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Narrativas de uma viagem ao Brasil

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Narrativas de uma viagem ao Brasil

Edgard Carone

NARRATIVAS DE UMA VIAGEM AO BRASIL

Por Tomas Lindley. São Paulo, Companhia Editôra Nacional, 1969. 190 p. (Col. Brasiliana, 343).

Publicado originariamente em Londres, em 1805, o livro de Lindley reúne seu diário de permanência em Porto Seguro e Salvador - lugares onde êsteve prisioneiro, de julho de 1802 a agosto de 1803 - e notas históricas sôbre o Brasil. É um dos primeiros relatos de estrangeiros publicados no século XIX, tendo, assim, servido de fonte para inúmeros estudiosos e viajantes, que utilizarão fartamente suas informações verídicas e precisas. Andrew Grant, em Description of Brazil plagia fatos revelados pelo nosso autor; e os franceses Hipplolyte Taunay e Fernando Denis citam constantemente o mercador inglês.

Durante a sua permanência forçada no Brasil - Lindley é preso quando contrabandeava pau-brasil nas costas da Bahia - anota, com argúcia e sensibilidade, as peculiaridades e costumes existentes. Suas observações sôbre a economia, instituições, religião, costumes, etc. são precisas e claras. Daí o interêsse de sua obra, que é documentário vivo de um momento.

Um fato inicial e fundamental surge do diário; a existência de um comércio de contrabando ativo entre a Bahia, Rio de Janeiro e a bacia do Prata. Apesar das medidas repressivas portuguesas, o contato com Buenos Aires é constante. E quem ajudava a praticar o contrabando eram as pessoas "nomeadas para impedi-lo", isto é, as autoridades militares portuguesas ou "indivíduos por êles acumpliciados".

O contrabando é também comprovado pelo grande número de navios estrangeiros, principalmente ingleses, que navegam ou aportam às costas brasileiras. Naturalmente que nem todos têm o mesmo objetivo, mas a presença suspeita deles em certas regiões da Bahia comprova o fato. Durante a estadia de Lindley, um navio inglês naufraga na baía de Santa Cruz, outro ao sul da Bahia e três aportam avariados ao porto de Salvador.

A justiça portuguesa aparece descrita de maneira dramática, surgindo com todo o seu sistema complexo e obsoleto: desde o seu apresamento o autor tem de sofrer as conseqüências de um complicado sistema judicial. É preso e confronta-se com o desembargador do crime, o capitão da Marinha e os escreventes da justiça; sua mercadoria é apreendida, sendo avaliada ao bel-prazer das autoridades; as inquisições são lentas e constantes e é "um tribunal de justiça que decide a questão e pronuncia a sentença. Em alguns casos, há o recurso de apelação ao Tribunal Superior de Lisboa ou à clemência do príncipe". As mercadorias apresadas servem para ajudar a pagar as despesas do processo, só que sua avaliação cabe aos portugueses: um dos navios avariados é obrigado a descarregar, "sob a imediata superintendência e inspeção do guarda-mor e de um amanuense da Alfândega. Mas não lhe poderia ser concedida a faculdade de realizar vendas a fim de liquidar suas despesas porque haviam chegado ordens recentes de Lisboa para que, nesses casos, uma suficiente quantidade de mercadorias fosse retirada do navio e mandada para essa cidade, sendo lá vendida. A divida de origem, o frete para a Europa e as despesas de viagem seriam deduzidas do produto dessa venda e o saldo (se houvesse) devolvido ao proprietário, em Londres ou qualquer outra parte".

Ainda aparece como precária a ocupação plena do território pelos portugueses: apesar das regiões de Porto Seguro e Salvador terem sido ocupadas desde o século XVI, índios ainda atacam a primeira das duas cidades. A zona, porém, está semeada por grande número de engenhos e agricultores. A descrição das propriedades comprova que grande número delas possui "fábrica de açúcar", com engenhos de "três cilindros de pesada madeira"; outras são "fazendolas esparsas, situadas nas proximidades do rio, para melhor transporte de seus produtos destinados a Porto Seguro"; e algumas produzem a mandioca, "raiz inestimável, pois proporciona a farinha ou o pão da América do Sul".

A vida urbana também é descrita de maneira rica. A existência da burguesia comercial é exemplificada pela sinalização de alguns nomes de seus representantes mais dinâmicos, como o de Antônio da Silva Lisboa, que mantém grande contacto com a Inglaterra. Outro comerciante que aparece possui belo jardim na sua residência e tem "fortuna ilimitada".

Porém, outro dado fornecido por Lindley também é de fundamental importância: a comprovação da existência de pessoas que guardavam grande fortuna, emprestavam dinheiro a juros e faziam serviço de câmbio. Esta forma de acumulação de capitais é que permitirá o nascimento do sistema de comissários de café, comissários de açúcar, etc, isto é, a formação de um sistema pré-bancário no Brasil. Por exemplo, o Sr. Oliveira vendia chitas às suas freguesas e quando "apresentei meu titulo, e assisti a quantia ser contada com muito cuidado e empilhada (sendo em prata) num banco que ficava por detrás dele, coberto com um pano. Informando eu ao velho que me havia sido prometido ouro, êle transportou uma parte da prata para o armário já mencionado e, abrindo-o, fiquei surpreendido com a quantidade de sacos nele existentes, aparentemente cheios de ouro, além de artigos avulsos de ouro e prata, arrumados separadamente".

A descrição de problemas relacionados com a alimentação; a sinalização da existência de fatos relativos à hierarquia social; o problema do escravo; a pesca da baleia; a exploração do salitre; a falta de dinheiro; o monopólio pela Igreja e Estado das melhores terras ao redor de Salvador; as festas populares e religiosas; o recrutamento dos soldados e marinheiros, etc, são outros temas tratados com precisão nêste diário, que se torna de leitura imprescindível para quem queira conhecer o Brasil na véspera da sua independência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Mar 1972
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