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A teoria econômica e os países subdesenvolvidos

ARTIGOS

A teoria econômica e os países subdesenvolvidos

Luiz Carlos Bresser Pereira

Professor-Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas

"Grande parte dos livros que se publicam nos países desenvolvidos sôbre os problemas dos países subdesenvolvidos são superficiais e completamente inaplicáveis." - GUNNAR MYRDAL

A frase de GUNNAR MYRDAL que transcrevemos acima diz respeito aos trabalhos dos economistas dos países industrializados sôbre o desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos. Portanto, segundo MYRDAL, a teoria do desenvolvimento, que especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial, vem sendo formulada, pouco valor tem, porque é superficial e inaplicável. Sem a menor sombra de dúvida, o grande economista sueco tem razão. Entretanto, neste artigo, nosso objetivo principal não é fazer a crítica dessa teoria do desenvolvimento. Ainda que contraditória, imprecisa, são-sistemática, desadaptada, eivada de juizo de valor não confessado é ela uma esperança, um caminho para a formulação de uma ciência econômica efetivamente adequada aos países subdesenvolvidos. Pretendemos com êste trabalho apresentar uma crítica preliminar ao próprio cerne da teoria econômica dos países desenvolvidos - uma crítica da micro e da macroeconomia - na medida em que também se pretende aplicá-la aos países subdesenvolvidos.

E com vistas a êsse objetivo, a afirmação de MYRDA L é preciosa. Se a teoria do desenvolvimento, que vem sendo formulada pelos economistas dos países desenvolvidos, é inaplicável, o que dizer da teoria econômica básica, da micro e da macroeconomia? Naturalmente, será ela também inaplicável por redobradas razões.

Isto que parece tão evidente face a esta rápida análise, não o é para um grande número de economistas dos países subdesenvolvidos. A prova do que afirmamos é o simples exame dos currículos e programas das Escolas de Economia e de Administração de Emprêsas no Brasil. Nas boas escolas há um domínio dos programas pela análise econômica desenvolvida, pela teoria marginalista marshalliana e pela macroeconomia keynesiana. Quanto às más escolas, nem a êsse estágio ainda conseguiram chegar. Estão na fase da economia conceituai, que se compraz e limita a definições; da economia descritiva, muitas vêzes, reduzida a uma pobre geografia econômica, e da história das doutrinas econômicas. Não nos interessa aqui o caso das Escolas de Economia e Administração de segunda categoria. Significativo é que o ensino da análise econômica desenvolvida constitui-se um sinal distintivo das melhores escolas do país.

Muito mais grave do que isto, porém, é o fato de ser a política econômica dos governos da maioria dos países subdesenvolvidos freqüentemente ineficiente e mesmo prejudicial aos respectivos países. Isto ocorre, geralmente, porque êsses governos procuram aplicar a teoria econômica ortodoxa. A teoria econômica dos países capitalistas, em suas economias subdesenvolvidas. É conhecido, por exemplo, o imenso prejuízo que a aplicação da teoria do comércio internacional causou aos países subdesenvolvidos. No Brasil, enquanto nossos governos, até o fim da Primeira República, acreditaram nessa teoria e a aplicaram, o Brasil não teve condições de desenvolver-se industrialmente. Atualmente, em problemas como o combate à inflação, o tratamento a ser dado a capitais estrangeiros, o sistema de planejamento econômico etc., geram enormes dificuldades para os países subdesenvolvidos quando os mesmos tentam aplicar de forma ortodoxa a teoria econômica dos desenvolvidos.

Como veremos no transcorrer dêste artigo, a ênfase que se dá ao ensino da teoria econômica dos países desenvolvidos, nas Universidades, e a tendência de os Governos dos países subdesenvolvidos aplicarem os princípios dessa teoria ao formularem e executarem sua política econômica não deriva simplesmente da crença na validade da teoria para os países subdesenvolvidos. É resultante também do fato de que não existe uma alternativa plenamente definida e estruturada. Enquanto a teoria econômica dos países desenvolvidos é um sistema de pensamento altamente elaborado, a teoria econômica dos países subdesenvolvidos está apenas dando seus primeiros passos.

Dêste fato, porém, não podemos concluir que a única solução é continuar a ensinar e aplicar a teoria econômica dos países desenvolvidos. Pelo contrário, importa criticá-la, determinar os motivos que a tornam inaplicável às economias dos países periféricos. É o que pretendemos fazer neste artigo, dentro da perspectiva de que uma das condições para o surgimento de uma teoria econômica válida para os países subdesenvolvidos é exatamente a existência de críticas do tipo que pretendemos realizar.

A TEORIA ECONÔMICA DOS PAÍSES DESENVOLVIDOS

A teoria econômica dos países desenvolvidos a que nos estamos referindo é aquela que vem sendo formulada pelos economistas dos países ocidentais desde os fisiocratas e ADAM SMITH, nos albores da Revolução Industrial, até o presente. É a teoria econômica ou simplesmente economia capitalista. Não obstante tôdas as divergências internas, todas as subescolas de que se compõe, chegou essa teoria a um alto nível de desenvolvimento, de coerência e de unidade, de forma, por exemplo, a ser possível a publicação de livros, textos de manuais de economia por autores os mais variados, que revelam uma notável semelhança quanto aos temas abordados e o tratamento a êles dado.

Não significa isto, naturalmente, que seja a única teoria econômica. A ciência econômica está muito longe de haver atingido o nível das ciências físicas e matemáticas, que, no nível dos conceitos e leis gerais básicas, conhecem menor divergência e as "escolas" sofrem enorme diminuição. Além da teoria econômica capitalista, existe a teoria econômica socialista (embora não se deva esquecer que essa teoria, em última análise, é um ramo da teoria econômica capitalista clássica) e mais recentemente vem sendo formulada uma teoria do desenvolvimento e do subdesenvolvimento econômico.

