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Política interna e patologia da organização

ARTIGOS

Política interna e patologia da organização

Tom Burns

Lente de Sociologia da Universidade de Edimburgo, Escócia

Êste estudo discute a interação dos diversos sistemas sociais existentes numa emprêsa, baseados nas condutas dos indivíduos (com as relações pessoais que tais condutas acarretam e os valores que essas relações concretizam) enquanto êsses indivíduos agem em busca de diferentes fins com os quais se comprometem, ou com os quais já se encontram comprometidos, em virtude de sua posição na companhia.

Referir-nos-emos a três dêsses sistemas: a organização operativa, o sistema político e a estrutura de carreira. Nenhum dêles deve ser entendido, necessàriamente, como subestrutura da totalidade dos sistemas existentes, uma vez que, como veremos, cada qual pode ser manipulado de modo a servir os interêsses dos demais; daí têrmos nós preferido adotar a expressão "organização operativa" (working organization) em lugar de "emprêsa" ou, simplesmente, "organização", vocábulos que, na acepção de economistas e sociólogos, implicam um pressuposto de supremacia e prioridade. A tendência atual, certamente, é a de atribuir maior importância ao estudo da organização operativa e dos efeitos que sobre ela exercem os outros sistemas, situação que se reflete no fato de nestes últimos anos ter-se desenvolvido a "Sociologia das Organizações" como ramo distinto das ciências sociais; mas, a história destas ciências, especialmente em contextos industriais, está repleta de impasses, diante dos quais tropeçam os expertos em disciplinas psicológicas e sociais.

Essa observação é necessária porque êste estudo se-ocupará, em sua maior parte, da ação do sistema político da emprêsa sôbre sua organização operativa. Portanto, é indispensável, primeiro, estabelecer de forma sumária a tese geral acêrca dos principais aspectos da organização operativa, tese essa já elaborada em estudos anteriores.1 1 ) TOM EURNS e G. M. STALKER, The Management of Innovation Tavistock Publications, Londres, 1961, especialmente os capítulos 5 e 6, págs. 77 a 125.

FUNCIONAMENTO DA ORGANIZAÇÃO OPERATIVA

O conjunto de pessoas de uma emprêsa - diretores, gerentes e empregados - representa a soma dos recursos humanos que essa emprêsa canaliza para a consecução de seus fins. Êsses recursos e sua utilização sistemática constituem a organização operativa. Em se considerando isoladamente os fins da emprêsa, cada indivíduo põe, a serviço desta, parte de suas aptidões totais e recebe, em contrapartida, parte dos rendimentos da emprêsa.

A exploração sistemática dêsses recursos na realização dos fins da emprêsa tem sido tradicionalmente concebida em têrmos de burocracia. Parece, no entanto, que essa formulação é um tanto limitada pelo tempo, como o são outras generalizações do mesmo gênero; seria ela mais apropriada à segunda fase do desenvolvimento industrial.2 2 ) TOM BURNS, The Sociology of Industry, em ARGYLE GLASS, MORRIS e WELDFORD, ed. Society, Londre:, 1952. Quando, certa vez, tentamos elucidar o que se passava com algumas indústrias eletrônicas, condicionadas a um ritmo de evolução comercial e de progresso técnico muito mais rápido que o até então experimentado, tivemos de recorrer a dois "tipos ideais" de organização operativa: um, "mecânico", adequado a circunstâncias relativamente estáveis; outro, "orgânico", próprio para condições instáveis.

Os sistemas "mecânicos" revelam todas as características atribuídas por Weber à burocracia, numa formulação curiosa e significativamente semelhante àquela a que, independentemente, chegou Fayol e que diversos peritos em técnicas administrativas desenvolveram. Os problemas e tarefas com que as emprêsas se defrontam são tratados por setores especializados. Cada indivíduo executa a tarefa que lhe foi atribuída como se ela fôsse uma atividade distinta das tarefas reais da companhia como um todo; é como se sua tarefa fôsse objeto de um subcontrato. "Alguém de cima" tem a responsabilidade de coordenar essa tarefa com as dos outros membros da companhia e de fazer com que ela corresponda às necessidades desta última. Os métodos técnicos, as obrigações e os podêres associados a cada cargo são precisamente definidos: precisão e demarcação são necessidades primordiais. As interações dentro da organização operativa seguem linhas verticais, isto é, processam-se entre superiores e subordinados. As rotinas de trabalho para cada tipo de tarefa são reguladas por instruções e decisões emitidas pelos superiores. Essa hierarquia de autoridades repousa no pressuposto de que o conhecimento de tôdas as informações concernentes à situação e ao funcionamento da emprêsa, bem como da própria disposição que esta dê aos recursos humanos contratados para o seu serviço, compete - ou deveria competir - exclusivamente à direção. O sistema administrativo, sob essa forma de complexa hierarquia com a qual os organogramas nos familiarizaram, funciona como um sistema de controle unitário: as informações sobem até ao ápice através de um sem-número de filtros; as decisões e as instruções descem até à base por intermédio de uma série de amplificadores.

Os sistemas "orgânicos" adaptam-se a condições instáveis, nas quais surgem sem cessar, exigindo solução, problemas novos e desconhecidos que não podem ser subdivididos e distribuídos a setores especializados da organização hierárquica. Os trabalhos a realizar não mais implicam métodos, responsabilidades e podêres estritamente definidos, tornando-se impossível a demarcação de funções precisa e duradoura. As responsabilidades, as funções, os métodos e as competências de cada um precisam ser constantemente redefinidos em virtude das interações que se estabelecem entre uns e outros quando da execução de tarefas comuns ou da solução de problemas comuns. Tanto essas tarefas coletivas como as atribuições individuais devem, assim, ser exercidas, levando-se em conta a situação da companhia concebida como um todo. As interações aqui se processam não só verticalmente, mas, também, lateralmente, e as comunicações entre pessoas de escalões hierárquicos diferentes tendem a parecer mais consultas "laterais" do que exercício "vertical" de autoridade. Não mais pode o dirigente empresário arvorar-se em onisciente.

Para o indivíduo a diferença mais importante está na extensão dos laços que o prendem à organização operativa. Os sistemas mecânicos, vale dizer, os "burocráticos", definem as funções do indivíduo, bem como os métodos, responsabilidades e podêres a elas inerentes; em outras palavras, traçam linhas demarcatórias. Ao mesmo tempo que dizem a cada um o que fazer e como fazer, também lhe apontam o com que não deva ocupar-se, o que não seja de sua conta, o que não lhe compita, o que deva reconhecer, de uma vez por todas, como sendo de alçada alheia. No sistema orgânico, ao contrário, os apelos à atuação individual não têm fronteiras. Dá-se maior ênfase à necessidade de que o indivíduo se sinta amplamente empenhado na execução de qualquer tarefa que surja em seu horizonte, comprometido que está não apenas com o exercício de uma função específica, mas com o próprio sucesso das iniciativas e empreendimentos da companhia, de modo semelhante ao que sói acontecer com o médico ou com o cientista no desempenho de suas funções profissionais.

