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Expropriação capitalista, violência jurídica e reprodução social: um diálogo entre a teoria da reprodução social e a teoria da reprodução sócio-jurídica do capitalismo

Capitalist expropriation, legal violence, and social reproduction: A dialogue between the Social Reproduction Theory and the Socio-legal Reproduction of Capitalism Theory

Resumo

A recente Teoria da Reprodução Social (TRS) advinda do Feminismo Marxista recupera a noção de totalidade social marxiana e consequentemente o método dialético que a informa acenando para a necessidade de uma compreensão unitária das relações sociais capitalistas. No entanto, ainda não há na TRS o desenvolvimento específico da crítica das formas sociais Direito e Estado que integram a complexidade do todo social capitalista. Minha hipótese é de que o diálogo entre Teoria da Reprodução Social e a Teoria da reprodução sócio-jurídica do capitalismo de Guilherme Leite Gonçalves pode auxiliar na construção de uma teoria social na qual Direito e Estado, enquanto formas sociais, também sejam inseridos na constituição ontológica das relações sociais de produção. Logo, o objetivo desse artigo é apresentar um diálogo teórico que insere as elaborações de Guilherme Gonçalves na teoria social construída pela TRS, no intuito de contribuir para construção de uma teoria social que tanto apreenda unitariamente as relações sociais quanto compreenda o Direito e o Estado como partes das relações sociais capitalistas.

Palavras-chave:
Teoria da reprodução social; Reprodução sócio-jurídica do capitalismo; Teoria unitária; Expropriação; Violência jurídica

Abstract

The recent Social Reproduction Theory (SRT) from Marxist Feminism recovers the Marxian notion of social totality and consequently the dialectical method that informs it, pointing to the need for a unitary understanding of capitalist social relations. However, SRT has yet to specifically develop a critique of the social forms that make up the complexity of the capitalist social totality. My hypothesis is that the dialogue between the SRT and Guilherme Leite Gonçalves' Theory of the Social-Legal Reproduction of Capitalism can help in the construction of a social theory in which Law and the State, as social forms, are also inserted in the ontological constitution of the social relations of production. Therefore, the aim of this article is to present a theoretical dialogue that inserts the elaborations of Guilherme Gonçalves in the social theory built by SRT, in order to contribute to the construction of a social theory that both apprehends unitarily the social relations and understands Law and State as parts of capitalist social relations.

Keywords:
Social reproduction theory; Socio-legal reproduction of capitalism; Unitary theory; Expropriation; Legal violence

1. Introdução

A Teoria da Reprodução Social (TRS) é um recente projeto teórico coletivo de feministas marxistas que visa resgatar e desenvolver uma construção teórica que teve início no começo dos anos 1980 quando feministas socialistas1 1 Susan Ferguson (1999, p. 4) destaca principalmente as contribuições canadenses de Pat e Hugh Armstrong, Isabella Bakker, Patricia Connelly, Bonnie Fox, David Livingstone, Meg Luxton, Martha MacDonald, Heather Jon Maroney, Wally Seccombe e Dorothy Smith, para o chamado feminismo da reprodução social. E inclui também outras importantes colaboradoras americanas e britânicas como Stephanie Coontz, Lise Vogel, Sheila Rowbotham e Iris Young. A obra de Lise Vogel, Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory [Marxismo e a opressão das mulheres: rumo a uma teoria unitária], de 1983 afasta-se dessas contribuições por sua re-teorização mais completa da crítica de Marx ao capital (FERGUSON, 2020, p. 137). Um dos grandes diferenciais do trabalho de Vogel foi ter tomado como base a obra de maturidade de Karl Marx, O Capital, quando a grande maioria dos trabalhos com fins analíticos de feministas socialistas até então tinham como referência A Ideologia Alemã ou A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado de Friedrich Engels (FERGUSON; MCNALLY, 2017, p. 26). É esse importante salto teórico de Vogel que está sendo atualmente recuperado e desenvolvido - criticamente - pela TRS. defenderam a possibilidade de uma teoria social unitária e materialista tomando como base a noção de reprodução social. A perspectiva da reprodução social surge inicialmente na insistência da necessidade de se compreender como a dinâmica de acumulação de capital continuamente produz, reproduz, transforma e renova relações hierárquicas e opressivas, em oposição a um modelo que entende o capitalismo como um conjunto de leis puramente econômicas (ARRUZZA, 2015ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, jan.-jun./2015., p. 38). Assim, teóricas da reprodução social, que como alerta Bhattacharya (2017BHATTACHARYA, T. Introduction: Mapping Social Reproduction Theory. In: BHATTACHARYA, T. (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 13) não representam de forma alguma uma tradição política ou teórica unificada, geralmente estão preocupadas em explorar um aspecto da reprodução societal capitalista que Marx deixou subteorizada: a produção e a reprodução da força de trabalho.

A coletânea Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression [Teoria da Reprodução Social: Remapeando Classe, Recentrando Opressão], publicada em 2017 e organizada por Tithi Bhattacharya, apresentou as discussões contemporâneas para construção da teoria unitária enquanto uma tentativa de melhor apreensão da categoria de totalidade social em Marx. O termo Teoria da Reprodução Social indica o esforço de desenvolver a teoria do valor de Marx e declara sua inserção dentro da tradição marxista (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, T. Introduction: Mapping Social Reproduction Theory. In: BHATTACHARYA, T. (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 14).

A teoria social de Marx, por constituir-se da crítica da sociedade capitalista, desenvolveu-se pela análise fundante de como se reproduz essa totalidade social, e isso implica apreender o fetichismo das formas sociais necessárias e específicas para a reprodução societal. Assim como a teoria social de Marx, a TRS também irá desenvolver sua análise fundante de como se reproduz a totalidade social capitalista, ou seja, também toma como central a acumulação de capital e a valorização infinita do valor, embora tenha, ao contrário de Marx, se aprofundado na relação constitutiva e contraditória entre a produção de valor e a produção de pessoas.

Um pressuposto para a elaboração de uma teoria social, tal como fez Marx e como se propõe a TRS, é a necessidade de uma compreensão não fragmentária das partes de um todo social. A TRS, ao recuperar a noção de totalidade social marxiana e consequentemente o método dialético que a informa, acena para a necessidade de uma crítica às formas sociais que integram a complexidade do todo social capitalista e são ontologicamente inseparáveis. A preocupação da TRS em retomar o método dialético marxiano e identificar a relação essência-aparência é fundamental para que Direito e Estado também sejam inseridos na constituição ontológica das relações sociais de produção.

Não obstante, por ser uma teoria em formação, ainda não há na TRS o desenvolvimento específico da crítica das formas sociais e seus desdobramentos. Diante disso, assim como Rhaysa Ruas (2020RUAS, R. Economia política feminista e teoria social em Marx: para avançar a crítica unitária das relações sociais capitalistas. In: CUNHA, J. R. (org). Teorias Críticas e Crítica do Direito. Rio de Janeiro: UERJ/Lumen Juris, 2020., p. 35), também entendo que a TRS pode suprimir as lacunas deixadas pelas feministas da reprodução social, oferecendo “uma alternativa com potencial explicativo (e não apenas descritivo) da dinâmica das relações sociais que não evite uma crítica radical às formas sociais”, especialmente ao Direito e ao Estado. Ruas aponta que o caminho para esse projeto pode ser interpretado pela TRS nas recentes teorizações de Guilherme Leite Gonçalves acerca da teoria social em Marx (2020GONÇALVES, G. L. Teoria Social em Marx. In: CUNHA, J. R. (org). Teorias Críticas e Crítica do Direito. Rio de Janeiro: UERJ/Lumen Juris, 2020.), uma vez que Gonçalves desenvolve o significado e as implicações da noção de expropriação e da crítica das formas sociais.

Logo, o objetivo desse artigo é apresentar uma proposta de diálogo entre a TRS e Teoria da reprodução sócio-jurídica do capital de Gonçalves, que tanto apreenda unitariamente as relações sociais capitalistas, quanto compreenda o Direito como parte das relações sociais de produção. Minha hipótese é que é possível inserir a construção teórica de Gonçalves da reprodução sócio-jurídica do capitalismo na teoria social construída pela TRS, compreendendo que ambas dialogam pelo método dialético materialista histórico.