Temos, portanto, no seio da ciência econômica, três teorias básicas - a teoria econômica capitalista, a teoria econômica socialista, e a teoria econômica do desenvolvimento. É indiscutível, porém, que aquela que atingiu o mais elevado nível de elaboração teórica, de rigor e precisão em seus enunciados, foi a teoria capitalista. Observe-se que ao fazermos tal afirmação não estamos pretendendo atribuir qualquer superioridade intrínseca à teoria econômica capitalista. É fácil verificar, porém, que a teoria econômica socialista, depois da genial contribuição de MARX, passou por um longo período de estagnação, na medida em que, de um lado, os aspectos políticos ganhavam excessiva importância, e de outro o marxismo, também por motivos políticos, sofria um processo de dogmatização. Já a teoria econômica do desenvolvimento tem suas limitações baseadas em quatro fontes: em primeiro lugar, é uma teoria muito recente; em segundo, ambiciona cobrir um universo econômico extremamente heterogêneo; em terceiro, deve descrever e prever o comportamento de agentes econômicos que muito freqüentemente não agem de forma racional; e em quarto lugar, baseia-se, sem ter ainda realizado a necessária crítica, na teoria econômica capitalista.

A teoria econômica dos países desenvolvidos capitalistas ou simplesmente teoria econômica capitalista, tem duas partes principais: a microeconomia ou teoria dos preços, e a macroeconomia.

A microeconomia estuda a determinação dos preços dos bens e dos fatores de produção, e distribuição da renda, através dos mecanismos de mercado, através da análise do comportamento dos consumidores, das emprêsas e dos demais agentes econômicos dentro do mercado. É no campo da microeconomia que se estudam a oferta e a procura, a determinação do preço, a teoria do consumidor com base na teoria da utilidade, os custos de produção, o equilíbrio da emprêsa na competição perfeita e nos demais tipos de mercado - no monopólio, no oligopólio, e na competição monopolística - a determinação dos preços dos fatores de produção e a sua distribuição em função da produtividade marginal, e, finalmente, o equilíbrio geral do sistema capitalista. A microeconomia é fruto da elaboração da escola clássica, da austríaca e da neoclássica. Se quisermos, todavia, isolar um nome, será provàvelmente o do economista inglês, de fins do século passado e comêço dêste século, ALFRED MARSHALL.

Já a macroeconomia, embora muitos autores para ela tenham contribuído, é hoje, fundamentalmente, a economia keynesiana, a teoria econômica formulada durante a grande depressão dos anos trinta por JOH N MYNAR D KEYNES. Como a microeconomia, a macroeconomia é uma teoria estática, preocupada fundamentalmente com o equilíbrio. Seu objeto principal é o estudo dos componentes - básicamente, o consumo e o investimento - do produto nacional e os seus relacionamentos. Os fatores de produção e a própria renda nacional são estáticamente considerados como dados, e o problema é alcançar o equilíbrio através do pleno emprêgo e à plena capacidade. Entre os principais problemas estudados pela macroeconomia estão a função do consumo e a função do investimento, a propenpensão a consumir e a propenção marginal a consumir, a poupança, a eficiência marginal do capital, a preferência para a liquidez, a taxa de juro, o multiplicador dos investimentos, e os instrumentos de política econômica: a política monetária, a política fiscal e a política de investimentos governamentais.

Em resumo, a microeconomia:

• explica e orienta o comportamento dos agentes econômicos dentro do mercado; e

• demonstra a racionalidade do sistema capitalista, desde que mantidas as condições da concorrência perfeita.

A macroeconomia:

• limita o significado e a extensão dessa racionalidade;

• descreve o sistema econômico em têrmos agregados (produto nacional, investimento e consumo globais); e

• fornece elementos de política econômica destinados a superar as limitações da racionalidade do sistema ataravés da intervenção do govêrno.

Tanto a micro quanto a macroeconomia, não obstante tôda a sua aspiração à objetividade e ao desligamento de um sistema normativo de valores, na verdade estão pejadas de conteúdo ideológico. Uma ideologia é um sistema de valores politicamente orientado. A teoria econômica dos países desenvolvidos, como aliás não poderia deixar de ser, está inteiramente permeada pela ideologia liberal e capitalista, que dominou o mundo ocidental a partir da emergência da burguesia como classe dominante. Na verdade, a micro e a macroeconomia fazem parte integrante dessa ideologia, para a qual se constituem suporte teórico e instrumento de ação. Êste fato foi visto com tôda a sua clareza por MARX, que o denunciou através de tôda a sua obra. Na Crítica da Economia Política, em O Capital e no Anti-Duhring, MARX e ENGELS examinaram êste problema de forma extensa, em função de sua teoria do materialismo histórico. Hoje, a consciência de que não existe uma ciência econômica pura, desligada de juízos de valor, e, portanto, de sistemas ideológicos, é um fato corriqueiro. Não só a teoria econômica capitalista, mas também a teoria econômica socialista são vítimas desta circunstância. O próprio fato de existir uma teoria econômica capitalista e outra socialista já denuncia o fundamento ideológico de ambas. Não insistiremos sôbre o problema, que aliás foi brilhantemente estudado por pelo menos dois grandes economistas não marxistas - JOAN ROBINSON, em Filosofia Econômica, e GUNNAR MYRDAL, em Aspectos Políticos da Teoria Econômica.1 1 ) Ambos os livros estão publicados em português pela Zahar Editores, Rio de Janeiro, GB. Limitar-nos-emos a citar, dêste último, o seguinte trecho: "A tese geral de que a ciência econômica, para ser científica, devia abster-se de buscar estabelecer normas políticas, foi aceita pelos principais economistas por mais ou menos cem anos e é hoje um lugarcomum. Mas a plena significação dêsse postulado aparentemente não é percebida de um modo geral, e as doutrinas políticas ainda estão conosco. Foram originariamente formuladas por homens que acreditavam em sua objetividade e que tentaram prová-las cientificamente. Alguns economistas, hoje, são igualmente explícitos no seu emprêgo de métodos normativos. Mais freqüentemente, contudo, as normas são suprimidas e aparecem apenas implicitamente nas recomendações políticas específicas apresentadas como resultado de análises econômicas".2 2 ) GUNNAR MYRDAL - Aspectos Políticos da Teoria Econômica; Rio de Janeiro: Zahar Editôres, 1962, pág. 34. Em outras palavras, já que não é possível separar a teoria econômica das normas valorativas, importa torná-las explícitas.

UMA CIÊNCIA SOCIAL DESENVOLVIDA

Não obstante seu caráter político, ligado ao interêsse de grupos e classes sociais, a teoria econômica dos países desenvolvidos capitalistas, através de seus dois ramos principais, a micro e a macroeconomia, somados à teoria da moeda e do crédito e do comércio internacional, constituise provavelmente na ciência social que alcançou maior nível de desenvolvimento e formulação teórica. Sem dúvida uma afirmação dêsse tipo é muito discutível. Muito poderia ser dito em favor da sociologia ou da psicologia. Mas, mesmo sem entrarmos pelo caminho infrutífero das comparações entre ciências, acreditamos que existem argumentos ponderáveis em favor do que afirmamos.

