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Cirurgia de alta tecnologia: desafios a enfrentar

Vivemos tempos fascinantes nas atividades cirúrgicas. Há exatos 30 anos, em 1987, Phillipe Mouret realizou a primeira colecistectomia através de uma videolaparoscopia com recursos eletrônicos, dando início a uma histórica revolução que transformou completamente a prática da cirurgia… e os cirurgiões.

Legítimos herdeiros dos cirurgiões-barbeiros, do Século XVI, emblematicamente associados, desde então, à atividades com incisões, sangue e sofrimento, fomos transformados, em um curto espaço de tempo, em profissionais que friamente controlam sofisticados equipamentos eletrônicos através de brilhantes telas nas quais executamos meticulosos procedimentos de elevado risco e precisão. Como resultados, oferecemos a nossos pacientes uma importante redução da dor e sofrimento.

É absolutamente necessário, no entanto, que tal transformação seja colocada em um contexto muito mais amplo, representado pelo grande impacto ocorrido neste mesmo período em praticamente todas as áreas de atividades humanas em consequência da revolução tecnológica. Em especial, é importante compreender que esta revolução, como qualquer outra, traz amplos benefícios associados a graves consequências, requerendo uma elevada capacidade de adaptação à nova realidade.

Thomas Friedman, autor de best-sellers, como “O mundo é plano”, nos apresenta uma excelente análise em seu recente livro “Obrigado pelo atraso”, destacando que a principal característica dos tempos atuais é um alucinante ritmo de mudanças. E nos apresenta também sua mais assustadora consequência: a incapacidade humana de adaptar-se a esta velocidade, produzindo gerações cada vez mais rápidas de excluídos do mercado de trabalho. Da mesma forma, em janeiro deste ano, a renomada revista “Economist”, em um interessante artigo sobre mudanças tecnológicas, afirma que “quando a educação não segue o ritmo da tecnologia, o resultado é a desigualdade ”.

Ensino, desigualdade, exclusão. Devemos extrapolar este raciocínio à cirurgia de alta tecnologia? Não temos dúvidas de que a resposta a esta pergunta é absolutamente afirmativa.

Preenchendo um espaço cada vez maior, anteriormente ocupado por nossas tradicionais pinças, tesouras e afastadores, a cirurgia mínimamente invasiva, seja endoscópica, laparoscópica ou robótica, trouxe consigo uma novidade: os Centros de Treinamento.

Voltemos por um instante às primeiras décadas do século passado. Antes dos avanços na anestesia, antibióticos e suportes ventilatórios, procedimentos de menor porte, como hernioplastias e amputações, eram aprendidos pelos jovens cirurgiões através do contato com seus mestres na prática diária, sem prazos ou programas pré-definidos para sua completa habilitação. A partir dos anos 1940, a crescente complexidade e volume dos procedimentos levaram à necessidade de implantação de programas rígidos e formais, as Residências Médicas, assim denominadas em função do processo de imersão total durante alguns anos, nos quais a habilidade para a realização dos procedimentos cirúrgicos é cuidadosa e progressivamente desenvolvida, sob estrita supervisão de cirurgiões experientes, zelosos pela qualidade e segurança do paciente.

Voltemos aos dias de hoje. Nos modernos centros de treinamento, complexas operações, como retossigmoidectomias ou gastrectomias videolaparoscópicas, são apresentadas em cursos de dois dias, incluindo em alguns casos a simulação em animais. Na plateia, cirurgiões compartilham a frustração da dificuldade de reproduzi-las em sua prática diária devido à indisponibilidade de um preceptor durante sua curva de aprendizado, além da inexistência de equipamentos e materiais adequados em seus hospitais públicos com graves dificuldades econômicas.

Mesmo nos países mais desenvolvidos, a cirurgia de alta tecnologia desenvolve-se predominantemente em hospitais privados, onde existem condições financeiras para a aquisição dos modernos instrumentais, em sua maioria descartáveis de elevado custo. Às universidades ou hospitais de ensino permanece a importante função de formar novos cirurgiões dentro dos corretos e essenciais princípios básicos de cirurgia convencional, não havendo, porém, tempo ou disponibilidade econômica para que seus egressos apresentem uma habilitação compatível com a moderna cirurgia minimamente invasiva.

Assim sendo, é importante reconhecer que o atual modelo de formação do cirurgião necessita uma cuidadosa reavaliação, uma vez que a constante aceleração da cirurgia de alta tecnologia é incompatível com um período único de treinamento restrito à Residência Médica no início da carreira. Por outro lado, cursos de curta duração em centros de treinamento, embora úteis e informativos, são insuficientes para o aprendizado efetivo dos cirurgiões na inexistência de uma estrutura de apoio posterior para que sua curva de aprendizado ocorra dentro dos parâmetros de segurança.

Neste sentido, entidades de caráter científico, como o Colégio Brasileiro de Cirurgiões e as demais Sociedades de especialidades cirúrgicas podem desempenhar um importante papel regulatório, já em andamento por suas congêneres no exterior. Considerando que o frequente lançamento de novos procedimentos e instrumentais de alta tecnologia ocorre em sua maioria por iniciativa da própria indústria, caberia a estas sociedades cirúrgicas assumir o papel de definir prioridades e reais benefícios de cada técnica mediante estudos controlados, reduzindo o espaço para eventuais ações ‘pioneiras’ sem a devida fundamentação, e a pressão sobre os cirurgiões para um infindável esforço de atualização, nem sempre justificado.

Fazendo-se esta ressalva sobre a necessidade de um controle científico, deve-se, no entanto, reconhecer o papel da indústria hoje como a única fomentadora de treinamentos em cirurgias de alta tecnologia, uma vez que os tradicionais centros de ensino, como vimos, encontram-se em sua maioria impossibilitados de exercer esta função.

Assim sendo, seria benéfico para todos que estes recursos fossem investidos através de uma ação coordenada com as sociedades para um planejamento racional e científico de possíveis centros de desenvolvimento de novas técnicas, capazes de proporcionar um adequado treinamento de novos cirurgiões ou mesmo condições de apoios de preceptoria a nível regional para a realização destes procedimentos, considerando as evidentes dificuldades para treinamento de cirurgiões atuando em centros de menor volume ou estruturas mais deficientes.

Acreditamos que a expansão da adoção dos procedimentos cirúrgicos de alta tecnologia não irá ocorrer de forma automática e que, pelo contrário, a manutenção da atual situação irá levar a um quadro de crescente desigualdade e desequilíbrio na prática cirúrgica moderna, tendo como pior consequência a impossibilidade de extender seus benefícios a uma maior parte de nossa população.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2017
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