estabilização como incontornável e, com ele, um projeto econômico-político de desmonte do modelo nacional-desenvolvimentismo (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., p. 69-74). Como resultado, a estrutura de Estado desenvolvimentista se alterou, mas os elementos de patrimonialismo permaneceram vigentes (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 85).

Restou criado, então, aquilo que Avritzer (2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 88-89) nomeia de “jabuticaba brasileira”, caracterizada pelo “patrimonialismo financeiro-liberal”, com destaque para o Banco Central (BC) como cerne da elaboração de políticas liberais, à medida que “o núcleo financeiro que ali se instalou representa uma certa mistura de captura política com representação de interesses do sistema financeiro”, de modo que membros do mercado financeiro exerçam cargos relevantes dentro do Banco Central e posteriormente retornem ao seu local de origem na economia financeira. Com isso, possibilita-se uma visão e atuação estritamente neoliberal do BC (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 88-91)4 4 De acordo com Avritzer (2019, p. 88-91), a ocupação de cargos importantes do Banco Central por membros do mercado financeiro consolidou um conjunto de visões sobre a atuação do BC, as quais envolvem compreender a sua missão como mero controlador da inflação, sem nenhum compromisso com o crescimento econômico; estabelecer compromisso fora da legalidade institucional com o mercado financeiro, expressado principalmente pelas chamadas ‘liquidações extrajudiciais’; e adotar relação pessoalizada e institucional com o mercado. .

Duas transições aconteceram de forma sequencial no Brasil a partir do decaimento do regime militar. Em primeiro lugar, o processo de redemocratização seguiu uma estrutura até então inédita, permitindo ampla participação popular em sua primeira fase e ampliando significativamente a carta de direitos. Como resultado daquilo que Vieira (2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 147-160) denomina de compromisso maximizador5 5 Ver VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. , obtivemos uma constituição de caráter transformador, cujo conteúdo estabelece normas programáticas, objetivos transformativos e a garantia substancial da igualdade6 6 Conferir MAUÉS, Antônio Moreira. Fundamentos do direito à igualdade na aplicação da lei. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 11, n. 1, p. 44-57, 2019. , indicando a aposta em uma democracia substancial, não apenas formal. Na contramão, e imediatamente após a democratização, seguiu-se o rumo a um incipiente neoliberalismo, com a presença de fortes elementos patrimonialistas, os quais, juntos, não estão empenhados na redução das desigualdades, nem em dar efetividade ao caráter transformador do texto constitucional. Ao contrário, se organizam em oposição às apostas de cunho inclusivo e redistributivo, verificando a democracia como mero instrumento à estabilização política - com a alternância de governos sem entraves, via processo eleitoral.

Nesse ambiente, os compromissos democrático-sociais da Constituição de 1988 tornam-se dependentes do direcionamento adotado pelo governo de turno, que poderá encaminhar-se mais ou menos no sentido da concretização dos objetivos constitucionais transformativos. Isto é possível porque a estrutura do Estado brasileiro apresenta tanto elementos patrimoniais e neoliberais, como um embrião de viés social, a demonstrar que a sociedade capitalista do Brasil é heterogênea e desigual, encontrando canais de expressão na estrutura estatal e no sistema político.

Ainda que determinados avanços do ponto de vista da igualdade possam ser constatados durante os governos de esquerda (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., p. 101-104), os acontecimentos políticos posteriores, associados à crise econômico-financeira internacional de impacto na economia brasileira e à sequência de medidas de austeridade implementadas, podem ser indicativas de que não há lugar para democracia na sociedade neoliberal brasileira ou que, de outro modo, este lugar é minimalista e estritamente formal. Para aferição desta hipótese, se faz necessário um balanço sobre os direcionamentos políticos adotados pelos governos mais à esquerda e aqueles com maior inclinação à agenda neoliberal, observando os seus respectivos impactos sobre a (des)igualdade na sociedade brasileira.

3. Do progressismo de esquerda ao avanço bolsonarista: o permanente adiamento da democracia social

Antes de pontuar, especificamente, os direcionamentos implementados pelos governos de diferentes matizes ideológicas acerca da agenda neoliberal, é preciso rememorar que a história brasileira aponta para uma consequência esperada às crises econômicas: mudanças no espectro político. Nos últimos anos, isso foi esboçado por meio das profundas alterações ideológicas que levaram o país de um longo ciclo dominado pela centro-esquerda até um governo de extrema-direita responsável por recusar várias das políticas bem-sucedidas dos seus antecessores.