Para tanto, primeiramente buscarei explicar como e por que a TRS oferece uma alternativa que reconstrói a teorização unitária das relações sociais, rejeitando visões fragmentárias que reduzem as relações de opressão à gênero e raça, e relações de exploração à classe. Em seguida, com o fim de compreender como o Direito e o Estado se reproduzem junto ao capital, entrarei no terreno pouco explorado da crítica marxista ao direito, recuperando a clássica crítica à forma jurídica do jurista soviético Evguiéni B. Pachukanis e complementando-a às recentes pesquisas de Guilherme Leite Gonçalves sobre o que ele nomeia de reprodução sócio-jurídica do capitalismo. A partir do questionamento de que modo os pensamentos teóricos de Pachukanis e Gonçalves podem informar uma crítica ao direito e ao estado dentro da TRS, no último capítulo buscarei entender como a esfera da reprodução social na dinâmica de acumulação de capital integra e é determinada pelo que Gonçalves nomeia de reprodução sócio-jurídica do capitalismo.

2. Dialética e Teoria da Reprodução Social: por uma teoria unitária das relações sociais capitalistas

A noção de reprodução social articulada pelo Feminismo Marxista tem um conceito muito específico, que difere da noção marxiana e dos marxismos em geral. Ela faz referência aos processos de produção e manutenção da vida humana, em nível diário e geracional, e designa a forma na qual o trabalho físico, emocional e mental necessário para isso é socialmente organizado, como por exemplo, “preparo da comida, educação dos jovens, cuidado dos idosos e doentes, assim como as questões domésticas e todo caminho até as questões de sexualidade...” (ARRUZZA, 2015ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, jan.-jun./2015., p. 55). Conforme a distinção terminológica sugerida por Johanna Brenner e Barbara Laslett (1989BRENNER, J. e LASLETT, B. Gender and Social Reproduction: Historical Perspectives. Annual Review of Sociology¸ v. 15, 1989, p. 381-404., p. 384 apud ARRUZZA, 2017, p. 40-1), “enquanto a reprodução societal indica a reprodução de um sistema inteiro de relações sociais” no sentido usado por Marx, “a reprodução social refere-se ao domínio mais específico da renovação e da manutenção da vida e das instituições e o trabalho necessário aí envolvido”.

Para compreender a forma como a reprodução social opera dentro de uma determinada formação social é preciso considerar, nos termos de Marx, sua relação intrínseca com a forma pela qual produção e reprodução de sociedades são organizadas em sua totalidade. Destarte, o compromisso da TRS, enquanto uma teoria unitária da reprodução social que recupera a concepção de totalidade social marxiana, é interpretar as relações sociais de gênero, raça ou sexualidade como momentos concretos da totalidade articulada, complexa e contraditória que é o capitalismo contemporâneo. A TRS, portanto, compreende o capitalismo como uma relação social composta por uma totalidade contraditória de relações de exploração, alienação e dominação (ARRUZZA, 2015ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, jan.-jun./2015., p. 38), que não podem ser concebidas como puramente intersecções acidentais e contingentes (ARRUZZA, 2015, p. 56). A TRS nos permite tanto identificar a lógica organizacional destas intersecções quanto considerar a dimensão da práxis humana, afastando qualquer concepção do capitalismo como uma máquina, um deus escondido ou um marionetista, como diz Arruzza (2015ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, jan.-jun./2015., p. 56).

A teoria unitária, contudo, ainda não prevalece nem no marxismo nem no feminismo marxista. A maior parte das explicações teóricas analisam as relações de opressão de modo externo à lógica do capital. A teoria dos sistemas duplos ou triplos, predominante nos feminismos marxistas e implícita em muitas teorias feministas recentes, está normalmente associada à ideia de que relações gênero-sexo, e de raça no caso da teoria dos sistemas triplos, constituiriam sistemas autônomos (patriarcado e racismo) que se interconectariam com as relações de classe do capitalismo, modificando-as e sendo reciprocamente modificados (ARRUZZA, 2015ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, jan.-jun./2015., p. 36-7). 2 2 Para Arruzza, a influência de teorias duplas e triplas presente em diversas teorias feministas se dá pela sua forma explicativa mais imediata e intuitiva, por aquilo que está evidente. Essa interpretação reflete a realidade da forma como ela aparece para nós, ou seja, reflete o modo pelo qual experimentamos as relações de alienação e dominação produzidas e reproduzidas pelo capital. Esse é o modo de experiência determinado pelo capital: a fragmentação da nossa percepção da realidade. Logo, “aqueles que desenvolveram uma consciência da desigualdade de gênero normalmente a experimentam e percebem como determinada por uma lógica que é diferente e separada do capital.” (ARRUZZA, 2015, p. 45). Por isso é tão difícil compreender que o patriarcado é um sistema de opressão que foi incorporado ao capitalismo e não é independente dele, ainda que sua origem remonte a períodos históricos anteriores e ainda que ele possa persistir em uma sociedade pós-capitalista. Só assim é possível pensar como o patriarcado opera na relação entre produção e reprodução da vida, e não como categoria abstrata e trans-histórica de opressão às mulheres. Até porque, pesquisas antropológicas recentes já demonstraram que “não apenas a opressão de gênero nem sempre existiu, como não existiu em várias sociedades sem classe, onde a opressão de gênero foi introduzida pelo colonialismo.” (ARRUZZA, 2015, p. 46) De outro lado, Arruzza destaca uma outra corrente, a tese do capitalismo indiferente, que é predominante entre teóricos marxistas ortodoxos. Em suas diversas versões, ela entende que o capitalismo não necessitaria especificamente da desigualdade de gênero, ou seja, ele é indiferente às relações de gênero. Essa tese estabeleceria a prevalência das relações de classe sobre as de gênero e de raça, que só existiriam como remanescentes de formações sociais e modos de produção anteriores (ARRUZZA, 2015, p. 38).

No entanto, essas teorias duplas, triplas e a outra variação que defende as relações sociais de dominação como sistemas culturais e ideológicos, apesar de suas análises empíricas e descritivas para fenômenos nos quais a conexão entre capitalismo e opressão de gênero está de alguma forma evidente, foram incapazes de dar uma explicação teórica para essa relação estrutural entre sistemas independentes que se interseccionam e as causas dessa intersecção, sem descaracterizá-las enquanto esferas autônomas (ARRUZZA, 2015ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, jan.-jun./2015., p. 44). Ademais, a separação da crítica da opressão de gênero da crítica do capitalismo baseia-se no falso pressuposto de que há “leis econômicas puras”, independentes das relações específicas de dominação e alienação (ARRUZZA, 2015, p. 53). Essas tendências reducionistas e materialistas vulgares dentro do marxismo decorrem da má compreensão do fundamento da crítica da economia marxiana, consequentemente leis econômicas são compreendidas como coisas estáticas e estruturas abstratas, e não como formas de atividade ou relações humanas (ARRUZZA, 2015, p. 54).

Como explica Arruzza (2015ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, jan.-jun./2015., p. 53-4), na crítica marxiana da economia política, uma relação de exploração sempre implica numa relação de dominação e alienação, essas três relações nunca estão verdadeiramente separadas. Marx escreveu que o processo produtivo “produz” o trabalhador na mesma extensão que reproduz a relação de trabalho capitalista, isto é, cada processo produtivo está conectado ao processo disciplinar, que parcialmente constrói o tipo de sujeito que o trabalhador se torna. Isso só pode ser percebido porque todo processo de produção é sempre concreto, ou seja, caracterizado por aspectos que são historicamente e geograficamente determinados. Assim, uma trabalhadora é antes de tudo um corpo que vive e pensa, submetido a formas específicas de disciplina que a remodelam.

Conforme Himani Bannerji (2020BANNERJI, H. Building from Marx: Reflections on “Race”, Gender and Class. In: BANNERJI, H. The Ideological Condition: Selected Essays on History, Race and Gender. Boston: Brill, 2020, p. 5-22., p. 5-22, p. 9), classe precisa ser transformada de um conceito econômico para um conceito social, que implica constitutivamente tanto as relações sociais como as formas de consciência. Sob pena de um reducionismo que acredita que classe pode ignorar raça e gênero, e raça e gênero podem ignorar a classe, porque supostamente classe seria a força criativa fundamental da sociedade. Tal reducionismo é oriundo do prevalente pensamento fragmentado e estratificado que acaba por apagar o social da concepção de ontologia.

