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Síndrome de burnout em residentes de ginecologia e obstetrícia de uma maternidade-escola

Burnout syndrome in gynecology and obstetrics residents of a teaching maternity unit

RESUMO

Introdução:

Os médicos residentes constituem um grupo de risco para distúrbios emocionais e comportamentais, e isso pode levar à síndrome de burnout e interferir negativamente no atendimento prestado.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivos identificar os estressores vivenciados por residentes de ginecologia e obstetrícia (GO) de uma maternidade-escola do Sul do Brasil e estimar a prevalência da síndrome de burnout entre eles.

Método:

Realizou-se a coleta de dados de agosto a dezembro de 2020 com 21 residentes. A coleta compreendeu duas etapas: na primeira, fez-se uma entrevista semiestruturada, por meio de um roteiro-guia, visando identificar os estressores vivenciados pelos residentes em GO. Na sequência, os participantes receberam um questionário autoaplicável que teve por objetivo medir o nível de burnout pautado no Maslach Burnout Inventory. Para análise dos dados qualitativos, adotou-se a metodologia discurso do sujeito coletivo. Para análise dos dados quantitativos, foi utilizada a descrição analítica dos dados.

Resultado:

Entre os estressores vivenciados pelos residentes, destacam-se: falta de acolhimento pela equipe multiprofissional ao ingressarem na residência; excessiva carga horária de trabalho; poucas horas de sono; o desafio de se tornarem responsáveis pelo próprio aprendizado; as várias abordagens terapêuticas por preceptores diferentes para um mesmo problema; sensação de insuficiência de conteúdo teórico durante a residência; culpa por não estudarem o quanto acreditam que deveriam; diminuição do tempo destinado ao lazer e à atividade física; alto nível de estresse; abalo emocional que a grande responsabilidade assumida acarreta; e falta de apoio psicológico. Dos 21 médicos residentes, a síndrome de burnout esteve presente em 57,1% dos participantes. Exaustão emocional foi a mais frequente dimensão (52,7%), seguida por despersonalização (33,3%) e baixa realização profissional (9,5%).

Conclusão:

Os estressores relatados apontam para necessidade de revisão da residência a fim de que consequências nefastas à saúde mental de residentes, como a síndrome de burnout e suas consequências, sejam prevenidas, diminuídas ou sanadas, de modo a evitar danos tanto para os residentes como para os pacientes por eles atendidos e para instituição de saúde. São propostas medidas profiláticas na busca de melhorias na qualidade de vida, na qualidade do atendimento e, talvez no aspecto mais importante: a mudança de foco, da residência centrada no serviço para a residência centrada no aprendiz.

Palavras-chave:
Residência Médica; Ginecologia; Obstetrícia; Burnout

ABSTRACT

Introduction:

Medical residents constitute a risk group for emotional and behavioral disorders, which can lead to Burnout Syndrome, negatively interfering with the care provided.

Objective:

To identify the stressors experienced by Gynecology and Obstetrics residents of a teaching maternity hospital in southern Brazil and estimate the prevalence of Burnout Syndrome among them.

Method:

Data was collected from August to December 2020 with 21 residents and comprised two stages: the first consisted of a semi-structured interview, using a guide script, aiming to identify the stressors experienced by the GO residents. Subsequently, the participants received a self-administered questionnaire that aimed to measure the level of Burnout based on the Maslach Burnout Inventory. Qualitative data analysis was performed using the Collective Subject Discourse methodology. Quantitative data analysis was performed using the analytical description of the data.

Results:

Among the stressors experienced by residents, the following stand out: lack of acceptance by the multidisciplinary team when entering the residency; excessive workload; lack of sleep; the challenge of becoming responsible for one’s own learning; the various therapeutic approaches by different preceptors for the same problem; feeling of insufficient theoretical content during the residency; guilt for not studying as much as you believe you should; decreased time devoted to leisure and physical activity, high level of stress; emotional upheaval that the great responsibility assumed entails and lack of psychological support. Of the 21 resident physicians, Burnout Syndrome was present in 57.1% of the participants. Emotional exhaustion was the most frequent dimension (52.7%), followed by Depersonalization (33.3%) and Low professional achievement (9.5%).

Conclusion:

The reported stressors point to the need to review the residency so that harmful consequences to the mental health of students, such as Burnout syndrome and its consequences, are prevented, reduced or remedied, avoiding damage to the residents, their patients and the health care institution. Prophylactic measures are proposed in the search for improvements in the quality of life, the quality of care and, perhaps most importantly, the shift in focus from a service-centered residency to a learner-centered residency.

