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Agricultura e empresa: modificações na política agrícola

INFORME TRIMESTRAL

Agricultura e empresa: modificações na política agrícola

Roberto Mario Perosa Júnior

Depois de quase 15 anos de aplicação, a política agrícola, que canalizou uma soma considerável de subsídios para o setor agropecuário, deverá sofrer um desvio de rota. Essa é a conclusão, embora provisória, a que se chega ao observar pronunciamentos sobre as intenções governamentais para o futuro próximo. 0 centro de toda discussão sobre o tema está na presença dos subsídios e na inviabilidade de a economia brasileira arcar com tal política sem grandes traumatismos. Em particular; os debates enfatizam o caráter inflacionário dos subsídios, cujas conseqüências seriam aparentemente mais graves do que os possíveis benefícios que essa política poderia implicar: elevação da produtividade e da eficiência do setor agrícola. É importante, pois, realizar uma tentativa de análise das conseqüências que uma nova política, que não contará mais com subsídios, poderá ter para a agricultura brasileira.

1. AGRICULTURA EMPRESARIAL

É possível ter-se a organização do setor agropecuário de forma empresarial? Essa questão é, em primeiro lugar, importante, pois se respondida de modo negativo implicaria total reformulação da política agrícola dos anos 60 para cá. E, segundo, não é\uma pergunta ociosa, pois é sabido que a estruturação da agricultura, tanto nos principais países da Europa ocidental quanto nos EUA, concede um peso enorme ao chamado family farming. Nesse último país, cerca de 65% do market value agropecuário 89 se origina nas propriedades familiares. Em especial, essa participação se eleva consideravelmente quando se trata de cereais, cuja produção constitui um dos principais trunfos da agricultura norte-americana em face das demais. O mesmo ocorre na produção de leite e de grande parte da pecuária bovina para produção de carne. O chamado corporate farming, de todo modo, não está ausente do setor agrícola dos EUA. Mas localiza-se lá onde uma ou mais das três seguintes condições se fazem presentes: atingiu-se o controle, no processo de produção, das condições adversas do clima e, principalmente, do ciclo biológico natural que, como regra, impõe ociosidade ao capital fixo e à força de trabalho; conseguiu-se, através de integração vertical, estabelecer uma compensação às mencionadas condições adversas; finalmente, conta-se com a presença de subsídios. Em qualquer dos três casos pode-se encontrar a grande empresa na agricultura. Assim, o avanço tecnológico permitiu a presença cada vez maior da grande empresa na avicultura, seja de ovos, seja na produção de frangos de corte; por meio de integração, o mesmo aconteceu na produção de laranja (fábricas de suco) e de cana-de-açúcar (usinas); e as grandes empresas se aproveitam dos subsídios para reflorestamento em estados como Maine, Massachusetts, Rhode Island e Connecticut.

É difícil para qualquer analista do tema evitar a conclusão: onde os subsídios são de menor monta, como é o caso norte-americano, a agricultura tende a organizar-se de forma peculiar, desfazendo a idéia generalizada de que a industria mostra o caminho que, questão de tempo apenas, seria seguido inevitavelmente pelo setor agrícola. E assim se dá porque, não é demais repetir, condições igualmente peculiares cercam a atividade agropecuária, tórnando-a distinta de uma "linha de montagem" industrial.

Insistir, portanto, em modelos teóricos quando a realidade se distancia dos seus principais postulados, como parece ser o caso da política agrícola brasileira que vem dos anos 60, é mais do que pagar um alto preço em termos sociais para obter muito pouco: é condenar-se a ter de prosseguir mantendo a mesma política de dependência da agricultura brasileira em relação aos subsídios. Pois se assim não for, a alternativa a se pensar é a da reformulação integral do setor agrícola do Brasil, pois me parece pouco razoável admitir uma agricultura com base em grandes empresas na ausência de subsídios volumosos.