Lavinas (2020LAVINAS, Lena. Brasil diante da covid-19: é urgente superar a distopia. [Entrevista concedida a] Pablo Stefanoni. Open Democracy, 2020. Disponível em: https://www.opendemocracy.net/pt/brasil-diante-da-covid-19-urgente-superar-a-distopia/. Acesso em 10 jun. 2021.
https://www.opendemocracy.net/pt/brasil-...
, online) explica esse processo sob o viés da leitura econômica ao relatarem como os diversos governos administraram a incidência da lógica da financeirização sobre o sistema de proteção social, o que será verificado nesta seção desde o governo Lula até o governo de Bolsonaro.

Arretche argumenta que a democracia por si só não promove a redução das desigualdades e a concretização da igualdade, vez que esses avanços requerem adoção de políticas públicas, as quais exigem constantes decisões sobre a gestão do gasto público e a gerência sobre a viabilidade e aplicabilidade das políticas. Desse modo, a democracia estabelece um patamar mínimo que precisa ser fomentado e decidido no plano político em prol das políticas sociais, com o objetivo de promover a redução das desigualdades em todos os seus eixos (ARRETCHE, 2015ARRETCHE, Marta. Conclusões. In: ARRETCHE, Marta (Org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: UNESP, 2015., p. 424).

Lula foi eleito, em 2002, por intermédio de uma aliança entre classe trabalhadora urbana e rural sindicalizada, servidores públicos de categorias inferiores, partes dos grupos de trabalhadores informais, burguesia nacional, oligarcas e latifundiários das regiões mais pobres do país. Esses distintos grupos tinham em comum perdas fruto da desindustrialização, das privatizações e das regressões sociais salariais e dos serviços públicos adotadas por FHC, como demonstrado no tópico anterior (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 134-138).

Essa vitória impactou a estabilidade do caminhar neoliberal no país dirigido pela elite financeirizada, pela classe média tradicional e pelos trabalhadores informais, que ganharam com as políticas de abertura econômica. Diante da pressão política e econômica da camada vinculada às diretrizes neoliberais sobre o planejamento do primeiro governo Lula, esse sinalizou sua adesão ao neoliberalismo ao elevar, em 2003, a meta do superávit primário, conforme havia acordado com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de 3,75% do PIB a 4,25%, aumentando para 4,5% em 2004. Além disso, em nada agiu para intervir sobre o aumento gradual das taxas de juros pelo Banco Central, mantendo uma estabilidade política do seu primeiro governo, bem como afirmando um compromisso com as pretensas políticas neoliberais, findando quaisquer tentativas de mudanças sociais radicais no país (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 140-144).

Em contrapartida, e como forma de manter a sua popularidade dentro das camadas mais pobres, Lula expandiu os programas federais de assistência social por meio do Fome Zero - política de distribuição de alimentos - e, mais tarde, pelo Bolsa Família, além da expansão da previdência, da assistência social e da concessão de créditos a grande massa da população (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 143).

O segundo governo Lula foi marcado pelo o que Saad Filho e Morais chamam de “neoliberalismo desenvolvimentista”, que sustentam ganhos no crescimento econômico e no PIB, em investimentos públicos e privados, bem como na promoção da redução da pobreza e da distribuição de renda. Nesse sentido, o PT, envolto a um cenário interno e internacional de estabilidade e crescimento econômico, pôde conciliar os interesses do capital com avanços sociais contundentes (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 150-165).

Os grandes impactos para a redução da desigualdade no país sob o governos Lula foi a promoção do salário mínimo e da seguridade social como mecanismos de universalização e de inclusão para as camadas mais pobres. O salário teve um aumento real de 72% entre 2005 a 2012 e o salto de empregabilidade foi de 150 mil postos, majoritariamente no setor formal, para 500 mil por ano nos governos Lula, promovendo o declínio do desemprego e a estabilidade da política do salário mínimo (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 159-164).

Entre 2003 a 2012 houve crescimento da renda salarial de 4,2% por ano, decorrendo no aumento de 4,6% por ano dos rendimentos familiares per capita. Esse avanço foi ainda mais perceptível nas regiões mais pobres do país, com a porcentagem de 42% de aumento no rendimento no Nordeste em comparação a 16% no Sudeste, o que expandiu o apoio populacional ao governo PT naquelas regiões, proporcionando a universalização de políticas democráticas e de igualdade nas localidades mais marginalizadas (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 159-164; ARRETCHE, 2015ARRETCHE, Marta. Conclusões. In: ARRETCHE, Marta (Org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: UNESP, 2015., p. 430-438).