Keywords:
Medical residency; Gynecology; Obstetrics; Burnout

INTRODUÇÃO

A residência médica é uma modalidade de ensino de pós-graduação, destinada a médicos, sob a forma de cursos de especialização, caracterizada por treinamento em serviço, funcionando sob a responsabilidade de instituições de saúde, que pode durar de dois a cinco anos, de acordo com a especialidade. Durante o seu desenvolvimento, os residentes estão frequentemente vivenciando situações estressantes provocadas por sobrecarga de trabalho e responsabilidades, excessivas horas de plantão, queixas de pacientes e familiares, privação de sono, além do sentimento de frustração com a sensação de habilidade e conhecimentos insuficientes, contexto que acarreta modificações no estilo de vida que refletem de maneira negativa em sua qualidade de vida11. Brasil. Portaria Interministerial nº 3, de 16 de março de 2016, altera para R$ 3.330,43 (três mil, trezentos e trinta reais e quarenta e três centavos) o valor da bolsa assegurada aos profissionais de saúde residentes, em regime especial de treinamento em serviço de sessenta horas semanais. Diário Oficial da União; 17 mar 2016 [acesso em 8 dez 2022]. Disponível em: Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/21396034/do1-2016-03-17-portaria-interministerial-n-3-de-16-de-marco-de-2016-21395987 .
http://www.in.gov.br/materia/-/asset_pub...
)-(33. Falcão NM, Campos EM, Simão DA, Sena NS, Ferreira MT. Síndrome de burnout em médicos residentes. Rev Med UFC. 2019;59(3):20-3. doi: https://doi.org/10.20513/2447-6595.2019v59n3p20-23.
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Esse estresse crônico é emocionalmente desgastante e representa um importante risco para o desenvolvimento da síndrome de burnout (SB). Esse distúrbio pode colocar em risco o atendimento ao paciente assistido e provocar prejuízo da relação médico-paciente, desumanização da assistência à saúde, aumento da probabilidade de erros médicos e diminuição da assertividade no cuidado ao paciente e à família dele. Além disso, afeta a capacidade de raciocínio, de retenção de informações, de resolução de problemas e de interpretação de exames, e limita a melhora do paciente, o que, em casos mais graves, pode levar até a morte por erro na tomada de decisão22. Loya-Murguía KM, Valdez-Ramírez J, Bacardí-Gascón M, Jiménez-Cruz A. El síndrome de agotamiento en el sector salud de Latinoamérica: revisión sistemática. JONNPR. 2018;3(1):40-8. doi: https://doi.org/10.19230/jonnpr.2060.
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),(44. Moss M, Good VS, Gozal D, Kleinpell R, Sessler CN. A critical care societies collaborative statement: burnout syndrome in critical care health-care professionals. Am J Respir Crit Care Med. 2016;194(1):106-13. doi: https://doi.org/10.1164/rccm.201604-0708ST.
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.

O conceito de burnout foi introduzido pela primeira vez na década de 1970 pelo psicólogo germânico Herbert Freudenberger, que definiu a síndrome como a exaustão proveniente de uma exigência excessiva de energia, força ou recurso na realização de determinada atividade. O tema foi explorado exaustivamente pela pesquisadora Christina Maslach, que definiu burnout como uma síndrome de exaustão emocional que ocorre frequentemente entre indivíduos que realizam algum tipo de trabalho com pessoas. Caracteriza-se por acometer trabalhadores que sofreram “esgotamento profissional”, cuja ocorrência está relacionada à exposição contínua a estressores emocionais e interpessoais ocupacionais. Em 1999, Christina Maslach e Michael Leiter deram à síndrome de burnout sua definição e caracterização final: uma síndrome composta pelo tripé “exaustão emocional, despersonalização e falta de realização profissional”55. Maslach C, Jackson SE. The measurement of experienced burnout. J Organ Behav. 1981;2:99-113 [2 mar 2020]. Disponivel em: Disponivel em: https://smlr.rutgers.edu/sites/default/files/documents/faculty_staff_docs/TheMeasurementof E xperiencedBurnout.pdf .
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),(66. Silva DC, Loureiro MF, Peres RS. Burnout em profissionais de enfermagem no contexto hospitalar. Psicol Hosp. 2008;6(1):39-51..

A sua prevalência é variável, sendo mais comum em atividades ligadas à prestação de serviços nas áreas da saúde e educação. Em profissionais de saúde da América Latina, a prevalência oscila entre 2% e 76%, e entre os estudantes de Medicina do Brasil é de 13,1%22. Loya-Murguía KM, Valdez-Ramírez J, Bacardí-Gascón M, Jiménez-Cruz A. El síndrome de agotamiento en el sector salud de Latinoamérica: revisión sistemática. JONNPR. 2018;3(1):40-8. doi: https://doi.org/10.19230/jonnpr.2060.
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,77. Pacheco J, Giacomin H, Tam W, Ribeiro T, Arab C, Bezerra I, et al. Mental health problems among medical students in Brazil: a systematic review and meta-analysis. Rev Bras Psiquiatr. 2017;39: 369-78. doi: https://doi.org/10.1590/1516-4446-2017-2223.
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. Esse dado levou à formulação da seguinte questão de pesquisa:

  • Quais são os estressores vivenciados pelos residentes de ginecologia e obstetrícia (GO) e qual é a prevalência da síndrome de burnout entre eles em uma maternidade-escola do Sul do Brasil?

Para responder a essa questão, a presente pesquisa teve como objetivos identificar os estressores vivenciados por residentes de GO de uma maternidade-escola do Sul do Brasil e estimar a prevalência da SB neles.

MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal de natureza qualiquantitativa. O estudo é transversal na medida em que a exposição ao fator ou à causa está presente no efeito, no mesmo momento ou no intervalo de tempo analisado. Optou-se por uma pesquisa de natureza qualiquantitativa porque a forma puramente quantitativa seria limitada para o entendimento do problema em questão, não dando conta de captar as experiências subjetivas dos residentes acerca de seu bem-estar, uma vez que a pesquisa qualitativa apresenta relação dinâmica entre mundo objetivo e subjetividade do sujeito, o que não pode ser traduzido em números. É voltada para a descoberta, identificação, descrição aprofundada e geração de explicações, além de buscar o significado, contemplando o propósito deste estudo88. Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cien Saúde Colet. 2012; 17(3):621-6 [acesso em 17 mar 2020]. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232012000300007&lng=en&nrm=iso .
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O estudo foi desenvolvido em uma maternidade-escola do Sul do Brasil, referência para casos de gestação de alto risco. Nela são realizados atendimentos de casos ginecológicos e obstétricos, tanto de caráter ambulatorial quanto de urgência e emergência. Tem 80 leitos de internação de GO divididos entre gestantes, puérperas e casos ginecológicos. Possui ainda o título de Hospital Amigo da Criança e a certificação de Hospital de Ensino. Nos últimos cinco anos, teve uma média de 3.850 nascimentos, 8.166 internações, 40.252 atendimentos externos, sendo 23.299 consultas ambulatoriais, 12.589 atendimentos de emergência e 4.364 exames de imagem. Quando da realização deste estudo (2020), contava com 22 médicos residentes, dos quais oito cursavam o primeiro ano; sete, o segundo; e sete, o terceiro ano. Esses médicos residentes, excetuando-se uma das pesquisadoras, foram os participantes deste estudo, com uma amostra total de 21 residentes.