FORMAS PATOLÓGICAS DO SISTEMA MECÂNICO

Quando estivemos estudando a indústria eletrônica da Grã-Bretanha, lidamos com emprêsas fundadas, na maior parte, há mais de uma geração (durante, portanto, o apogeu da segunda fase da era industrial) e estruturadas, de início, com organizações operativas estribadas em princípios mecanicistas. Pudemos, então, verificar que, na maioria dessas emprêsas, ampliar o comprometimento do indivíduo com a companhia e adaptar a organização operativa a essa nova situação só era possível parcialmente. Com efeito, a ideologia da burocracia formal parecia tão profundamente enraizada na mentalidade dos dirigentes, que a reação mais comum dêstes a essas novas e insólitas condições foi a de redefinir, em têrmos mais precisos e rigorosos, as atribuições e as relações de trabalho no contexto administrativo, consoante as linhas ortodoxas dos organogramas e dos manuais de organização, com o conseqüente reforço da estrutura formal. Nessas companhias os esforços envidados para fazer o sistema burocrático ortodoxo funcionar - porque êsse era visto como o único modo possível de organização e, também, porque a política de maior comprometimento para com a emprêsa fôra rejeitada como utópica ou nem sequer considerada sèriamente - provocaram o que poderíamos denominar formas patológicas do sistema mecânico.

Descreveremos aqui três dêsses sistemas, que constituem reações à necessidade de encontrar respostas a situações imprevistas e de tomar decisões em circunstâncias novas e incertas.

1. Numa burocracia administrativa o procedimento normalmente prescrito para lidar com qualquer matéria fora dos limites da responsabilidade funcional de alguém é encaminhá-la ao ponto do sistema onde todos entendam que aquela responsabilidade se situe, ou, se falhar essa providência, submetê-la à apreciação do superior hierárquico. Quando as condições mudam rápidamente em comparação ao passado, tais episódios tornam-se mais freqüentes; em muitos casos, o superior imediato outra coisa não faz senão, por seu turno, submeter tais questões a superiores de nível mais elevado. Destarte, grande número de questões dependentes de solução e decisão acabam sendo levadas à cúpula administrativa. Não é raro que em tais circunstâncias se desenvolva um sistema pelo qual grande número de executivos passam a acreditar, ou a proclamar, que só podem obter solução para seus problemas mediante consultas à autoridade máxima da companhia.

Em algumas emprêsas desenvolve-se, ainda, um sistema ambiguamente composto, por um lado, de uma hierarquia oficial de poder e responsabilidade e, por outro, de um complexo, aberto ou clandestino, de relações pessoais entre a autoridade máxima e algumas dezenas de funcionários lotados em diferentes posições dentro da escala hierárquica. O dirigente fica, assim, sobrecarregado de serviços, e os outros executivos, cujo prestígio e eficiência depende do funcionamento da hierarquia formal, se ressentem por estar sendo subestimada a sua autoridade. Eis quando êsse dirigente descobre por si mesmo, ou ouve de consultores, que seria conveniente delegar alguns de seus poderes e responsabilidades de decisão. Em conseqüência, reforma-se o organograma. Mas, inevitavelmente, à medida que se reproduz a corrente de problemas novos e desconhecidos, essa estratégia provoca contra-ataques por parte dos beneficiários do regime anterior, mercê do qual podiam usufruir, dissimuladamente, de uma autoridade extra-oficial.

Os efeitos das disparidades entre os dois sistemas refletem-se na eficiência do funcionamento da emprêsa. O conflito que se estabelece entre os executivos, ao verem seu prestígio e suas perspectivas de progresso dependerem da predominância dêste ou daquele sistema, desvia sua atenção e seus esforços para o âmbito da política interna. Ambos os processos afetam sensivelmente o tempo e as atividades administrativas do dirigente, antes aplicados nas tarefas próprias de sua posição, sobretudo porque todas essas intrigas políticas visam a controlar o acesso das pessoas ao seu gabinete, tal como aconteceu no conflito politico do Japão feudal, concentrado em tôrno dos meios capazes de assegurar o controle sôbre o Imperador.

2. Outras companhias procuram, à guisa de solução, multiplicar os escalões da hierarquia burocrática. Grande número de suas dificuldades manifestam-se ligadas a deficiências de comunicações, e são enfrentadas, em geral, pela introdução de intermediários e intérpretes: engenheiros de métodos, equipes de padronização, engenheiros de revisão de projetos etc..

Originando essa conhecida estratégia há duas características igualmente familiares da mentalidade administrativa (managerial thinking). A primeira consiste na procura de solução de um problema, especialmente o de comunicações, com a contratação de alguém para cuidar dêle. Criam-se novos cargos e, em certos casos, um departamento inteiro, sendo que a sobrevivência dêste ou daqueles passa a depender do perpetuamente das dificuldades que os hajam motivado. A segunda, certamente derivada das tradições da administração da produção, é aquela segundo a qual é impossível dissociar o trabalho do instrumento que o condicione; assim, seria inadmissível, por exemplo, que o engenheiro de programação pudesse estar executando o trabalho para o qual é pago sem estar, junto à sua bancada, fazendo algo com as mãos; da mesma forma, quanto ao projetista, se êste não estivesse desenhando, junto à sua prancheta, e assim por diante.

É comum, de fato, em muitas emprêsas, perturbar-se a direção ao tomar conhecimento de que esta ou aquela pessoa esteja circulando pelo recinto de trabalho, ou ao verificar que certos funcionários, quando chamados, não se encontram "a postos". Tais dirigentes recusam-se a ser que seus subordinados estejam ocupados em assuntos ligados ao seu trabalho quando êstes não estejam, visível e fisicamente, "no trabalho". Reagem, por isso, fixando os funcionários em seus postos e, se admitida a necessidade de melhores comunicações, contratam, como encarregados destas, especialistas no assunto.