É preciso, portanto, retirar da lição da agricultura norte-americana todas as conclusões: se é desejável, em termos sociais, reformular a política de subsídios, retirando-lhe sua dimensão atual e canalizando os então menores subsídios para outras finalidades, ao mesmo tempo convém não esquecer das conseqüências de médio e de longo prazos dessa decisão, que me parecem ser a inviabilização da grande empresa na agricultura. É conveniente lembrar aqui que essa conseqüência não deve assustar a ninguém, pois novamente a agricultura norteamericana nos ensina que os ganhos de produtividade e a excelência no desempenho independem, no caso, da presença da grande empresa. Se possui rivais no desempenho em outros países, o famify farming dos cereais nos EUA não perde para ninguém, a ponto de se dever reconhecer aqui a perfeita adequação do termo "celeiro do mundo" ao meio-oeste daquele país. Em outras palavras, o capitalismo gera uma indústria altamente eficiente e incorporadora de novos padrões de tecnologia baseada cada vez mais na grande empresa, ao mesmo tempo que produz um setor agrícola inovador e de excelente desempenho com base principalmente na propriedade familiar. Tem suas razões para assim proceder. Tentai impor um corpo estranho ao sistema, e ainda com custos elevados, deve levar à rejeição. Não me parece outra a conclusão a ser tirada da presente situação da economia brasileira e de sua agricultura.

2. CRÉDITO SEM SUBSÍDIOS

Sem dúvida, a preocupação maior em relação aos subsídios implícitos no crédito rural diz respeito ao seu caráter inflacionário. Para melhor entendimento, no entanto, é necessário considerar dois tipos de subsídios, de acordo com a sua origem: aqueles baseados em recursos do Tesouro e os subsídios repassados do depositante a vista à agricultura. No primeiro caso vamos ter conseqüências inflacionárias, sempre quando o governo não puder cobrir com receitas adicionais, via tributação, o volume concedido de subsídios. Claramente, a situação atual apresenta essa característica. No segundo caso - repasse do depositante à vista - o subsídio implica redistribuição de renda a favor dos beneficiários dos financiamentos subsidiados, mas não necessariamente em pressões inflacionárias. Tudo se passa como se o depositante a vista, que não é remunerado por seu depósito e, portanto, penalizado em situações inflacionárias, transferisse parcelas da sua renda para o tomador do crédito. E, ao mesmo tempo, o intermediário financeiro deixaria de receber uma renda adicional - se não existir qualquer compensação, via redução do compulsório, por exemplo - a que faria jus caso pudesse cobrar taxas mais elevadas no financiamento. Dessa forma, se todo subsídio do crédito rural fosse transferido para os bancos comerciais, sem repasses do Tesouro, como o governo vem tentando no momento, sua relação com a inflação deixaria de ser inevitável. Evidentemente, se essa mudança implicar compensações do governo para os bancos comerciais, a história poderá ser diferente.

No entanto, é preciso que outras conseqüências da presença dos subsídios, além da sua relação com a inflação, sejam consideradas, e no mesmo nível de importância. Ao se analisar os subsídios do crédito rural, costuma-se afirmar que estes não implicam necessariamente melhoria da rentabilidade na agricultura. Melhor seria dizer: não garantem aumentos de produtividade, o que é certo. Pois também é certo que a rentabilidade privada, em termos puramente monetários, torna-se mais elevada via subsídios. Mas o ponto é que, ao manter o subsídio, situamos á economia numa condição pouco interessante: nem garantimos a elevação da produtividade, supostamente o maior objetivo da política, e ao mesmo tempo viabilizamos a estruturação do setor agrícola em moldes inadequados, ao se aumentar a rentabilidade de atividades que, na ausência dessa política, seriam levadas a cabo por agentes distintos (propriedades familiares). Tudo isso a um custo social enorme: inflação maior; distribuição inter e intra-setorial da renda distorcida; e queda drástica no nível de emprego rural, obrigando a se pensar na expansão da fronteira agrícola como alternativa para o problema.