A coleta de dados foi realizada entre agosto e dezembro de 2020 e compreendeu duas etapas. Na primeira etapa, foi utilizada a entrevista semiestruturada, realizada por meio de um roteiro-guia elaborado pelos pesquisadores, com o objetivo de identificar os estressores vivenciados pelos residentes em GO, em sua percepção. Nessa etapa, para facilitar a interação e o diálogo, as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas.

Na segunda etapa, findada a entrevista, os participantes do estudo receberam um questionário autoaplicável, sem identificação do respondente, que teve por objetivo medir o nível de burnout por meio do Maslach Burnout Inventory (MBI).

Trata-se de um inventário composto por 22 afirmações sobre sentimentos e atitudes que englobam as três dimensões da SB, divididas em três subescalas de sete pontos, que variam de 0 a 6 (0 = nunca; 1 = algumas vezes por ano no máximo; 2 = no máximo uma vez por mês ou menos; 3 = algumas vezes ao mês; 4 = uma vez por semana; 5 = poucas vezes por semana; e 6 = diariamente). Um nível baixo de burnout reproduz-se em escores baixos nas subescalas de “exaustão emocional” e “despersonalização”, e escores elevados na “realização pessoal”. Um nível médio de burnout é representado por valores médios nos escores das três subescalas. Por último, um nível alto de burnout traduz-se em escores altos para as subescalas de “exaustão emocional” e “despersonalização”, e escores baixos na “realização pessoal”.

As três subescalas do MBI foram estudadas isoladamente, e, em seguida, fez-se uma junção dos resultados. Calcularam-se os valores, e as subescalas foram categorizadas em graus “baixo”, “moderado” e “alto” de burnout utilizando os valores de corte sugeridos por Maslach e Jackson5, nos quais, para a subescala exaustão emocional, isso se traduz em pontuação de ≤18, 19-26 e ≥27, respectivamente; para a subescala despersonalização, ≤5, 6-9 e ≥10, respectivamente. No caso da subescala de realização pessoal com a pontuação de ≤33, 39-34 e ≥40, acontece o inverso: o escore alto simboliza pontuações baixas (alto grau de SB); e o escore baixo, pontuações altas (baixo grau de burnout). Portanto, pontuações inferiores ou iguais a 33 indicam grau alto da SB; e pontuações superiores ou iguais a 40, baixo grau de burnout55. Maslach C, Jackson SE. The measurement of experienced burnout. J Organ Behav. 1981;2:99-113 [2 mar 2020]. Disponivel em: Disponivel em: https://smlr.rutgers.edu/sites/default/files/documents/faculty_staff_docs/TheMeasurementof E xperiencedBurnout.pdf .
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Para a avaliação dos dados relativos aos estressores, foi utilizada a análise temática de discurso, de acordo com a proposta do discurso do sujeito coletivo (DSC) que consiste basicamente em analisar o material verbal coletado extraindo-se as ideias centrais (IC) e suas correspondentes expressões-chave. A partir das expressões-chave que possuem a mesma IC, compõe-se um discurso-síntese - ou vários -, ou seja, “um depoimento síntese, redigido na primeira pessoa do singular, como se tratasse de uma coletividade falando na pessoa de um indivíduo”.9:503

Os dados quantitativos foram analisados com auxílio do software IBM Statistical Package for the Social Sciences (SPPS) versão 21.0. A variável quantitativa foi expressa por meio de média e desvio padrão e por meio de frequência e porcentagem. Realizaram-se os testes estatísticos com nível de significância α = 0,05 e, portanto, confiança de 95%. As variáveis quantitativas foram avaliadas quanto à normalidade por meio da aplicação do teste de Shapiro-Wilk. A investigação da existência da associação entre variáveis qualitativas foi realizada por meio da aplicação dos testes de razão de verossimilhança e exato de Fisher, seguidos de análise de resíduo quando observada significância estatística. A comparação das médias das variáveis quantitativas foi realizada por meio do teste U de Mann-Whitney.

Por se tratar de um estudo com seres humanos, a pesquisa seguiu os princípios e as questões éticas tendo por base a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, e o projeto foi submetido à apreciação do Comitê de Ética da instituição com o CAAE nº 34928820.9.0000.0110 e tendo sido aprovado com o Parecer nº 4.219.427.

RESULTADOS

O grupo pesquisado é bem homogêneo quanto à idade, com média de 28 anos, predominantemente formado por indivíduos do sexo feminino (85,7%), solteiros (85,7%) e de religião católica (52,4%). Quanto ao ano de residência, houve uma distribuição equilibrada entre o primeiro, segundo e terceiro anos, respectivamente 38,1%, 33,3% e 28,6%.

A maioria relatou carga horária semanal de trabalho superior às 60 horas preconizadas no programa de residência (com média de 70 horas). O tempo médio de sono diário sem plantão foi de seis horas e com plantão de três horas mais duas horas no pós-plantão. O tempo médio de lazer distribuído ao longo da semana foi de dez horas, com concentração nos finais de semana, quando não há plantão. Esse tempo, na opinião dos residentes, é inferior ao que gostariam.

Uma vez caracterizada e contextualizada a amostra, descrevem-se a seguir os resultados relativos ao emprego da técnica de análise por meio do DSC. Os discursos dos 21 respondentes foram agrupados em oito IC:

  • IC1: Sentir-se acolhido por toda a equipe quando se ingressa na residência é importante.