Esse diagnóstico vai ao encontro da compreensão de Arretche que a junção de políticas como o Programa do Bolsa Família (PBF), Benefício de Prestação Continuada (BPC) e concessões de aposentadorias pelo INSS foram fundamentais para a redução da intensa desigualdade entre os mais pobres e os mais ricos. Isso demonstra que os protegidos pelo salário foram os mais beneficiados com as políticas sociais do PT nos dois governos Lula (2003-2011), refletindo o declínio de 41% para 15% sobre a quantidade da população mais pobre (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 165-168; ARRETCHE, 2015ARRETCHE, Marta. Conclusões. In: ARRETCHE, Marta (Org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: UNESP, 2015., p. 430-438).

Dentro de uma perspectiva de gênero e de raça, houve uma equalização entre negros e mulheres que dependiam do salário mínimo entre 2003 a 2012, em vista do crescimento de 38% da renda feminina em comparação a de 16% da masculina, assim como do crescimento de 40% da dos negros em comparação com a elevação em 20% da dos brancos. Isso demonstra que a população mais pobre é composta majoritariamente por negros e por mulheres e, por isso, a igualdade entre os dependentes do salário mínimo (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 165-168; ARRETCHE, 2015ARRETCHE, Marta. Conclusões. In: ARRETCHE, Marta (Org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: UNESP, 2015., p. 438-442).

Todos esses avanços não são vistos quando se retira a proteção das políticas públicas do salário e da transferência de renda, vez que na medida em que houve a redução da população miserável expandiu-se a população dos novos pobres. Percebe-se, com isso, em que pese os avanços sociais sobre essas camadas, houve também a manutenção de desigualdade, vez que essas políticas não impactaram em efetiva redistribuição de renda, não alterando os ganhos dos mais ricos durante os governos de Lula, preservando a desigualdade de riqueza, bem como manteve os postos de emprego mal remunerados e precarizados, ainda que formais. Assim, as iniciativas dos governos Lula atingiram a população miserável, sem que houvesse mudança da qualidade de vida e na redistribuição, rompendo com a igualdade substancial democrática (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 168).

Lazzarato aponta que a condução dos governos do PT se estruturou, de um lado, pela sua tentativa “desenvolvimentista social” que se estabeleceu, sobretudo, por meio das políticas do salário mínimo e do Bolsa Família. De outro, dirigiu a população ao consumo ao conceder crédito aos mais pobres. Isso estabelece uma ideia muito superficial de progresso social, mas que vai ao encontro dos pressupostos neoliberais, pela formação do sujeito endividado, que recai na população mais pobre, acirrando a desigualdade. Ao contrário de promover redução substancial da pobreza, o crédito propõe a “inclusão pela finança” (LAZZARATO, 2019LAZZARATO, Maurizio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. Tradução: Takashi Wakamatsu e Fernando Scheibe. 1ª ed. São Paulo: Edições, 2019., p. 28-34).

O Partido dos Trabalhadores (PT) fomentou bases sólidas ao neoliberalismo em vista da substituição do programa social e da redistribuição de renda pelo Estado por uma intensa privatização dos serviços de saúde, educação e seguridade, alocando essas atividades ao setor bancário financeirizado. A luta contra a pobreza se deu, ainda que com grandes benefícios aos mais pobres, pelo estímulo ao consumo, promovendo uma falsa inclusão e o acirramento das desigualdades. Nesse sentido, o neoliberalismo foi firmado e cultivado pelo PT, consolidando-se em um espaço já aberto, promovendo uma democratização da finança que assola, sobretudo, as populações mais pobres, promovendo o privado, em detrimento da centralidade democrática e do pública (LAZZARATO, 2019LAZZARATO, Maurizio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. Tradução: Takashi Wakamatsu e Fernando Scheibe. 1ª ed. São Paulo: Edições, 2019., p. 28-34; LAVINAS, 2017LAVINAS, Lena. Na contramão da financeirização: preservar a provisão pública no século XXI. Fundação Oswaldo Cruz, Centro de Estudos Estratégicos, Futuros do Brasil: Textos para debate, Rio de Janeiro, n. 5, p. 1-9, out. 2017., p. 1-9).