A teoria econômica dos países desenvolvidos, a microeconomia, a macroeconomia, a teoria da moeda e do crédito e a teoria do comércio internacional atingiu um alto nível de sistematização, de forma que cada uma em separado, e tôdas em conjunto formam um todo relativamente harmônico e coerente. A grande maioria das relações de causa e efeito, das leis de caráter descritivo e das leis de comportamento puderam ser reduzidas a modelos precisos, que podem ser expressos matemáticamente o que não quer dizer que possam ser provados.

A partir de um dado estágio no desenvolvimento de ciência econômica clássica, vale dizer capitalista, formou-se uma base que permitiu o acúmulo de conhecimentos, desde que se continuasse a teorizar ao longo dos mesmos pressupostos. E isto foi o que realmente aconteceu, pois não se criou uma mentalidade crítica que viesse questionar os dados iniciais. A única variante foi a negação sistemática que resultou num outro sistema, ou seja, a economia socialista. Outra evidência do desenvolvimento da ciência econômica foi a formulação quantitativa da teoria. Por tôdas essas razões, a capacidade de previsão, e conseqüentemente a operacionalidade dessa teoria tornou-se bastante grande nos países desenvolvidos.

Hoje é indiscutível que a teoria econômica é um instrumento precioso de intervenção social para os países desenvolvidos capitalistas. Muitos dêles ainda não se aproveitam de tôdas as suas virtualidades, através do planejamento econômico, como o faz a França; mesmo assim, em países como os Estados Unidos, a Inglaterra ou a Alemanha, a ciência econômica fornece a todos os seus agentes e, particularmente, ao govêrno elementos de extraordinária valia para a interpretação do que acontece e para a intervenção no processo econômico.

Por que a teoria econômica dos países desenvolvidos conseguiu êsse caráter sistemático e integrado, esta precisão que a torna redutível a modelos matemáticos, esta unidade de pontos de vista sôbre uma série de assuntos básicos, êste alto nível de quantificação e esta operacionalidade, características que nenhuma outra ciência social conseguiu, e que tornam a teoria econômica tão fascinante para todos, inclusive para os economistas dos países subdesenvolvidos? Há três razões para que isto aconteça:

• Parte de uma concepção extremamente simplificada da natureza humana - o homo economicus.

• Limita-se a uma análise estática do sistema econômico, em que tôda a ênfase é colocada nos modelos de equilíbrio.

• Simplifica e esquematiza de maneira drástica o mundo real, ignorando a estrutura social (como já ignorara as estruturas psicológicas individuais ao postular o homo economicus ).

Reduz a estrutura econômica às condições de uma economia de mercado integrada, na qual: 1) mesmo quando não há concorrência perfeita, há outras formas de mercado (monopólio, oligopólio, concorrência monopolística) e não a pura e simples ausência de mercado; 2 ) um grande número de compradores, agindo em têrmos racionais, compram e vendem artigos razoàvelmente homogêneos e padronizados; 3) há um mercado financeiro atuante, da mesma forma que o mercado de fatores de produção é uma realidade, permitida inclusive pela perfeita mobilidade dos mesmos fatores, tudo isso levando à existência de um preço único no mercado; 4 ) o produto nacional é suficientemente grande e a sua distribuição em têrmos de renda suficientemente equitativa de forma a permitir que a maioria da população participe do mercado; 5) há uma relativa abundância de fatores de produção, de forma que o problema é simplesmente o de promover uma distribuição ótima dêsses fatores entre os diversos usos; e, finalmente, 6) o papel econômico do govêrno é secundário.

As três características básicas - o homo economicus, a ênfase no equilíbrio estático, e a simplificação do mundo real, que foi reduzido ao mundo econômico e em seguida identificado com uma economia de mercado integrada, - permitiram o alto desenvolvimento e operacionalidade da teoria econômica capitalista. Na medida em que se simplifiquem as variáveis em jôgo e se transformem tôdas as variáveis independentes menos uma em constantes, é possível desenvolver modelos bem mais perfeitos. Foi o que fizeram os economistas dos países desenvolvidos. E desde que as generalizações, simplificações e limitações impostas à realidade das economias dos países industrializados fossem válidas como provaram ser em suas linhas mestras, êsse método tornava-se perfeitamente legítimo.

INAPLICÁVEL AOS PAÍSES SUBDESENVOLVIDOS

Pergunta-se, agora: será essa teoria também aplicável aos países subdesenvolvidos? Na introdução a êste trabalho já optamos pela negativa. Esta resposta, todavia, só poderá ser considerada definitiva depois de verificarmos se aquelas características básicas da teoria econômica capitalista que acabamos de examinar são válidas também para os países subdesenvolvidos.

Poderíamos, sem dúvida, invocar argumentos do tipo magister dixit. Já ENGEL S afirmava que "a Economia Política não pode ser a mesma para todos os países e para tôdas as épocas históricas".3 3 ) FREDERIC ENGELS - Anti-Duhring, citado em V. B. SINGH, Da Economía Política; Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1966, pág. 15. Ora, os países subdesenvolvidos são muito diferentes dos desenvolvidos e atravessam uma fase histórica muito diversa. Mais recentemente, RAUL PREBISCH denuncia a pretendida universalidade da economia capitalista, afirmando: "uma das falhas mais conspícuas de que padece a teoria econômica geral, contemplada do ponto de vista da periferia (os países subdesenvolvidos, por exemplo) é seu falso sentido de universalidade".4 4 ) RAÚL PREBISCH - "El desarrollo econômico de la América Latina y algunos de sus principales problemas", El Trimestre Econômico, julho-setembro de 1949, pág. 358 e 359. Com isso, sem dúvida, PREBISH não queria negar todo e qualquer sentido universal à teoria econômica. Há sem dúvida uma base comum. Muito do trabalho dos economistas de todos os países, após dois séculos de grande desenvolvimento da ciência econômica, trouxe contribuições decisivas ao conhecimento humano que nenhum economista de um país subdesenvolvido tem o direito de ignorar. Mas o problema está em conhecer o ponto onde termina o caráter universal da ciência econômica e começam os aspectos particulares, definidos pelos aspectos regionais e pelos sistemas de valor. Conforme diz CELSO FURTADO, "não acreditamos em ciência econômica pura, isto é, independente de um conjunto de princípios de convivência social preestabelecidos, de julgamentos de valor. Alguns dêsses princípios podem tender à universalidade, como a norma de que ti bem-estar social deve prevalecer sôbre o interêsse individual. Contudo, no estágio em que nos encontramos de grandes disparidades de graus de desenvolvimento econômico e integração social - para não falar dos antagonismos que prevalecem com respeito aos ideais da convivência social - seria totalmente errôneo postular para o economista uma equívoca idéia de objetividade, emprestada às ciências físicas".5 5 ) CELSO FURTADO - A Pré-Revoluçâo Brasileira; Rio de Janeiro: Editôra Fundo de Cultura, 1962, pág. 81.