Considerando que o processo de realização do capital realmente existente não pode estar fora de uma determinada forma ou modo social e cultural, quer dizer, não havendo capital que seja uma abstração universal, então raça, gênero e patriarcado são inseparáveis da classe, “pois qualquer organização social repousa sobre relações intersubjetivas de corpos e mentes marcadas com diferenças socialmente construídas no terreno da propriedade privada e do capital.” (BANNERJI, 2020BANNERJI, H. Building from Marx: Reflections on “Race”, Gender and Class. In: BANNERJI, H. The Ideological Condition: Selected Essays on History, Race and Gender. Boston: Brill, 2020, p. 5-22., p. 12).

Logo, só é possível entender a formação social como sendo capitalista a partir de um entendimento dialético da determinação. Ao invés de tentar identificar uma causalidade simples ou uma funcionalidade, rejeita-se a noção de que o todo é externo às suas partes e “analisa as maneiras pelas quais aspectos do social (que são, eles mesmos, reciprocamente determinados, ou co-constituídos) relacionam-se no interior de um contexto historicamente dado, com o objetivo de revelar a lógica subjacente que estrutura essas relações” (FERGUSON, 2017FERGUSON, S. Feminismos interseccional e da reprodução social: rumo a uma ontologia integrativa. Cadernos Cemarx, Campinas, n. 10, 2017., p. 22). As relações parciais de classe, gênero, raça e etc., determinam umas às outras, assim como constituem a totalidade social, porém essa última tem uma lógica de reprodução própria, porque exerce pressões reais e coloca limites reais sobre as outras relações, mesmo se não as subsumir completamente. E por isso se diz que ela estrutura ou determina todas as suas relações parciais constituintes (FERGUSON, 2017, p. 22).

Bannerji alerta que essa forma social concreta, para que não seja reificada/fixada, deve ser vista em contraste com um fato ou um objeto. Porque “é uma formação fluida, dinâmica, significativa, criada por sujeitos vivos no tempo e no espaço realmente vividos, mas com características particulares discerníveis que tanto a implicam em outras formações sociais quanto a tornam específica.” (BANNERJI, 2020BANNERJI, H. Building from Marx: Reflections on “Race”, Gender and Class. In: BANNERJI, H. The Ideological Condition: Selected Essays on History, Race and Gender. Boston: Brill, 2020, p. 5-22., p. 13-4). Assim, sua concretude é uma forma determinada de existência social que se concretiza por relações sociais específicas e isso inclui formas de consciência e práticas mediadoras e expressivas, bem como reprodutivas.

Compreendida dialeticamente, relações sociais não são necessariamente funcionais ou redutíveis ao todo, mas nelas reside a lógica reprodutiva essencial para a reprodução societal, que somente se constitui no interior, e através, da história concreta e real. Isso não exclui a necessidade de se reconhecer, entender e explicar a diferença entre as partes constitutivas e sua co-constituição no interior de um processo total (FERGUSON, 2017FERGUSON, S. Feminismos interseccional e da reprodução social: rumo a uma ontologia integrativa. Cadernos Cemarx, Campinas, n. 10, 2017., p. 23). Inclusive, que esses momentos concretos sejam analisados com as ferramentas teóricas adequadas e específicas (da psicanálise à teoria literária...) para suas características particulares (ARRUZZA, 2015ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, jan.-jun./2015., p. 57).

Ao preocupar-se em entender como as categorias de opressão são coproduzidas de forma simultânea à produção de mais-valia, a TRS apropria-se da noção de totalidade social marxiana considerando o capitalismo como um todo orgânico. É a partir da identificação da lógica organizacional da totalidade que a TRS busca compreender como a reprodução social opera em determinada formação social, sem desconsiderar a dimensão da práxis humana. O insight da TRS foi perceber que a totalidade do capitalismo é composta por uma relação entre o trabalho despendido para produzir mercadorias e o trabalho de produzir pessoas. Ou seja, o trabalho humano é entendido nos termos de Marx como a primeira necessidade de toda a história da humanidade, e está no cerne da criação ou reprodução da sociedade como um todo, o que inclui também o trabalho de reprodução social. Logo, a TRS busca desnaturalizar o trabalho reprodutivo e tornar visível uma categoria de trabalho omitida pelos economistas clássicos e negada politicamente pelas instituições (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, T. Introduction: Mapping Social Reproduction Theory. In: BHATTACHARYA, T. (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 2).

3. Dialética e Teoria da Reprodução Sócio-jurídica do Capital: por uma crítica marxista ao Direito e ao Estado

A Crítica Marxista ao Direito desenvolvida eminentemente no Brasil tem recuperado o capitalismo como categoria analítica da sociologia crítica do direito, assumindo o “direito como parte integrante do mundo, isto é, como peça da engrenagem capitalista e de seus mecanismos de reprodução” (GONÇALVES, 2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082., p. 1040). Nesse sentido, a visão marxista do direito do jurista soviético Evguiéni B. Pachukanis é central para compreender a ordem jurídica como forma social própria do capitalismo, e por isso sua obra, A teoria geral do direito e o marxismo, tem sido mobilizada ampla e variadamente por diversos teóricos marxistas do Direito no Brasil, com ganhos teóricos significativos em todas as abordagens.3 3 A abordagem de Pachukanis é a fonte teórica da chamada Teoria da Derivação, para a qual Direito e Estado são formas derivadas da forma mercadoria. Essa também é a teoria mais difundida para explicar a relação entre direito, estado e capitalismo, e pode ser vista em Alysson Leandro Mascaro e Joaquim Hirsch. No entanto, também há outras abordagens que de maneiras diferentes dialogam com Pachukanis, como a althusseriana de Márcio Naves e Celso Nakamoto Kashiura Jr; a luckacsiana de Vitor Sartori e Silvio Almeida; a gramsciana de Moisés Alves Soares; e a leitura de Ricardo Prestes Pazello a partir de Ruy Mauro Marini que dialoga a Crítica Marxista ao Direito e a Teoria Marxista da Dependência. E, por fim, há a abordagem de Guilherme Leite Gonçalves acerca da reprodução sócio-jurídica do capitalismo que une a crítica da forma jurídica articulada por Evguiéni B. Pachukanis, à teoria marxista da acumulação primitiva permanente e à teoria da expropriação capitalista do espaço. E é com ela que dialogo neste artigo.

Pachukanis tem o mérito de originalmente desenvolver a crítica ao direito através do método da crítica da economia política de Marx. Essa é a singularidade da crítica à forma jurídica pachukaniana: o uso do método de Marx e da inspiração obtida dO Capital para compreender como determinadas relações sociais acabam recebendo a forma jurídica. Não à toa, o primeiro capítulo da sua obra é intitulado Métodos de construção do concreto nas ciências abstratas, no qual Pachukanis explica o método dialético marxiano d’O Capital.

Para Moisés Alves Soares e Regina Teresa Pinheiro da Silva (2020SOARES, M. A.; SILVA, R. T. P. Elementos de uma aproximação ontológica do direito em Pachukanis. Monumenta Revista de Estudos Interdisciplinares. Joinville, v. 1, n. 1, jan./jun. 2020, p. 145-167., p. 146-7), “Pachukanis inaugura uma tradição marxista de captura do movimento contraditório e desigual de desenvolvimento da forma jurídica”. Sua preocupação com o método o aproxima de uma compreensão ontológica crítica da totalidade social, em que as abstrações de categorias e conceitos jurídicos são tomados em sua materialidade e historicidade, que como bem colocam Soares e Silva, “abandona qualquer pretensão transcendental de deduzir a priori as categorias do real”. A aproximação ontológica do direito em Pachukanis está na sua recusa de eternizar a relação jurídica como forma de mediação social existente em todos os modos de sociabilidade humana (SOARES; SILVA, 2020SOARES, M. A.; SILVA, R. T. P. Elementos de uma aproximação ontológica do direito em Pachukanis. Monumenta Revista de Estudos Interdisciplinares. Joinville, v. 1, n. 1, jan./jun. 2020, p. 145-167., p. 165).

Assim, de acordo com Pachukanis, a forma jurídica é determinada pelas condições históricas e sua essência só pode estar expressa nas abstrações fundamentais, tal como faz Marx na crítica à economia política ao partir de unidades como mercadoria e valor. Desse modo, Pachukanis encontra o concreto do direito nos próprios conceitos jurídicos abstratos, isto é, ele não abre mão das generalizações e abstrações dos conceitos de “norma jurídica”, “relação jurídica” e “sujeito de direito”. Ele defende que é expondo a análise dessas categorias abstratas que se revela seu verdadeiro significado, uma vez que elas “conservam seu significado qualquer que seja a alteração nesse conteúdo material concreto” (PACHUKANIS, 2017aPACHUKANIS, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017a., p. 67). Nesse sentido dialético, as abstrações por meio da qual a forma do direito expressa-se é produto da forma jurídica real ou concreta, uma mediação real das relações de produção (PACHUKANIS, 2017b, p. 64).

