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Instrução pública no Brasil (1500-1889)

NOTAS DE LEITURA

José Gondra

Professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutorando em Educação na Universidade de São Paulo, na área de História da Educação e Historiografia.

ALMEIDA, José Ricardo Pires de. Instrução pública no Brasil (1500-1889). Trad. Antonio Chizzoti; ed. crítica Maria do Carmo Guedes. 2ªed. rev. São Paulo: EDUC, 2000.

Escrito em francês, publicado pela primeira vez em 1889, dedicado ao genro do Imperador e totalizando 1.102 páginas, o livro L' Instruction Publique au Brésil - Histoire - Legislation,1 1 Consultando os dois exemplares existente na Biblioteca Nacional (códices II, 261, 2, 20 e III, 2, 2, 3), constatei que o título original não corresponde aos créditos das duas edições traduzidas. No caso, atribuiu-se o título original em francês, convertendo para essa língua o título dado pelo tradutor brasileiro. O livro foi originalmente publicado em formato11 x 18,6 cm, pela Imp. G. Leuzinger & Filhos, situada, à época, na rua Ouvidor, 31. após a sua primeira edição em português, em 1989, vem se consolidando como uma obra básica para qualificação do debate acerca da educação escolar brasileira nos períodos colonial e imperial. Ao mesmo tempo, tem permitido uma reflexão acerca da historiografia da educação brasileira ao ser tomado como objeto por intermédio do qual se pode discutir a ordem que possibilitou o seu aparecimento, bem como a ordem que o mesmo procura instaurar.

A primeira edição em português, traduzida pelo professor Antonio Chizzotti (PUC-SP),2 2 Trata-se da série Memória da Educação Brasileira e do Programa de Co-edição do INEP, destinados "a editar originais importantes para o resgate da história da educação brasileira", pretendendo, dessa forma, "viabilizar a edição de textos considerados relevantes para a compreensão e o desenvolvimento do processo educacional brasileiro, embora julgado de reduzida demanda de mercado" (1989, p. 5). publicada em sistema de co-edição entre o INEP e a PUC-SP, já se encontrava esgotada e, nesse sentido, a sua reedição constitui-se em boa notícia para a comunidade acadêmica. A nova edição foi realizada sob a responsabilidade de Maria do Carmo Guedes,3 3 Também responsável pelo projeto e pela coordenação editorial da 1ª edição em português, em 1989. tendo sido viabilizada pela parceria entre a EDUC4 4 Editora da PUC-SP. e o "Programa de Publicações de Apoio à Formação Inicial e Continuada de Professores", do INEP.

Na 2ª edição em português, foram mantidas a mesma tradução, a mesma ordenação e a mesma paginação da primeira, buscando-se, porém, uma maior aproximação com a edição original francesa, com a supressão do relatório de Gonçalves Dias, introduzido na 1ª edição por decisão do tradutor. Em substituição à apresentação do INEP, presente na 1ª edição, há a inclusão de notas explicativas da organizadora e pequenas alterações na apresentação assinada pelo tradutor5 5 Com isto, verifica-se um redução no número total de páginas, passando de 365 para 334 páginas. . Ressalto, ainda, a alteração na capa da obra, menos por sua diagramação do que pela imagem selecionada. No caso, substituiu-se a imagem da fachada de uma instituição educacional do século XIX - o Colégio de Pedro II, pelo fragmento de uma "carta da Costa Atlântica do século XVII". Nessa nova seleção, tanto pela imagem, como pelo período a que ela remete, o leitor é distanciado dos conteúdos e do tempo privilegiado na própria obra, que encontram-se concentrados na análise das políticas públicas, com ênfase nos anos 800. Nessa linha, vale registrar que as únicas imagens utilizadas nas duas edições traduzidas não constam na edição original. Aliás, a imagem de D. Pedro II, a única presente no original, foi suprimida.6 6 Um desenho do Imperador D. Pedro II, em preto e branco, acompanhado do crédito "Empereur constitutionnel et defenseur perpétuel du Brésil". Tal decisão minimiza o traço de oficialidade da obra, embora ao longo do texto o Imperador reapareça sob as representações de modesto, caridoso, pai exemplar, ilustrado, simpático, apreciado e de pensamento puro, o que o faz prever que "um dia virá [...] que o nome augusto de D. Pedro II ingressará na história; então, a imparcial posteridade, na plenitude de sua séria e severa justiça, terá apenas gratidão, reconhecimento e admiração pelo sábio monarca que fez o Brasil entrar no concerto das nações civilizadas" (2000, p. 206-207). Colocando-se, então, como um homem à frente de seu tempo, o autor assinala que "aquele que escreveu estas linhas foi inspirado, apenas, pela verdade, da qual sua consciência está possuída" (2000, p. 207). Com isso, pode-se perceber que a decisão de imprimir a imagem do Imperador no início da obra original não cumpria apenas um função ilustrativa, já que tal presença antecipa e sintetiza a própria perspectiva com que a instrução pública seria registrada.