Finalmente, para não estendermos indefinidamente estas citações, a respeito do problema da validade da teoria econômica dos países desenvolvidos quando aplicada aos países subdesenvolvidos, transcreveremos a opinião de um famoso economista especializado no comércio internacional, JACOB VINER, cujas posições são marcadas por um estrito conservantismo. Afirma êle: "O crescimento da importância política e da articulação dos chamados países subdesenvolvidos tornou inaceitável, ao menos para êles, uma economia cuja tônica, seleção de problemas e forma de análise se produzem somente em têrmos estáticos e unicamente, ou em sua maior parte, à luz das condições e das necessidades dos países mais avançados industrialmente, socialmente mais estáveis e economicamente mais prósperos".6 6 ) JACOB VINER - International Trade and Economic Development; Oxford: The Clarence Press, 1953, pág. 7.

Poderíamos continuar a trazer mais testemunhos em favor de nossa tese. Ao invés disto, porém, tentaremos sair das generalidades e examinar, uma a uma, as características da teoria econômica capitalista que apresentamos acima. Algumas dessas características são na verdade os pressupostos da teoria econômica. É o caso do homo economicus, e da economia de mercado integrada e o seu caráter estático, que se explica em função dos objetivos e necessidades do próprio sistema econômico.

O HOMO ECONOMICUS E A TEORIA ECONÔMICA

O homo economicus foi uma solução brilhante encontrada pelos economistas clássicos para resolver o problema do fator humano na teoria econômica. Tôda ciência social, a partir do momento em que pretende desenvolver um padrão, um esquema abstrato e simplificado do funcionamento da sociedade, necessita, prèviamente de um modêlo do comportamento humano, no qual as motivações dos sêres humanos estejam definidas e sejam consideradas constantes. Em outras palavras, não é possível descrever e prever o comportamento social, sem se possuir uma concepção anterior da natureza humana, e de como ela reage aos diversos estímulos do ambiente. Nesses têrmos, a ciência econômica, na medida em que é antes de mais nada uma ciência social - a ciência que estuda o comportamento humano em função da produção e distribuição de bens e serviços, e da distribuição da renda assim gerada - tinha também necessidade de uma concepção básica da natureza humana. Desta evidência para escolha do, homo economicus como protótipo da ciência econômica foi um passo.

O homo economicus é um produto do racionalismo, que a partir do Século XVI, dominou o mundo ocidental. Na grande fraqueza desta concepção da natureza humana está, ao mesmo tempo, sua grande fôrça. O homo economicus é um modêlo extraordinariamente simplificado, e por isso indefensável do ponto de vista estritamente científico, como descrição válida do que seja o homem e de como êle se comporta. É o ser absolutamente racional, que age sempre de forma deliberada, visando a um único objetivo, a maximização de seus ganhos econômicos. Soma-se a isto o fato de que, para atingir seu objetivo, êle é onisciente e conhece tôdas as oportunidades que lhe são oferecidas pelo mercado, de forma que pode sempre escolher a alternativa que mais o favorece. Evidentemente os homens não são assim, nem sempre são racionais e deliberados, muitas vêzes, preferem outros objetivos que o simples ganho material, e em hipótese alguma são oniscientes. Nesses têrmos, a tentativa que realizou a Escola Clássica de Administração, sob a liderança de TAYLO R e FAYOL, de adotar o modêlo do homo economicus, não foi bem sucedida. No campo da Economia, porém, é preciso admitir que a adoção desta concepção da natureza humana foi extremamente feliz. Com ela pretendia-se descrever o comportamento médio ou o comportamento típico de um indivíduo produzindo, vendendo e comprando no mercado. Ora, o comportamento dos homens no mercado, na produção e distribuição de bens, tende naturalmente a ser racional, visando a lucros de maneira deliberada. Além disso, na medida em que a onisciência do agente economico limita-se ao conhecimento dos preços e qualidades dos produtos que são oferecidos, ela não se torna tão absurda. Finalmente, é preciso não esquecer que êsse agente econômico - produtor ou consumidor - agindo no mercado, é um produto da civilização ocidental e burguesa, da qual assimilou os valores fundamentais, entre os quais estão o comportamento racional e a maximização dos ganhos econômicos, sejam lucros, salários, juros, ou aluguéis. E, se a isto tudo adicionarmos o fato de que a teoria econômica, mesmo a microeconomia, vale-se da lei dos grandes números, ou seja, da lei segundo a qual, desde que se esteja descrevendo o comportamento de um grande número de seres, os extremos, as exceções tendem a compensar-se, concluiremos que, pelo menos para uma primeira abordagem e uma descrição mais ampla do sistema econômico, a concepção do homo economicus é um pressuposto válido.

O problema, todavia, não é apenas de o homo economicus ser um pressuposto válido para a teoria econômica. Por sua simplicidade, foi possível construir tôda a teoria econômica com grande precisão e rigor. Se trabalhássemos com uma concepção de natureza humana fluída, instável, complexa, contraditória, seria totalmente impossível construir uma teoria econômica harmônica e significativa. Ficaríamos às voltas com um amontoado de teorias parciais e contraditórias, que limitam decisivamente a operacionalidade dessas ciências como é o caso da Sociologia ou da Administração, que naturalmente não podem se contentar, nem para início de pesquisa e elaboração teórica, com o homo economicus.