  • IC2: As poucas horas de sono preocupam e provocam estresse, pois podem levar ao erro médico.

  • IC3: Tornar-se responsável pelo seu aprendizado é um desafio que tende a estressar.

  • IC4: Variadas abordagens terapêuticas para um mesmo problema causam estresse em quem está aprendendo.

  • IC5: O aprendizado é uma preocupação constante, o que leva ao constante questionamento sobre a qualidade do ensino teórico na residência.

  • IC6: Na residência sobra pouco tempo para estudar em casa, e isso gera sensação de culpa e angústia.

  • IC7: A residência interfere na qualidade de vida, diminuindo o tempo destinado ao lazer e à atividade física, o que acaba se constituindo em fonte de cansaço extremo e estresse.

  • IC8: Cursar uma residência causa alto nível de estresse pelas responsabilidades que se assume, abalando o emocional e necessitando de apoio psicológico.

Os gráficos apresentados a seguir mostram o resultado da prevalência da SB, estimada por meio da aplicação do MBI.

Gráfico 1
Prevalência da síndrome de burnout em médicos residentes de uma maternidade-escola do Sul do Brasil.

Gráfico 2
Prevalência da síndrome de burnout conforme o ano de residência médica em uma maternidade-escola do Sul do Brasil.

Gráfico 3
Dimensões da síndrome de burnout em médicos residentes em uma maternidade-escola do Sul do Brasil.

DISCUSSÃO

Na identificação de estressores da residência médica em GO, a primeira IC encontrada refere-se à importância do acolhimento na qualidade da relação interdisciplinar como um estressor a menos no desafio de iniciar uma residência.

É durante o primeiro ano da especialização que o médico residente apresenta maior índice de ansiedade, visto que é apresentado a novos conhecimentos, ao mesmo tempo que precisa aprender a trabalhar com uma nova equipe. O processo de integração entre residentes e profissionais nos serviços em que se encontram inseridos apresenta vários conflitos, uma vez que não é claro o papel do residente nos cenários de prática. De um lado, ele é visto como um “estudante” em processo de formação; de outro, como “mão de obra barata” e “precarizada”1010. Silva RMB, Moreira SNT. Estresse e residência multiprofissional em saúde: compreendendo significados no processo de formação. Rev Bras Educ Med. 2019;43(4):157-66. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v43n4rb20190031.
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Como um trabalho cooperativo pautado em uma relação interdisciplinar de confiança exige tempo para construção de sua trajetória, não é de se estranhar que, ao ingressarem na residência, os médicos do presente estudo reconheçam a importância de um bom acolhimento, principalmente pela equipe de enfermagem, para evitar a possibilidade de conflitos profissionais.

Nesse sentido, a capacidade de relacionamento da equipe deve ser estimulada para que as boas relações possam acontecer, uma vez que a falta de coleguismo e de compromisso da equipe de saúde tem alto potencial de se tornar um estressor. Para além disso, o paciente é beneficiado quando há boa relação entre os integrantes da equipe de saúde, especialmente entre os profissionais médico e enfermeiro, os responsáveis diretos pelo seu cuidado. Esse fato configura-se como prerrogativa de excelência para que cada profissional se empenhe para estabelecer relação harmoniosa com os demais profissionais e uma assistência de qualidade para o paciente1111. Santos PS, Bernardes A, Vasconcelos RMA, Santos RS. Relação entre médicos e enfermeiros do Hospital Regional de Cáceres Dr. Antônio Fontes: a perspectiva do enfermeiro. Rev Ciênc Estud Acadêmic Med. 2015;1(4):10-28 [acesso 25 set 2020]. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/revistamedicina/article/view/911 .
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Na segunda IC emanada da fala dos residentes, a privação do sono, foi definida como outro estressor.

No contexto de uma residência médica, são diversas as consequências da privação de sono, podendo levar à deterioração mental, psicológica e física, com diminuição da capacidade de raciocínio, de resolução de problemas e de interpretação de exames. Inicialmente, essa privação pode ser interpretada como dedicação médica e até aumentar a produtividade em curto prazo, porém, em longo prazo, provoca efeitos deletérios, como desmotivação, desordens psiquiátricas, queda da produtividade e prejuízo geral da saúde e da qualidade de vida, que trazem impacto negativo na capacidade laboral e podem levar à sonolência diurna e SB, com impacto negativo na qualidade da assistência, segurança e satisfação do paciente1212. Mordant P, Deneuve S, Rivera C, Carrabin N, Mieog JS, Malyshev N, et al. Quality of life of surgical oncology residents and fellows across Europe. J Surg Educ. 2014;71(2):222-8. doi: https://doi.org/10.1016/j.jsurg.2013.07.010.
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),(1313. Purim KSM, Guimarães ATB, Titski ACK, Leite N. Privação do sono e sonolência excessiva em médicos residentes e estudantes de medicina. Rev Col Bras Cir. 2016;43(6):438-44. doi: https://doi.org/10.1590/0100-69912016006005.
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Um estudo que investigou os níveis de sonolência dos residentes por meio da escala de sonolência diurna observou que 76% deles apresentavam índices patológicos de sonolência diurna, sendo estes maiores no grupo de residentes do primeiro ano. Outro estudo, mais recente, realizado com médicos jovens sobre os efeitos agudos da privação de sono decorrente do trabalho noturno demonstrou, por meio de testes psicomotores, maior latência na resposta a estímulos simples, maior índice de erros e pior índice de perfeição, condições que podem comprometer o atendimento aos pacientes1313. Purim KSM, Guimarães ATB, Titski ACK, Leite N. Privação do sono e sonolência excessiva em médicos residentes e estudantes de medicina. Rev Col Bras Cir. 2016;43(6):438-44. doi: https://doi.org/10.1590/0100-69912016006005.
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),(1414. Asaiag PE, Perotta B, Martins MA, Tempski P. Avaliação da qualidade de vida, sonolência diurna e burnout em médicos residentes. Rev Bras Educ Med . 2010;34(3):422-9. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-55022010000300012.
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Com base nos achados da literatura sobre os malefícios da privação do sono para a população em geral, e em especial para residentes em Medicina, os dados obtidos dos respondentes da presente pesquisa - tanto no que diz respeito à carga horária de trabalho superior às 60 horas recomendadas como no que concerne à privação do sono e à falta de disponibilidade de tempo para o lazer inferior ao desejado - preocupam pelo potencial efeito prejudicial tanto na formação acadêmica como no bem-estar físico, mental e psicológico e na assistência à saúde como um todo.