A materialidade e a historicidade da dialética marxiana permitem que Pachukanis insira o direito nas condições históricas de produção da vida, ou seja, ele não é criado no mundo das ideias, mas está condicionado à realidade social. Nesse sentido, Pachukanis demonstra como o desenvolvimento dialético do processo histórico traz em si não apenas as modificações no conteúdo das normas jurídicas e das instituições, mas também o próprio desenvolvimento da forma jurídica, que somente atinge seu desenvolvimento completo na sociedade burguesa capitalista.

A preocupação de Pachukanis (2017aPACHUKANIS, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017a., p. 72) com a forma jurídica rompe com a ideia de que o direito seja a regulamentação jurídica inerente a alguma época, visto apenas a partir do seu conteúdo, enquanto a sua forma não é sequer considerada. Essa crítica é importante para que o direito não seja compreendido como instituição neutra, fruto de um alegado desenvolvimento humano, mas que eventualmente seria instrumentalizada de maneira externa pelas classes dominantes e seus interesses. Pela leitura de Pachukanis fica claro que as análises marxistas precisam interpretar a própria regulamentação jurídica como uma forma histórica determinada, ao invés da forma do direito e suas instituições serem tomadas como equivalentes e permanentes, desde o passado até o futuro. Esse tipo de formulação, como explica Pachukanis, é incapaz de abarcar o conceito de direito em seu movimento real e imerso na totalidade de conexões e interrelações, apresentando “um lugar-comum sobre a “regulamentação autoritária externa”, que, todavia, serve bem para qualquer época e estágio do desenvolvimento da sociedade humana.” (PACHUKANIS, 2017aPACHUKANIS, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017a., p. 74).

Foi com a sociedade mercantil que as trocas passaram a exigir uma operação jurídica e uma presunção jurídica de igualdade e universalidade para um acordo de vontades equivalentes. Assim, a igualdade passa a existir e a ser buscada apenas em termos jurídicos. Como explica Gonçalves (2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082., p. 1042), o modelo pachukaniano sustenta que a livre troca de mercadorias e a venda da força de trabalho só pode ocorrer em uma relação de vontades, daí a condição fundamental para a troca de equivalentes é a produção de uma vontade livre, que é estabelecida pela forma jurídica. A constituição da subjetividade jurídica é fator inerente ao processo de alienação junto com os princípios da liberdade e igualdade, constitutivos do chamado Estado de Direito. Em suma, o sujeito de direito permite que o ser humano se constitua como sujeito e objeto de trocas no mercado, para isso ele precisa ser livre para dispor de si mesmo como mercadoria e estar em igualdade formal para completar o acordo entre vontades iguais (contrato).

Tudo isso se conforma no plano abstrato, enquanto relações fetichizadas e reificadas do capital, mas na realidade material o que ocorre é a imposição de interesses privados e desigualdades por meio de discursos e instituições jurídico-democráticas. São essas formas sociais “que possibilitam o desenvolvimento do capitalismo e seus mecanismos de exploração, sem que seja necessário aplicar meios de violência direta e não econômica. Aqui, operam-se as relações fetichizadas e reificadas do capital.” (GONÇALVES, 2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082., p. 1043).

A abstração do direito torna possível a coesão social, uma vez que ela oculta e aliena a racionalidade das relações de produção e a estrutura de desigualdade do capitalismo. “O direito estabelece um plano de indiferença à diferença, isto é, iguala, na abstração, a desigualdade.” (GONÇALVES, 2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082., p. 1044). Logo, o fetichismo da forma jurídica completa o fetichismo da mercadoria, como afirmou Pachukanis, uma vez que estabelece a ficção de simetria contratual entre dois proprietários, o dos meios de produção e da força de trabalho, mascarando as relações assimétricas de poder entre quem é capitalista e quem é classe trabalhadora - como se as normas jurídicas não tivessem nenhuma relação com os fatos que produzem as desigualdades (GONÇALVES, 2017, p. 1044).

Nesse sentido, Gonçalves destaca que a crítica à forma jurídica é reveladora dessa contradição primária, fundamental na estabilização e normalização do modo de produção capitalista, e “permite pensar o direito no interior do ciclo em que dinheiro é transformado em capital, por meio do capital se faz mais-valia e por meio da mais-valia se faz mais capital. Mas o capitalismo se resume a esse ciclo?” (GONÇALVES, 2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082., p. 1047).

A teoria de Pachukanis, ao focar na fetichização da forma jurídica que completa o ciclo de transformação da mais valia e, portanto, da exploração humana, não inclui o fato de que, além de ser explorada, a classe trabalhadora é reproduzida. É preciso situar a desigualdade nas condições pelas quais as pessoas são socialmente reproduzidas no plano da violência institucional explícita. O capitalismo convive muito bem com desigualdades formais plenamente legalizadas, como os regimes de apartheid, ditaduras, guerras, colonialismo e as prisões. Portanto, existem violências institucionais no modo de produção capitalista que não estão fetichizadas na forma jurídica ou na forma estado. Nesses casos, ao invés de serem mistificadas elas são justificadas.

No desenvolvimento das suas recentes pesquisas acerca da possibilidade de se conhecer a reprodução sócio-jurídica do capitalismo, Guilherme Gonçalves tem procurado demonstrar que, além do momento da acumulação de capital em que o direito aparece como forma social fetichizada, tal como explicada pela crítica à forma jurídica pachukaniana, no momento expansionista do capital o direito institui uma violência jurídica explícita e uma prescrição expressa da desigualdade social.

Nesse sentido, Gonçalves utiliza o teorema da expropriação capitalista do espaço de Klaus Dörre para compreender a estrutura e o papel do direito no contexto dos processos de expropriação. Assumindo que a teoria da forma jurídica de Pachukanis capta a dinâmica capitalista no âmbito da troca (institucionalizada) de equivalentes e da exploração do trabalho assalariado, Gonçalves entende que ela necessita ser combinada com a estrutura do direito em situações de tomada violenta do espaço, de modo a construir um modelo de análise mais abrangente da totalidade do desenvolvimento sócio-jurídico do capitalismo (GONÇALVES, 2019GONÇALVES, G. L. Forma e Violência Jurídica na Acumulação Capitalista: sobre relações de troca e expropriação. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, V.10, N.4, 2019, p. 2858-2878., p. 2862).

Segundo Gonçalves, para uma análise do direito, a contribuição de Dörre é importante pois “enfatiza o papel da intervenção e da regulação estatal no desenvolvimento do capitalismo e confere um carácter macrossociológico à definição de acumulação primitiva.” (GONÇALVES, 2019GONÇALVES, G. L. Forma e Violência Jurídica na Acumulação Capitalista: sobre relações de troca e expropriação. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, V.10, N.4, 2019, p. 2858-2878., p. 2871). A expropriação dos espaços não-capitalistas ocorre por meio de intervenções estatais, regulações, violências diretas, físicas e simbólicas, por isso o papel do direito como violência jurídica é fundamental nesse estágio expropriador da acumulação capitalista (GONÇALVES, 2017, p. 1052-3). Nesse momento o direito não funciona como uma forma social fetichizada que oculta a apropriação do tempo de trabalho não pago, e por isso não pode ser explicado nos termos da tese pachukaniana de complementariedade de forma mercadoria e forma jurídica. “Nessa manifestação do direito, não há igualdade e liberdade abstratas, não há fetichismo, alienação ou distanciamento do mundo, mas reconhecimento jurídico explícito da assimetria e da desigualdade” (GONÇALVES, 2017, p. 1054).

