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Forma jurídica e formação social e econômica: Para uma análise das formações sociais dependentes

Legal form and social formation: Towards an analysis of dependent social formations

Resumo

O artigo pretende desenvolver uma reflexão teórica voltada à aproximação entre a leitura pachukaniana da forma jurídica e a teoria marxista da dependência, considerando, de modo subordinado, outras tentativas de caracterização do caráter das relações de produção presentes na formação social brasileira. O fio condutor de nossa análise é a busca pelo aprimoramento do “problema de pesquisa” colocado por Ricardo Prestes Pazello a respeito do caráter dependente da formação social latino-americana e dos efeitos que a dependência exerce sobre a subjetividade jurídica, o que faremos a partir da relação entre forma jurídica e formação social e econômica.

Palavras-chave:
Forma jurídica; Formação social e econômica; Teoria marxista da dependência

Abstract

The article intends to develop a theoretical reflection focused on the approximation between the Pachukanian reading of the legal form and the Marxist theory of dependence, considering, in a subordinate way, other attempts to characterize the nature of the relations of production present in the Brazilian social formation. The guiding thread of our analysis is the search for the improvement of the “research problem” posed by Ricardo Prestes Pazello about the dependent character of Latin American social formation and the effects that dependence has on legal subjectivity, which we will do based on the relationship between legal form and social formation.

Keywords:
Legal form; Social formation; Marxist dependency theory

Introdução

Apesar do extraordinário avanço experimentado pela crítica marxista do direito nas últimas duas décadas, um campo ainda pouco explorado diz respeito às recentes contribuições de Ricardo Prestes Pazello (2014PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 545 p., 2014.; 2015; 2016), que busca articular a crítica de matriz pachukaniana ao direito com a especificidade do capitalismo brasileiro e latino-americano. O problema em torno dessa relação apenas começou a ser delineado por Pazello, cujas reflexões oxigenam esse campo de estudos e apontam para a necessária compreensão histórica da forma jurídica no contexto latino-americano.

Nosso objetivo com o presente texto é desenvolver uma reflexão estritamente teórica sobre a relação entre capitalismo dependente e forma jurídica. A noção aqui empregada de “capitalismo dependente” tem como principal referencial as formulações de Ruy Mauro Marini e está inserida no campo da teoria marxista da dependência. Já a categoria “forma jurídica” é tributária das formulações de Evgeni Pachukanis. O fio condutor de nossa análise é a busca pelo aprimoramento do “problema de pesquisa” colocado por Pazello, o que faremos a partir da noção de “formação social e econômica” (ALTHUSSER, 2008ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Trad. Guilherme João de Freitas. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2008.; POULANTZAS, 2019POULANTZAS, Nicos. Poder Político e classes sociais. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. 1. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019.).

Dito de outro modo, nosso objetivo teórico-metodológico com o presente artigo é contribuir para a colocação do problema da relação entre capitalismo dependente e forma jurídica a partir da noção subjacente ao conceito de formação social e econômica concreta. Para realizar o objetivo traçado, selecionamos uma bibliografia que integra a tradição marxista e que, em nossa análise, é capaz de oferecer elementos fundamentais na formulação do problema entre capitalismo dependente e forma jurídica, bem como na construção de hipóteses para estudos futuros.

Acreditamos que o problema entre capitalismo dependente e forma jurídica pode ser melhor compreendido a partir de uma problemática prévia e geral que se refere à relação entre forma jurídica e formação social e econômica concreta. Em nosso percurso, abriremos o texto com a retomada da compreensão da forma jurídica segundo Pachukanis; passaremos à relação entre modo de produção e formação social e econômica; recuperaremos algumas abordagens em torno da formação social latino-americana e também os caracteres do capitalismo dependente, especialmente a partir da noção de superexploração da força de trabalho; e, finalmente, buscaremos articular as discussões anteriores com as reflexões contemporâneas em torno do problema já mencionado.

1. A forma jurídica e suas expressões relacional e normativa

O tratamento dado à forma jurídica, na exposição de Pachukanis, recebe pelo menos duas dimensões fundamentais: uma relacional (relação jurídica) e outra normativa (regulamentação). A importância de recuperarmos essas duas dimensões será melhor compreendida no momento de articulação com a formação social e econômica latino-americana. A dimensão normativa está subordinada, em sua análise, à dimensão relacional: “na realidade material, a relação tem primazia sobre a norma” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 113).

Essa primazia decorre do fato de que, de acordo com Pachukanis, a dimensão relacional é portadora de um sentido real, na medida em que oferece um conhecimento histórico objetivo da forma jurídica, e de um sentido lógico, logicidade que está presente nos conceitos jurídicos e na regulação heterônoma, mas cujas premissas e limites estão dados pelas relações de produção, e não pela autoridade jurídico-política competente para sua criação.

A literatura especializada compreende a forma jurídica como a expressão da relação social mútua travada entre sujeitos isolados e portadores de mercadorias (NAVES, 2008NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 56). Assim, a especificidade e a natureza do direito podem ser descritas pelo seu caráter burguês precisamente em razão da forma que ele toma e se manifesta no modo de produção capitalista, único modo de produção em que o direito pode existir, se adotamos a matriz pachukaniana de análise: “a ‘gênese’ (genezis) da forma do direito se encontra na relação de troca; a forma jurídica é o ‘reflexo inevitável’ (neizbejnym otprajeniem) da relação dos proprietários de mercadoria entre si” (NAVES, 2008, p. 53).

A especificidade do direito, nessa perspectiva, deixa de ser a normatividade e passa a ser a forma social que ele assume1 1 A respeito das formas sociais, Mascaro (2013, p. 21) argumenta ser necessário compreendê-las como resultado de um processo relacional e histórico que representa o modo pelo qual determinadas realidades são objetivadas e chegam a constituir formas próprias de manifestação. . É nesse sentido que se pode falar de uma crítica ao direito como forma social ou apenas de uma crítica da forma jurídica (CATINI, 2020CATINI, Carolina de Roig. Forma jurídica. p. 125-137.In: In: Akamine Jr., et al. Léxico Pachukaniano. 1.ed. Marília: Lutas Anticapital, 2020., p. 125). Os pressupostos deixados por Pachukanis e principalmente por Marx permitiram, assim, que Naves fizesse avançar a análise da forma jurídica para definir o direito como uma “forma do capital” que organiza o circuito de troca de mercadorias e transforma os indivíduos em “equivalentes vivos” necessários à manutenção do processo de valorização do valor (NAVES, 2014______. A Questão do Direito em Marx. 1.ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014., p. 101).

Vejamos, portanto, os desdobramentos dessa perspectiva da forma jurídica, de acordo com o texto pachukaniano: “a relação jurídica é a célula primária do tecido do direito, e só nela o direito completa o seu movimento real. Ao lado disso, o direito, como conjunto de normas, não é mais do que uma abstração sem vida” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 111). Essa constatação feita por Pachukanis, porém, não significa uma completa negação ou mesmo um tratamento indiferente para com a normatividade. Vejamos com mais clareza o que ele diz no seguinte trecho:

O direito, como um fenômeno social objetivo, não pode ser exaurido pela norma ou pela regra, sejam elas escritas ou não escritas. A norma como tal, ou seja, seu conteúdo lógico, ou é deduzido diretamente das relações já existentes, ou, se é promulgado como lei do Estado, constitui somente um sintoma a partir do qual se pode prever, com uma boa probabilidade, o surgimento, num futuro próximo, das relações correspondentes. Mas para confirmar a existência objetiva do direito, não nos basta conhecer seu conteúdo normativo, é preciso saber se esse conteúdo normativo se realiza na vida, ou seja, nas relações sociais. (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 113, itálico nosso).

Como se percebe, tanto a relação jurídica quanto a regulação externa normativa são encaradas dialeticamente por Pachukanis do ponto de vista da crítica da forma jurídica. Disso decorre, inclusive, o reconhecimento do jurista bolchevique a respeito de uma “autonomia […] em limites muito estreitos” da normatividade frente a relação jurídica (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 113). A normatividade, assim encarada, “assegura, garante, mas de forma alguma gera a relação” (PACHUKANIS, 2017, p. 115). Graças a essa limitada e relativa autonomia da regulação, a normatividade pode colocar em marcha aquela que seria uma espécie de função: oferecer previsibilidade e certa segurança ao circuito de trocas de mercadoria, claro, nos limites impostos, em última instância, pelas relações de produção.