O discurso presente na IC3 demonstra uma preocupação importante dos residentes relacionada a uma possível incompatibilidade entre seus conhecimentos e a autonomia atribuída a eles.

A Association of American Medical Colleges1515. Association of American Medical Colleges. Core entrustable professional activities for entering residency: curriculum developers’ guide. Washington: AAMC; 2014. publicou um guia sobre 13 atividades que devem ser de competência do médico que ingressa na residência médica, entre as quais a capacidade de realizar uma história e um exame físico da paciente, propor diagnósticos diferenciais, documentar consultas, realizar prescrições médicas, lidar com transferência de pacientes, reconhecer casos de urgência, interpretar exames e realizar procedimentos médicos gerais. No guia, são propostas inicialmente as funções e competências; além disso, há informações sobre quando corrigir certos comportamentos e sobre a progressão de desenvolvimento que se espera do residente em cada item citado, de modo que ele evolua para atividades com supervisão apenas indireta.

No que se refere à GO, foi publicada pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), em 2019, a segunda versão da Matriz de competências em ginecologia e obstetrícia, a qual distribui as competências de maneira hierarquizada e crescente em complexidade para cada ano da residência, sendo referência para a avaliação do médico residente em relação aos seus conhecimentos, habilidade e atitudes, além de orientar a preceptoria quanto à supervisão ideal das atividades realizadas pelos residentes. A Matriz de competências em ginecologia e obstetrícia1616. Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia). Matriz de competências em ginecologia e obstetrícia: versão 2. São Paulo: Febrasgo; 2019 [acesso em 15 set 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/images/Matriz-de-competencias---2a-edicao---web.pdf .
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defende o fornecimento progressivo de autonomia aos médicos residentes, de maneira que, “Ao longo do Programa de Residência Médica, espera-se que as novas competências sejam adquiridas sob supervisão direta, evoluindo progressivamente para supervisão indireta na medida em que o residente demonstre desempenho satisfatório na realização da atividade”16:3

Outro estressor relatado pelos residentes do presente estudo foi a variabilidade de abordagens terapêuticas para um mesmo problema (IC4), ou seja, condutas divergentes entre preceptores (staffs). Essa variabilidade causa estresse em quem está aprendendo, já que essa diferença de conduta traz dúvidas em relação à abordagem mais adequada para a situação, além de conflito com o próprio paciente, que muitas vezes questiona a mudança de planos.

Durante a residência médica, o principal aprendizado se dá por meio do conhecimento repassado pelo preceptor (médico do serviço) no dia a dia. Esse profissional assume o papel de docente clínico, e há a expectativa de que ele domine a prática clínica e os aspectos educacionais relacionados a ela, transformando-a em ambiente e momento educacionais propícios1717. Boti HO, Rego STA. Docente clínico: o complexo papel do preceptor na residência médica. Physis. 2011;21(1):65-85 [acesso em 12 dez 2022]. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/j/physis/a/FDgGZssWkLgjJ5HcgXfPw4B/?format=pdf⟨=pt .
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Desde 2004, vem sendo publicada pela Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) a série Cadernos Abem, a qual dedicou sua sétima edição integralmente à residência médica. Nessa edição, discutiram-se também os desafios vivenciados em relação à preceptoria, citando que os preceptores e, consequentemente, os supervisores de programas de residência médica carecem de capacitação, reconhecimento e remuneração adequados à função. Como a formação pedagógica e didática é essencial para exercer a preceptoria, esse profissional precisa desenvolver as potencialidades de médico, professor, supervisor e pessoa. Nesse contexto, pode-se afirmar que, para o alcance do que propõe a Abem em relação à preceptoria, é necessário que se invista em formação de preceptores1818. Associação Brasileira de Educação Médica. Cadernos da ABEM: residência médica. Rio de Janeiro: Abem; 2004. v. 7 [acesso em 12 dez 2022]. Disponível em: https://website.abem-educmed.org.br/wp-content/uploads/2019/09/CadernosABEM__Vol07.pdf.
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Na IC5, a fala dos residentes traz outro estressor: a preocupação constante com o aprendizado, o que os leva a estar sempre questionando a qualidade do ensino teórico na residência, dado também encontrado em pesquisa realizada cujo objetivo foi avaliar um programa de residência médica em GO1919. Sanchez NR, Rodrigues CIS. Avaliação de um programa de residência médica em ginecologia e obstetrícia. Rev Bras Educ Med 2020;44(2):e057. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.2-20190311.
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A partir da Resolução nº 2/2006 da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), recomendou-se a elaboração de uma matriz de conteúdo programático de cada especialidade de residência médica. O objetivo do programa seria gerar uniformidade na formação dos médicos especialistas. Em relação à residência em GO, a Febrasgo lançou a segunda versão da Matriz de competências em ginecologia e obstetrícia1616. Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia). Matriz de competências em ginecologia e obstetrícia: versão 2. São Paulo: Febrasgo; 2019 [acesso em 15 set 2020]. Disponível em: Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/images/Matriz-de-competencias---2a-edicao---web.pdf .
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que trata sobre as atividades teóricas e práticas, e os respectivos percentuais de carga horária a serem dedicados em cada ano da residência, expondo quais atividades e com quais níveis de supervisão adequados, além de quais atividades o residente de cada ano deve ser capaz de realizar.