3. Um terceiro comportamento patológico foi encontrado, porém só ocasionalmente, nas empresas incluídas no estudo; sua incidência esporádica em certo número de emprêsas foi vista como sintoma de uma enfermidade característica da administração pública. Êle é, no entanto, de particular interêsse, uma vez que - como seu nome sugere - o "comitê" é um meio tradicional pelo qual os encargos, mais amplos e elevados que os capsulados num papel funcional isolado, podem caber dentro do sistema e ser desempenhados sem sobrecarga das demandas normais de responsabilidades permanentes de cada um dos funcionários e sem expor a risco o equilíbrio de seus comprometimentos para com a organização.

O aparecimento de novos tipos de tarefa, decorrentes de problemas incomuns, pode parecer, ora um fenômeno temporário, ora uma dificuldade que implique responsabilidades e podêres de tal natureza que ultrapassem a capacidade de uma só pessoa ou um só departamento. É o caso típico das hierarquias burocráticas, onde a maior parte das considerações estão relacionadas, por via de regra, com a estrutura de carreira proporcionada pela entidade (situação que não se confina ao serviço público civil, nem tampouco às universidades). Com a finalidade de superar a dificuldade causada pela aparente necessidade de um nôvo cargo para atender a responsabilidade extra, cria-se um órgão superindividual: um comitê.

A TEORIA DOS TRÊS COMPROMISSOS

Definir dois "tipos ideais" e contrapostos de organização operativa e sugerir a existência de uma taxionomia de variantes e de tipos patológicos é apenas encetar a análise. A questão que imediatamente se interpõe é a seguinte: porque certas emprêsas - a maior parte, aliás, das que já mencionamos - não mudam sua organização operativa, de mecânica para orgânica, à medida que o contexto técnico e comercial de suas atividades passa da estabilidade para a mudança? A resposta parece residir no fato de que os compromissos do indivíduo para com a companhia não se restringem aos laços que a ela o prendem na qualidade de "recurso" da organização operativa. Êle é, também, membro de um grupo ou seção cujos interêsses específicos estão em conflito com os de outros grupos ou seções; e é, ainda, um entre muitos para quem a posição que ocupam, comparativamente à dos outros, constitui objeto de intensa preocupação, por representar suas possibilidades de acesso a posições mais altas e seguras. Êstes dois últimos compromissos envolvem o indivíduo em sistemas de fins e meios que lhe oferecem diferentes modos de atender seus interêsses próprios, no esquema das funções definidas em seu contrato de trabalho, por fôrça de cujas cláusulas está êle, de uma forma ou de outra, obrigado a fazer uso de si mesmo como um recurso a serviço da emprêsa, desta recebendo, em contraprestação, salário e outros incentivos.

1. Quanto aos compromissos grupais e secionais, o indivíduo pode preocupar-se - e geralmente se preocupa, de fato - com ampliar o controle sobre sua própria situação, aumentando o valor de seu concurso pessoal a favor da emprêsa e buscando alcançar posições onde os "recursos" que êle julga possuir possam ser melhor aproveitados e, conseqüentemente, melhor recompensados. Êle pode preocupar-se, também, - e realmente se preocupa - com ampliar sua influência pessoal, seja aproximando-se de pessoas e equipes que detenham os mesmos recursos e almejem fortalecer seu poder de permuta, seja ganhando a confiança do "homem forte" da companhia. Naturalmente, essas associações o envolvem em compromissos mais amplos do que os de natureza contratual. De maneira genérica, êsses compromissos são ditos "políticos". Os grupos de interêsse assim formados se identificam com os departamentos ou com os grupos dominantes, e seus líderes "políticos" são os próprios chefes oficiais dêsses departamentos. Os movimentos em que êles intervêm nascem de reivindicações, entre si conflitivas, todas visando à distribuição dos rendimentos da emprêsa e de seus recursos disponíveis (ou "alocação" de capital), à direção das atividades alheias (autoridade para sancionar e orientar a ação de outros indivíduos, grupos ou departamentos) e à patronagem (poder pessoal de nomear e promover funcionários, de outorgar direitos e de conceder privilégios).

2. Outra espécie de compromisso individual, conquanto não necessàriamente diferente do anterior em seus fins últimos, é essencialmente autista, isto é, diz respeito às obrigações do indivíduo para consigo mesmo, à defesa e à melhoria do status de cada um. Efetivamente, o indivíduo costuma atribuir à sua carreira pessoal importância comparável à prosperidade da emprêsa. Pode ser que entre esta e aquela não haja, a rigor, incompatibilidade e que ambas possam ser atendidas paralelamente; surgem, contudo, situações em que os interêsses pessoais não coincidem com os da emprêsa ou, até mesmo, entram em conflito aberto com êstes.

Se reconhecermos que a grande maicria, se não a totalidade, dos membros de uma organização operativa têm compromissos dessa espécie para com êles mesmos, ser-nos-á evidente que as relações e condutas atinentes a êsses compromissos se ajustam de tal modo a outras da mesma espécie existentes na companhia, que não seria temerário afirmar a existência, dentro da emprêsa, de outra estrutura de carreira, de outra organização operativa, de outro sistema político. Êsses três sistemas existem em tôdas as emprêsas, e agem e reagem sôbre os outros; o sistema político e a estrutura de carreira influenciam, particularmente, a constituição e o funcionamento da organização operativa.

Impõem-se-nos, a est'altura, duas ressalvas. O sistema tripartite de compromissos, a que acabamos de aludir, não é necessàriamente exaustivo, nem equilibrado. Além dos compromissos para com a companhia, para com os grupos "políticos" e para com suas perspectivas de carreira, cada um dos membros dessa coletividade, que é a emprêsa, está envolvido numa multiplicidade de outras relações. Algumas resultam de incompatibilidades ou afinidades de origem social ou cultural. Outras são geradas por contatos humanos motivados pelo desejo de amizade, de conforto e de popularidade, ou por outras motivações sociais, digamos, respeitabilidade, apreensão, insegurança etc.. Tôdas essas relações de diferentes formas de sociabilidade, uma vez que representam valores sociais, envolvem as partes em compromissos que podem ser descritos como "investimentos"3 3 ) H. S. BECKER propôs a analogia de um side-best para explicar a noção de commitment. Vide seu artigo "Notes on the Concept of Commitment", American Journal of Sociology, vol. 66, págs. 32 a 40. do "eu" social num valor social, investimentos êsses que representam possibilidades de recompensas e riscos de perdas.

Obviamente, há, por assim dizer, variações quantitativas, quanto ao volume investido, na graduação dos comprometimentos. Ademais, o investimento total de um indivíduo em compromissos de tôda sorte - nos sistemas operativo, político, de carreira etc. - pode ser menor que o de seu vizinho; por outro lado, os compromissos autistas podem variar em função de compromissos externos, de forma complementar, tal como Jung de início supôs, ao descrever a oposição polar extroversão - introversão; nada indica que todos os sêres humanos tenham, para investir, o mesmo capital "filopsíquico".