O maior equívoco presente nas análises sobre o direito, para Pachukanis, está em subordinar os elementos da relação jurídica à normatividade: “essa convicção de que o sujeito e a relação jurídica não existem fora da norma objetiva é tão errônea como a convicção de que o valor não existe e não é definível fora da oferta e da procura, pois empiricamente ele não se manifesta de outro modo que não nas oscilações dos preços” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 116). Para superar tal equívoco, Pachukanis reorganiza os polos da relação e atribui a primazia à relação jurídica e não à normatividade:

[...] a relação econômica de troca, por exemplo, deve estar presente para que surja a relação jurídica do contrato de compra e venda. O poder político pode, com o auxílio da lei, regular, substituir, condicionar e concretizar dos modos mais diversos, a forma e o conteúdo desse negócio jurídico. A lei pode, do modo mais detalhado, definir o que pode ser comprado e vendido, como, em que condições e por quem. A partir disso, a jurisprudência dogmática conclui que todos os elementos essenciais da relação jurídica, inclusive o próprio sujeito, são gerados pela norma. Na realidade, é claro que a premissa fundamental sob a qual todas essas normas concretas adquirem sentido é a presença da economia mercantil-monetária. Só com essa premissa, o sujeito jurídico tem o seu substrato material na pessoa do sujeito econômico egoísta, que a lei não cria, mas encontra. Onde esse substrato está ausente, a relação jurídica correspondentes é inconcebível a priori”. (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 120, itálico nosso).

Parece-nos inegável a presença dessas duas dimensões indissociáveis na crítica pachukaniana da forma jurídica. Apesar de a dimensão relacional ser “fundante” para que possamos compreender a forma jurídica, a dimensão normativa, que segundo Pachukanis (2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 121) confere clareza e estabilidade para a estrutura jurídica, deve estar presente em nossas análises, ainda que ela seja apenas um “sintoma” ou uma determinação “aparente”, para usarmos termos que são do próprio Pazello (2016______. Contribuições metodológicas da teoria marxista da dependência para a crítica marxista ao direito. In: Direito e Práxis. Rio de Janeiro, Vol. 07, N. 13, p. 540-574, 2016., p. 540-574).

O grande objetivo por trás dessa relação entre dimensão relacional e normativa, para Pachukanis, nos parece centrar precisamente numa dupla negação: i) de que a própria existência da relação jurídica dependeria da norma; ii) de que nessa relação a primazia caberia à norma. Por isso ele afirma que “para a análise da relação jurídica em sua forma mais simples, não há necessidade de partir do conceito de norma como imposição autoritária externa. É suficiente tomar como base uma ‘relação econômica’ (Marx), e examinar a forma ‘legal’ dessa relação jurídica como um dos casos particulares” (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 123). Um ponto crucial sobre a dimensão normativa do direito diz respeito ao princípio da equivalência:

A ordem jurídica se distingue de qualquer outra ordem social justamente pelo fato de que ela é baseada em sujeitos isolados privados. A norma do direito adquire sua differentia specifica, que a destaca da massa geral das normas reguladoras - morais, estéticas, utilitárias, etc. -, justamente pelo fato de que ela pressupõe a pessoa dotada de direitos e que, além disso, exerce ativamente uma pretensão. (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 128-129, itálico nosso).

Assim, a natureza específica da dimensão normativa, isto é, a sua própria juridicidade, é dependente da dimensão relacional à qual está subordinada e cujas determinações são dadas pelas relações capitalistas de produção, mais especificamente, pela separação entre meios de produção e força de trabalho, pela divisão social e técnica do trabalho e pela troca mercantil (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 127; 138). O elemento fundamental, que é o elo constitutivo das dimensões relacional e normativa, aparece diante de nós sob a categoria abstrata da equivalência entre sujeitos de direito, isto é, da subjetividade jurídica: “toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica” (PACHUKANIS, 2017, p. 137).

Aqui, finalmente, chegamos a um ponto importante para nosso objetivo neste trabalho. Trata-se daquilo que poderíamos chamar de aspecto genérico e universal da forma jurídica, isto é, os pressupostos que lhe dão uma certa universalidade e que possibilitam o seu surgimento: a divisão social do trabalho, a generalização da troca de mercadorias e o pleno desenvolvimento das relações capitalistas de produção:

Somente nas condições da econômica mercantil é gerada a forma jurídica abstrata, ou seja, a capacidade de ter um direito em geral separa-se das pretensões jurídicas concreta. Só a transferência constante de direitos, originada no mercado, cria a ideia de um portador imóvel de direitos. [...]. Desse modo, cria-se a possibilidade de abstrair-se das distinções concretas entre os sujeitos de direitos e reuni-los em um só conceito genérico. (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 147, itálico nosso).

Desde Pachukanis, a noção de subjetividade jurídica foi ganhando cada vez mais precisão por meio de abordagens muito rigorosas2 2 A maior contribuição para esse tema, sem dúvidas, diz respeito à produção de Celso Naoto Kashiura Jr. (2009; 2014; 2020). . No essencial, ela pode ser compreendida como a forma social que mediatiza e organiza, no modo de produção capitalista, a circulação das vontades abstratas, de modo formalmente livre e igual, dos indivíduos que se encontram no mercado, permitindo assim o intercâmbio mercantil, principalmente a troca entre força de trabalho e salário (KASHIURA JR., 2020______. Sujeito de direito. p. 241-257. In: Akamine Jr., et al. Léxico Pachukaniano. 1.ed. Marília: Lutas Anticapital, 2020., p. 241). Por isso mesmo, Pachukanis (2017, p. 159) chama nossa atenção para o fato de que na “aurora de seu desenvolvimento”, o capitalismo industrial conferiu especial importância para o princípio da subjetividade jurídica.

2. Modo de produção (abstrato) e formação social e econômica (concreta)

A forma jurídica guarda com o modo de produção capitalista uma relação de universalidade, isto é, onde dominarem as relações capitalistas de produção, tende a estar presente a forma jurídica, seja na sua dimensão relacional (subjetividade jurídica), seja na sua dimensão normativa fundada na equivalência entre os sujeitos constitutivos da relação jurídica. A questão é que no campo da crítica marxista do direito, até pouco tempo atrás, ignorava-se o problema das particularidades assumidas pela forma jurídica (entenda-se aqui também as suas duas dimensões) assim como o problema de suas manifestações na própria universalidade.

Os estudos de Ricardo Prestes Pazello, portanto, abrem o caminho para uma inicial e pujante agenda de pesquisa, precisamente porque, a partir de agora, já não podemos mais ignorar referida problemática: quais as particularidades assumidas pela forma jurídica, isto é, pela relação jurídica, pela subjetividade e também pela normatividade, em formações sociais e econômicas cujo desenvolvimento capitalista se deu a partir de leis específicas? Como se manifestam tais particularidades na universalidade tanto da forma jurídica quanto das relações capitalistas de produção? Se essas particularidades existem, então como a universalidade é afetada por elas? Uma resposta possível a essas questões, acreditamos, passa pela problemática envolvendo a relação entre forma jurídica e formação social e econômica.

Louis Althusser extrai dos textos de Marx uma retificação com relação ao conceito ideológico de “sociedade” que, segundo o teórico franco-argelino, teria dado lugar a um outro conceito, agora científico: “o conceito de formação social é um conceito científico enquanto faz parte de um sistema teórico de conceitos, completamente estranho ao sistema de noções ideológicas ao qual se refere a noção idealista de ‘sociedade’” (ALTHUSSER, 2008ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Trad. Guilherme João de Freitas. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 41, itálico nosso). Em sua análise a respeito da categoria “formação social”, podemos extrair pelo menos duas dimensões: uma que designamos operativa (na falta de um termo melhor), outra que seria epistemológica.

Jacob Gorender (2016GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo, 2016., p. 56-76), por exemplo, apesar de suas duras críticas a Althusser, claramente adere à primeira dimensão quando expõe os aspectos metodológicos de seu O Escravismo Colonial, ao mesmo tempo que recusa rotunda e expressamente a segunda. A dimensão operativa compreende a articulação propriamente dita entre modo de produção e formação social. Já a dimensão epistemológica diz respeito àquilo que Poulantzas (2019POULANTZAS, Nicos. Poder Político e classes sociais. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. 1. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019., p. 16) denominou de preposição fundamental do materialismo histórico e dialético e que consiste na unidade diferenciada de processos reais e processos de pensamento, sendo os conceitos de modo de produção e formação social uma espécie de demonstração ilustrativa dessa unidade diferenciada entre processos reais e processos de pensamento.

A dimensão operativa não guarda grandes dificuldades. Nessa dimensão, a formação social, que é a forma redutora de tratamento de um conceito técnico e cientificamente mais adequado, formação social e econômica, designa a existência concreta e histórica de um todo social, no qual podemos constatar a existência de um ou mais modos de produção. Neste último caso, tal pluralidade vem acompanhada da dominância de um modo sobre o(s) outro(s) (ALTHUSSER, 2008ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Trad. Guilherme João de Freitas. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 41; POULANTZAS, 2019POULANTZAS, Nicos. Poder Político e classes sociais. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. 1. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019., p. 20). Essa relação de dominância é responsável por “individualizar” (ALTHUSSER, 2008, p. 41), por revelar o caráter de determinada formação social.