No que se refere ao livro, o autor, médico e monarquista, ao privilegiar o emprego das fontes oficiais, ressalta ao longo de seu discurso pontos de tensão em torno dos quais não se furta de emitir sua posição, muitas vezes colidindo com a crença difundida de que sua obra é toda ela laudatória e ufanista. Tais adjetivos podem ser associados aos heróis da história da educação constituídos pela/na escrita do Dr. Pires de Almeida, o que não ocorre em relação aos diversos pontos por ele abordados ao longo de seu estudo, dentre os quais caberia lembrar a questão do financiamento, da formação de professores, dos concursos, da estrutura e de funcionamento do ensino, das instituições escolares e da legislação.

Esse procedimento do Dr. Pires de Almeida evidencia-se, por exemplo, quando examina a adoção do princípio da gratuidade nas escolas públicas de ensino primário e no externato do ensino secundário. Embora considere o ministro Coutto Ferraz7 7 Ocupante da pasta do "negócios do Império" de 1853 a 1856, continuidade no posto, rara à época. um grande "homem de Estado", ele posiciona-se contrariamente à adoção de tal princípio presente na reforma conduzida pelo homem que admira, argumentando que "a gratuidade traz consigo a indiferença do público e atenua muito a vigilância dos pais" (2000, p. 93). Admite, contudo, que "a gratuidade poderia ser conservada para as classes mais desprovidas de recursos" (idem), as quais, segundo ele, "sem um enérgico esforço da comunidade não sairiam jamais da abjeção em que se encontram" (idem). Em sua defesa contra a gratuidade absoluta combina evidências locais, com exemplos trazidos da Inglaterra e da França, de modo a reforçar a tese de que a adesão ao princípio da gratuidade absoluta era "um engodo, uma satisfação malsã dada por alguns governos às idéias demagógicas" (2000, p. 94).

Percebe-se, com isso, que os princípios liberais do médico mesclam-se com seu moralismo e sua posição social, resultando na defesa do pagamento da instrução como princípio, medida que, em sua ótica, eliminaria a indiferença do público, aumentando a vigilância dos pais. Assim, a narrativa vai sendo tecida, contornando e produzindo delicadas tensões em que cabem, ao mesmo tempo, a defesa dos homens do Estado e um conjunto de críticas à política de instrução pública por eles postas em execução. Com esse procedimento, o Dr. Pires de Almeida, menos que um registro morno e calmo da história da instrução pública no Brasil, promove a emergência de um efetivo programa a ser adotado, caso o Império desejasse efetivamente trilhar os caminhos que o conduziriam ao mundo moralizado, higienizado, instruído e civilizado.

Nesse programa, a sua filiação ao regime monárquico, sua condição masculina, a formação médica e sua atuação na área da saúde, higiene, planejamento urbano, jornalismo e teatro constituem-se em elementos que marcam o seu estudo, a escolha e o uso das fontes, os objetos ressaltados, a perspectiva com que são abordados e o próprio design do seu discurso. Tomando esse discurso como uma narrativa profundamente interessada na construção de um vínculo de determinação entre instruir e civilizar, o leitor tem, portanto, a possibilidade de ingressar no debate acerca da educação na colônia e, sobretudo, no Império, a partir da ótica do Dr. Pires de Almeida.