Entretanto, êsses compromissos, que chamamos políticos e carreiristas, influem diretamente, qualquer que seja sua intensidade, sôbre as obrigações do indivíduo para com a organização operativa e sôbre a maneira de esta utilizá-lo como seu recurso. Atuam, assim, não somente pela importância que assumem como comprometimentos, mas porque são, como sugerimos, meios de preservar ou de satisfazer interêsses pessoais alternativos de promoção ou de preservação pessoais dentro da sociabilidade cooperativa da organização operativa. Nem as preocupações políticas, nem as de carreira operam abertamente; n'alguns casos, nem mesmo conscientemente. Elas dão origem a complicadas manobras e contramanobras, tôdas expressas através de decisões (ou discussões sôbre decisões) relativas à organização e às políticas da companhia. Como os interêsses setoriais e as preocupações com melhorias não se apresentam abertamente, mas somente nos têrmos da organização operativa, passa aquela organização a ajustar-se, mais do que às conveniências da emprêsa, às conveniências dos sistemas político e de carreira. Ora, como a organização operativa visa a planejar e efetivar a exploração sistemática dos recursos, tendo em vista os fins da emprêsa, a influência dêsses dois outros sistemas tende a distorcer o plano e a operação ou a opor-se à sua eficácia.4 4 ) TOM BURNS e G. M. STALKER, op. cit., caps. 7, 8 e 9. Tal fato, todavia, não ocorre quando a companhia, reconhecendo a validade dêsses dois sistemas, consegue elaborar uma organização operativa capaz de condicioná-los aos interêsses empresários.

Na maioria das três ou quatro dezenas de emprêsas a que a pesquisa nos levou a maior e mais importante divisão política incide entre as equipes de produção e as equipes de vendas, refletindo a tensão existente entre as considerações de ordem estritamente técnica, de um lado, e as de ordem comercial, de outro, que afetam a indústria de modo geral. Para as duas partes interessadas, porém, os problemas são, em muitos aspectos, bastante claros e concretos, pois que se relacionam às contribuições de cada uma delas para o sucesso da emprêsa. Cada grupo atribui a si êsse sucesso e, bem por isso, considera-se no direito de participar mais ativamente do controle dos recursos globais da organização e de intervir nas decisões que afetem sua estrutura e seu funcionamento.

O CASO DE UMA INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA

Numa das maiores indústrias automobilísticas da Inglaterra, essa divisão de interêsses e valores estava explicitamente reconhecida, determinando, em larga escala, a estrutura geral da organização operativa e os procedimentos usuais em seu funcionamento. O organograma básico da companhia comportava duas grandes divisões: a de Produção e a Comercial. A Divisão de Produção compreendia duas seções: Projetos e Fabricação. E a Divisão Comercial, por seu turno, abrangia: Vendas, Finanças e Mercadologia. Êsses diversos setores ramificavam-se seguindo linhas tradicionais, fácilmente previsíveis.

Organogramas em tão amplo sistema podiam ser julgados essenciais; mas, na realidade, "ninguém se preocupava com submeter-se rigidamente a êles". "Nós não olhamos muito para o organograma, nem para o manual de organização" - dizia um dos diretores entrevistados - "exceto quando se trata de modificá-los." Os gerentes davam mais importância a outros instrumentos, tais como o programa de trabalho, estabelecido para um ano de exercício, que especificava as decisões a tomar, com base na política da emprêsa, e os planos a pôr em prática durante êsse período. Tal programa fôra elaborado no decurso de uma série de reuniões com número de participantes cada vez maior, à medida que os planos iam sendo elaborados, até o dia em que se fêz propícia uma assembléia geral a que compareceram todos os interessados. Dessas reuniões resultara um programa impresso, com datas fixas para conclusão de cada tarefa. Era de hábito, também, promover, de maneira dinâmica e atraente, "apresentações" do plano mediante, por exemplo, uma preleção bem estudada, seguida de debates e ilustrada por vistosos gráficos e por projeções de diapositivos coloridos.

Êsses gerentes devotavam, por isso, acentuada predileção por procedimentos "organicistas" que lhes permitissem formular propostas e fazer com que fossem aceitas por todo o pessoal. Entretanto, a antiga e enraizada divisão entre as equipes de produção e as equipes de vendas servia como linha demarcatória das áreas de opiniões e considerações. Favorecia êsse estado de coisas a convicção, talvez deliberada e defensiva, de que as idéias e iniciativas deveriam promanar de funcionários dinâmicos, com idade não superior a 40 anos, para em seguida serem filtradas, ordenadas e postas em prática sob a supervisão de superiores hierárquicos mais experimentados. Isso tendia a encorajar o espírito de competição das seções administrativas intermediárias (middle management sections), espírito de competição êsse ordinàriamente dirigido contra a seção, a divisão ou o departamento vizinhos, e fautor do fortalecimento das maiores facções políticas, que eram, como já vimos, as equipes de vendas e as de produção.

Assim, essa política de aprovação unânime, conquanto válida para o sistema de direção, estaria provàvelmente estimulando os compromissos secionais e aguçando as diferenças fundamentais entre Produção e Vendas. Para superar êsse inconveniente a direção resolveu criar dois mecanismos diferentes: um departamento chamado "Equipe de Produto" (Product Staff), para atuar como instrumento de coordenação entre Produção e Vendas, e a "Comissão de Produto" (Product Meeting), para atuar como coordenadora dos dois lados.

a. O papel da Equipe de Produto era interpretar, segundo os interêsses da Produção, as modificações e melhoramentos de modelos, reclamados sobretudo pelas Vendas, e, segundo os interêsses destas, os projetos apresentados pela Produção. A ela competia resolver os problemas que porventura surgissem de quaisquer discrepâncias entre aquêles setores, bem como, eventualmente, confeccionar os desenhos industriais.