Os reflexos disso é que o saldo das políticas públicas implementadas não foi capaz de equalizar as demandas das famílias - especialmente aquelas que ascenderam às chamadas classes médias - por mais bem-estar e segurança socioeconômica. Isso porque, segundo Lavinas (2018LAVINAS, Lena. Há um clamor unânime e geral por renda básica de cidadania universal e incondicional. [Entrevista concedida a] Patrícia Facchin. Instituto Humanitas Unisinos, 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/584990-a-garantia-do-estado-de-bem-estar-social-depende-de-elevar-fortemente-a-produtividade-do-trabalho-entrevista-especial-com-lena-lavinas. Acesso em 10 de jun. 2021.
http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/...
, online), são justamente as políticas sociais de combate à pobreza - como o Bolsa Família - e o microcrédito os principais mecanismos de financeirização da pobreza no mundo, pois o benefício que deveria ser pensado como assistencial, acaba funcionando como garantia de novos e agressivos vínculos com o setor financeiro.

Lavinas (2018LAVINAS, Lena. Há um clamor unânime e geral por renda básica de cidadania universal e incondicional. [Entrevista concedida a] Patrícia Facchin. Instituto Humanitas Unisinos, 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/584990-a-garantia-do-estado-de-bem-estar-social-depende-de-elevar-fortemente-a-produtividade-do-trabalho-entrevista-especial-com-lena-lavinas. Acesso em 10 de jun. 2021.
http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/...
, online) argumenta que o Partido dos Trabalhadores, após sua manutenção no Executivo por quatro eleições consecutivas, negligenciou as classes médias, as quais se ampliaram com a expansão dos empregos de até dois salários mínimos, mas permaneceram vulneráveis diante da impossibilidade de não terem todas as suas demandas atendidas e, principalmente, em virtude da ausência de provisões públicas em saúde e em educação que lhe possibilitariam gozar, efetivamente, da alteração de renda alcançada.

A consequência das políticas sociais aplicadas pelos governos petistas, voltadas à democratização das finanças, foi o processo de endividamento das famílias que precisavam arcar com os custos de se manterem nas classes médias, bem como o esgarçamento social decorrente da manutenção das desigualdades. Ocorreu o que Cohn (2020COHN, Amélia. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Lua Nova, São Paulo, v. 109, p. 129-160, 2020., p. 141) explicou por uma integração dessas classes via políticas distributivas, sem com isso contestar a essência das desigualdades socioeconômicas, por meio das políticas redistributivas dos ativos econômicos.

É preciso, nesse sentido, falar em classes médias no plural, pois se trata de uma classe diversificada e que possui no seu cerne incontáveis gradações de sensibilidade política e social. Essas classes médias se sentiram lesadas e são objeto de estudo do sociólogo Jessé Souza (2018SOUZA, Jessé. A classe média no espelho. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018., p. 95-107), autor que as define como massas que são moldadas pelo medo diante da possibilidade de desclassificação social, haja vista que, no Brasil, a desclassificação representa a marginalização e a perda de direitos. Logo, as classes médias tornam-se redutos do florescimento tanto de ideários de esquerda, como do sindicalismo e anti-imperialismo, quanto das pregações da direita, a exemplo do autoritarismo estatal.

Em muitos sentidos o governo Dilma foi a continuidade dos mandatos de Lula (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013., p. 135). No entanto, ao contrário dos governos do líder operário, que contaram com um ambiente externo favorável, especialmente do ponto de vista econômico, o governo Dilma Rousseff, com programa político mais combativo e à esquerda, não contou com a mesma sorte. Em primeiro lugar porque a presidente se colocou em posição de queda de braço tanto com as elites políticas dominantes (NOBRE, 2013, p. 139), como com o mercado financeiro, ao tentar implementar uma política desenvolvimentista de base industrial e com fortes conflitos com as elites rentistas e o Banco Central (SINGER, 2018SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período de Dilma (2011-2016). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 42-76). Ao lado disso, encontrou dificuldades no mercado internacional, inclusive com a ameaça de uma espiral inflacionária em 2013 (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 169-186), e foi minada por escândalos de corrupção envolvendo alguns de seus principais aliados (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 104-109). Nem mesmo os Programas de Aceleração do Crescimento (PAC) foram capazes de salvar a economia brasileira e o governo Dilma, fazendo com que o mandato da presidente tivesse fim em meio a mais forte crise econômica registrada na história do país (SAAD FILHO; MORAIS, 2018, p. 21-22).