Mas, será válido o homo economicus também para a teoria econômica dos países subdesenvolvidos? A resposta a esta pergunta dependerá, fundamentalmente, de duas condições: a hegemonia de uma civilização ocidental utilitarista e racionalista e da existência de um mercado integrado. Sobre a segunda condição falaremos logo a seguir, pois é provàvelmente o pressuposto mais importante da teoria econômica capitalista. Em relação à primeira condição, o que podemos afirmar é que o processo de desenvolvimento econômico, na medida em que se identifica em grande parte com industrialização, tem se definido1 1 ) Ambos os livros estão publicados em português pela Zahar Editores, Rio de Janeiro, GB. como um processo de introdução não só das técnicas de produção e distribuição mas também dos valores e instituições ocidentais. Desta forma, quanto mais subdesenvolvido um país, menos se poderá falar em prevalência de valores ocidentais. Os países da África Negra, por exemplo, sofreram uma influência muito menor da civilização ocidental do que as da América Latina. Além disso, quanto maior fôr a solidez e consistência dos valores e instituições tradicionais, mais difícil será a penetração da civilização ocidental. É o caso dos países asiáticos, que somam à mais profunda pobreza, valores e instituições seculares. Do ponto de vista dos valores prevalentes na sociedade, portanto, temos de admitir que o homo economicus está longe de adaptar-se aos países subdesenvolvidos. Mesmo nos países latino-americanos há sérias restrições ao emprego do pressuposto do homo economicus de forma indiscriminada. As necessidades de ganho pessoal, de crescente bem estar e do poder e prestígio derivados da riqueza, são sem dúvida, em suas linhas gerais, comuns a tôda a humanidade. Poderemos excetuar apenas algumas tribos primitivas. Mas a intensidade dessas necessidades e o seu conceito variam de forma extraordinária. Para algumas civilizações, como a ocidental, o bem estar material e a riqueza são objetivos da maior importância, enquanto em outras civilizações, altamente influenciadas por doutrinas ascéticas e contemplativas, nas quais as oportunidades de êxito econômico eram muito pequenas, como é o caso da civilização hindu, a importância dêsses objetivos era muito menor. O conceito de bem estar também varia. Especialmente, é preciso perguntar, qual o grau de lazer considerado ideal para uma determinada sociedade. E não há dúvida que a maioria dos povos subdesenvolvidos, em parte, por causa também do reduzido número de oportunidades econômicas, dá importância muito maior ao lazer do que os países desenvolvidos.

A EXISTÊNCIA DE UM MERCADO INTEGRADO

O segundo pressuposto fundamental da teoria econômica dos países desenvolvidos capitalistas é a existência de um mercado integrado. Sem êsse mercado, em que os preços se determinam ao sabor da lei da oferta e da procura, em que produtores e consumidores trocam incessantemente bens e serviços, não é possível pensar-se em teoria econômica capitalista. Já vimos que o próprio conceito do homo economicus só se sustenta na medida em que houver um mercado integrado. Mas existirá êsse mercado nos países subdesenvolvidos? Ao invés de respondermos a esta pergunta de forma global, vejamos cada uma das principais características dêsse mercado e se são elas existentes nos países subdesenvolvidos.

Todos Participam do Mercado

Para que haja mercado integrado é preciso, antes de mais nada, que haja um mercado, e que todos ou pelo menos a grande maioria dos agentes econômicos participe dêle, produzindo para trocar seus produtos nesse mercado. Ora, é fácil verificar que nos países subdesenvolvidos apenas uma minoria participa do mercado de bens industriais, exceto, naturalmente, tecidos baratos e mais alguns produtos industriais de primeira necessidade. No Brasil, por exemplo, a grande maioria das emprêsas industriais de artigos de consumo, quando tem que definir seu mercado, define-o como sendo de aproximadamente um quarto da população do país, mercado êsse concentrado na região sul, particularmente no Estado de São Paulo, e nas capitais dos principais estados.

No setor agrícola, ou temos grandes latifúndios auto-suficientes, que produzem praticamente tudo de que necessitam os que nêles trabalham, além de um excedente comercializável que permite o lucro do proprietário, de forma que apenas êle participa do mercado, ficando todos os demais excluídos, ou então dominam os minifúndios, nos quais os camponeses procuram a auto-suficiência para evitar a exploração dos intermediários. Além disso, no caso dos minifúndios, o camponês não tem grandes estímulos a participar do mercado em virtude da deficiência dos transportes e comunicações e das variações dos preços dos produtos agrícolas. A êstes fatos, muitos sociólogos, principalmente aquêles especializados em mudança social, somam a ignorância e o espírito tradicional dos camponeses, que os leva a não participar do mercado.

Um Sistema de Preços Único

Para que haja um mercado integrado, é fundamental que o sistema de preços seja único. Os preços das mercadorias, dos salários, dos juros, da terra, desde que a qualidade do bem ou serviço em pauta seja idêntica, só variarão em função dos custos de transporte e armazenamento. Ora, evidentemente não é êste o caso dos países subdesenvolvidos. A dualidade de suas economias já foi discutida de maneira exaustiva pelos economistas da teoria do desenvolvimento. Há sempre um setor tradicional, constituído da agricultura de consumo interno e de artesanato local, e um setor moderno constituído das indústrias e da agricultura capitalista de exportação. Os salários, nesses dois setores, para serviços exatamente iguais, são muito diferentes, sempre com vantagem para os salários do setor moderno, que assim desfruta de uma situação de oferta de trabalho irrestrita. Além disso, as diferenças de salário, entre os salários rurais tradicionais de trabalhadores não especializados, e o salário de trabalhadores urbanos semiespecializados e especializados, em regra, não têm relação com a produtividade marginal dos mesmos. Como conseqüência disso, provocam-se também distorções nos preços das mercadorias, especialmente nos gêneros alimentícios. Os preços no setor tradicional são muito menores do que no setor urbano, não podendo essa diferença explicar-se pelos custos normais de comercialização. E mesmo dentro de cada um dos setores, há freqüentemente diferenças de preço notáveis, determinadas pela falta de um bom sistema de comunicações.

Mobilidade dos Fatores de Produção

Esta característica está intimamente ligada à anterior. Por mobilidade dos fatores de produção entende-se a capacidade que os mesmos têm de se deslocar rapidamente de região ou de setor de produção, desde que, em outra região ou setor, os lucros, os salários, os juros estejam mais altos. O único fator de produção que por definição não é móvel é a terra. Os demais estão sempre se deslocando, à procura das melhores oportunidades de ganho. E assim se obtém a identidade de preços acima mencionada. Ora, a inexistência de um sistema único de preços já implica na inexistência de uma mobilidade satisfatória dos fatores de produção, que permita remunerá-las segundo sua produtividade marginal. Os obstáculos a essa mobilidade são de suas ordens. De um lado, temos obstáculos institucionais. O trabalhador é, muitas vêzes, apegado ao local em que nasceu, aos fortes laços que o ligam à sua família. Sem dúvida, o grande movimento de migração interna ocorrido no Brasil, do Nordeste para o Sul é um argumento em oposição ao que estamos afirmando. Mas é preciso lembrar, nesse caso, dois problemas: de um lado, as diferenças de salário eram de tal ordem, que era difícil aos laços tradicionais segurar o migrante; de outro lado, o Brasil está longe de poder ser considerado um país subdesenvolvido típico, já que uma região importante de seu território, com centro em São Paulo, atingiu um nível considerável de produção e diversificação industrial.