Era constituída, básicamente, por engenheiros. Sua principal tarefa, no entanto, era conciliar os pontos de vista dos dois principais setores do Departamento dè Vendas (Mercado Nacional e Exportação), o que lhe proporcionava ativa influência sôbre a Divisão Comercial. O Departamento de Vendas, por sua vez, considerando a ideologia mercadológica dominante entre seus homens, tentava, por todos os meios, infiltrá-la na Equipe de Produto. Esta apresentava projetos de novos modelos e realizava gastos com desenhos, plantas e pormenores de manufatura, que, se finalmente fossem aprovados pela Divisão Comercial na Comissão de Produto, seriam encaminhados à Produção.

b. A especificação de um nôvo produto ou alguma alteração considerável èm produto já existente constituíam matéria a ser discutida e decidida pela Comissão de Produto, com a participação do Departamento de Finanças, do Departamento de Vendas, da Equipe de Produto e dos engenheiros interessados, sempre sob a presidência de um diretor da companhia. A Comissão de Produto era como que a última instância para a tomada de decisões finais concernentes aos modelos, em tôdas as suas fases de produção: desenho, estilo, acabamento etc.. O processo completo, desde a criação até a manufatura do produto, durava de três a quatro anos.

Embora tendo sua sede, por motivos estratégicos, na Divisão Comercial, a Equipe de Produto reportava-se ao Comitê de Política (Policy Committee). Era, por isso, considerada, formalmente, como parte do mecanismo interno de mediação e arbitragem, composto pela Equipe de Produto, pela Comissão de Produto, por êsse Comitê de Política e pelo Conselho (Board). Graças a êsse mecanismo lograva a emprêsa valer-se do conflito político segundo os interêsses da organização operativa. Fazia-o aberta e conscientemente, reconhecendo a existência de uma divisão não só política, como funcional, e conjeturando meios que lhe permitissem conciliar ou julgar as opiniões divergentes.

O Conselho muito pouco fazia como junta de decisão. Dizia-se que o Comitê de Política, onde todos os diretores e alguns gerentes atuavam sob a autoridade de um presidente, agia muito como árbitro entre Vendas e Produção. As atribuições do presidente faziam lembrar as de um juiz de apelação. Sua especial aptidão - que os diretores entrevistados, aliás, só especificaram depois de a terem comparado ao "maná" que lhes aguçava o "faro" e a "intuição criativa" ("Êle sempre nos apresenta o ponto nevrálgico da questão!"...) - resumia-se, simplesmente, na faculdade de "assumir riscos" e "reconsiderar decisões" (sic). Os diretores executivos avocavam, também, o papel de árbitros, individualmente, e o de côrte de apelação, quando em conjunto. A Equipp de Produto era considerada capaz de aplainar quaisquer divergências entre os setores do Departamento de Vendas (Mercado Nacional e Exportação). Tinha, ademais, especial influência nas negociações com o Departamento de Finanças sôbre a fixação de preços estabelecida pela Divisão de Produção e pelo Departamento de Vendas.

Conseqüência fortuita, embora importante, da existência dêsse mecanismo era que o pessoal de vendas e tôda a equipe da Divisão Comercial consideravam de importância vital situar seus escritórios perto dos outros e até no mesmo edifício. É bem de ver que os contatos entre Vendas e Produção eram freqüentes e importantes; todavia, a maior parte dêles versava sôbre questões relativamente fáceis de resolver pelos processos rotineiros, nada impedindo que Vendas se localizasse noutro sítio. O que tornava "vital" a necessidade de sua presença próxima era a sua própria intenção de, mediante êsse artifício, conseguir participar mais diretamente das constantes decisões sôbre modelos e desenhos de carros, volume de vendas e controle de qualidade. Tais decisões eram resultados de reuniões e debates de que tomavam parte vários setores e departamentos. Mais importante, talvez, era a necessidade de estar presente no centro nervoso do sistema político para poder recorrer, como os outros, ao mecanismo de apelação e arbitragem, que demandava a intervenção do presidente e dos diretores.

Havia o sentimento compreensível de que, quanto mais próximos todos pudessem estar do centro visível e físico do poder, tanto menor seria o risco de os outros deturparem as "decisões certas" e tanto maior a oportunidade de as "más decisões" serem retificadas através de entendimentos diretos de cada chefe interessado com o presidente ou com os diretores. Era sabido que o presidente mantinha freqüente contato com cêrca de trinta pessoas, a despeito de que "nem tôdas tivessem a mesma facilidade de acesso". Assim, o direito de "conchavar" (lobby) o presidente e o de controlar para êsse fim o acesso ao seu escritório estavam, outrossim, implícitos no sistema de apelação e arbitragem, e eram zelosamente disputados por ambos os lados.

O que aqui foi por nós examinado é uma solução puramente "estrutural" para o problema de como reduzir as obstruções e os efeitos perturbadores que o conflito político causa ã organização operativa, solução essa que não suprime nem restringe o conflito, nem tampouco neutraliza seus efeitos, mas que o incorpora na própria organização operativa. Três aspectos adicionais dessa estrutura contribuem para fortalecer a organização. Ao considerá-los descobriremos um ponto fraco (que estudaremos adiante) do conceito global de fortalecimento do sistema político com vistas aos fins da organização operativa: o sistema todo é precàriamente fundamentado na competição interna, e todos os seus membros estão preocupados como as conclusões e veredictos dos superiores.

1. A primeira consideração é fundamental para as duas outras e, até mesmo, para todo o sistema. Simplificando muito, poderíamos afirmar que o sistema é concebido para adicionar os compromissos do indivíduo com os interêsses políticos secionais àqueles que o ligam à organização operativa. (Convém salientar que êsse adicionamento fôra obtido pelo reconhecimento da existência real dessa divisão política e mediante a reforma, segundo êsse princípio, dos esquemas da organização.) A defesa dos interêsses políticos tem por propósito, como já dissemos, reforçar o valor das capacidades do grupo secional de interêsses ao qual o indivíduo pertença, e "dar mais voz" a êste, como membro do grupo, sobre os recursos e vantagens da companhia. No caso que acabamos de ver o fato de o presidente e o Conselho reconhecerem abertamente êsses interêsses, valendo-se dêles para julgar e decidir, tornava pràticamente impossível que as duas ordens de compromisso se mantivessem ocultamente em conflito, e que as decisões e julgamentos explícitos fossem, em conseqüência disso, influenciados por considerações políticas implícitas.

2. O segundo aspecto resulta diretamente da situação criada pelas considerações políticas, normalmente latentes, agora como parte manifesta do mecanismo através do qual se coletam informações e se tomam decisões. Problemas práticos de decisão raramente requerem processo lógico complicado. A principal dificuldade está em assegurar que todos os aspectos (comerciais, técnicos, humanos etc.) que possam influir significativamente na escolha dos procedimentos sejam discutidos e entrem na formulação das decisões, deixando-se de lado, obviamente, as considerações irrelevantes. Por outro lado, mais importante do que a competência técnica para resolver problemas é a capacidade de "reconhecer que um problema existe", uma vez conhecidos os dados necessários e suficientes (como uma questão de exame). Isso equivale a perceber as discrepâncias entre o resultado esperado e o resultado provável de uma decisão, ou seja, entre o uso habitual e o uso possível dos recursos.1 1 ) TOM EURNS e G. M. STALKER, The Management of Innovation Tavistock Publications, Londres, 1961, especialmente os capítulos 5 e 6, págs. 77 a 125.