O contexto economicamente caótico colocou em xeque os avanços sociais do PT na redução de desigualdades pelo financiamento de políticas públicas. A partir de 2014, o significativo aumento do déficit público implicou a intensificação dos conflitos distributivos e políticos, gestando uma crise política com escopo nas ruas e no Congresso Nacional. Maués (2020MAUÉS, Antônio Moreira. 30 anos de Constituição, 30 anos de reforma constitucional. Revista Direito GV, v. 16, n. 1, jan./abr. 2020. Disponível em: https://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/30-anos-de-constituicao-30-anos-de-reforma-constitucional. Acesso em 21 mai. 2021.
https://direitosp.fgv.br/publicacoes/rev...
, p. 25) observa que, muito embora o governo Dilma apresentasse propostas para lidar com o déficit público, uma articulação pemedebista já havia se estabelecido no sentido de reduzir drasticamente o gasto público, comprometendo as políticas sociais desenvolvidas nos governos do Partido dos Trabalhadores.

A alternativa da elite política conservadora ligada ao PMDB contou com adesão significativa no Congresso Nacional, o que possibilitou tanto o impeachment de 2016, como a adoção de um novo regime fiscal (Emenda Constitucional nº 95), marcando a ruptura com o compromisso constitucional de viés transformativo, pautado na redução de desigualdade e implementação de direitos sociais pela compatibilização entre política tributária e políticas públicas (MAUÉS, 2020MAUÉS, Antônio Moreira. 30 anos de Constituição, 30 anos de reforma constitucional. Revista Direito GV, v. 16, n. 1, jan./abr. 2020. Disponível em: https://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/artigo/30-anos-de-constituicao-30-anos-de-reforma-constitucional. Acesso em 21 mai. 2021.
https://direitosp.fgv.br/publicacoes/rev...
, p. 25-27).

De modo direto, elementos antidemocráticos se evidenciaram com o golpe parlamentar da presidente eleita7 7 Sobre as características definidoras do golpe parlamentar, conferir: SANTOS, Wanderley Guilherme. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2017. . Isso porque, além do processo contraditório quanto à sua motivação, a substituição da presidente pelo seu vice, Michel Temer, indicou a desvinculação entre eleição e política pública (AVRITZER, 2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 64-65), haja vista que a agenda de governo eleita em 2014 estava alinhada ao gasto público por meio do financiamento de políticas sociais, enquanto o programa levado à cabo por Temer significava o aprofundamento de medidas de austeridade e intensa redução de investimentos públicos sociais.

Dessa forma, à medida em que o lulismo8 8 O cientista político André Singer criou o termo para conceituar um fenômeno político identificado com o espectro ideológico da esquerda, que ganhou notoriedade no final dos anos 2001 e, sobretudo, durante as eleições presidenciais de 2002. O lulismo, assim, pode também ser definido como um modelo político vinculado aos planos de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio dos quais se buscou um modelo de mudança dentro da ordem, isto é, de transformações sem grandes confrontos ao capital. - termo alcunhado por André Singer (2018SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período de Dilma (2011-2016). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.) - se esvaiu enquanto medida de amparo aos mais pobres e marginalizados, a lealdade outrora conquistada em determinados setores, como nas próprias classes médias, também foi mitigada, fazendo com que seus estratos mais ameaçados de proletarização se direcionassem ao voto de protesto e de desespero em prol de um insider que se vendeu, nas eleições de 2018, como outsider da política.

O fim da era do PT, marcado pelo processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, assim como os desmontes daí implementados pelo acirramento da agenda neoliberal, deixaram evidente que não há política social no Brasil que seja capaz, hoje, de prevenir, de forma efetiva, um retorno à pobreza por certas camadas da sociedade.

No entanto, sob a leitura de Cohn (2020COHN, Amélia. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Lua Nova, São Paulo, v. 109, p. 129-160, 2020., p. 143), se até 2016 houve a construção de um arcabouço institucional inspirado, em certo ponto, no modelo de Estado de Bem-Estar Social proveniente do pós-1988, a partir de 2016 observou-se sua desconstrução e, em 2019, a destruição desse arcabouço. A autora atribui a desconstrução e a posterior destruição à radicalidade do projeto neoliberal e à nova ordem que ele representa. Nesse sentido, Fagnani reforça que o arcaico voltou a surgir sem maiores pudores por meio de uma coalizão política, financeira e empresarial, onde “(...) a utopia pode ter eclipsado a realidade, tão cristalinamente clara, de que a democracia e a cidadania social são corpos absolutamente estranhos ao capitalismo brasileiro.” (FAGNANI, 2017FAGNANI, Eduardo. O fim do breve ciclo da cidadania social no Brasil (1988-2015). Campinas: Unicamp, 2017., p. 17).