A dimensão epistemológica nos remete ao célebre artigo Sobre a Dialética Materialista (1963) de Louis Althusser (2015______. Por Marx. Trad. Maria Leonor F.R. Loureiro. 1.ed. Campinas: Unicamp, 2015., p. 133-181), texto este em que aparecem as noções de generalidades I, II e III, e que não podemos tratar aqui de modo pormenorizado. Tributárias das noções de “prática” e “prática teórica” (ALTHUSSER, 2017______. Teoria, prática teórica e formação teórica: ideologia e luta ideológica. p.27-82. In: Barison, Thiago (Org.). Teoria marxista e análise concreta: textos escolhidos de Louis Althusser e Étienne Balibar. Trad. Duarte Pereira et al. 1.ed. São Paulo: Expressão popular, 2017., p. 27-82; 2019, p. 109-154), as generalidades constituem o processo por meio do qual se desenvolve o trabalho teórico. Nesse sentido, a partir de uma matéria-prima (informações e noções gerais sobre um determinado objeto), que é trabalhada ou tratada com o auxílio de instrumentos (conceitos), pode-se chegar a um produto específico: o conhecimento do objeto analisado.

Portanto, se o processo de pensamento nos permite atingir o conhecimento de um objeto real e concreto (que seja a “síntese de múltiplas determinações”) e também produzir conceitos mais concretos e ricos em determinações teóricas, por outro, intervém, nesse mesmo processo, determinados conceitos abstratos ou “abstratos-formais” que constituem “a condição do conhecimento dos objetivos reais-concretos: é o caso, por exemplo, do modo de produção” (POULANTZAS, 2019POULANTZAS, Nicos. Poder Político e classes sociais. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. 1. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019., p. 17):

Os conceitos mais concretos, aqueles que conduzem ao conhecimento de uma formação social num momento determinado do seu desenvolvimento, não são, como tampouco o são os objetos reais-concretos, a matéria-prima do processo de pensamento; eles também não são deduzidos dos conceitos mais abstratos, ou subsumidos nestes últimos, acrescentando à sua generalidade uma simples particularidade. Eles são o resultado de um trabalho de elaboração teórica que, operando sobre informações, noções etc., por meio dos conceitos mais abstratos, tem como efeito a produção dos conceitos mais concretos conduzindo ao conhecimento dos objetos reais, concretos e singulares. Temos como exemplo dois conceitos fundamentais do materialismo histórico que ilustram bem a distinção entre objetos formais-abstratos e objetos reais-concretos, os conceitos de modo de produção e de formação social. (POULANTZAS, 2019POULANTZAS, Nicos. Poder Político e classes sociais. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. 1. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019., p. 17).

Extraímos da presente passagem que, no aspecto epistemológico, a noção de modo de produção nos auxilia no conhecimento de uma formação social e econômica. Alguns cuidados, entretanto, são imprescindíveis. Enquanto objeto real-concreto de análise, nem a formação social nem tampouco os conceitos mais concretos a seu respeito poderiam constituir o ponto de partida d(a)o pesquisado(a)r. É o caso, por exemplo, da categoria da “superexploração da força de trabalho”, de Marini, que veremos a seguir. Ela jamais poderia ser o ponto de partida do estudo da formação social latino-americana e brasileira, senão o resultado desse processo.

Do mesmo modo, conceitos concretos, como é o caso do exemplo de Marini e também do mencionado estudo de Jacob Gorender, não são simplesmente extraídos de conceitos abstratos. Queremos dizer que não se atinge as noções de superexploração da força de trabalho ou de escravismo colonial por dedução da lei do valor, os quais tampouco podem ser a ela subordinados por uma operação de simples soma de elementos gerais e específicos. Para encerar a dimensão epistemológica, portanto, temos que o conhecimento acumulado sobre o modo de produção entendido enquanto objeto abstrato-formal nos auxilia no processo de produção de conhecimento a respeito de uma formação social real e concreta.

A partir da existência dessas duas dimensões, operativa e epistemológica, podemos compreender melhor aquilo que designam cada uma dessas duas categorias que são, como vimos, relacionais. Seria inviável abordar aqui os avanços promovidos por Althusser em relação à superação do economicismo na tradição marxista em torno da interpretação do modo de produção. A ideia central subjacente à formulação althusseriana, diríamos, está na elasticidade da noção ampliada de modo de produção para além das relações de produção, portanto, para além do econômico.

Nela está presente uma totalidade relacional e articulada de estruturas que se complementam com a existência de instâncias regionais sobredeterminadas e cuja dominância ou determinação em última instância está reservada a uma dessas estruturas. Isso importa para fins de compreensão da formação social, que, de acordo com Poulantzas, “constitui ela própria uma unidade complexa com dominância de um certo modo de produção sobre os outros que a compõem. […] A dominância de um modo de produção sobre os outros numa formação social faz com que a matriz desse modo de produção […] delimite o conjunto dessa formação” (POULANTZAS, 2019POULANTZAS, Nicos. Poder Político e classes sociais. Trad. Maria Leonor F. R. Loureiro. 1. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019., p. 19).

A matriz do modo de produção dominante ou, o que dá no mesmo, a determinação em última instância e os seus efeitos nas estruturas e instâncias dela decorrentes, portanto, circunscrevem a própria natureza e o caráter de uma formação social concreta. Assim, se é o modo de produção capitalistas que exerce o domínio sobre outro(s) modo(s) de produção numa determinação formação social, então nessa formação social, certamente, a matriz será desempenhada pelo econômico.

Diante do que foi dito, poderíamos formular as seguintes questões: seria adequado falarmos de uma forma jurídica abstrata, isto é, da forma jurídica enquanto um objeto abstrato-formal que, parafraseando Poulantzas, não existe no sentido rigoroso do termo, isto é, na realidade, ainda que o conhecimento a seu respeito seja imprescindível para se conhecer o objeto real-concreto analisado? E o que seria, na forma jurídica abstrata, esse objeto real-concreto a ser analisado? Seria a relação jurídica, a subjetividade jurídica e a normatividade que dela decorre?

Como dissemos inicialmente, nossa pretensão é bem menos ambiciosa e, por isso mesmo, limitada ao aspecto metodológico da articulação entre o momento genérico ou universal de conformação e consolidação da forma jurídica (subsunção formal e real do trabalho ao capital3 3 A respeito da contribuição original de Márcio Bilharinho Naves sobre o tema, conferir A Questão do Direito em Marx (2014) ) e a especificidade que assume o modo de produção capitalista na formação social latino-americana e brasileira.

3. Formação social e econômica latino-americana e brasileira

Há praticamente um século, teórico(a)s marxistas latino-americano(a)s se dedicam ao estudo do caráter da formação social e econômica da América Latina e do Brasil, se consideramos as primeiras análises elaboradas por Astrojildo Pereira, Octávio Brandão, passando pelas reflexões de José Carlos Mariátegui e Caio Prado Jr. Desde então muito foi dito a respeito da natureza de nossa formação social.

Para Caio Prado (2006, p. 31), nesse sentido, a colonização portuguesa e espanhola em nossa região, desde um ponto de vista internacional e da totalidade do mercado mundial, tomou a forma de uma empresa comercial voltada para a exploração dos recursos aqui existentes em proveito do comércio europeu, sendo este o sentido mais profundo que determinaria as relações sociais e políticas, isto é, a nossa evolução histórica.

Alberto Passos Guimarães, ao contrário, ao se deparar com o sistema de plantações e com o latifúndio, buscou atribuir à formação social latino-americana em geral e à brasileira em particular a natureza de um feudalismo colonial (1968, p. 29). Esta tese, sustentada pelo Programa da III Internacional Comunista e também pelo Partido Comunista do Brasil (atual Partido Comunista Brasileiro - PCB) nas décadas de 1950 e 1960, teve consequências políticas devastadoras, precisamente porque seus defensores compreendiam que relações pré-capitalistas eram a causa do “atraso” brasileiro4 4 Fizemos o esforço de esboçar o quadro geral dos desdobramentos políticos dessas teses em Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Jr.: um debate em torno da linha política do PCB de 1958 (Farias, 2020). .

Bastante original para compreender o caráter da formação sul-americana e brasileira foi a contribuição de Jacob Gorender, segundo quem, nessas regiões teria se dado a “criação de um novo modo de produção” (GORENDER, 2016GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo, 2016., p. 85), qual seja, o modo de produção escravista colonial, que não é uma síntese dos modos de produção preexistentes, mas um modo de produção “historicamente novo” e cujo funcionamento dependeria de leis específicas, ao que é dedicada a terceira parte de sua mencionada obra.

Também seria importante recordarmos aqui do trabalho de Ignácio Rangel (1999______. Dualidade básica da economia brasileira. 2.ed. Instituto Ignácio Rangel, 1999.), para quem haveria uma espécie de dualidade brasileira formada por dois polos, um interno e outro externo, sendo que cada um desses polos seria, por sua vez, formado por dois modos elementares e dinâmicos de produção, um pertencente ao lado interno do polo interno e externo; outro pertencente ao lado externo do polo interno e externo (RANGEL, 1981RANGEL, Ignácio. A história da dualidade brasileira. In: Revista de Economia Política. Vol. 1. Nº. 4. Outubro-Dezembro, p. 5-84, 1981., p. 6). Subjacente à análise de Rangel está a ideia de confronto entre elementos arcaicos e modernos.