O reforço das obrigações para com a companhia pelo maior comprometimento com interêsses mais limitados tem por efeito, de um lado, estimular a manifestação aberta, nas discussões de decisão, de tôdas as considerações favoráveis tanto aos fins da emprêsa quanto aos interêsses grupais, e, de outro, desencorajar as manobras ocultas. A ameaça de rivais políticos faz-se sentir abertamente na discussão e na elaboração da decisão nos debates e nos pronunciamentos decisórios; ela garante a eficácia dêsse intercâmbio como meio de defesa dos interêsses da organização.

Pressupõe-se aqui que as decisões adotadas numa assembléia legislativa que reconheça a existência de partidos políticos serão, por certo, melhor fundamentadas, mais sábias e mais efetivamente executadas do que outras que venham a ser tomadas, para aquêle mesmo sistema social, num conselho legislativo em que as divisões de interêsses políticos sejam ignoradas ou tratadas como se não existissem e, por conseguinte, relegadas à esfera incontrolável da intriga, onde sua verbalização geralmente produz distorções.5 5 ) Para uma análise pormenorizada das conseqüências ds os interêsses políticos e os de carreira serem considerados como inexistentes no estudo e na elaboração das decisões, mesmo em setores onde a maioria das considerações são de caráter técnico, C. P. SNOW (Science and Government, Oxford University Press, 1961) apresenta a história "interna" da formulação da política do governo britânico no tocante às pesquisas sôbre o radar, realizadas nos idos de 1930, e à estratégia de bombardeio adotada durante a Segunda Guerra Mundial.

Claro está, porém, não nos estamos ocupando com processos legislativos de Estados soberanos, e qualquer analogia forçada poderia levar-nos a equívocos. Uma emprêsa, bem como quase tôdas as organizações econômicas, sociais e políticas da sociedade moderna, que existam para planejar e agir dentro de um quadro de normas prescritas por outras pessoas e pelo complexo social, é, na verdade, uma hierarquia de cargos e podêres, mais ou menos claramente definidos e atribuídos a cada indivíduo pelos superiores. Todavia, essa hierarquia deve repousar sôbre a convicção, por parte de todos, de que ela é justa e legítima. Podie ser que os superiores nem sempre acertem em tudo quanto fazem, mas devem ser considerados como "tendo o direito de fazê-lo".

No passado, salvo em raros casos de comprovada e desastrosa incapacidade ou nos programas de alguns grupos políticos anarquistas ou anarco-sindicalistas, jamais foi pôsto em dúvida o direito dos superiores a seus cargos e podêres. Mas, atualmente, com a instabilidade fundamental que caracteriza as relações da produção e do mercado, e com a aceleração do progresso técnico, a legitimidade da pirâmide hierárquica na burocracia administrativa vem sendo desafiada pelo largo volume de tarefas e problemas novos que as emprêsas se vêem forçadas a enfrentar. Essa ameaça é particularmente sensível nas indústrias de bens de consumo duráveis, como automóveis, e naqueles que se baseiam em técnicas novas, como a eletrônica. Tarefas e problemas novos e desconhecidos criam situações tais que, para enfrentá-las, torna-se necessário apelar para informações e intervenções muitas vêzes incompatíveis com os pressupostos da hierarquia tradicional.

Já estivemos tentando registrar os princípios dos sistemas "orgânicos" apropriados a tais circunstâncias, a fim de confrontá-los com o sistema burocrático tradicional, desenvolvido para operar em condições relativamente estáveis. Na emprêsa que analisamos é possível descortinar certos traços de estrutura orgânica; mas, a estrutura oficial era burocrática, em que pêse ao fato de tal configuração ser, na prática, pouco rígida.

3. O terceiro aspecto, corolário da incorporação das divisões políticas na organização operativa, é o relativo à ênfase que se dava na emprêsa sob análise ao papel de árbitro e conselheiro exercido pela alta administração, contrabalançada pela abdicação da iniciativa a favor dos gerentes de menos de 40 anos. Individual e coletivamente, o status dos veteranos na hierarquia era-lhes assegurado pelo seu papel de juízes, individualmente, e de côrte de apelação, quando coletivamente considerados, e pela posição senatorial que assumiam diante das contendas litigiosas e divergências políticas dos gerentes de nível inferior.

Em suma, uma organização administrativa singularmente poderosa havia sido criada, principalmente porque a companhia constatara a existência de substancial conflito político entre suas metades e reconstruíra seu sistema administrativo levando em conta essa divisão. Êsse sistema é, até certo ponto, perigoso. Demonstrá-lo-emos a seguir, analisando o exemplo de outra organização, que enfrentou situação semelhante, com o desenvolvimento de uma estrutura que favorecia uma rivalidade departamental permanente na organização operativa.

O CASO DA BBC

A situação que vamos invocar para ilustrar a forma degenerada do sistema que descrevemos acima é a de uma grande emprêsa pública da qual fizemos um breve estudo. Qualquer tentativa no sentido de não identificá-la resultaria inútil e nos obrigaria ao uso de emaranhadas perífrases: a "British Broadcasting Corporation" (BBC) é, sem dúvida, uma organização singular.

Ao reorganizar a emprêsa depois da Guerra, o então diretor-geral adotou a competição interna como princípio cardial da estrutura, em virtude do nôvo programa de serviços. Os três serviços de que passou a constituir-se sua programação (Home, Light e Third) deveriam competir uns com os outros por maior índice de audiência.

Por estarem, assim, imbuídos de um sadio espírito de rivalidade, era de esperar que os três serviços passassem a envidar seus melhores esforços na garantia de altos padrões de qualidade, esmerando-se na criação de inovações em seus programas. O número de ouvintes, destarte, deveria aumentar proporcionalmente, assim como sua satisfação. Doutro lado, a reorganização estipulava que, muito embora os programas pudessem atender a todos os tipos de interêsse, cada um dêles deveria ser destinado a um público específico, distinto dos demais pelo seu nível cultural e pelo grau de interêsse persistente. Ademais, todos os programas deveriam usar as mesmas orquestras, os mesmos estúdios e os mesmos departamentos de montagem (debates, música, rádio-teatro, jornal, documentários etc.).