Utilizando como referência a Matriz de competências em ginecologia e obstetrícia, um estudo qualiquantitativo avaliou a qualidade do programa de residência médica em GO da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Analisando comparativamente o programa utilizado pela residência com o proposto pelo MEC, foi possível averiguar melhor o programa do local, evidenciando algumas características negativas com potencial de melhora caso estivessem de acordo com o proposto pela CNRM. Entre esses fatores, destacou-se a excessiva carga horária dedicada aos plantões, contrastando com as poucas horas dedicadas à prática de cirurgias ginecológicas, com 95% dos residentes tendo respondido que não consideravam o número de procedimentos ginecológicos apropriados para o aprendizado. Citou-se ainda a pouca experiência em ambulatório de especialidades1919. Sanchez NR, Rodrigues CIS. Avaliação de um programa de residência médica em ginecologia e obstetrícia. Rev Bras Educ Med 2020;44(2):e057. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.2-20190311.
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No presente estudo, constatou-se também uma supervalorização da atuação prática como essência do programa em detrimento da carga teórica, o que, na opinião dos residentes, prejudica uma boa base para o aperfeiçoamento do raciocínio e da análise crítica pelo médico especialista, dado traduzido, no discurso presente na IC5, pelo anseio por maior carga teórica.

É importante destacar que é inegável que a essência de um programa de residência médica deva ser a atuação prática, porém deve-se lembrar da importância em associar a teoria ao exercício prático como base para o aperfeiçoamento do raciocínio clínico e da expertise médica. Para além da carga teórica, o incentivo à pesquisa e às publicações prepara para a apresentação em eventos científicos, estimula a progressão para outros níveis de graduação e atualização constante, além de ser uma estratégia para fortalecer o meio científico de uma instituição1919. Sanchez NR, Rodrigues CIS. Avaliação de um programa de residência médica em ginecologia e obstetrícia. Rev Bras Educ Med 2020;44(2):e057. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.2-20190311.
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A IC6 traz o discurso de que na residência sobra pouco tempo para estudar em casa, o que gera sensação de culpa e angústia. Não é incomum que a vida social dos indivíduos se organize baseada no trabalho como foco central, ocupando a atividade laboral grande parte da vida cotidiana, sendo esse fator ainda mais marcante em médicos residentes que possuem uma dedicação extensa à especialização. Levando isso em conta, enfatizamos a importância da gestão do tempo entre as atividades a serem realizadas diariamente, com ênfase no desenvolvimento de habilidades para planejar quais, quando e como determinadas atividades devem ser realizadas. Por meio desse tipo de planejamento, é possível estabelecer prioridades e, a partir delas, estratégias para alcançá-las2020. Pellegrini CFS, Calais SLO, Salgado MH. Habilidades sociais e administração de tempo no manejo do estresse. Arq Bras Psicol. 2012;64(3):110-29 [acesso em 5 out 2020]. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672012000300008&lng=pt&nrm=iso .
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Estratégias como escolha de moradia próxima ao hospital, auxílio de atividade doméstica por diaristas, opção por realizar as refeições no refeitório do hospital, adiamento de maternidade/paternidade para após a conclusão da residência, apoio social com colegas residentes ou supervisores do programa de residência e otimização do tempo disponível para atividades de lazer, relacionamentos e repouso também podem aumentar o tempo para o estudo2121. Torres RAT, Fischer FM. Time management of internal medicine medical residents, São Paulo, Brasil. Rev Assoc Med Bras. 2019 Sept 12;65:1048-54. doi: https://doi.org/10.1590/1806-9282.65.8.1048.
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A interferência da residência na qualidade de vida, diminuindo o tempo destinado ao lazer e à atividade física como fonte de cansaço extremo e estresse, está presente na IC7. O trabalho é uma das dimensões do viver humano que entra na composição da qualidade de vida. Nesse sentido, entendida como um trabalho, a residência médica é um grande período de crescimento profissional dos médicos, mas implica grande dedicação, pois exige mudança de estilo de vida, além de ser marcada por diversos estressores como os até aqui mencionados que podem afetar a percepção que o residente tem sobre sua qualidade de vida1414. Asaiag PE, Perotta B, Martins MA, Tempski P. Avaliação da qualidade de vida, sonolência diurna e burnout em médicos residentes. Rev Bras Educ Med . 2010;34(3):422-9. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-55022010000300012.
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),(2222. Abreu-Reis P, Oldoni C, Labres de Souza GA, Bettega AL, Góes MN, Sarquis LM, et al. Aspectos psicológicos e qualidade de vida na residência médica. Rev Col Bras Cir . 2019;46(1):e2050. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0100-6991e-20192050.
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Em vários estudos sobre qualidade de vida de médicos residentes, o sexo feminino foi identificado como aquele em que houve a pior avaliação de qualidade de vida. É importante destacar que, do total de 21 residentes do presente estudo, apenas três eram homens, o que talvez possa contribuir para o discurso de queda na qualidade de vida, sem que ela volte ao patamar anterior à residência. O encontro de pior qualidade de vida no sexo feminino pode, talvez, ser explicado pela dupla jornada de trabalho, no lar e fora dele, que tende a sobrecarregar a mulher pelos papéis sociais e familiares que lhe são delegados pela sociedade2323. Carvalho CN, Melo-Filho DA de, Carvalho JAG de, Amorim ACG de. Prevalência e fatores associados aos transtornos mentais comuns em residentes médicos e da área multiprofissional. J Bras Psiquiatr. 2012;62(1):38-45. doi: https://doi.org/10.1590/S0047-20852013000100006.
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Mesmo que se reconheça a residência como a principal fonte de aprendizado prático para os médicos recém-formados, o seu impacto negativo sobre a qualidade de vida deles aponta para a necessidade de uma melhoria constante de suas condições de trabalho, com reavaliação do processo de atendimento e treinamento, visando à melhoria na qualidade de vida e, por conseguinte, na qualidade do atendimento.