Também em relação ao capitalista, surgem obstáculos à mobilidade. O industrial, geralmente o pequeno industrial, dos países subdesenvolvidos, tem uma visão familiar e personalizada de sua empresa, baseada no fato de que a mesma ainda não atingiu um suficiente grau de racionalização e auto-suficiência administrativa que a torne relativamente independente de seu proprietário. Essa visão, condicionada pelo tamanho reduzido da emprêsa, é em geral correta. Impede, todavia, a mobilidade do capital. Quando surgem oportunidades em outra região, ou mesmo em outro setor industrial, o empresário sente-se tolhido pela falta de autonomia de sua própria emprêsa, que exige dêle um tempo integral, e assim deixa de fazer os investimentos que as condições econômicas sugerem.

Mercado Financeiro Atuante

Esta é uma condição especialmente importante para a macroeconomia. Para a microeconomia o sistema monetário e creditício é, sem dúvida, também um pressuposto subjacente. Mas no caso da macroeconomia, só é possível torná-la operacional desde que:

• haja um mercado financeiro atuante e vivo;

• as taxas de juro sejam determinadas fundamentalmerite pelos mecanismos de mercado embora com a intervenção da política financeira do govêrno;

• haja um amplo mercado de ações e títulos de crédito, de forma a permitir aos investidores uma ampla gama de escolha.

Nestes têrmos, os investimentos serão realizados em função da eficiência marginal do capital e da taxa de juros. Ora, nos países subdesenvolvidos, sabemos muito bem que existem extensas áreas, nos setores tradicionais da economia, nos quais sequer entrou uma economia monetária. Estão essas regiões ainda em plena economia de subsistência, de auto-consumo somado a alguma troca em espécie. O sistema monetário, portanto, está longe de estar integrado. O caso do crédito é muito mais grave. Além de ser muito restrito, dadas as limitações das instituições financeiras e o pouco comércio já existente, é ainda em grande parte dominado por bancos comerciais e de desenvolvimento oficiais, cujas taxas de juro não são em absoluto determinadas pelo mercado. E quanto ao mercado de ações e de outros títulos, êste é pràticamente inexistente de forma que os investidores têm à sua disposição um número muito reduzido de oportunidades de investimentos além do seu próprio negócio.

Papel Subsidiário do Govêrno

Êste é o último pressuposto da teoria econômica capitalista que nos parece importante assinalar. A microeconomia é fundamentalmente a teoria econômica do liberalismo, do laissez-faire, e a macroeconomia keynesiana, apesar de já preconizar a intervenção do govêrno, reserva a êste um papel secundário. O controle da economia será feito bàsicamente pelas forças do mercado. Sendo êste integrado, com um grande número de produtores e compradores concorrendo, o controle da economia será automático, e ao govêrno caberá unicamente o papel de espectador que, em determinados momentos, realiza pequenas intervenções para corrigir algumas anomalias.

Ora, nos países subdesenvolvidos, exatamente pela inexistência de um mercado integrado, como foi visto anteriormente, cabe ao govêrno um papel no domínio econômico muito mais importante. Em todos os países subdesenvolvidos em que houve um mínimo de esforço no sentido do desenvolvimento, o govêrno assumiu imediatamente um papel preponderante. Sua intervenção na economia não é só através da política fiscal, creditícia ou financeira. Êle intervém no próprio sistema de concessão de crédito, através dos bancos oficiais, e, principalmente, torna-se responsável por investimentos nos setores principais da economia. No Brasil, por exemplo, nos últimos anos, mais de 60% do investimento anual tem sido feito pelo Govêrno. Êste, em todos os países subdesenvolvidos, intervém em setores como a energia, os transportes, o petróleo, a mineração, a siderurgia, etc., porque é êle o único agente econômico que tem condições para realizar tais investimentos. O resultado disto é que a economia de mercado dos países subdesenvolvidos fica por mais essa razão comprometida, na medida em que o govêrno não age segundo critérios capitalistas de maximização dos lucros, além de ter monopólio da maioria das atividades a que se dedica.

OBJETIVOS DIVERSOS

Não bastasse o fato de que os dois pressupostos fundamentais da análise econômica capitalista - a concepção da natureza humana em têrmos de homo economicus e a existência de um mercado integrado - não são válidos total ou parcialmente nos países subdesenvolvidos, temos ainda a considerar que o próprio objetivo da teoria econômica capitalista e tôda a forma de abordagem dos problemas decorrente dêsse objetivo conflitam-se com os objetivos de uma teoria econômica para os países subdesenvolvidos.

O objetivo fundamental de tôda a análise econômica é rigorosamente o equilíbrio, seja a curto prazo, ou a longo prazo. Sem dúvida, em cada caso o conceito de equilíbrio pode ser diverso, todavia, conquanto não conflitante, é sempre um conceito estático. Para a análise microeconômica o equilíbrio identifica-se com a maximização dos lucros da emprêsa, ou a maximização da utilidade do consumidor. Para a macroeconomia, o equilíbrio ocorre quando há o pleno emprêgo. O desenvolvimento econômico, para a microeconomia, é uma decorrência do equilíbrio na concorrência perfeita, e os conhecedores da teoria dos preços sabem a que nível de abstração, de alienação mesmo da realidade, é preciso chegar, para atingir-se o equilíbrio da concorrência perfeita. Para a macroeconomia, o desenvolvimento será função do pleno emprêgo. De acordo com a teoria keynesiana, em face às características particulares da função consumo, há sempre na economia dos países uma tendência à depressão, ao desemprêgo, que terá de ser contrabalançada pela política econômica do govêrno.

Portanto, o desenvolvimento é tratado em termos implícitos, quer na micro quer na macroeconomia. A análise é estática, e o objetivo é o equilíbrio. O pressuposto é o de que os fatores de produção são abundantes e que todo o problema econômico é o de bem aplicar êsses fatores. A aplicação dos recursos, the resource allocation, transforma-se no problema fundamental de tôda teoria econômica.