Nessa busca interpretativa pelo caráter de nossa formação social e econômica regional, talvez menos preocupados com o sentido da colonização em si, é que se inserem o(a)s teórico(a)s da teoria marxista da dependência. Um de seus precursores foi, sem dúvida, André Gunder Frank, que, para Enrique Dussel (2013DUSSEL, Enrique. Hacia un Marx desconocido: un comentario a los manuscritos del 61-63. 1.ed. Buenos Aires: Docencia, 2013., p. 323), foi o responsável por traçar a hipótese central e por dar início à formulação da questão da dependência.

Gunder Frank recusou a ideia de dualidade entre setores modernos e arcaicos, bem como a interpretação de resquícios feudais, e, sobretudo, rechaçou a defesa de que tais elementos atuariam como obstáculos ao desenvolvimento econômico (FRANK, 1971FRANK, André Gunder. Sociología del desarrollo y subdesarrollo de la sociología: El desarrollo del subdesarrollo. 1.ed. Barcelona: Anagrama, 1971., p. 108). As razões de um “desenvolvimento limitado” ou do “subdesenvolvimento”, nesse sentido, seria uma decorrência do próprio capitalismo e não de modos e instituições pré-capitalistas e arcaicas:

Devemos incluir, em resumo, que o subdesenvolvimento não se deve à sobrevivência de instituições arcaicas e à falta de capital em regiões que permaneceram isoladas da corrente geral da história mundial. Ao contrário, o subdesenvolvimento foi e é gerado pelo processo histórico mesmo que gera o desenvolvimento econômico: o desenvolvimento do próprio capitalismo (FRANK, 1971FRANK, André Gunder. Sociología del desarrollo y subdesarrollo de la sociología: El desarrollo del subdesarrollo. 1.ed. Barcelona: Anagrama, 1971., p.109).

Sustenta Gunder Frank que “o atual subdesenvolvimento da América Latina é o resultado de sua participação secular no processo de desenvolvimento capitalista mundial” (FRANK, 1971FRANK, André Gunder. Sociología del desarrollo y subdesarrollo de la sociología: El desarrollo del subdesarrollo. 1.ed. Barcelona: Anagrama, 1971., p. 106) e, nesse sentido, que o caso brasileiro seria o mais claro exemplo dos aspectos nacional e regional de subdesenvolvimento, tendo em vista que seu território, desde o começo do século XVI, foi convertido em economia de exportação e “incorporado às estruturas de desenvolvimento do sistema capitalista mundial” (FRANK, 1971, p. 107).

Ao operar no interior da dimensão metodológica voltada ao estudo do desenvolvimento do subdesenvolvimento (e não voltada ao estudo do desenvolvimento do desenvolvimento), Gunder Frank conclui que o subdesenvolvimento não é uma característica inata às formações latino-americanas ou ocasionada por instituições primitivas, mas gestada pela forma como se deu a incorporação regional ao sistema capitalista mundial.

A partir de uma relação de “estrutura metrópole-satélite”, Gunder Frank faz uso de, pelo menos, cinco hipóteses. Aqui, mencionaremos apenas a primeira e a segunda hipóteses por ele suscitadas. A primeira hipótese é a de que nessa estrutura metrópole-satélite, “em contraste com o desenvolvimento da metrópole estrangeira que não é satélite de ninguém, o desenvolvimento das metrópoles subordinadas e nacionais está limitado por seu estatuto de satélite” (FRANK, 1971FRANK, André Gunder. Sociología del desarrollo y subdesarrollo de la sociología: El desarrollo del subdesarrollo. 1.ed. Barcelona: Anagrama, 1971., p. 110). A segunda hipótese é que “os satélites sofrem maior desenvolvimento industrial capitalista quando e ali onde seus laços com a metrópole são débeis” (FRANK, 1971, p. 110).

Fizemos questão de ressaltar essas duas hipóteses em especial porque acreditamos que, de certo modo, elas atuam como fundamento teórico mais geral para o desenvolvimento de alguns dos argumentos presentes, por exemplo, na obra de Vânia Bambirra quando esta afirma que o processo de industrialização e montagem de parques industriais em nossa região foi possível principalmente em momentos de rearticulação da economia mundial ocasionada em razão da 1ª Guerra Mundial e da crise econômica de 1929 (BAMBIRRA, 2013BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Trad. Fernando Correa Prado; Marina Machado Gouvêa. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2013., p. 63), afirmação que dialoga com a primeira hipótese, mas constata também que o limite desse processo esteve circunscrito à situação de dependência em relação aos centros hegemônicos (BAMBIRRA, 2013, p. 74), constatação que converge com a segunda.

Segundo Bambirra (2013BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Trad. Fernando Correa Prado; Marina Machado Gouvêa. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2013., p. 63), o processo de substituição de importações permitiu aos produtos manufaturados estrangeiros cedessem lugar aos produtos manufaturados nacionais, graças à contenção das importações ocasionada pela mencionada rearticulação do mercado mundial, gerando, assim, uma demanda nacional não atendida. Esse processo permitiu que surgissem as condições para que as divisas obtidas com a exportação dos produtos primários fossem utilizadas para a importação de máquinas e matérias primas necessárias à instalação de fábricas nesses territórios e à produção de produtos antes importados.

Em países como Argentina e México5 5 Bambirra trabalha no capítulo terceiro de sua mencionada obra com tipologias que vão muito além do espaço que temos disponível neste artigo. essa substituição havia iniciado antes da 1ª Guerra Mundial, graças à existência de relações de produção tipicamente capitalistas nesses países desde meados do século XIX. Desde uma perspectiva metodológica que articula os polos internos e externos, Bambirra localiza a origem das relações tipicamente capitalistas presentes nesses países na Segunda Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra, momento de expansão do capitalismo mundial que foi marcado pela produção industrial destinada à produção em série de máquinas que produziam máquinas (BAMBIRRA, 2013BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Trad. Fernando Correa Prado; Marina Machado Gouvêa. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2013., p. 65).

A partir disso, os países centrais experimentaram aumento exponencial na demanda por produtos primários, de modo que os países dependentes, adequando-se a tais necessidades, expandiram os seus setores produtivos como resultado das exigências do capitalismo mundial. A modernização das economias dependentes, segundo ela, passa então a responder a duas ordens de necessidades do capitalismo mundial: a) ao aumento da produção de matéria prima e dos produtos agrícolas que satisfaçam a demanda dos países centrais; b) expansão dos mercados internos dos países dependentes como meio de viabilizar a absorção dos produtos manufaturados importados dos países de capitalismo central (BAMBIRRA, 2013BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Trad. Fernando Correa Prado; Marina Machado Gouvêa. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2013., p. 66).

Essas “transformações modernizadoras” iniciadas na segunda metade do século XIX, no plano internacional, segundo Bambirra, permitiram que internamente, nas formações dependentes, as relações capitalistas de produção se generalizassem e passassem a exercer predomínio sobre as demais formas de exploração pré-capitalistas. Nessa perspectiva, ao analisar a estrutura de classes desse período, Theotonio dos Santos traça um panorama que nos remete ao processo de subsunção real do trabalho ao capital:

Como resultado do desenvolvimento capitalista do campo, [...] camponeses [...] se viram obrigados a comprar produtos agrícolas que já não conseguiam produzir [...]. Além disso, já não podiam utilizar os bosques vizinhos para a obtenção de madeira, caça e outros recursos que contavam no passado. O desenvolvimento das relações mercantis os fez vender uma parte cada vez maior de sua produção, submetendo-os às leis do mercado, sobre as quais não têm nenhum controle, e em geral desconhecem (SANTOS, 1994SANTOS, Theotonio. Evolução histórica do Brasil: da colônia à crise da Nova República. Petrópolis, Vozes, 1994., p. 36, itálico nosso).

Esse impacto experimentado pelas relações de produção locais, que se desdobra também para a reorganização das relações de classe, impacta também as forças produtivas por meio da “introdução de novos instrumentos e sistemas de produção e de transporte, aumentando sua capacidade de capitalização, o que tem como resultado o crescimento da capacidade produtiva do setor exportador” (BAMBIRRA, 2013BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Trad. Fernando Correa Prado; Marina Machado Gouvêa. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2013., p. 70).

Em outras palavras, esse processo resulta na industrialização subordinada desses países dependentes ao setor exportador. Somente nos momentos de debilidade dos laços entre os países satélites e as metrópoles é que passa a existir uma abertura para o processo de substituição de importações a que nos referíamos anteriormente, seja pela demanda insatisfeita imposta pelas restrições às importações, seja pelo aproveitamento das divisas decorrentes das exportações de matérias primas para os países beligerantes (BAMBIRRA, 2013BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Trad. Fernando Correa Prado; Marina Machado Gouvêa. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2013., p. 75).