Diante da rarefação de estudos que tratam do período e temas abordados no livro em questão, a sua reedição configura-se em uma contribuição singular para aqueles que, tocados pelos desafios da pesquisa em história da educação, anterior ao século republicano, se dispuserem a considerar o trabalho do médico imperial não apenas como um esforço de síntese e sistematização, mas também como um discurso que, a seu modo, dá visibilidade a um território ainda pouco visitado. Nessa linha, há alguns estudos recentes que têm procurado demonstrar a possibilidade de releitura dessa obra, tratando-a como objeto e submetendo-a a interrogações e recortes inéditos,8 8 Nessa direção, tenho conhecimento dos seguintes trabalhos: Nunes, Clarice (A instrução pública e a primeira história sistematizada da educação brasileira. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: ( 93), p. 51-59, 1995), Xavier, Libânia Nacif (A literatura como fonte privilegiada para o estudo da História da Educação Brasileira. Educação. Rio de Janeiro: PUC, n º 35, maio 1998), Gondra, J.G. (Sem Deus, nem Rei? O positivismo na escrita da educação brasileira. In: FERNANDES, Rogério & ADÃO, Áurea (orgs.) Leitura e escrita em Portugal e no Brasil 1500-1970 - Actas do 1º Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação. SPCE: Porto, 1998, e Gondra, J.G. ( José Ricardo Pires de Almeida. In: FÁVERO, M.L.A. & BRITO, J. M. Dicionário dos Educadores no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/INEP, 1999). apontando, então, para novos problemas, objetos e perspectivas de análise.

Considero, portanto, que a iniciativa de reedição deve ser comemorada pelos historiadores da educação e pelos inúmeros estudiosos da matéria educacional. Enfim, a sua manutenção em circulação fornece, em certa medida, condições para se aproximar, explorar e tentar dimensionar as zonas de sombra e de esquecimento existentes na história da educação brasileira, possibilitando, com isso, a abertura de questões inesperadas para o ensino e a pesquisa.

Notas

  • 1
    Consultando os dois exemplares existente na Biblioteca Nacional (códices II, 261, 2, 20 e III, 2, 2, 3), constatei que o título original não corresponde aos créditos das duas edições traduzidas. No caso, atribuiu-se o título original em francês, convertendo para essa língua o título dado pelo tradutor brasileiro. O livro foi originalmente publicado em formato11 x 18,6 cm, pela Imp. G. Leuzinger & Filhos, situada, à época, na rua Ouvidor, 31.
  • 2
    Trata-se da série Memória da Educação Brasileira e do Programa de Co-edição do INEP, destinados "a editar originais importantes para o resgate da história da educação brasileira", pretendendo, dessa forma, "viabilizar a edição de textos considerados relevantes para a compreensão e o desenvolvimento do processo educacional brasileiro, embora julgado de reduzida demanda de mercado" (1989, p. 5).
  • 3
    Também responsável pelo projeto e pela coordenação editorial da 1ª edição em português, em 1989.
  • 4
    Editora da PUC-SP.
  • 5
    Com isto, verifica-se um redução no número total de páginas, passando de 365 para 334 páginas.
  • 6
    Um desenho do Imperador D. Pedro II, em preto e branco, acompanhado do crédito "Empereur constitutionnel et defenseur perpétuel du Brésil".
  • 7
    Ocupante da pasta do "negócios do Império" de 1853 a 1856, continuidade no posto, rara à época.
  • 8
    Nessa direção, tenho conhecimento dos seguintes trabalhos: Nunes, Clarice (A instrução pública e a primeira história sistematizada da educação brasileira.
    Cadernos de Pesquisa. São Paulo: ( 93), p. 51-59, 1995), Xavier, Libânia Nacif (A literatura como fonte privilegiada para o estudo da História da Educação Brasileira.
    Educação. Rio de Janeiro: PUC, n
    º 35, maio 1998), Gondra, J.G. (Sem Deus, nem Rei? O positivismo na escrita da educação brasileira. In: FERNANDES, Rogério & ADÃO, Áurea (orgs.)
    Leitura e escrita em Portugal e no Brasil 1500-1970 - Actas do 1º Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação. SPCE: Porto, 1998, e Gondra, J.G. ( José Ricardo Pires de Almeida. In: FÁVERO, M.L.A. & BRITO, J. M.
    Dicionário dos Educadores no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/INEP, 1999).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2000
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