Entretanto, até 2019, não era ainda, no entendimento de Cohn (2020COHN, Amélia. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Lua Nova, São Paulo, v. 109, p. 129-160, 2020., p. 153), possível falar em uma destruição do dito arcabouço social, haja vista que o discurso que fundamentou as reformas implementadas a partir de 2016 não era abertamente agressivo, mas de suposto enfrentamento do desajuste fiscal, por intermédio da desconstitucionalização dos direitos sociais.

O cenário, em 2019, endurece; a destruição da rede de proteção social torna-se truculenta. Aquele pacto de solidariedade social consagrado na Constituição de 1988 e que vinha sendo modulado às duras penas é rompido por um mandatário que foi eleito para tanto. Vê-se no governo de Jair Bolsonaro os pobres serem mais uma vez - e de forma voraz, sem quaisquer eufemismos - excluídos da agenda pública. Cohn cita algumas dessas políticas reacionárias quando afirma que o Brasil voltou ao mapa da fome; viu o surto de sarampo ressurgir, assim como a sífilis; além de haver a “culpabilização dos pobres por terem ousado começar a ocupar o mesmo espaço dos não pobres, seja em aeroportos, Miami, ou nas universidades.” (COHN, 2020COHN, Amélia. As políticas de abate social no Brasil contemporâneo. Lua Nova, São Paulo, v. 109, p. 129-160, 2020., p. 155).

Os mercados financeiros aparecem como cernes do projeto governamental eleito em 2018, o que possibilita que estes setores passem a ter livre acesso ao controle e definição das pautas econômicas, as quais se voltaram a abarcar também a esfera da política social. Um exemplo clássico são os ataques e ameaças desmedidas do governo à educação superior pública, cuja repercussão foi o aumento significativo e imediato do valor das ações das grandes corporações do setor.

A presidência de Bolsonaro, dessa forma, consagrou-se pela aporofobia, isto é, em ações voltadas a penalizar os mais pobres, as quais ocorreram com as restrições arbitrárias ao Benefício de Prestação Continuada - BPC -; com a diminuição da credibilidade do Programa Bolsa Família, ao direcionar apenas um percentual de 3% das bolsas para o Nordeste em contraste aos 76% para o Sul/Sudeste, sendo que aquela região representa 36% dos pobres e extremamente vulneráveis do Brasil; e, finalmente, com a Reforma da Previdência. Nesse aspecto, é pertinente afirmar que até 2022 o país teve um presidente eleito para um único fim político: o desmonte das políticas públicas e a colateralização da política social.

Com Bolsonaro, a máxima absolutista “Je suis la Loi, Je suis l’État; l’État c’est moi” (Eu sou a lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu!) é ressignificada em atos, mas também em falas do presidente, que assim se autoproclama “Eu sou, realmente, a Constituição”, afronta uma nova era de destruição dos direitos sociais num contexto apenas, formalmente, democrático.

Logo, constata-se que a outrora improvável ascensão de Jair Bolsonaro como mandatário do país e do seu projeto político, com o esfarelamento das políticas públicas sociais até então vindicadas, tornou-se na mais concreta realidade do que Wanderley Guilherme dos Santos (2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no Século XXI. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2017., p. 12) acusou de ter se transformado a democracia brasileira: uma democracia sem pudor de não ser democrática.

Uma vez no poder, o presidente Jair Bolsonaro leva a cabo o que Nobre (2020NOBRE, Marcos. Ponto Final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2020., p. 7-10) denomina de política de guerra e morte, porque entende como “conversa-fiada” a noção segundo a qual a disputa política ocorre em um terreno comum, compartilhado e compartilhável. Ao contrário, sustenta uma política em que somente um lado pode sobreviver e, com isso, impossibilita a convivência democrática. Desse modo, deslocamo-nos da polarização para a guerra, comprometendo a sobrevivência democrática, o que coincide com o objetivo de Bolsonaro de destruir a democracia e, durante a pandemia, custa milhares de vidas (NOBRE, 2020NOBRE, Marcos. Ponto Final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. 1 ed. São Paulo: Todavia, 2020., p. 6-7).

Do progressismo de esquerda ao avanço bolsonarista o traço de neoliberal esteve presente, com maior ou menor acento e estabelecendo-se como contraponto a qualquer ensaio democrático mais substantivo. Embora durante os governos PT uma série de políticas públicas tenham sido implementadas, permitindo a importante redução da extrema pobreza (SINGER, 2018SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período de Dilma (2011-2016). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.; ARRETCHE, 2015ARRETCHE, Marta. Conclusões. In: ARRETCHE, Marta (Org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: UNESP, 2015., p. 423-455) - o que demonstra maior comprometimento com o embrião social-desenvolvimentista da constituição de 1988 -, manteve-se o alinhamento às políticas neoliberais do FMI e Banco Central. No momento que a presidente Dilma Rousseff apresenta uma posição mais combativa tanto em relação à elite política dominante no Congresso Nacional como à política econômica estritamente neoliberal do Banco Central, acaba não conseguindo manter a estabilidade do governo, sofrendo um golpe parlamentar que leva ao poder uma agenda de austeridade empenhada na redução do financiamento de políticas sociais. No quadro de aprofundamento do neoliberalismo, um candidato de direita populista ascende à presidência com discursos contrários às minorias e a qualquer nível de inclusão e redistribuição.