Ao destacar a violência explícita com que o direito pode atuar para além do momento de troca de equivalentes, é possível ver a influência da concepção de Estado de Lênin na teoria da reprodução sócio-jurídica de Gonçalves. Em Estado e Revolução, Lênin (2017LÊNIN, V. I. O Estado e a Revolução: Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução. Tradução Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017 [1917]. [1917]) resgata a análise de Engels (2019ENGELS, F. A Origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2019 [1820-1895]. [1820-1895]) sobre o Estado em A origem da família, da propriedade privada e do Estado e aponta como o surgimento do Estado é o resultado inevitável do caráter inconciliável das contradições de classe. Segundo Lênin, os antagonismos chegam a um nível que a existência entre classes com interesses antagônicos precisa de um poder acima delas para supostamente as manter dentro da “ordem”. Todavia, ao contrário de Engels e da Teoria da Derivação do Estado que compreende a forma Estado como mecanismo de coesão abstrata da sociedade desigual e como forma social fetichizada que torna possível na abstração a coexistência social, Lênin analisa o Estado pelo seu conteúdo definido por classes e interesses opostos e profundamente contraditórios. Consequentemente, “sua concepção de Estado não surge da elaboração de uma relação de contradição entre essência (a relação desigual entre capitalista e trabalhador) e aparência (a troca entre equivalentes)” (DEMIER; GONÇALVES, 2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082., p. 2356). Lênin (2017) compreende o Estado enquanto aparelho de violência especializado da classe dominante que, detendo o domínio político por meio da violência, encontra novas formas de explorar e oprimir a classe subalterna.

Destarte, ainda que Lênin e a Teoria da Derivação do Estado partam do “mesmo diagnóstico sobre o advento da sociedade capitalista, que, para ambos, importa na redefinição das desigualdades estamentais então existentes” (DEMIER; GONÇALVES, 2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082., p. 2358), é na teoria de Lênin que a violência do estado é vista como a própria exteriorização do poder privado da classe dominante. Não há, mesmo na abstração, diferenciação entre Estado e poder privado da classe dominante. Nessa exteriorização de si mesmo, o poder estatal internaliza o antagonismo inconciliável das classes e se reveste da dominação oficial de Estado. Embora não seja para ocultar a desigualdade que se reproduz na essência das relações capitalistas, pois “A neutralização da colisão entre as classes significa aqui claramente manutenção do conteúdo da desigualdade e da contradição entre as classes no próprio Estado.” (DEMIER; GONÇALVES, 2017, p. 2362). Para Lênin (2017, p. 43), o poder designado como Estado é uma organização especial e diferenciada de uso da violência, tanto física quanto simbólica, justamente porque “As classes espoliadoras precisam do domínio político nos interesses da manutenção da espoliação” (LÊNIN, 2017LÊNIN, V. I. O Estado e a Revolução: Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução. Tradução Paula Vaz de Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017 [1917]., p. 44; DEMIER; GONÇALVES, 2017, p. 2361).

Desse modo, a expansão capitalista só é possível por meio da intervenção e regulamentação do Estado, na qual a violência física e simbólica explícita do ato expropriador é legitimada. Nesse caráter não fetichizado do Direito e do Estado se dá a elaboração de leis, institutos e regulamentações jurídicas que prescrevem explicitamente o conteúdo da desigualdade entre as classes (GONÇALVES, 2019GONÇALVES, G. L. Forma e Violência Jurídica na Acumulação Capitalista: sobre relações de troca e expropriação. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, V.10, N.4, 2019, p. 2858-2878., p. 2872). Assim, a teoria da reprodução sócio-jurídica do capitalismo de Gonçalves, por partir da noção da totalidade social, é capaz de diferenciar os momentos em que o direito é tanto uma forma fetichizada que encobre as relações de desigualdade material (no momento da troca de equivalentes) quanto uma forma de violência expressa que legitima a desigualdade (na expropriação capitalista), demonstrando que ambas as formas são momentos da acumulação capitalista.

No entanto, a reprodução social segue ausente nesse debate, perdendo-se mais uma vez a dimensão relacional entre produção e reprodução social na dinâmica de acumulação do capital, e de como as opressões têm lugar na manutenção do processo de produção de mais valia. Afinal, as relações de desigualdades decorrentes das opressões de gênero e raça são legitimadas pelo direito e pelo estado. É preciso relacionar essas violências jurídicas usadas pelo Estado com o controle da reprodução social da classe trabalhadora e buscar entender isso dentro do momento expansionista do capital.

4. O lugar da reprodução social na expropriação capitalista: uma proposta de compreensão da violência jurídica na esfera da reprodução social

As condições que permitiram o surgimento do modo de produção capitalista, e, consequentemente, a produção de valor por meio da exploração do trabalho assalariado, foram dadas por meio de um processo histórico de expropriação, violência e roubo “gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo” (MARX, 2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 787). Marx (2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 786) revela que “o processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho”. Esse movimento histórico, denominado por Marx como “a assim chamada acumulação primitiva”, resultou na liberdade em duplo sentido para os trabalhadores, uma vez que ao ser separado das condições da realização do trabalho, eles não têm outra escolha a não ser se converterem em “vendedores de si mesmos” (MARX, 2017, p. 787).

Contudo, ainda que Marx tenha entendido a acumulação primitiva como um momento histórico em que ocorreu a violenta expropriação camponesa, a expropriação capitalista para Marx não é, como muitas vezes assumido, uma fase histórica pontual de violência aberta que ao fim gerou a “normalização” da coação econômica sobre os trabalhadores “livres”. Em diversas passagens dO Capital, Marx reafirma a necessidade de sucessivas expropriações como pressuposto para expansão das relações sociais capitalistas, uma vez que o capital, como um fim em si mesmo, deve ser sempre valorizado para continuar a existir (GONÇALVES, 2019GONÇALVES, G. L. Forma e Violência Jurídica na Acumulação Capitalista: sobre relações de troca e expropriação. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, V.10, N.4, 2019, p. 2858-2878., p. 2869; FONTES, 2010FONTES, V. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. 2. ed. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010., p. 63). No próprio capítulo 24 sobre “A assim chamada acumulação primitiva”, Marx explica que “a relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho”, mas “Tão logo a produção capitalista esteja de pé, não apenas conserva essa separação, mas a reproduz em escala cada vez maior.” (MARX, 2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 786).

Conforme a interpretação de Virgínia Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. 2. ed. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010., p. 45),

a condição social para a extração do mais-valor não pode se limitar a um momento prévio ou anterior ao pleno domínio do capital, embora seja correto dizer que a plena expansão do mercado pressuponha populações extensamente expropriadas. As expropriações constituem um processo permanente, condição da constituição e expansão da base social capitalista e que, longe de se estabilizar, aprofunda-se e generaliza-se com a expansão capitalista.

Nesse sentido, além da troca estabilizada de equivalentes, incluindo a compra e venda da mercadoria especial força de trabalho, há uma dinâmica de expansão do capital, sob a forma de expropriação de relações sociais - seja espaços, bens ou grupos ainda não mercantilizados -, necessária para assegurar a própria troca de mercadorias. Esses dois momentos são explicados por Rosa Luxemburgo como sendo os dois lados da acumulação do capital, no sentido de que eles estão ligados estruturalmente integrando necessária e dialeticamente a dinâmica de acumulação. 4 4 Um dos desdobramentos teóricos mais conhecidos dessa perspectiva, sem dúvidas, é a acumulação por despossessão (ou espoliação, a depender da tradução) de David Harvey (2005), que atualiza o pensamento de Rosa Luxemburgo (1984) para teorizar sobre um novo imperialismo em curso na fase neoliberal do capitalismo. No Brasil, Virgínia Fontes (2010) também deu sua contribuição a essa perspectiva, denominando-a de expropriação primária e secundária. Não entrarei nas especificidades e diferenças (substanciais) dessas teorias aqui, pois demandaria abordar diversos debates controvertidos marxistas que não considero necessários ao desenvolvimento desse artigo. No entanto, destaco que a própria Fontes realiza esse debate teórico no primeiro capítulo do seu livro acima referenciado. Assim, conforme esclarece Gonçalves (2019GONÇALVES, G. L. Forma e Violência Jurídica na Acumulação Capitalista: sobre relações de troca e expropriação. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, V.10, N.4, 2019, p. 2858-2878., p. 2868), “enquanto o princípio da equivalência é um elemento constitutivo da lei do valor, o princípio da expropriação repete o movimento da acumulação primitiva”.

A tendência à valorização infinita do capital eventualmente encontra barreiras nas condições sociais de realização do valor criado. Isto é, quando esse processo atinge um determinado volume de grandeza ele se depara “com a viabilidade de se vender o que se produziu e de utilizar o potencial produtivo que se gerou” (GONÇALVES, 2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082., p. 1047), não conseguindo mais realizar o valor aumentado e gerando uma sobreacumulação que diminui a rentabilidade. É esse momento de crise de sobreacumulação que provoca uma nova dinâmica na acumulação capitalista: sua expansão para outro espaço, com novas condições sociais que tanto permitem que o excedente flua como abrem um novo ciclo de valorização.