Apesar dos impulsos industriais autônomos ocasionados por esses períodos de debilidade, os países satélites encontram-se estruturalmente limitados pela relação de dependência estabelecida entre eles e os centros hegemônicos. Em termos mais claros, o que nos diz Bambirra (2013BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Trad. Fernando Correa Prado; Marina Machado Gouvêa. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2013., p. 77), é que esses períodos de relativo desenvolvimento industrial tendem a subordinar o setor agroexportador, mas sem jamais superá-lo, pois é dele que dependem a sua existência e permanência, uma vez que, em última instância, a manutenção do setor agroexportador, nos países satélites, é uma exigência do próprio capitalismo mundial:

[…] a situação de dependência em relação aos centros hegemônicos condicionou os marcos gerais das estruturas econômicas produtivas dos países atrasados e […], ao mesmo tempo, estas estruturas são definidas em função das possibilidades de desenvolvimento do capitalismo dependente (BAMBIRRA, 2013BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Trad. Fernando Correa Prado; Marina Machado Gouvêa. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2013., p. 74).

O que há de comum nos autore(a)s mencionado(a)s (Gunder Frank6 6 No caso de Gunder Frank, Marini (2000, p. 109) aponta que sua debilidade está precisamente no tratamento indiferenciado entre esses dois conceitos: colonialismo e dependência. , Bambirra e Santos)7 7 Apesar de ser importante mencionar a sua existência, não temos espaço para abordar aqui a crítica, talvez excessiva, que Dussel (2008, p. 323-326) direciona a Bambirra e Santos, no que diz respeito principalmente à ausência, segundo ele, de um fundamento teórico pautado em categorias marxianas, sendo mais hesitante sobre este mesmo ponto com relação a Gunder Frank. , portanto, é a relação de dependência como relação estruturante que marca e circunscreve a formação social e econômica latino-americana no mercado mundial e cujo fundamento, segundo Ruy Mauro Marini (2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 165), é a superexploração da força de trabalho:

[...] as funções que a América Latina desempenha na economia capitalista mundial transcendem à simples resposta aos requerimentos físicos induzidos pela acumulação nos países industriais. Além de facilitar o crescimento quantitativo destes, a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção da mais-valia absoluta à da mais-valia relativa, isto é, que a acumulação passa a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador. No entanto, o desenvolvimento da produção latino-americana, que permite à região coadjuvar estas mudanças qualitativas nos países centrais, dar-se-á fundamentalmente com base numa maior superexploração do trabalhador. É este caráter contraditório da dependência latino-americana que determina as relações de produção no conjunto do sistema capitalista, que deve reter nossa atenção. (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 113).

Dussel (2013DUSSEL, Enrique. Hacia un Marx desconocido: un comentario a los manuscritos del 61-63. 1.ed. Buenos Aires: Docencia, 2013., p. 326), que, apesar de considerar o estudo de Marini como aquele que mais se aproximou da “maneira como Marx tratava as questões”, crítica a sua conclusão. Para Dussel (2013, p. 327), teria ocorrido uma inversão entre o polo principal e secundário da questão, ou seja, Marini teria se equivocado ao confundir um mecanismo de compensação com uma determinação essencial:

A questão é exatamente ao contrário. Porque existe transferência de mais-valia de um capital global nacional menos desenvolvido para outro mais desenvolvido, e é esta a essência ou fundamento da dependência (diria Marx), é necessário compensar dita perda extraindo mais mais-valia do trabalho vivo periférico. O capitalismo dependente então faz cair o valor do salário por baixo do valor necessário para reproduzir a capacidade de trabalho [...], e, por outro lado, aumenta a intensidade do uso do trabalho diminuindo relativamente, e de uma nova maneira, o tempo necessário para reproduzir o valor do salário. Marini se equivoca, como dissemos ao princípio, ao confundir a essência com o seu efeito. (DUSSEL, 2013DUSSEL, Enrique. Hacia un Marx desconocido: un comentario a los manuscritos del 61-63. 1.ed. Buenos Aires: Docencia, 2013., p. 327).

A crítica de Dussel a Marini parece assentar num procedimento menos dialético que lógico-formal e deixa transparecer uma abordagem até certo ponto mecânica e genética entre aquilo que seria a transferência de valor ou de mais-valia entre capitais globais, por um lado, e a superexploração da força de trabalho como mecanismos de compensação, por outro; portanto, entre polos que constituem uma mesma unidade na qual ambos são, ao mesmo tempo, causa e efeito. Quando Marini ressalta o papel da superexploração da força de trabalho, acreditamos, ele está preocupado em determinar a legalidade específica pela qual é regida a dependência, não em estipular uma relação de fundamento e efeito, que é por onde caminham a leitura e a crítica de Dussel. Veremos que transferência de valor e superexploração da força de trabalho estão umbilicalmente ligadas e sofrem determinações mútuas.

4. Capitalismo dependente e forma jurídica

4.1. Transferência de mais-valia e superexploração da força de trabalho

A relação de dependência, conforme vimos no tópico anterior, caracteriza a forma pela qual a América Latina foi integrada ao mercado capitalista mundial, sendo a superexploração da força de trabalho o seu fundamento. Para Marini (2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 107-108), desde o século XVI, “a América Latina se desenvolve em estreita consonância com a dinâmica do capitalismo internacional”. Levada até as últimas consequências, a única forma de romper com a dependência, seria romper com as relações de produção capitalistas8 8 É interessante notar que em sua “reavaliação” da Dialética da Dependência, Marini evidencia a impossibilidade de se alterar as relações capitalistas dependentes de produção a partir do desenvolvimento das forças produtivas: “a superexploração não corresponde a uma sobrevivência de modos primitivos de acumulação de capital, mas é inerente e cresce correlativamente da força produtiva do trabalho” (MARINI, 2000, p. 163). , e não promover, por exemplo, maior industrialização:

[Relação de dependência quer dizer] relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo âmbito as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. O fruto da dependência só pode assim significar mais dependência e sua liquidação supõe necessariamente a supressão das relações de produção que ela supõe. (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 109, itálico nosso).

O argumento de Marini caminha no sentido de que a grande indústria moderna e o próprio processo de subsunção real do trabalho ao capital9 9 “[...] a inserção da América Latina ao mercado mundial contribuiu para desenvolver o modo de produção especificamente capitalista” (MARINI, 2000, p. 115, itálico nosso). somente foram possíveis em razão da existência dos países dependentes, especialmente os países latino-americanos, responsáveis pelos meios de subsistência de origem agropecuária (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 111). Essa tese é importante porque permite a Marini diferenciar aumento de produtividade de produção de mais-valia, diferenciação esta que reside no seguinte mecanismo:

[...] o que determina a cota de mais-valia não é a produtividade do trabalho em si, mas o grau de exploração do trabalho, ou seja, a relação entre o tempo de trabalho excedente [...] e o tempo de trabalho necessário [...]. Só a alteração dessa proporção [...] mediante o aumento do trabalho excedente sobre o necessário, pode modificar a cota de mais-valia. Para isto, a redução do valor social das mercadorias deve incidir em bens necessários à reprodução da força de trabalho [...]. (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 114-115).

A partir dessa distinção é que se compreende um dos trechos citados anteriormente, no qual Marini registra a ideia de que a legalidade assumida pelas relações capitalistas de produção latino-americanas permitiu o deslocamento da produção de mais-valia absoluta para a mais-valia relativa no âmbito das relações de produção dos países centrais. A produção dessa mais-valia relativa, contudo, vincula-se à redução do valor dos bens necessários à reprodução da força de trabalho (trabalho necessário) ou, simplesmente, àquilo que Marini (2000, p. 115) chamou de “desvalorização dos bens-salários”.

Portanto, aumento de produtividade, seja ele levado a cabo pelo capitalista individual, seja ele generalizado para o conjunto de determinado setor produtivo, não acarreta necessariamente aumento da cota de mais-valia, uma vez que a relação entre trabalho excedente e necessário não é por ele afetada. Essa modificação do grau da exploração depende, assim, da desvalorização do valor dos bens necessários à reprodução da força de trabalho. Aqui reside o papel desempenhado pela economia latino-americana no capitalismo mundial.

Entretanto, Marini (2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 116) constata que esse processo que permitiu o deslocamento da produção da mais-valia é acompanhado por uma importante contradição da acumulação capitalista que consiste na queda da taxa de lucro como decorrência da baixa do capital variável em relação ao capital constante (elevação da composição-valor do capital), resultante do aumento da produtividade e, simultaneamente, de maior mais-valia relativa:

[...] das funções que lhe foi atribuída [para a América Latina], no âmbito da divisão internacional do trabalho, foi a de promover aos países industriais dos alimentos que exigia o crescimento da classe operária [...]. O efeito dessa oferta será o de reduzir o valor real da força de trabalho nos países industriais, permitindo que o incremento da produtividade se traduza ali em cotas de mais-valia cada vez mais elevadas. (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 115).