Assim, a vertente neoliberal no Brasil apresenta-se como forte impedimento à implantação de uma democracia substancialmente igualitária, a qual facilmente se articula em situações de crise econômica ou ameaça ao capital financeiro a fim de afastar o perigo, mesmo que isso signifique uma ruptura política e um déficit democrático. Tal cenário indica que o lugar da democracia na sociedade neoliberal brasileira é diminuto e frágil, correspondendo muito mais ao aspecto eleitoral do que ao comprometimento com a redução das desigualdades. E, mesmo no que se refere ao procedimento eleitoral, o resultado das urnas pode encontrar dificuldades quando o governo não se alinha à política neoliberal, como observamos com o impeachment de 2016.

Conclusão

A relação entre capitalismo e democracia apresenta forte tensão, especialmente na era neoliberal. Enquanto o neoliberalismo opera segundo a lógica da justiça de mercado, a democracia exige justiça social para a garantia da igualdade política - elementos estes fortemente combatidos pelo raciocínio do mercado, que observa todo o aparato social como patologia que deve ser eliminada em nome da liberdade do capital. Ainda assim, a grande maioria dos países ocidentais combinam regimes democráticos no plano político com o capitalismo neoliberal no espectro econômico (e seus corolários na construção de uma nova racionalidade política, social, cultural). Diante disso, o presente artigo se propôs a compreender, no contexto da sociedade neoliberal brasileira, qual tem sido o lugar da democracia, isto é, em que medida essa vem sendo tolerada e admitida pelas estruturas neoliberais.

À medida em que o neoliberalismo estende-se para a estrutura estatal, exigindo um Estado forte no sentido da proteção dos interesses do mercado e fraco no que se refere à implementação de justiça social, alcança também caráter subjetivo, fomentando um sujeito empreendedor, individualizado e competidor. No cenário em que o neoliberalismo se torna simultaneamente sistema econômico, político, cultural e social, a democracia ocupa lugar cada vez menor, sofrendo corrosões e sendo chancelada pelo capitalismo neoliberal tão somente no nível do processo eleitoral, sem substantividade na redução e combate das desigualdades.

No Brasil, a introdução do neoliberalismo se deu de forma paulatina e somou-se a outros elementos da estrutura estatal, como o histórico patrimonialismo e o recente social-desenvolvimentismo emergido do processo de redemocratização brasileiro. Com o decaimento do regime militar, dois processos aconteceram sequencialmente: por um lado, a sobrevinda da democracia, com uma constituição de caráter transformador e comprometida com igualdade substantiva; de outro, o momento posterior à democratização foi marcado pelo avanço do neoliberalismo, que se estabeleceu sob o discurso da estabilização econômica. Diante de uma estrutura estatal com tantos vieses contraditórios entre si, os compromissos constitucionais de cunho democrático-social tornam-se significativamente dependentes dos direcionamentos adotados pelo governo de turno, especialmente porque neoliberalismo e patrimonialismo não estão comprometidos com inclusão e redistribuição, ao contrário, são fundamentais para a geração de desigualdades.

Nas últimas duas décadas, o Poder Executivo brasileiro contou tanto com governos alinhados a uma agenda progressista, como de intensa austeridade. Em comum entre todos, contudo, foi a presença de um viés neoliberal, de modo mais ou menos acentuado. Nos governos do PT, constatou-se significativa redução da miséria, o que foi levado a cabo mediante políticas sociais, muito embora a política econômica neoliberal se expressasse na medida em que o governo se mantinha vinculado aos interesses do FMI e do Banco Central. Quando o governo Dilma enfrentou os efeitos da crise financeira internacional e apresentou uma postura mais combativa em relação à dinâmica neoliberal e à elite política dominante no Congresso Nacional, sofreu dificuldades para manter-se no governo, sofrendo um impeachment controverso. Em sequência, a redução de investimentos sociais sofre significativa redução e um candidato publicamente contrário ao aparato social é eleito pela via eleitoral.