A expropriação é, portanto, uma condição permanente para a troca de equivalentes, que por meio da mercantilização de espaços ainda não mercantilizados estabelece as condições necessárias para a respectiva troca. Esse é ponto de partida de Klaus Dörre (2015DÖRRE, K. A Nova Landnahme. Dinâmicas e limites do capitalismo financeiro. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 06, N.12, 2015, p. 536-603.): a compreensão de que o desenvolvimento do capitalismo é um processo permanente de superação dos próprios limites para a acumulação. No teorema da expropriação capitalista do espaço - Landnahme - de Dörre os espaços não-capitalistas não abrangem apenas territórios ou modos de produção já existentes, mas também novos recursos, matérias-primas e mercados de trabalho, ou seja, o capitalismo produz espaços não-capitalistas, por inovações tecnológicas e mudanças sociais, que ele posteriormente expropriará. Isso permite que a dinâmica de expropriação no capitalismo seja infinita, ou do contrário o fenômeno de expansão do capital seria irreversível e tenderia a um fim (GONÇALVES, 2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082., p. 1052).

Em um artigo mais recente publicado em abril de 2021, Gonçalves (2021GONÇALVES, G. L. Primitive Accumulation and the Critique of Law. Global Dialogue, v. 11, issue 1, April 2021, p. 56-57., p. 57) afirma que

Por outro lado, o uso permanente da acumulação primitiva demonstra que o desenvolvimento do capitalismo está ligado não apenas ao modelo de exploração encontrado no chamado princípio de troca equivalente, mas também a uma exploração secundária que permite a acumulação por meio da discriminação racista, o trabalho não remunerado das mulheres e a superexploração de uma força de trabalho migrante. Evidentemente, é preciso indagar quais os modos legais (em legislação social, ações policiais, etc.) que permitem essa exploração secundária.

Até então, nos dois principais artigos em que Gonçalves discorre sobre sua tese (2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082.; 2019), ele ainda não tinha nomeado expressamente essa possibilidade interpretativa do que ele chama de exploração secundária, na qual estaria abarcado o racismo, a superexploração da força de trabalho migrante e o trabalho não pago realizado por mulheres, o que demonstra uma extensão da sua pesquisa e uma maior aproximação com relações de gênero, raça e territorialidade. Nesse caso, o que ele chama de exploração secundária, dando a entender uma compreensão dualista entre capitalismo e relações de opressão, na verdade, é a reprodução social diferenciada da força de trabalho, que como bem demonstra a TRS é parte constitutiva da dinâmica da acumulação de capital ao lado da esfera da produção de mais valia.

A tese de Gonçalves pode encontrar um potencial explicativo unitário se interpretado a partir da TRS. Um pressuposto central exposto pela TRS e que aqui eu incorporo na teoria da reprodução sócio-jurídica do capital, é que apesar do capital necessitar da força de trabalho, essa mercadoria especial não é produzida dentro do circuito de produção de mercadorias do capitalismo. Consequentemente, para diminuir os custos com o trabalho de produção diária e geracional da força de trabalho, o capital exerce pressões sistêmicas com o fim de degradar e desvalorizar o trabalho de reprodução social e, dessa forma, diminuir seus custos com ele. Essa dinâmica sistêmica explica a dependência do capital das relações de opressão e demonstra que a expropriação, enquanto princípio básico que permite a continuidade do modo de produção capitalista, também determina e é determinada pelas relações de gênero, raça e colonialismo.

Por mais que a TRS do feminismo marxista alie-se a maior parte das teorias marxistas na compreensão de que nas sociedades capitalistas a exploração ocorre pela apropriação de mais-valia ocultada na forma de trabalho assalariado, por outro lado ela destaca que essa relação de exploração depende da reprodução diária e geracional da força de trabalho. O trabalho de reprodução que ocorre fora da esfera de produção capitalista não corresponde ao salário, mas é responsável por sua determinação por meio das formas diferenciadas e hierarquizadas (sustentadas pelas relações de raça, gênero e territorialidade) pelas quais a força de trabalho é produzida (RUAS, 2020RUAS, R. Economia política feminista e teoria social em Marx: para avançar a crítica unitária das relações sociais capitalistas. In: CUNHA, J. R. (org). Teorias Críticas e Crítica do Direito. Rio de Janeiro: UERJ/Lumen Juris, 2020., p. 32; VOGEL, 2013VOGEL, L (1983). Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory. Boston: Brill, 2013., p. 159).

Conforme Ferguson (2020FERGUSON, S. Women and Work: Feminism, Labour, and Social Reproduction. London: Pluto Press, 2020., p. 136), o capitalismo realmente existente, em oposição a um modelo teórico abstrato imaginário, desenvolveu-se por meio de uma relação de dependência com as estruturas de opressões sociais que dividem e subjugam os corpos de acordo com raça, gênero, sexualidade, entre outras. Uma maneira de se pensar isso, segundo Ferguson (2020, p. 141-142), é considerar que, os capitalistas compram a capacidade de produzir valor de uso (labour power), não o trabalho, nem o trabalhador, porém essa capacidade (labour power) vem com um corpo ligado a ela, e precisamente por isso os corpos importam para o capital. A tendência capitalista de reduzir a vida à força de trabalho molda e é moldada pelas relações de opressão e pelas resistências que elas produzem na organização da vida, constantemente articuladas, mas não de forma obrigatória, à necessidade do capital por trabalhadores socialmente diferenciados entre força de trabalho paga e não paga. Isso possibilita enxergar não apenas a dimensão de gênero do trabalho de reprodução social, mas a multiplicidade e complexidade das opressões sociais que delineiam os diferentes processos de reprodução de trabalhadores para além dos lares privados (FERGUSON, 2020FERGUSON, S. Women and Work: Feminism, Labour, and Social Reproduction. London: Pluto Press, 2020., p. 142).

Produção e reprodução da força de trabalho é uma condição essencial que possibilita que o capitalismo se reproduza, mas essa dinâmica não tem que ser realizada no interior do lar. Orfanatos públicos ou privados, por exemplo, também assumem o trabalho de reprodução cotidiana da força de trabalho. Além de diversas outras formas de trabalho e de reprodução social que o capital pode explorar que garantem a renovação da força de trabalho, a exemplo dos campos de trabalho forçado, escravidão, migração e prisões. Porém a existência de pressões sobre a família para estar em conformidade com a desigualdade de normas de gênero é explicada no fato de que a reprodução social da força de trabalho é um assunto predominantemente privado, doméstico, realizado de acordo com o fato biofísico de que a procriação e a amamentação requerem corpos sexuados-femininos (FERGUSON; MCNALLY, 2017FERGUSON, S. Feminismos interseccional e da reprodução social: rumo a uma ontologia integrativa. Cadernos Cemarx, Campinas, n. 10, 2017., p. 35-6-7). Quando se entende a lógica da acumulação de capital e suas necessidades fica explicado “porque uma instituição altamente efetiva - o âmbito doméstico privatizado - é alardeada e reforçada (através de uma legislação machista, sistemas educacionais, práticas de seguridade social, por exemplo), e, desse modo, enraizada nas sociedades capitalistas.” (FERGUSON, 2017, p. 25). É essa fundação sócio-material histórica que induz o capital, por meio do Estado e seus mecanismos institucionais, a regular a reprodução biológica, as formas de família, a criação de crianças e a manter uma ordem de gênero de dominância masculina, exercendo dessa forma algum controle sobre a esfera da reprodução social.

Afinal, a maior parte do trabalho de reprodução social é realizado fora do controle direto do capital. O trabalho de produção de valor está sob um maior domínio do capitalismo devido seu controle direto por ele. Já o trabalho de reprodução social remunerado que acontece no setor privado, como de professoras e enfermeiras, geralmente lida mais diretamente com a dominação capitalista do que o trabalho de reprodução social de enfermeiras e professoras no setor público. Mas o trabalho de reprodução social não remunerado é suficientemente externo ao capital para ser altamente flexível, sendo mais fácil ignorar ou resistir à disciplina do mercado. No entanto, como esse trabalho é necessário para a realização de mais-valia e porque é realizado de forma esmagadora por aqueles que já estão despossuídos pelo capital, ele nunca está simplesmente fora dos processos e da disciplina capitalista, ele está sempre determinado pelo ritmo da produção de valor (FERGUSON, 2020FERGUSON, S. Women and Work: Feminism, Labour, and Social Reproduction. London: Pluto Press, 2020., p. 154). E, justamente porque a subsunção desses trabalhos ao capital não é completa, o capitalismo precisa se valer também de violências jurídicas articuladas pelas suas instituições (e formas sociais como o Estado e o Direito).