Uma contradição como aquela apontada por Marini, segundo ele, somente pode ser “superada” por meio de mecanismos de compensação que permitam o restabelecimento do declínio da taxa de lucro, o que seria obtido por meio de dois procedimentos: i) incremento ainda maior da mais-valia; ii) redução do valor do capital constante. Aqui, Marini traz à baila a relação contraditória entre o aumento da oferta de alimentos e matérias-primas no mercado mundial acompanhado do declínio dos seus respectivos preços, se comparados com os preços dos produtos manufaturados (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 116-117). Como diria Pazello (2016______. Contribuições metodológicas da teoria marxista da dependência para a crítica marxista ao direito. In: Direito e Práxis. Rio de Janeiro, Vol. 07, N. 13, p. 540-574, 2016., p. 557), “trocando em miúdos”, busca-se entender as razões que permitiram aumento de oferta e concomitante queda dos preços das matérias-primas, de um lado, e manutenção ou aumento dos preços das manufaturas, de outro, processo que Marini (2000, p. 117) denomina de “deterioração dos termos de troca”10 10 A hipótese da deterioração dos termos de troca foi exposta primeiramente por Raúl Prebisch (“hipótese Prebisch-Singer”). Para uma noção geral a respeito, conferir CEPAL. Términos de intercambio. 15 p. Disponível em: https://biblioguias.cepal.org/ld.php?content_id=31922063. Acesso em: outubro de 2021. e que se reflete na depreciação dos bens primários.

Para sermos fieis a Marini, esses mecanismos merecem ser encarados no quadro daquilo que ele denomina de transgressões da lei do valor: “teoricamente, o intercâmbio de mercadorias exprime a troca de equivalentes [...], na prática se observam diferentes mecanismos que permitem realizar a transferência de valor, passando por cima das leis de intercâmbio” (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 120). Dois mecanismos se destacam aqui e operam, cada um, em dimensões diferentes, sendo um interno à produção, e outro circunscrito à inter-relação entre as esferas de produção das diferentes nações. Vejamos como este segundo mecanismo é tratado por Marini:

No segundo caso - a transação entre nações que intercambiam distintos tipos de mercadorias, como manufaturas e matérias-primas - o mero fato de que umas produzem bens que as demais não produzem, ou não o podem fazer com a mesma facilidade, permite que as primeiras eludam a lei do valor, isto é, vendam seus produtos a preços superiores a seu valor, configurando assim um intercâmbio desigual. Isto implica que as nações desfavorecidas devam ceder gratuitamente parte do valor que produzem. (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 121, itálico nosso).

Para compensar essa troca desigual da transferência de valores é que surge, no âmbito da produção, o mecanismo de compensação identificado por Marini (2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 122): o processo de maior exploração levado a cabo pelos capitalistas, seja aumentando a intensidade do trabalho, seja prolongando a jornada de trabalho, ou ainda, combinando as duas formas anteriores de exploração. Isso é que explicaria, segundo ele, a contraditória relação entre os preços de mercado e o valor da produção desses bens primários. A perda de renda das nações periféricas no mercado mundial encontra na maior exploração da força de trabalho a compensação necessária para “corrigi-la”: “o que aparecia como um mecanismo de compensação a nível do mercado é de fato um mecanismo que opera ao nível da produção interna” (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 123).

A dependência latino-americana, nesse sentido, sustenta Marini (2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 126), negará “ao trabalhador as condições necessárias para repor os desgastes de sua força de trabalho”, o que significa que “o trabalho se remunera por baixo de seu valor”, relação que caracteriza a superexploração da força de trabalho, que é constituída por três mecanismos que se combinam: a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parcela do trabalho necessário, que é o mesmo que a impossibilidade de que o trabalhador consuma os bens indispensáveis à conservação de sua força de trabalho (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 125-126).

Neste ponto é que Pazello constata a imbricação entre a crítica de Pachukanis da forma jurídica com as contribuições de Marini a respeito da especificidade do capitalismo dependente latino-americano. Segundo Pazello, o ponto de cruzamento entre ambos reside naquilo que, na primeira seção, chamamos de fundamento das dimensões relacional e normativa da forma jurídica: a subjetividade jurídica:

A partir daqui, entrará em cena uma nova personagem: o sujeito de direito que faz circular a mercadoria força de trabalho sob condições limítrofes ao intercâmbio desigual de escala mundial (e não só ao intercâmbio desigual padronizado que caracteriza a relação trabalhador-capitalista) - o trabalhador superexplorado. Estas condições limítrofes conferem ao assalariamento níveis agudos de desregulamentação (não proteção formal) contratual trabalhista, apresentando-se com isso, coerentemente à estrutura socioeconômica dependente, um direito deficitário quanto à expressão da vontade livre de seus sujeitos ou, se quisermos, uma forma jurídica ‘dependente’. (PAZELLO, 2016______. Contribuições metodológicas da teoria marxista da dependência para a crítica marxista ao direito. In: Direito e Práxis. Rio de Janeiro, Vol. 07, N. 13, p. 540-574, 2016., p. 558, itálico nosso).

A partir das reflexões de Ricardo Pazello, portanto, surge um problema incontornável para nós que caminhamos pela crítica marxista do direito de matriz pachukaniana: a adequação ou não de se falar de uma forma jurídica dependente e de uma relação jurídica dependente. Pazello apenas lançou as bases do problema e alguns traços metodológicos fundamentais que aproximam Pachukanis e Marini e que, segundo ele, podem contribuir para fazer avançar as análises em torno deste tema. Contudo, como ele próprio reconhece, “um campo imenso ainda há por se constituir” (PAZELLO, 2016______. Contribuições metodológicas da teoria marxista da dependência para a crítica marxista ao direito. In: Direito e Práxis. Rio de Janeiro, Vol. 07, N. 13, p. 540-574, 2016., p. 570).

4.2. Forma jurídica dependente: dimensão relacional

Nosso pressuposto, portanto, é a adequação da reflexão de Pazello a respeito de uma forma jurídica dependente que, por consequência, segundo nossa compreensão, se desdobra em relação dependente e normatividade dependente, fundadas, por conseguinte, numa subjetividade jurídica igualmente dependente. Diríamos que a dimensão relacional da forma jurídica da dependência permanece sendo o ponto mais difícil e problemático de demonstração. Quando Pazello fala de um “direito deficitário quanto à expressão da vontade livre de seus sujeitos”, ele nos coloca diante de uma hipótese que é pertinente precisamente ao aspecto relacional da dependência jurídica.

Mas seria essa hipótese suficiente? Não, ainda que seja um começo bastante genuíno. Ciente disso, Pazello levanta três conclusões provisórias que podem nos ser úteis se encaradas como uma verdadeira agenda de pesquisa no estudo da dimensão relacional: i) a investigação teórica sobre a relação jurídica de dependente; ii) análise de casos em que esteja presente a relação jurídica como garantidora da relação de dependência, isto é, dos momentos de transferência de valor e de superexploração da força de trabalho; iii) o estudo da relação jurídica nas relações internacionais (PAZELLO, 2016______. Contribuições metodológicas da teoria marxista da dependência para a crítica marxista ao direito. In: Direito e Práxis. Rio de Janeiro, Vol. 07, N. 13, p. 540-574, 2016., p. 565-570).

De certo modo, Pazello avança na busca por essas determinações da relação jurídica dependente quando tenta captar, a partir de dois estudos de casos produzidos por Marini, Arteaga García e Sotelo Valencia (1983MARINI, Ruy Mauro et al. Análisis de los mecanismos de protección al salario en la esfera de la producción. Secretaria del Trabajo y Previsión Social. México: Cuadernos Laborales, 1983.), a dimensão relacional da forma jurídica dependente, ainda que reconheça a presença mais evidente da dimensão normativa:

Em síntese, podemos dizer que a preocupação com a superexploração do trabalho conduz a investigação dos três autores, que a estudam e, ao fazê-lo, estudam as relações jurídicas que dela se depreendem. Metodologicamente, podemos dizer que a proposta segue o caminho de analisar a lei, mas não se reduzir a ela, sendo necessário enredar-se na pesquisa sobre as relações jurídicas concretas. Na prática, fizeram‐no estudando contratos individuais e coletivos de trabalho, bem como entrevistando os trabalhadores contraentes. A partir daí, como o foco eram os mecanismos de proteção do salário, contrastam as situações individuais e contratuais com os alcances, limites e lacunas da legislação e dos contratos coletivos. (PAZELLO, 2016______. Contribuições metodológicas da teoria marxista da dependência para a crítica marxista ao direito. In: Direito e Práxis. Rio de Janeiro, Vol. 07, N. 13, p. 540-574, 2016., p. 564).

No estudo teórico da dimensão relacional da forma jurídica dependente, nos deparamos, ademais, com as recentes incursões de Alessandro da Silva, que, a partir da tese da superexploração da força de trabalho, conclui que nos países periféricos o que ocorre é a violação da equivalência jurídica, acompanhada de maior intervenção arbitraria na relação entre os sujeitos jurídicos:

Como a equivalência está no âmago do direito, a ponto de caracterizar o elemento constitutivo das relações sociais em relações jurídicas, mas é reiteradamente violada no capitalismo dependente, nessas formações sociais a forma jurídica é incapaz de garantir a igualdade formal entre os sujeitos de direito, de modo que sua instância jurídica apresenta baixo grau de autonomia em face da política e, como tal, é extremamente suscetível a intervenções fundamentadas no mero exercício do poder. (SILVA, 2019SILVA, Alessandro. O direito na periferia do mundo: apontamentos sobre o funcionamento da instância jurídica no capitalismo dependente. In: REBELA, v.9, n.3. set./dez. p. 403-429, 2019., p. 422-423, itálico nosso).