Ora, a teoria econômica de que necessitam os países subdesenvolvidos evidentemente não pode partir de tal pressuposto, e muito menos pode ter semelhante objetivo. A teoria econômica do desenvolvimento parte exatamente do pressuposto, ou melhor da verificação oposta - a de que os recursos econômicos e os fatôres de produção são escassos.

E, verdadeiramente, tal ocorre nos países subdesenvolvidos por razões:

• naturais - terras áridas, subsolos pobres, dificuldades naturais de transportes, climas inadequados, etc.;

• econômicas - poupança reduzida e conseqüente baixa capacidade de investimento, relações comerciais internacionais desvantajosas, sistema educacional inadequado e insuficiente, mão-de-obra desqualificada, pesquisa de recursos naturais incompleta, distribuição excessivamente desequilibrada da terra e da renda, poucas oportunidades de investimentos lucrativos, etc.;

• institucionais - colonialismo, estrutura social rígida, dificultando a mobilidade social, sistemas de privilégios tradicionais ou legais, existência de uma aristocracia de senhores de terra desinteressada no desenvolvimento, domínio do país por uma tecnocracia alienada da realidade prática; existência de crenças que dificultam o desenvolvimento, como as vacas sagradas da índia, baixo índice de espírito empresarial, etc.

Por outro lado, o objetivo fundamental da teoria econômica do desenvolvimento é, como seu próprio nome o indica, não equilíbrio mas promoção do desenvolvimento econômico. Resulta daí que a sua principal preocupação não será a de aplicar recursos abundantes de forma ótima, mas, criar prèviamente condições para que surjam recursos econômicos. Muitos recursos poderão existir em estado latente. Modificações de ordem institucional, o uso de uma nova tecnologia adaptada às condições existentes, podem fazer com que êsses recursos se transformem em fatores de produção efetivos. Em seguida, surgirá sem dúvida, a necessidade de se preocupar com a aplicação ótima dos recursos, mas, dada a inexistência de um mercado integrado e de um homo economicus, os princípios que orientarão a aplicação dos recursos serão necessàriamente diversos.

CONCLUSÃO

Pela evidência dêsses fatos, somos levados a concluir que a teoria econômica dos países desenvolvidos não se aplica aos países subdesenvolvidos. E, mais do que isso, levados a concluir que as condições existentes nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos são de tal forma diferentes, que não bastam adaptações da teoria econômica para que a mesma se torne válida para os países subdesenvolvidos. Ao invés, temos necessidade de uma teoria econômica do subdesenvolvimento e do desenvolvimento que seja autônoma, sistemática e integrada.

Teríamos assim, de um lado, a Teoria Econômica dos Países Desenvolvidos Capitalistas e a Teoria Econômica dos Países Desenvolvidos Socialistas, e de outro, a Teoria Econômica dos Países Subdesenvolvidos. Esta teoria econômica também pode subdividir-se de acordo com o caráter socialista ou capitalista das economias subdesenvolvidas. Mas imaginamos, aqui, não terem as distinções tanta importância quanto no caso da Teoria Econômica dos Países Desenvolvidos, porque, provàvelmente, uma solução capitalista para os países desenvolvidos teria de implicar em uma ampla dose de planejamento econômico e controle direto do Estado sôbre a economia, quanto uma solução de caráter socialista seria levada a deixar uma ampla margem para a iniciativa particular na agricultura, no comércio interno, na pequena indústria e no setor de serviços pessoais.

Estará essa Teoria Econômica dos Países Subdesenvolvidos sendo formulada? Sem dúvida, grandes esforços têm sido feitos nesse sentido, especialmente a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Em verdade, o desenvolvimento econômico tornou-se, aproximadamente a partir dessa época, não só o grande problema político de tôda a humanidade, à medida em que a grande maioria subdesenvolvida da população mundial despertava para a luta pelo desenvolvimento, bem como o grande tema de indagação dos economistas contemporâneos. Ainda não há, porém, uma Teoria Econômica dos Países Subdesenvolvidos, e sua consolidação ainda parece remota. Conforme observam com grande clareza os dois economistas chilenos, ANÍBAL PINTO e OSVALDO SUNKEL, "a teoria do desenvolvimento - como mostra claramente uma vista de olhos a qualquer livro didático sôbre o tema - não consiste senão numa estranha mistura de generalizações econômicas e proposições pseudo-sociológicas, uma mescla de elementos de análise de curto prazo e de enforques dinâmicos e estáticos, de várias doutrinas e escolas de pensamento, etc.. Muito pouco foi dito, na realidade, para reformular sistematicamente a teoria econômica sôbre a base da mudança dos pressupostos e à consideração de novos elementos que a realidade exige dos países pouco desenvolvidos".7 7 ) ANÍBAL PINTO e OSVALDO SUNKEL - "Economistas Latino-Americanos nos Países Desenvolvidos", Revista Civilização Brasileiro, n.º 8, julho de 1966, pág. 119.

Não pretendemos discutir agora, em profundidade, as razões de não existir ainda um Teoria Econômica dos Países Subdesenvolvidos. Há muito pouco, começou-se a pensar sôbre o assunto. A maioria dos economistas que vêm estudando o problema vivem nos países desenvolvidos, o que leva a ter, geralmente, uma visão alienada de realidade dcs países subdesenvolvidos. Além disso, tanto êles quanto os economistas dos países subdesenvolvidos, partiram sempre do pressuposto de que o necessário era adaptar a teoria econômica aos países subdesenvolvidos, quando na verdade, como vimos através dêste trabalho, o que se impõe é uma reformulação da teoria econômica. Por outro lado, esta "realidade" dos países subdesenvolvidos à qual nos referimos acima é extremamente ilusória e indefinida. As diferenças entre os países subdesenvolvidos, não só em têrmos de graus de subdesenvolvimento, mas também em têrmos da própria tipologia do subdesenvolvimento, são enormes. Nesses têrmos, não há dúvida de que a tarefa de reformular a teoria econômica, visando a construir-se uma Teoria Econômica dos Países Subdesenvolvidos, será uma tarefa extremamente difícil.