Como aponta Gonçalves (2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082., p. 1049), para compreender o direito em uma situação de repressão institucional explícita é preciso inserir sua atuação no movimento de reação capitalista a mecanismos bloqueadores da acumulação. A acumulação capitalista precisa criar as condições para sua expansão nos momentos de crise de sobreacumulação, conforme explanado anteriormente, e para isso repete permanentemente a expropriação de relações sociais para serem mercantilizadas, inclusive as relações de reprodução social. Em determinados momentos históricos o capital irá precisar reforçar o papel das mulheres no âmbito doméstico, e em outros incentivar a participação delas no trabalho remunerado. As transformações desses processos de reprodução social estão relacionadas a tentativa do capital de estabilizar a relação necessária e contraditória entre produção e reprodução social. Para isso, reformas legislativas, regulamentações e instituições são criadas para prescrever explicitamente a desigualdade do ato expropriador.

Durante a Revolução Industrial do século XIX, por exemplo, mulheres, pessoas idosas e crianças trabalhavam em longas jornadas de trabalho e em situações precárias e insalubres nas fábricas, já que nos períodos iniciais da industrialização o capital necessitava de muita força de trabalho. Consequentemente, não havia condições para que essa força de trabalho fosse regenerada. O resultado foi uma crise da reprodução social entre pessoas pobres e as classes trabalhadoras exploradas até o limite da sua capacidade de sustento e renovação, bem como uma crise entre as classes médias que propagaram um pânico moral pela “destruição da família” e a “dessexualização” das mulheres proletárias (FRASER, 2017FRASER, N. Crisis of care? On the social-reproductive contradictions of contemporary capitalism. In: BHATTACHARYA, T. (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 23). Surgiram assim, no centro da Europa, diversas leis regulando a família e o trabalho feminino e infantil nas fábricas. Essas legislações conseguiram estabilizar a reprodução social no século XIX, criando a família moderna em sua forma estrita, inventando novas dimensões de diferenças de gênero e dominação masculina. Vosko (2010VOSKO, L. F. Managing the margins: gender, citizenship and the international regulation of precarious employment. Oxford: Oxford University Press, 2010., p. 28) aponta como essas legislações de proteção ao trabalho das mulheres eram acompanhadas de justificativas para que as mulheres cumprissem seus deveres maternos e suas obrigações domésticas, de uma “preservação da nação”, além de uma suposta inaptidão física e mental das mulheres em certos tipos de trabalhos. Por outro lado, essas leis não se aplicavam em ocupações consideradas aceitáveis para mulheres, seja por se realizarem na esfera doméstica, como empregadas domésticas, ou por estarem ligadas aos trabalhos de cuidado, como enfermeiras. A criação da dominação masculina atenuou as contradições sociais no centro do capitalismo, disciplinando um ideal de família que trazia segurança para a economia, ou seja, separando as esferas da produção e da reprodução social para encobrir suas contradições.

Para Nancy Fraser (2017FRASER, N. Crisis of care? On the social-reproductive contradictions of contemporary capitalism. In: BHATTACHARYA, T. (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 22), a separação entre produção e reprodução é um artefato histórico do capitalismo, que vai assumindo diferentes formas para sustentar uma contradição estrutural: a acumulação infinita de capital ao mesmo tempo que depende da reprodução social tende a desestabilizar as próprias condições de possibilidade sociorreprodutivas. Logo, da mesma forma que a literatura marxista aponta que o capitalismo possui uma tendência a crises sistêmicas por causa das suas contradições internas, Fraser compreende que as contradições decorrentes da relação entre produção e reprodução social também geram uma tendência a crises.

Nesse sentido, o argumento que exponho neste artigo é de que a expropriação de um Fora não-capitalista, nos termos da teoria da reprodução sócio-jurídica do capital, é uma necessidade tanto da produção quanto da reprodução social para que seja possível ao capital sustentar a relação contraditória e necessária entre produção e reprodução social, e assim manter a acumulação de capital. Ou seja, as transformações na família, nas dinâmicas que envolvem o ambiente doméstico, e nos trabalhos de reprodução social também estão inseridas na reprodução sócio-jurídica do capital, no sentido de que meios legais são utilizados para expropriar e depois explorar a reprodução social diferenciada da força de trabalho e para manter a família como uma unidade de reprodução confiável para manutenção da acumulação de capital.5 5 Essa confiabilidade histórica do capital na forma família, como explica Tithi Bhattacharya (NIEP MARX, 2020), demonstra porque a ideologia da família é tão forte e difícil de ser superada. O capital sustenta a ideologia da família como sendo algo intrínseco na história da humanidade, e o fato de existir formas familiares prévias ao capitalismo dá a ele uma espécie de “benefício histórico-ideológico”. Assim, apesar de permitir variações, a família monogâmica heteronormativa é sempre a forma mais estável e mais barata para reprodução da força de trabalho, e também para reprodução das ideologias e valores familiares como uma forma de disciplinamento social. Esse argumento só pode ser apreendido a partir de uma teoria unitária da reprodução social, ou seja, a partir da interpretação da teoria da reprodução sócio-jurídica do capital no interior da TRS.

4. Conclusão

Iniciei este artigo buscando demonstrar como uma teoria unitária da reprodução social tem a potencialidade de afastar qualquer funcionalismo, determinismo e reducionismo econômico, justamente por compreender a lógica da acumulação capitalista de uma maneira que é substancialmente diferente de uma lei mecânica. Uma teoria unitária compreende que as relações de dominação e poder não são estruturas ou níveis separados das relações de reprodução social, de produção ou da reprodução societal, isto é, elas não se interseccionam de maneira externa e tampouco mantém uma relação meramente contingente entre si. A TRS compreende que o processo de acumulação de capital é o motor do capitalismo, mas ao estabelecer uma relação entre a extração de mais valia e o trabalho de reprodução da força de trabalho que permite a exploração, ela demonstra que olhar só para produção de valor pouco diz sobre o sistema como um todo. O processo produtivo, para além da extração de mais valia, é também um processo de dominação e opressão. Assim, o compromisso da TRS, enquanto uma teoria que recupera a concepção de totalidade social marxiana, é interpretar as relações sociais de gênero, raça ou sexualidade como momentos concretos da totalidade articulada, complexa e contraditória que é o capitalismo contemporâneo.

O que ainda é incipiente na TRS é um desenvolvimento teórico mais profundo das formas sociais no capitalismo, como o direito e o estado, e como elas são utilizadas para manter a relação necessária e contraditória entre produção e reprodução social. A Teoria da reprodução sócio-jurídica do capital de Guilherme Gonçalves, por ter um entendimento mais dialético da dinâmica de acumulação de capital, incluindo os momentos de expropriação e exploração enquanto fases que são ao mesmo tempo consequência e pressuposto uma da outra, nos permite entender como direito e estado manifestam de forma expressamente violenta a contradição de classes, e como o capital utiliza essas formas para se desenvolver.

Para tanto, conforme visto, a teoria proposta por Guilherme Gonçalves (2017GONÇALVES, G. L. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica: expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, p. 1028-1082.; 2019) une a crítica pachukaniana, que apreende a posição do direito no momento da troca de mercadorias, com a noção de expropriação capitalista, que é desencadeada por crises sistêmicas do capital e sua necessidade de expansão, para explicar o uso de certas ordens legais e sociais. Desse modo, para além das relações estáveis da troca de equivalentes, o direito se reproduz de forma expressamente violenta no momento expansionista do capitalismo. Isso porque o desenvolvimento do capitalismo depende de uma contínua incorporação e transformação de relações sociais em dinâmicas funcionais que possam ser por ele apropriadas. Uma vez que a mais-valia produzida em um determinado local não consegue ser toda apropriada dentro dele, então o capitalismo necessita sempre recorrer a um Fora não-capitalista para realizar seu ciclo por completo e manter sua estabilidade e domínio. Essa expansão da acumulação ocorre de uma forma global, fazendo uso da violência explícita da mesma forma que na expropriação ocorrida no período da acumulação primitiva.