Até certo ponto, parece-nos que inexistem elementos suficientes que corroborem a tese de Alessandro (2019) de que nas economias periféricas e dependentes “a forma jurídica é incapaz de garantir a igualdade formal entre os sujeitos de direito”. Neste ponto, mais cautelosa nos parece ser a intuição de Pazello sobre uma manifestação “deficitária” da vontade dos sujeitos de direito numa economia dependente. Por outro lado, a ideia de uma violação da equivalência jurídica nos parece próspera11 11 De algum modo, essa ideia já vinha sendo formulada por Pazello e Camargo Neto, ainda que em termos mais implícitos e brandos do que a posição adotada por Alessandro da Silva: “[...] pode-se sustentar que na periferia ambas as equivalências [mercantil e jurídica] trocadas ocultam uma relação muito mais radical do que aquela existente nas economias centrais. Do lado do sujeito de direito, esta diferença recai no problema da superexploração do trabalho, que leva à linha da miséria grandes contingentes da população periférica, e coloca numa posição mais radical a desigualdade entre os indivíduos; do lado da mercadoria, entra em cena a troca desigual protagonizada pelas transferências de mais-valia, lucro e mais-valia extraordinária, que, igualmente, levam à raiz da contradição da acumulação capitalista”. (PAZELLO; CAMARGO NETO, 2015, p. 193). , ainda que careça de demonstração e aprofundamento, sendo um bom sintoma inicial os estudos empíricos citados por Alessandro (2019) em seu artigo.

4.3 Forma jurídica dependente: dimensão normativa

A dimensão normativa, igualmente estruturada pela relação de equivalência entre os sujeitos jurídicos, é dependente da dimensão relacional. Esse é o elemento que, segundo Pachukanis, a diferencia das demais normas. Portanto, se formos rigorosos, as dificuldades que encontramos na dimensão relacional da forma jurídica, também se farão presentes na dimensão normativa, já que ambas são estruturadas pelo princípio da equivalência.

Independentemente disso, percebemos na literatura dedicada à formação social e econômica latino-americana e brasileira diversas intuições de como a normatividade é afetada pelas relações de produção capitalistas e suas formas específicas de manifestação em nossa região. Pazello, como dissemos, se refere à dimensão normativa como dimensão aparente. Um importante referencial, nesse sentido normativo ou aparente da forma jurídica dependente pode ser localizado, por exemplo, em Carlos María Vilas.

Segundo Vilas (1974VILAS, Carlos María. Derecho y Estado en una economía dependiente. 1.ed. Buenos Aires: Guadalupe, 1974., p. 78-80), a década de 1950 foi marcada pela desintegração das alianças nacionais e por uma maior internacionalização ou estrangeirização da sociedade. Houve naquele momento uma crescente associação entre os países periféricos e o capital estrangeiro, por meio de alianças com as corporações monopólicas, com o fim de realizar o projeto de substituição de importações. Nesse mesmo período, também se verificou um crescente investimento de origem estrangeira, isto é, um processo de incorporação do capital externo ao mercado interno. A consequência desse processo foi a redefinição dos alinhamentos de classe e grupos sociais, marcada por frações que lograram e outras que não lograram se aliar com o capital estrangeiro.

Essa situação de dependência corresponderia, segundo Vilas, à estrangeirização do capital ou associação entre as burguesias locais e as burguesias imperialistas, sobretudo norte-americana e inglesa. No caso dos ingleses, os investimentos teriam ocorrido visando a exportação para a metrópole; já no caso norte-americano, os investimentos visavam a implementação de unidades de produção por meio de multinacionais no mercado interno, o que exigia, no caso argentino, o abandono da orientação nacionalista e estatizante que havia marcado o governo peronista.

À luz dessas modificações por ele apreendidas, o objetivo de Vilas passa a ser a análise das “manifestações jurídicas da nova situação de dependência e sua consolidação” (VILAS, 1974VILAS, Carlos María. Derecho y Estado en una economía dependiente. 1.ed. Buenos Aires: Guadalupe, 1974., p. 170, itálico nosso). Diante disso, ele nos dirá que:

O ordenamento jurídico de uma sociedade dependente formaliza assim a respectiva estrutura de dominação social, e essa formalização se alcança, seja através da incorporação à ideologia jurídica dominante no país dependente, das teorias, dos métodos de interpretação, das doutrinas, dos critérios jurisprudenciais, desenvolvidos nos países centrais para fortalecer o predomínio de suas próprias classes dominantes [...], seja através da criação de um sistema jurídico-positivo diretamente orientado a fomentar o desenvolvimento dos interesses políticos e econômicos estrangeiros: garantias aos investimentos estrangeiros, privilégios financeiros, aduaneiros, impositivos ou similares, regimes especiais de promoção, etc. (VILAS, 1974VILAS, Carlos María. Derecho y Estado en una economía dependiente. 1.ed. Buenos Aires: Guadalupe, 1974., p. 116-117, itálico nosso).

Assim, em sua dimensão normativa ou aparente, segundo Vilas, o que marca a normatividade jurídica é a formalização da relação de dependência e incorporação das produções ideológicas dominantes para as formações periféricas. Orientado por essa noção, Vilas passa a analisar as modificações do ordenamento jurídico dependente a partir de 1955, na Argentina. Um dos aspectos importantes neste ponto de sua análise diz respeito a discussão que se instaurou na Argentina, entre 1955 e 1958 (período do golpe que depôs Peron), em torno da derrogação da Constituição de 1949 como pretexto para permitir que colocassem em curso as reformas liberalizantes, então “limitadas” pelo art. 40 do texto constitucional12 12 Há uma versão digital da Constituição argentina de 1949 com um comentário preliminar de Zaffaroni (p. 15-37) a respeito desse tema. Disponível em http://www.jus.gob.ar/media/1306658/constitucion_1949.pdf. Acesso em: outubro de 2021. . Este seria, portanto, um exemplo de como a ordem jurídico-normativa teria formalizado a situação de dependência.

Apesar de todos os limites da análise de Vilas, limites estes apontados desde a matriz marxista e pachukaniana, é preciso reconhecer o mérito de sua tentativa de aproximar o direito da relação de dependência, tarefa que realiza por meio de análise de instrumentos normativos, da jurisprudência e também de relatórios e jurídicos, políticos e econômicos publicados entre as décadas de 1950 e 1970, na Argentina.

Em busca de outras fontes que nos permita investigar essa dimensão aparente da do direito, nos deparamos com Celso Furtado (2005FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 32.ed. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 2005., p. 107-108), que também chama nossa atenção para o aspecto jurídico-normativo na formação social e econômica brasileira, mas, dessa vez, para ressaltar os seus limites. Ao criticar as abordagens que tentam explicar as dificuldades do desenvolvimento da manufatura no país em razão das legislações que proibiam atividades manufatureiras por aqui, Furtado (2005, p. 109) não faz senão afirmar aquilo que Marx (2012MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 31) já nos dizia sobre o direito jamais poder ultrapassar a forma econômica do desenvolvimento cultural a que ele próprio está condicionado.

Alberto Passos Guimarães, por sua vez, propõe uma leitura da dimensão normativa como instrumento correspondente às relações semifeudais. Segundo Guimarães, muitos abolicionistas acreditavam que o fim da escravidão levaria ao fracionamento da terra. Entretanto, as legislações do período teriam, segundo Guimarães (1968, p. 39), contribuído para reaglutinar e manter intacto o sistema latifundiário, peça chave nas relações semifeudais. Já o estudo de Sabrina Fernandes aponta para outra direção. Fernandes enxerga nos instrumentos legais mencionados por Alberto Passos, como a lei de colação de serviços e os contratos de parceria, uma espécie de requisito prévio para a convocação da força de trabalho imigrante para o Brasil como mecanismo favorável ao estabelecimento da relação de assalariamento (FERNANDES, 2015FERNANDES, Sabrina Bowen Farhat. Da passagem do trabalho escravo ao trabalho assalariado no Brasil à luz da teoria geral do direito de E. Pachukanis: o fenômeno jurídico na formação do capitalismo brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 105 p., 2015., p. 89).

Ignácio Rangel (1999______. Dualidade básica da economia brasileira. 2.ed. Instituto Ignácio Rangel, 1999., p. 35) é outro autor que dedica uma seção ao tema da normatividade jurídica a partir da sua concepção de dualidade: “o direito, como a economia, deve ser dúplice, e a esse resultado chegamos pelo conflito entre um direito civil que tende a tudo imobilizar, à semelhança da terra, e um direito comercial, que tende a tudo mobilizar, inclusive a própria terra”. Nessa mesma perspectiva normativa, Gorender (2016GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo, 2016., p. 94) também afirma, de acordo com sua interpretação da formação social brasileira, que “o escravo conseguiu o reconhecimento como sujeito de delito e também como objeto de delito”.