A última IC advinda do discurso dos residentes foi a de que cursar uma residência causa alto nível de estresse pelas responsabilidades assumidas, abalando o emocional e necessitando de apoio psicológico.

Vários estudos vêm sendo realizados na busca de identificar os problemas emocionais que afetam médicos residentes. Um estudo realizado com residentes de radiologia e diagnóstico por imagem avaliou, por meio de uma escala, o nível de depressão e ansiedade dos médicos residentes, evidenciando, respectivamente, níveis altos em 54,8% e 51,1%. O mesmo estudo evidenciou falta de cuidado do médico consigo mesmo em relação à sua qualidade de vida, visto que apenas 12,7% dos médicos buscaram ajuda psicológica para uma maior orientação com seus conflitos de interesse e 9,2% para os problemas particulares2424. Silva GCC, Sousa EG, Nogueira-Martins LA, Buys RC, Santos AASMD, Koch HA. A importância do apoio psicológico ao médico residente e especializando em radiologia e diagnóstico por imagem. Radiol Bras. 2011;44(2):81-4. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-39842011000200006.
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Consciente do abalo emocional que a residência pode causar, o Serviço de Radiologia e Diagnóstico por Imagem na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro conta com o apoio psicológico ao médico residente e especializando desde o seu ingresso até o término da formação. O Serviço de Psicologia se tornou fundamental para o bom aproveitamento do curso, tendo como objetivo principal a diminuição das angústias, o controle da ansiedade e depressão, o apoio na falta de determinação e organização, além de colaborar nos índices de motivação e desempenho dos residentes. Todo esse processo acontece dentro de um protocolo que inclui dinâmicas de grupo, atendimentos individuais e avaliação da autoestima, do conhecimento e da sensibilidade do aluno2424. Silva GCC, Sousa EG, Nogueira-Martins LA, Buys RC, Santos AASMD, Koch HA. A importância do apoio psicológico ao médico residente e especializando em radiologia e diagnóstico por imagem. Radiol Bras. 2011;44(2):81-4. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-39842011000200006.
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Em relação ao resultado da aplicação do MBI nos residentes do presente estudo, chama a atenção o fato de a maior parte dos pesquisados apresentar sinais característicos de SB, dos quais 57% com alterações em alguma das esferas avaliadas. Exaustão emocional foi a mais acometida, seguida de despersonalização e baixa realização profissional. Embora a amostra seja pequena, ela apresenta uma realidade preocupante na medida em que é a realidade da residência médica na instituição aqui pesquisada.

A SB em trabalhadores da saúde é prejudicial nas esferas individual, profissional e organizacional, uma vez que todas as suas dimensões têm o potencial de causar danos tanto nos indivíduos acometidos quanto nos que deles recebem cuidados, resultando em um impacto negativo na condução de pacientes, bem como na segurança de sua saúde, interferindo também na atenção destinada a familiares e na relação com a instituição em um momento em que a humanização na assistência à saúde é uma prioridade2525. Carvalho CG, Magalhães SR. Sindrome de burnout e suas consequências nos profissionais de enfermagem. Rev Univ Vale Rio Verde. 2011;9(1):200-10 [acesso em 12 dez 2022]. Disponível em: Disponível em: http://periodicos.unincor.br/index.php/revistaunincor/article/view/86 .
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Um grande estudo com residentes norte-americanos de GO analisou a prevalência de SB e a qualidade de vida dos entrevistados, com resultado semelhante ao obtido pela presente pesquisa, obtendo um total de 51% de SB entre os residentes. Além disso, analisaram-se outras esferas, e obtiveram-se valores preocupantes: 32% de depressão, 13% de ingesta excessiva de álcool, 4,7% de desordens alimentares, 1,1% de uso de drogas ilícitas e 0,4% de ideação suicida; esses dados não foram encontrados em nosso estudo. Ainda no mesmo estudo evidenciou-se que os indivíduos que menos priorizavam o bem-estar estavam mais expostos à ocorrência da SB2626. Morgan HK, Winkel AF, Nguyen AT, Carson S, Ogburn T, Woodland MB. Obstetrics and gynecology residents' perspectives on wellness. Obstet Gynecol. 2019 Mar;133(3):552-7. doi: https://doi.org/10.1097/AOG.0000000000003103.
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Quando comparados índices de SB entre as especialidades médicas, os números costumam ser bastante variados. Um estudo italiano2626. Morgan HK, Winkel AF, Nguyen AT, Carson S, Ogburn T, Woodland MB. Obstetrics and gynecology residents' perspectives on wellness. Obstet Gynecol. 2019 Mar;133(3):552-7. doi: https://doi.org/10.1097/AOG.0000000000003103.
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comparou a incidência de SB entre especialidades cirúrgicas e não cirúrgicas, encontrando, respectivamente, valores de 73% e 56%. Outro estudo2727. Serenari M, Cucchetti A, Russo PM, Fallani G, Mattarozzi K, Pinna AD, et al. Burnout and psychological distress between surgical and non-surgical residents. Updates Surg. 2019 June; 71(2):323-30. doi: https://doi.org/10.1007/s13304-019-00653-0.
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, publicado em 2018, avaliou a prevalência de SB em todas as especialidades de um hospital universitário, obtendo um índice geral de 81,5% dos entrevistados, sem associação com significância estatística com nenhuma especialidade.