No entanto, levantei a questão de que a reprodução sócio-jurídica do direito também atua na esfera da reprodução social para assegurar a acumulação de capital, e não se trata de uma exploração secundária dos trabalhos sociorreprodutivos, como aponta Gonçalves. Falta na teoria de Gonçalves justamente a percepção unitária das relações sociais sob o capitalismo. Por isso, aliando a TRS com a tese de Gonçalves sobre a reprodução sócio-jurídica do capital, entendo que o capital também necessita expropriar espaços não capitalistas, ou criar espaços para serem depois expropriados, para realização do trabalho de reprodução social. Para isso, toda a violência jurídica que ocorre no momento de expansão do capital ocorre na esfera da reprodução social também. Ainda que eu tenha acordo com a construção teórica de Gonçalves, busquei nesse artigo trazer o argumento de que ordens legais abertamente desiguais e violentas são utilizadas para manutenção de um equilíbrio entre a relação necessária e contraditória entre produção e reprodução social.

Dessa forma, ao desenvolver na teoria social em construção pela TRS essa crítica mais radical ao Direito e ao Estado por meio da Teoria da reprodução sócio-jurídica do capital podemos apreender unitária e dialeticamente mais determinações da totalidade social. Isso nos abre, inclusive, para novas pesquisas que apontem violências institucionalizadas pelo Direito e pelo Estado no âmbito da reprodução social e as analisem enquanto expressões da dinâmica de expansão do capital sob a forma de expropriação de relações sociais. Isto é, como uma necessária repetição da acumulação primitiva para manutenção da dinâmica capitalista.

Por fim, o diálogo teórico proposto neste artigo insere-se no projeto da Teoria da Reprodução Social de resolver a questão sobre quais são os pontos de determinações e/ou contradições que deveriam necessariamente ser compreendidos como constitutivos do sistema capitalista e, então, considerados para sua superação dentro dele (BHATTACHARYA, 2017BHATTACHARYA, T. Introduction: Mapping Social Reproduction Theory. In: BHATTACHARYA, T. (org.). Social Reproduction Theory: Remapping Class, Recentering Oppression. London: Pluto Press, 2017., p. 7). A contribuição do desenvolvimento da crítica às formas sociais e da própria relação das violências jurídicas com a esfera da reprodução social é parte de uma apreensão unitária do todo social capitalista e pode nos apontar para relações determinantes da totalidade orgânica do capitalismo, nos dando ferramentas reais para compreender seu movimento, tendências e contradições. Dessa forma, essa proposta de diálogo justifica-se não apenas de um ponto de vista teórico, mas pelo seu compromisso com a práxis marxista de compreender a realidade a fim de mudá-la.6 6 Afinal, como Marx afirmou na famosa Tese 11 sobre Feuerbach (1845): “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX; ENGELS, 2007, p. 535).

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    Susan Ferguson (1999FERGUSON, S. Building on the Strengths of the Socialist Feminist tradition. Critical Sociology, v. 25, n. 1, p. 1-15, 1999., p. 4) destaca principalmente as contribuições canadenses de Pat e Hugh Armstrong, Isabella Bakker, Patricia Connelly, Bonnie Fox, David Livingstone, Meg Luxton, Martha MacDonald, Heather Jon Maroney, Wally Seccombe e Dorothy Smith, para o chamado feminismo da reprodução social. E inclui também outras importantes colaboradoras americanas e britânicas como Stephanie Coontz, Lise Vogel, Sheila Rowbotham e Iris Young. A obra de Lise Vogel, Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory [Marxismo e a opressão das mulheres: rumo a uma teoria unitária], de 1983 afasta-se dessas contribuições por sua re-teorização mais completa da crítica de Marx ao capital (FERGUSON, 2020FERGUSON, S. Women and Work: Feminism, Labour, and Social Reproduction. London: Pluto Press, 2020., p. 137). Um dos grandes diferenciais do trabalho de Vogel foi ter tomado como base a obra de maturidade de Karl Marx, O Capital, quando a grande maioria dos trabalhos com fins analíticos de feministas socialistas até então tinham como referência A Ideologia Alemã ou A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado de Friedrich Engels (FERGUSON; MCNALLY, 2017, p. 26). É esse importante salto teórico de Vogel que está sendo atualmente recuperado e desenvolvido - criticamente - pela TRS.
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    Para Arruzza, a influência de teorias duplas e triplas presente em diversas teorias feministas se dá pela sua forma explicativa mais imediata e intuitiva, por aquilo que está evidente. Essa interpretação reflete a realidade da forma como ela aparece para nós, ou seja, reflete o modo pelo qual experimentamos as relações de alienação e dominação produzidas e reproduzidas pelo capital. Esse é o modo de experiência determinado pelo capital: a fragmentação da nossa percepção da realidade. Logo, “aqueles que desenvolveram uma consciência da desigualdade de gênero normalmente a experimentam e percebem como determinada por uma lógica que é diferente e separada do capital.” (ARRUZZA, 2015ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, n. 23, jan.-jun./2015., p. 45). Por isso é tão difícil compreender que o patriarcado é um sistema de opressão que foi incorporado ao capitalismo e não é independente dele, ainda que sua origem remonte a períodos históricos anteriores e ainda que ele possa persistir em uma sociedade pós-capitalista. Só assim é possível pensar como o patriarcado opera na relação entre produção e reprodução da vida, e não como categoria abstrata e trans-histórica de opressão às mulheres. Até porque, pesquisas antropológicas recentes já demonstraram que “não apenas a opressão de gênero nem sempre existiu, como não existiu em várias sociedades sem classe, onde a opressão de gênero foi introduzida pelo colonialismo.” (ARRUZZA, 2015, p. 46)
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    A abordagem de Pachukanis é a fonte teórica da chamada Teoria da Derivação, para a qual Direito e Estado são formas derivadas da forma mercadoria. Essa também é a teoria mais difundida para explicar a relação entre direito, estado e capitalismo, e pode ser vista em Alysson Leandro Mascaro e Joaquim Hirsch. No entanto, também há outras abordagens que de maneiras diferentes dialogam com Pachukanis, como a althusseriana de Márcio Naves e Celso Nakamoto Kashiura Jr; a luckacsiana de Vitor Sartori e Silvio Almeida; a gramsciana de Moisés Alves Soares; e a leitura de Ricardo Prestes Pazello a partir de Ruy Mauro Marini que dialoga a Crítica Marxista ao Direito e a Teoria Marxista da Dependência. E, por fim, há a abordagem de Guilherme Leite Gonçalves acerca da reprodução sócio-jurídica do capitalismo que une a crítica da forma jurídica articulada por Evguiéni B. Pachukanis, à teoria marxista da acumulação primitiva permanente e à teoria da expropriação capitalista do espaço. E é com ela que dialogo neste artigo.
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    Um dos desdobramentos teóricos mais conhecidos dessa perspectiva, sem dúvidas, é a acumulação por despossessão (ou espoliação, a depender da tradução) de David Harvey (2005HARVEY, D. O novo imperialismo. Tradução Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005.), que atualiza o pensamento de Rosa Luxemburgo (1984LUXEMBURGO, R. A Acumulação de Capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. Tomo II. São Paulo: Abril Cultural, 1984.) para teorizar sobre um novo imperialismo em curso na fase neoliberal do capitalismo. No Brasil, Virgínia Fontes (2010FONTES, V. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. 2. ed. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010.) também deu sua contribuição a essa perspectiva, denominando-a de expropriação primária e secundária. Não entrarei nas especificidades e diferenças (substanciais) dessas teorias aqui, pois demandaria abordar diversos debates controvertidos marxistas que não considero necessários ao desenvolvimento desse artigo. No entanto, destaco que a própria Fontes realiza esse debate teórico no primeiro capítulo do seu livro acima referenciado.
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    Essa confiabilidade histórica do capital na forma família, como explica Tithi Bhattacharya (NIEP MARX, 2020), demonstra porque a ideologia da família é tão forte e difícil de ser superada. O capital sustenta a ideologia da família como sendo algo intrínseco na história da humanidade, e o fato de existir formas familiares prévias ao capitalismo dá a ele uma espécie de “benefício histórico-ideológico”. Assim, apesar de permitir variações, a família monogâmica heteronormativa é sempre a forma mais estável e mais barata para reprodução da força de trabalho, e também para reprodução das ideologias e valores familiares como uma forma de disciplinamento social.
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    Afinal, como Marx afirmou na famosa Tese 11 sobre Feuerbach (1845): “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX; ENGELS, 2007MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 535).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2022
  • Aceito
    20 Jan 2023
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