Circunscrita, dêsse modo, a "saudável rivalidade" entre os programas, ficava reduzida a competição à disputa dos nomes de maior cartaz e dos eventos que causassem maior impacto no público. A êsse propósito, certa vez, alguém de lá nos falou: "Essa competição 'não tem dentes'... O apresentador do programa vem e anuncia: 'Teremos hoje o prazer de apresentar-lhes Toscanini. Esperamos que os prezados ouvintes tenham uma hora de grande deleite musical.' E é só!"

Entretanto, a competição estava integrada na organização de outras maneiras, e aí ela possuía "dentes". Os serviços de radiodifusão estavam a cargo de duas divisões: "Alimentação" ( Supply) e Produção (Output). A Alimentação compreendida aquelas três cadeias a que recém fizemos referência (Home, Light e Third), responsáveis pela criação e apresentação de determinados programas. A Produção compunha-se de diretores de programa, encarregados de elaborar os programas das três cadeias com os materiais fornecidos pela Alimentação. Os diretores de programa e os chefes de departamento da Alimentação pertenciam ao mesmo grau hierárquico. "A Alimentação - diziam - não trabalha sob a autoridade da Produção. Nós todos trabalhamos sob a autoridade do diretor-geral." Contudo, a estrutura havia sido montada para promover "saudável rivalidade" entre os departamentos da Alimentação para assegurarem-se dos horários e posições mais favoráveis nos programas compostos pela Produção. Como disse um dos diretores de programa: "Os homens da Produção temos a responsabilidade editorial de um redator-chefe por tudo o que se passa nos canais de irradiação. Decidimos sobre o que deve ser apresentado 'ou mudado." Para exercer essa função editorial a Produção dispunha de uma sanção: decidia sobre todas as despesas do programa. Bem por isso, a função da Produção passou a ser considerada superior à da Alimentação, a despeito da igualdade de categoria entre os dois departamentos, apesar da subordinação ao mesmo diretor e sem prejuízo do princípio de que cada desacordo devesse ser resolvido por mútuo entendimento ou por arbitragem do diretor, "porque fazer programas é trabalho editorial, condicionado ao poder de autorizar despesas e de decidir sôbre o que deva ser oferecido ao público"...

De fato, a superioridade de uma divisão sôbre outra era efeito direto do estabelecimento de uma situação de poder. A concorrência entre os departamentos da Alimentação pelos horários de transmissão e pelas verbas estendeu-se, inevitavelmente, para muito além da apresentação de seus programas. A fim de defender os interêsses de seu departamento ou fazer aceitar suas produções, os chefes de departamento da Alimentação, segundo palavras de um informante, bajulavam, "conchavavam" e até mesmo ameaçavam, em certas ocasiões, os diretores de programa. Assim, a relação de dependência acabou por expressar-se claramente, em têrmos de conduta, desenvolvendo-se a tal ponto que os programadores da Produção chegaram a sustentar estar sempre nesse setor, e não na Alimentação, a fonte das idéias novas e brilhantes, máxime das que estavam fadadas a obter maior sucesso. Afirmavam, outrossim, que os produtores da Alimentação tinham a tendência de viver do prestígio de alguns programas bem sucedidos e eram incapazes de imaginar algo de nôvo. Haviam ficado comprometidos - diziam - com alguns autores e atores, sendo-lhes difícil romper êsses vínculos; procuravam, por isso, "bolar" apenas variantes dos mesmos programas anteriores. "As idéias que consideram revolucionárias" - troçavam os programadores - "provêm de suas cogitações sobre o conjunto das transmissões de cada canal."

Durante o período de mais de 12 anos em que o sistema vigiu a tentativa de fortalecer a organização operativa pela incorporação da política de conflito (rivalidade interdepartamental) falhou - ou melhor, esgotou seus efeitos benéficos e criou uma situação diferente da que seus idealizadores haviam previsto. A relação de compra e venda, estabelecida entre a Alimentação e a Produção - aquela como vendedora, esta como compradora - terminou por transformar sua igualdade teórica em subordinação. O monopólio de consumo desfrutado pela Produção como único comprador das produções da Alimentação permitiu àquele exercer efetivo controle não somente sôbre a escolha dos programas, mas sôbre a própria criação dêstes últimos.

Além dessas mudanças latentes de estrutura houve outras conseqüências. A "rivalidade salutar", que deveria motivar básicamente as relações entre os departamentos da Alimentação, ficou sufocada pelas tentativas de manipular as decisões favoráveis por meio de táticas que em nada contribuíam para facilitar a seleção dos melhores programas e para promover condições nas quais os produtores se sentissem estimulados a inventar e desenvolver as melhores idéias programáticas. A tarefa do pessoal da Alimentação converteu-se, através dos anos, numa luta diplomática entre unidades dependentes para atrair a atenção e o beneplácito da autoridade maior.

Ocorreram, aparentemente, duas espécies de conseqüências últimas dessa derradeira fase. Em alguns casos, e até certo ponto, os contendores haviam visto a batalha competitiva tal como ela era: uma pista de corridas, artificialmente urdida e destinada a mantê-los ativos e fixos. Uma vez que as pessoas envolvidas em tal situação falavam livremente sôbre a estrutura do sistema competitivo e seus objetivos, bem como sôbre a ilegitimidade das táticas por vêzes predominantes, a odiosidade de suas posições, particularmente perante os ouvintes e juizes, que eram formalmente seus iguais em categoria, tornou-se insuportável. Com efeito, êles deixaram de competir; ao mesmo tempo, as tensões impostas pela situação tornaram-se opressivas em vez de estimulantes, e a suspeita de injustiças e de manobras ilícitas foi além de todos os limites toleráveis. A insegurança pessoal assim gerada, desviou a preocupação das pessoas pela melhor qualidade de seus serviços para um estado de intranqüilidade em que cada indivíduo desejava descobrir o que os outros pensavam dêle e do seu trabalho. Êsses foram os dois tipos de reação encontrados no caso em estudo.

Na BBC, como, aliás, em qualquer outra parte, muitos indícios denotam que a emulação interdepartamental pode servir aos interêsses da organização operativa. Também é verdade, porém, que aproveitar as oposições políticas em benefício da organização operativa é um empreendimento arriscado e de conseqüências dificilmente previsíveis; ademais, um sucesso inicial nessa tarefa não garante um benefício permanente.