Embora difícil, é todavia, uma tarefa imprescindível. Neste trabalho procuramos mostrar essa necessidade, através da demonstração de que a Teoria Econômica dos Países Desenvolvidos não se aplica aos países subdesenvolvidos. Por um lado, a inadequação é o grande argumento a favor da formulação de uma teoria econômica para os países subdesenvolvidos. Por outro, é ela o ponto de partida necessário e fundamental para que essa reformulação possa ter êxito Enquanto se pensar que para a construção de uma teoria do desenvolvimento dever-se-á simplesmente adaptar à análise econômica existente, nada de útil poderá ser

feito. Sem dúvida, nos países subdesenvolvidos deveremos continuar a estudar a teoria econômica dos países desenvolvidos. O estudo da micro e da macroeconomia continuam básicos para a formação de qualquer economia de um pais subdesenvolvido. Ninguém poderá pretender ser um economista ou afirmar conhecer economia, sem ter uma visão bastante clara da análise econômica dos países desenvolvidos. Será perda de tempo, porém, preocupar-se com os refinamentos dessa teoria, os quais, embora possam constituir-se em um fascinante exercício mental pouco contribuirão para o objetivo fundamental, que é o da formulaçao de uma teoria econômica para os países subdesenvolvidos.

Quando estávamos concluindo êste artigo, chegou-nos às mãos o último número da Revista Brasileira de Economia, no qual WERNER BAER escreveu um artigo sobre o mesmo problema que estamos analisando.8 8 ) WERNER BAER - "On the Relevance of Traditional Analytical Tools, in Studying Brazilian Economic Problems", Revista Brasileira de Economia, junho-setembro de 1966, págs. 7 a 16. Nesse trabalho o autor classificou com grande inteligência os economistas brasileiros em dois tipos, revisionistas e tradicionalistas, e depois adotou a solução cômoda de optar por uma posição intermediária. Examinando o problema, já amplamente debatido, da aplicabilidade da Teoria do Comércio Internacional aos países subdesenvolvidos, concluiu que ao invés de reieitar ou aderir inteiramente a tal teoria, o que se deveria fazer é ampliá-la, dinamizá-la. Estamos de pleno acordo. Apenas acreditamos que para dinamizá-la e amplia-la seria realmente necessário reformular essa teoria. Nao nos detemos no problema da Teoria do Comércio Internacional neste artigo porque nos parece que sua inaplicabilidade aos países subdesenvolvidos ficou de tal forma comprovada, que seria inútil insistir sôbre o assunto. Preferimos examinar com mais cuidado as próprias bases da teoria econômica, a micro e a macroeconomia. Por isto, dentro da análise do Prof. BAER, enquadramo-nos entre os revisionistas, embora obviamente não de acordo com uma série de posições que aos mesmos foram atribuídas, e que realmente não se sustentam do ponto de vista econômico. Na verdade, não acreditamos que possa haver economistas neutros em relação ao problema. É possível apenas ser mais ou menos radical em suas posições ortodoxas ou revisionistas.

Nossa posição é de um revisionismo sem extremos. Dentro dêsse prisma cabe aos economistas dos países subdesenvolvidos uma série de tarefas altamente necessárias:

• É preciso denunciar a inaplicabilidade da teoria econômica. Isto só poderá ser feito, porém, depois de um cuidadoso estudo da mesma.

• Estudar e tentar aplicar os modelos já existentes, que vêm sendo construídos pela teoria do desenvolvimento, ainda que os mesmos não tenham a mesma fascinante precisão da teoria ortodoxa.

• Desenvolver a pesquisa de campo, bem como aperfeiçoar os processos de levantamentos estatísticos nos países subdesenvolvidos, e com base nos dados assim levantados, usar da imaginação - uma qualidade essencial para qualquer economista - para contribuir no esforço de reformulação sistemática da teoria econômica, tendo em vista as características e necessidades específicas dos países subdesenvolvidos.

Nessa reformulação, o que houver de universal na teoria econômica deverá sem dúvida ser mantido. Mas todo o sistema e cada um dos seus aspectos particulares deverá passar por uma análise crítica completa.

  • 2) GUNNAR MYRDAL - Aspectos Políticos da Teoria Econômica; Rio de Janeiro: Zahar Editôres, 1962, pág. 34.
  • 4) RAÚL PREBISCH - "El desarrollo econômico de la América Latina y algunos de sus principales problemas", El Trimestre Econômico, julho-setembro de 1949, pág. 358 e 359.
  • 5) CELSO FURTADO - A Pré-Revoluçâo Brasileira; Rio de Janeiro: Editôra Fundo de Cultura, 1962, pág. 81.
  • 6) JACOB VINER - International Trade and Economic Development; Oxford: The Clarence Press, 1953, pág. 7.
  • 7) ANÍBAL PINTO e OSVALDO SUNKEL - "Economistas Latino-Americanos nos Países Desenvolvidos", Revista Civilização Brasileiro, n.ş 8, julho de 1966, pág. 119.
  • 8) WERNER BAER - "On the Relevance of Traditional Analytical Tools, in Studying Brazilian Economic Problems", Revista Brasileira de Economia, junho-setembro de 1966, págs. 7 a 16.
  • 1
    ) Ambos os livros estão publicados em português pela
    Zahar Editores, Rio de Janeiro, GB.
  • 2
    ) GUNNAR MYRDAL -
    Aspectos Políticos da Teoria Econômica; Rio de Janeiro:
    Zahar Editôres, 1962, pág. 34.
  • 3
    ) FREDERIC ENGELS -
    Anti-Duhring, citado em V. B. SINGH,
    Da Economía Política; Rio de Janeiro:
    Zahar Editores, 1966, pág. 15.
  • 4
    ) RAÚL PREBISCH - "El desarrollo econômico de la América Latina y algunos de sus principales problemas",
    El Trimestre Econômico, julho-setembro de 1949, pág. 358 e 359.
  • 5
    ) CELSO FURTADO -
    A Pré-Revoluçâo Brasileira; Rio de Janeiro:
    Editôra Fundo de Cultura, 1962, pág. 81.
  • 6
    ) JACOB VINER -
    International Trade and Economic Development; Oxford:
    The Clarence Press, 1953, pág. 7.
  • 7
    ) ANÍBAL PINTO e OSVALDO SUNKEL - "Economistas Latino-Americanos nos Países Desenvolvidos",
    Revista Civilização Brasileiro, n.º 8, julho de 1966, pág. 119.
  • 8
    ) WERNER BAER - "On the Relevance of Traditional Analytical Tools, in Studying Brazilian Economic Problems",
    Revista Brasileira de Economia, junho-setembro de 1966, págs. 7 a 16.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jul 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1967
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