Ao avaliarem cada escala da SB separadamente, estudos prévios2626. Morgan HK, Winkel AF, Nguyen AT, Carson S, Ogburn T, Woodland MB. Obstetrics and gynecology residents' perspectives on wellness. Obstet Gynecol. 2019 Mar;133(3):552-7. doi: https://doi.org/10.1097/AOG.0000000000003103.
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),(2828. Bond MMK, Oliveira MS de Bressan BJ, Bond MMK, Silva ALFA da Merlo ÁRC. Prevalência de burnout entre médicos residentes de um hospital universitário. Rev Bras Educ Med . 2018;42(3):97-107. doi: https://doi.org/10.1590/1981-52712015v42n3RB20170034.r3.
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) demonstraram a mesma ordem de prevalência aqui encontrada, sendo a mais frequente a exaustão emocional, seguida de despersonalização e baixa realização profissional. Uma grande revisão de literatura espanhola2929. Toala Zambrano JR. Síndrome de burnout en médicos residentes “Revisión Sistemática”. Rev San Gregorio. 2019;(33):111-22 [acesso em 12 dez 2022] Disponível em: Disponível em: https://revista.sangregorio.edu.ec/index.php/REVISTASANGREGORIO/article/view/966 .
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, que analisou 30 artigos que avaliaram a prevalência de SB por meio do MBI, constatou que, entre os 2.269 residentes entrevistados, a média de prevalência de SB foi de 57%. Entre as escalas avaliadas, também houve predominância na exaustão emocional (43%), porém com valores semelhantes entre as demais escalas, sendo 41% de baixa realização profissional e 35,8% de despersonalização.

É importante destacar ainda como limitação do presente estudo que seus resultados dizem respeito a um programa de residência médica de uma instituição específica, e generalizações devem ser realizadas com cautela, pois demandam estudos semelhantes em programas de residência em GO de outras instituições. Ainda como limitação há de se considerar que a coleta de dados se deu no primeiro ano da pandemia de Covid-19 (2020) que, segundo pesquisas, trouxe graves e prejudiciais consequências à saúde mental de profissionais de saúde que estavam atuando na assistência. Tal cenário pode ter influenciado nos resultados encontrados, principalmente na dimensão da exaustão emocional, porém destacamos que estudos pré-pandemia sobre incidência de SB em residentes de Medicina encontraram resultados semelhantes aos da presente pesquisa, o que nos leva a afirmar que os dados encontrados apontam para a necessidade de revisão nos programas de residência médica como uma das medidas preventivas associadas ao diagnóstico precoce e manejo clínico adequado da SB, visando à redução de sua prevalência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dos 21 médicos residentes pesquisados, a SB esteve presente em mais da metade dos participantes. Exaustão emocional foi a mais frequente dimensão seguida por despersonalização e baixa realização profissional. Os residentes do primeiro e segundo anos apresentaram maior probabilidade estatística de desenvolver burnout, principalmente nos domínios de exaustão e despersonalização, e a exaustão emocional prevaleceu nos residentes do primeiro ano. Os residentes do terceiro ano estiveram menos associados à despersonalização e exaustão emocional.

Entre os estressores e possíveis agentes desencadeadores de SB vivenciados pelos residentes pesquisados, destacam-se: a falta de acolhimento por parte da equipe multiprofissional ao ingressar na residência, a excessiva carga horária de trabalho e as consequentes poucas horas de sono, acarretando a convivência com o medo do erro médico, o desafio de se tornar responsável pelo próprio aprendizado, as várias abordagens terapêuticas para um mesmo problema, a sensação de insuficiência de conteúdo teórico durante a residência aliado ao pouco tempo que sobra para estudar em casa e a sensação de culpa por não estudar o quanto acha que deveria, a diminuição do tempo destinado ao lazer e à atividade física, o alto nível de estresse, o abalo emocional que a grande responsabilidade assumida acarreta e a falta de apoio psicológico.

Esses estressores percebidos e vivenciados pelos residentes do presente estudo explicam a alta prevalência de SB entre eles, especialmente os que cursam o primeiro e segundo anos. Esse cenário tende a acarretar consequências nefastas tanto para o indivíduo acometido pela SB como para as pacientes por ele atendidas e também para a instituição. Nesse sentido, conhecer os fatores que desencadeiam a SB é de vital importância para a implantação de medidas preventivas a fim de gerar uma maior qualidade de vida para esses profissionais da saúde e, consequentemente, para os pacientes por eles assistidos e para as instituições de saúde envolvidas.

Como possibilidade de intervenção, propõem-se como medidas profiláticas: a criação, na residência em GO, da semana de acolhimento aos novos residentes; a implantação de um serviço de apoio psicológico para escuta atenta e individualiza da rotina semanal de cada residente com a respectiva orientação para o gerenciamento de seus hábitos de vida; a abordagem da temática da supervisão idealizada versus supervisão possível entre preceptores e alunos na semana de acolhimento ao residente; o investimento em capacitação e treinamento pedagógico para preceptores; a elaboração de um manual de rotinas da maternidade a ser seguido por todos os preceptores contextualizando com o residente condutas alternativas; a elaboração de um manual do preceptor; a distribuição mais equitativa entre carga horária teórica e prática na residência; a realização de mesas-redondas com preceptores para estudos de caso como estratégia de ensino; o aumento do estímulo à produção científica com participação conjunta entre professores e residentes em artigos científicos; a busca pela melhoria efetiva das condições de trabalho com reavaliação do processo de atendimento e treinamento, visando à melhoria na qualidade de vida e, por conseguinte, na qualidade do atendimento; e talvez o mais importante - a mudança de foco: da residência centrada no serviço para a residência centrada no aprendiz. Essas recomendações estão pautadas nos resultados encontrados e partem da premissa de que políticas de mudança do contexto organizacional podem interferir no número de ocorrência da SB.

REFERÊNCIAS

  • 2
    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editora associada: Rosiane Viana Zuza Diniz.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2022
  • Aceito
    17 Out 2023
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