Em vista das razões apontadas acima, é de todo conveniente a revisão da política de subsídios ao setor agrícola. Deixando de lado certos aspectos operacionais (por exemplo a conveniência ou não de uma retirada gradual dos subsídios), parece-me que dois pontos merecem mais discussão: a manutenção do subsídio para investimentos em bens públicos e os subsídios aos preços dos insumos e fatores. Quanto ao primeiro, a sugestão parece adequada, especialmente no que diz respeito à melhoria das condições de comercialização e armazenagem. Entretanto, convém lembrar, uma política como essa pode trazer consigo a tentação de se implantar novos "elefantes brancos", tais como seriam empresas estatais atuando a nível nacional no armazenamento da produção agrícola. Não seria mais conveniente o estímulo à descentralização, à implantação de silos e armazéns de pequeno e médio portes nas propriedades rurais? No segundo ponto - subsídios aos preços dos insumos e fatores - a sugestão me parece equivocada. Pois sua conseqüência principal, ao lado do possível barateamento dos custos e redução dos preços dos produtos agrícolas (digo possível porque nada disso é garantido, porque se o subsídio é dirigido a um setor oligopolizado corre-se o risco de que não seja repassado), é justamente criar um tipo de dependência do produtor rural a uma estrutura de custos artificial (que é o que o subsídio atual faz). Novamente, a lição norte-americana é válida aqui: por que não pensar em subsidiar o consumo final, dos alimentos se for o caso, através de algo parecido com o sistema de food stampsl O exemplo recente do leite é significativo: a produção vai bem, depois de um longo tempo de dificuldades, mas o consumo vai mal. Qual a melhor maneira de resolver o problema: subsidiar o preço da ração e de outros insumos empregados na pecuária leiteira ou simplesmente subsidiar o consumo do leite, reduzindo seu preço no varejo? Não é essa última solução a mais favorável do ponto de vista da melhor distribuição da renda? E, além do mais, não necessariamente tais subsídios seriam inflacionários: a solução sugerida pelo Secretário da Saúde de São Paulo, Dr. Adib Jatene, parece-me adequada, no sentido de se constituir um fundo por meio de uma tributação adicional sobre refrigerantes e bebidas alcoólicas. Os subsídios, em soluções como essas, não seriam inflacionários.

Resumindo, considero válida a eliminação (gradual) dos subsídios no crédito rural de custeio e de investimento. Mas é necessário que sejam conhecidas as conseqüências dessa política, como a inviabilização a médio e longo prazos da grande empresa rural em muitos casos. £, pois, importante que o governo, ao adotar essa decisão, saiba exatamente o tipo de opção feita, para poder bancá-la da melhor maneira. Ao mesmo tempo, é preciso dar um caráter eventual ao subsídio, com a função de estimular a obtenção de metas específicas e localizadas. É o caso dos investimentos em bens públicos, com as ressalvas já apontadas. Mas também é o caso de se pensar na permanência de subsídios (recebendo cobertura, ao menos parcial, de receitas tributárias adicionais), diretamente ao consumo de alimentos. Não apenas a demanda de produtos agropecuários seria estimulada, mas também não se pode conceber meio mais eficiente para melhorar a distribuição da renda.

  • 1 Veja Aidar, Antonio C. K. & Perosa Jr., Roberto M. Espaços e limites da empresa capitalista na agricultura. Revista de Economia Politica, 1 (3), jul./set. 1981.
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    É extremamente importante lembrar que os subsídios estão presentes no setor agrícola norte-americano, mas com duas características distintas do subsídio no Brasil: limitam-se a um número insignificante de casos (o do reflorestamento, pof exemplo) ou então se concentram em situações ligadas à comercialização (é o caso da garantia de preços através dos brokers ou do chamado land diversión). Isto é, como regra os subsídios estão ausentes do processo produtivo em si (seja no custeio ou no investimento). Além disso, mesmo existindo para situações diferentes daquelas encontradas no Brasil, os subsídios para a agricultura norte-americana atingem um volume significativamente mais baixo (proporcionalmente à renda do setor) do que em nosso país.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1981
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