Nesse sentido, quando o cenário econômico começou a ser alterado, com o enfraquecimento do boom das commodities e a vivência de uma crise economicamente caótica, passou-se a observar, como uma das consequências, que os avanços em políticas sociais implementados pelos governos petistas - até então tolerados pelos mercados financeiros - foram esvaziados, dando lugar a uma política de desconstrução que só foi efetivamente acolhida mediante o ataque à democracia perpetrado pelo impeachment à presidenta eleita, no ano 2016. O golpe parlamentar, além do saldo negativo de ser antidemocrático e evidenciar que a partir daquela ruptura não haveria mais a segurança de vinculação entre eleições e políticas públicas, inaugurou uma fase de aprofundamento de medidas de austeridade, a qual foi marcada pela desconstrução do arcabouço institucional inspirado, em certo ponto, no modelo de Estado de Bem-Estar Social.

Tal cenário admite o regime democrático apenas sob o ponto de vista eleitoral, mas dificulta de todo modo a manutenção do compromisso com a igualdade substantiva firmado em 1988. Especialmente a partir do impeachment de 2016, a promessa democrática tornou-se apequenada e concedeu lugar à truculência, ao negacionismo, ao obscurantismo, e às políticas de guerra e morte.

A democracia encontra dificuldades de se estabelecer em sua plenitude, devido à constância da racionalidade neoliberal que reinaugura conservadorismos, extremismos e violências, minimizando deliberadamente o combate à justiça social.

Referências

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  • LAZZARATO, Maurizio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. Tradução: Takashi Wakamatsu e Fernando Scheibe. 1ª ed. São Paulo: Edições, 2019.
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  • VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • 1
    Sobre o assunto ver VERBICARO, Loiane Prado. Reflexões Acerca das Contradições entre Democracia e Neoliberalismo. Revista de Direito Público (RDP): Dossiê “Direito ao Desenvolvimento, Estado Neoliberal e Políticas Públicas”. Brasília, v. 18, jan/fev. 2021, pp. 23-51.
  • 2
    A ISI foi o segundo sistema de acumulação que se estabeleceu no Brasil. O primeiro deles foi o crescimento primário-exportador que perdurou de 1822 a 1930. A partir do governo Vargas, nos anos 30, a industrialização por substituição de importações se estabeleceu dentro de um Estado desenvolvimentista, mantendo-se até os anos 1980, quando o Brasil foi cooptado por um novo sistema de acumulação, o neoliberalismo (SAAD FILHO; MORAIS, 2018SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 25).
  • 3
    Segundo o regimento interno, o processo constituinte seria dividido em duas etapas. Na primeira fase, os constituintes eram distribuídos em oito comissões temáticas, sendo cada uma delas subdividida em três subcomissões. O trabalho resultante de cada comissão seria remetido à Comissão de Sistematização, que tinha por função organizar e apresentar o projeto de constituição. A segunda fase consistia na deliberação e votação, em plenário, acerca do projeto apresentado pela comissão de sistematização (VIEIRA, 2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 146).
  • 4
    De acordo com Avritzer (2019AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da democracia. 1. ed. São Paulo: Editora Todavia, 2019., p. 88-91), a ocupação de cargos importantes do Banco Central por membros do mercado financeiro consolidou um conjunto de visões sobre a atuação do BC, as quais envolvem compreender a sua missão como mero controlador da inflação, sem nenhum compromisso com o crescimento econômico; estabelecer compromisso fora da legalidade institucional com o mercado financeiro, expressado principalmente pelas chamadas ‘liquidações extrajudiciais’; e adotar relação pessoalizada e institucional com o mercado.
  • 5
    Ver VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes. São Paulo: Companhia das Letras, 2018VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018..
  • 6
    Conferir MAUÉS, Antônio Moreira. Fundamentos do direito à igualdade na aplicação da lei. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 11, n. 1, p. 44-57, 2019.
  • 7
    Sobre as características definidoras do golpe parlamentar, conferir: SANTOS, Wanderley Guilherme. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2017.
  • 8
    O cientista político André Singer criou o termo para conceituar um fenômeno político identificado com o espectro ideológico da esquerda, que ganhou notoriedade no final dos anos 2001 e, sobretudo, durante as eleições presidenciais de 2002. O lulismo, assim, pode também ser definido como um modelo político vinculado aos planos de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio dos quais se buscou um modelo de mudança dentro da ordem, isto é, de transformações sem grandes confrontos ao capital.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2022
  • Aceito
    29 Jan 2023
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