Retomando interpretação da formação social e econômica pelo viés da crítica dependentista, pensamos que a dimensão normativa da crítica pachukaniana da forma jurídica, apesar de transparecer maior facilidade numa articulação com as relações de dependência, guarda a mesma dificuldade assumida pela dimensão relacional, se pensarmos, reiteramos isso, que o ponto comum e estruturante de ambas as dimensões é a figura da equivalência, o que exige que localizemos as determinações da dependência no âmago da própria subjetividade jurídica. Portanto, a ideia de Alessandro da Silva a respeito de uma violação da equivalência jurídica, somada à noção de Pazello sobre uma manifestação deficitária da vontade do sujeito de direito dependente, podem contribuir tanto na dimensão relacional como na dimensão normativa da forma jurídica dependente.

Conclusão

Nossa pretensão neste texto foi contribuir com a reflexão sobre a necessidade de articulação da crítica pachukaniana da forma jurídica com as interpretações que pontuam a especificidade assumida pelas relações capitalistas de produção em determinadas formações sociais, como é o caso latino-americano. Dentre as tentativas de caracterização da formação social brasileira e latino-americana, demos maior atenção à leitura marxista da dependência, abordando, secundariamente, outras interpretações. Na primeira seção deste artigo, abordamos a crítica da forma jurídica de Pachukanis desde uma dupla dimensão, sendo uma relacional e outra normativa, sem perder de vista seu fundamento comum: a equivalência que estrutura a subjetividade jurídica.

Em seguida, com o auxílio da exposição que fizemos na segunda seção, reservada ao tema da relação entre modo de produção e formação social e econômica, tentamos aclarar ou refinar nossa hipótese, isto é, a ideia segundo a qual a relação entre capitalismo dependente e forma jurídica pode ser melhor compreendida tomando em conta um problema prévio e geral que se refere à relação entre forma jurídica e formação social e econômica concreta.

Construídas as bases do problema e da hipótese, na terceira seção, voltamos nosso olhar precisamente para alguns trabalhos clássicos que se dedicaram ao estudo do caráter da formação social e econômica latino-americana e brasileira, especialmente a partir daquelas obras que forneceram as bases da crítica da dependência, mas sem nos restringirmos a elas. Em seguida, na quarta seção, recorremos à crítica de Marini, especialmente ao tema da transferência de valor e da superexploração da força de trabalho.

Precisamente por considerarmos, em consonância com as reflexões de Pazello, que as contribuições teórico-metodológicas de Marini constituem um caminho próspero para as investigações sobre a historicidade da forma jurídica no capitalismo dependente, fizemos a quarta seção se desdobrar em outras duas subseções, cada qual reservada às duas dimensões da forma jurídica. Neste ponto, tentamos expor o problema e também algumas contribuições contemporâneas que serão úteis na busca pela adequação e pertinência de falarmos (ou não) de uma forma jurídica dependente relacional e normativa, o que exigirá a demonstração de como a dependência afeta a própria subjetividade jurídica, isto é, o sujeito de direito dependente.

Não podemos perder de vista que a teoria marxista da dependência nos permite verificar tanto as especificidades assumidas pelo capitalismo na formação social e econômica latino-americana quanto a forma de manifestação dessas particularidades na universalidade do capitalismo mundial. Portanto, o primeiro passo para descobrirmos as determinações da dependência na forma jurídica tal como ela se realiza historicamente em nossa região não pode prescindir desse segundo momento: a manifestação relacional das particularidades da forma jurídica dependente na universalidade da própria forma jurídica abstrata.

É preciso que tenhamos exata compreensão a respeito do problema que tentamos abordar, pois somente assim seremos capazes de formular hipóteses mais refinadas para, a partir disso, oferecermos respostas adequadas ao problema da relação entre forma jurídica e formação social e econômica concreta, que, como tentamos demonstrar, no nosso caso particular, diz respeito à relação entre a dependência, cujo fundamento passa pela superexploração da força de trabalho, e a crítica da forma jurídica em sua dupla dimensão, cujo fundamento último assenta na subjetividade jurídica dependente.

Acrescentamos, por fim, um registro sobre a imprescindível necessidade de que no estudo da forma jurídica dependente, a relação de exploração, tal como a especificidade por ela assumida na América Latina, seja considerada no interior da unidade articulada que ela integra junto com as demais opressões, cuja forma dada ao conjunto vem moldada pela relação de capital (BENSAID, 2008BENSAID, Daniel. Os irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo presente. Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 40), com especial atenção, no caso brasileiro, à opressão racial. Até aqui, a noção tendencial da violação ou do deficit que recai sobre a forma jurídica, em nossa formação social e econômica, parece apontar para um caminho bastante profícuo, mas que ainda precisa ser explorado e revelado.

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    » http://www.jus.gob.ar/media/1306658/constitucion_1949.pdf
  • 1
    A respeito das formas sociais, Mascaro (2013MASCARO, Alysson. Estado e forma política. 1.ed São Paulo: Boitempo, 2013., p. 21) argumenta ser necessário compreendê-las como resultado de um processo relacional e histórico que representa o modo pelo qual determinadas realidades são objetivadas e chegam a constituir formas próprias de manifestação.
  • 2
    A maior contribuição para esse tema, sem dúvidas, diz respeito à produção de Celso Naoto Kashiura Jr. (2009KASHIURA JR., Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. 1.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009.; 2014; 2020).
  • 3
    A respeito da contribuição original de Márcio Bilharinho Naves sobre o tema, conferir A Questão do Direito em Marx (2014______. A Questão do Direito em Marx. 1.ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014.)
  • 4
    Fizemos o esforço de esboçar o quadro geral dos desdobramentos políticos dessas teses em Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Jr.: um debate em torno da linha política do PCB de 1958 (Farias, 2020FARIAS, João Guilherme A. Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Jr.: um debate em torno da linha política do PCB de1958. Revista Orbis Latina, vol.10, nº 1, Foz do Iguaçu/ PR (Brasil), Janeiro-Junho de 2020. ISSN: 2237-6976.).
  • 5
    Bambirra trabalha no capítulo terceiro de sua mencionada obra com tipologias que vão muito além do espaço que temos disponível neste artigo.
  • 6
    No caso de Gunder Frank, Marini (2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 109) aponta que sua debilidade está precisamente no tratamento indiferenciado entre esses dois conceitos: colonialismo e dependência.
  • 7
    Apesar de ser importante mencionar a sua existência, não temos espaço para abordar aqui a crítica, talvez excessiva, que Dussel (2008, p. 323-326) direciona a Bambirra e Santos, no que diz respeito principalmente à ausência, segundo ele, de um fundamento teórico pautado em categorias marxianas, sendo mais hesitante sobre este mesmo ponto com relação a Gunder Frank.
  • 8
    É interessante notar que em sua “reavaliação” da Dialética da Dependência, Marini evidencia a impossibilidade de se alterar as relações capitalistas dependentes de produção a partir do desenvolvimento das forças produtivas: “a superexploração não corresponde a uma sobrevivência de modos primitivos de acumulação de capital, mas é inerente e cresce correlativamente da força produtiva do trabalho” (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 163).
  • 9
    “[...] a inserção da América Latina ao mercado mundial contribuiu para desenvolver o modo de produção especificamente capitalista” (MARINI, 2000MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. SADER, Emir (Org.). 1.ed. Petrópolis-RJ: Vozes; Buenos Aires: Clacso, 2000., p. 115, itálico nosso).
  • 10
    A hipótese da deterioração dos termos de troca foi exposta primeiramente por Raúl Prebisch (“hipótese Prebisch-Singer”). Para uma noção geral a respeito, conferir CEPAL. Términos de intercambio. 15 p. Disponível em: https://biblioguias.cepal.org/ld.php?content_id=31922063. Acesso em: outubro de 2021.
  • 11
    De algum modo, essa ideia já vinha sendo formulada por Pazello e Camargo Neto, ainda que em termos mais implícitos e brandos do que a posição adotada por Alessandro da Silva: “[...] pode-se sustentar que na periferia ambas as equivalências [mercantil e jurídica] trocadas ocultam uma relação muito mais radical do que aquela existente nas economias centrais. Do lado do sujeito de direito, esta diferença recai no problema da superexploração do trabalho, que leva à linha da miséria grandes contingentes da população periférica, e coloca numa posição mais radical a desigualdade entre os indivíduos; do lado da mercadoria, entra em cena a troca desigual protagonizada pelas transferências de mais-valia, lucro e mais-valia extraordinária, que, igualmente, levam à raiz da contradição da acumulação capitalista”. (PAZELLO; CAMARGO NETO, 2015PAZELLO, Ricardo Prestes; CAMARGO NETO, Rubens Bordinhão. Teoria marxista da dependência e teoria marxista do direito: um possível diálogo entre Marini e Pachukanis. p. . In: GAXIOLA, Napoleón Conde (Compilador). Teoría crítica y derecho contemporáneo. 1.ed. 175-196. México: Editora Horizontes, 2015., p. 193).
  • 12
    Há uma versão digital da Constituição argentina de 1949 com um comentário preliminar de Zaffaroni (p. 15-37) a respeito desse tema. Disponível em http://www.jus.gob.ar/media/1306658/constitucion_1949.pdf. Acesso em: outubro de 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2022
  • Aceito
    23 Out 2022
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