Os três sistemas que aqui temos postulado (organização operativa, política interna e estrutura de carreira) podem ser considerados, sob o ponto de vista do indivíduo, como diferentes formas de comprometimento com objetivos diversos; êstes compromissos individuais, por seu turno, são encarados, aos olhos dos outros membros da emprêa, como recursos à sua disposição. Ao distinguir essas três espécies de comprometimentos, recursos ou sistemas, nós as temos tratado como se elas se opusessem umas às outras. De fato, isso freqüentemente acontece. Mas, como vimos no caso do sistema de comprometimentos que chamamos político, pode haver arranjos pelos quais o sistema político reforce a organização operativa, bem como, em contrapartida, pode a organização operativa ser forçada a acomodar-se aos reclamos do sistema político. Igualmente, conquanto seja bem nítida a diferença entre a estrutura de carreira e a organização operativa quando os fins de um dêsses sistemas são incompatíveis com os do outro, não há regra pela qual devam necessàriamente estar em conflito.

O SERVIÇO PÚBLICO CIVIL BRITÂNICO

Na Grã-Bretanha o exemplo mais claro e conhecido de conjunção efetiva da organização operativa com a estrutura de carreira é, provàvelmente, o da alta administração pública civil. O sistema está baseado no princípio da igualdade das oportunidades, determinada, antes de tudo, pela exigência de concurso público para ingresso no quadro burocrático, de onde saem os altos funcionários.6 6 ) H. E. DALE. The Higher Service, Oxford University Press, 1941. Três princípios normativos inspiram seu funcionamento, todos tendo por finalidade identificar os interêsses do indivíduo pelo seu progresso na carreira com os interêsses do departamento, mediante apuração da qualidade de seu desempenho, ou, pelo menos, afastar a possibilidade de conflito entre êsses interêsses.

1. Em primeiro lugar, deve existir, em cada departamento governamental, clara equivalência entre o nível hierárquico e o trabalho realizado. Se, em algum caso, a inobservância dêsse pressuposto fôr denunciada por algum interessado ou por um chefe administrativo ou auditor, a questão pode ser negociada entre os representantes do departamento (na qualidade de empregadores) e os do pessoal (como empregados).

Assim (contrariando, talvez, a opinião popular), a importância, o prestígio, a posição e, finalmente, o título e a remuneração correspondentes aos cargos constituem matéria a ser discutida e ajustada de acordo com o parecer de pessoas outras, que não o indivíduo diretamente interessa do, nem tampouco superiores imediatos, e segundo critérios considerados legítimos pela administração pública.

2. Em segundo lugar, questões de promoção devem ser tratadas por uma divisão (Establishment) do departamento, que, para tanto, toma por base as informações fornecidas, a respeito, por todos aquêles que hajam sido superiores do interessado durante sua carreira pregressa. Garantias adicionais de imparcialidade na nomeação a qualquer cargo são asseguradas por um conselho (Board) que entrevista e seleciona os candidatos considerados aptos por aquela divisão. Assim, salvo raras exceções, o sucesso na carreira de um indivíduo depende do registro de sua conduta e desempenho no trabalho, condizente, aos olhos dos colegas, com os interêsses do departamento, tais como são definidos, de maneira bastante explícita, e geralmente aceitos.

3. Em terceiro lugar, o servidor civil pode ser removido para qualquer cargo (exceto os de natureza técnica ou científica) de sua categoria ou nível hierárquico dentro de seu departamento ou, até mesmo, transferido para outro departamento, praticamente sem se levar em conta a experiência especializada adquirida até então ou a ausência da experiência desejável para o exercício das novas funções. Isso, todavia, não se recomenda, porquanto seria difícil que o funcionário assim designado conquistasse a simpatia do grupo e assumisse comprometimentos particularistas capazes de vinculá-lo, politicamente, a um setor ou divisão.

Como é óbvio, o sistema não funciona perfeitamente. Ainda que assim fôsse, haveria o que nêle criticar. Mas, a administração pública parece evitar, por consentimento geral, muitos dos males do carreirismo encontrados no mundo industrial e comercial. Não nos é lícito concluir, daí, que os traços característicos da administração pública decorram, exclusivamente, de um engenhoso mecanismo de carreira. O rigoroso, embora não-escrito, código de ética que regula as atitudes do alto funcionário inglês em seu trabalho e em suas relações com os colegas, com os homens públicos e com o grande público em geral é, pelo menos, de igual importância. Mesmo assim, contudo, a reforma do serviço público civil britânico, realizada há um século, visou, principalmente, à implantação de regulamentos capazes de assegurar que o provimento de cargos públicos não se subordinasse ao nepotismo e à política de odiosos privilégios, mas dependesse, tão-sòmente, das qualidades pessoais dos candidatos.

AS CARREIRAS NAS GRANDES EMPRÊSAS

Grandes emprêsas têm adotado, nos dois ou três últimos decênios, muitas práticas do serviço público britânico, na expectativa de colhêr os mesmos benefícios. Duas recentes mudanças nas circunstâncias externas são parcialmente responsáveis por êsse fato.

1. A reforma educacional do pós-guerra difundiu a noção de que as crianças e os jovens mais inteligentes e mais capazes são naturalmente encaminhados para as escolas secundárias e que os melhores dentre êsses seguem para as escolas técnicas e universidades. Destarte, os talentos administrativos passaram a ser procurados entre os que já tivessem obtido graduação tecnológica ou universitária; estes constituíam, para as emprêsas, um bem definido, embora muito restrito, universo de recrutamento.

2. Nesse mesmo período modificou-se muito a situação industrial. O complexo econômico mostrou-se mais dinâmico do que antes da Guerra. Tornou-se instável o equilíbrio entre a produção e o consumo, concomitantemente à aceleração do progresso técnico a que já aludimos alhures. Êsses três fatores contribuíram para aumentar a demanda de administradores, especialistas e tecnólogos, quer em números absolutos, quem em proporção ao número de trabalhadores.

A competição entre os empregados no recrutamento dêsse pessoal de alto nível obrigou-os a elevar as ofertas salariais iniciais; mas, como um investimento assim feito só depois de alguns anos surte efeitos compensadores, era imperioso selecionar realmente os melhores... e conservá-los. Conquanto nunca as emprêsas particulares tenham procurado selecionar seus homens mediante concursos públicos tão rigorosos quanto devam ser os instaurados para o serviço público, muitas das técnicas de seleção usadas na Segunda Guerra Mundial já foram adotadas no setor privado para escolha de candidatos a treinamento a cargos de chefia. As carreiras assim iniciadas incorporaram-se, sólidamente, na estrutura das emprêsas. Estas, por sua vez, no intento de atrair candidatos capazes, passaram a anunciar e a prometer mais carreiras do que cargos.7 7 ) Vide à guisa de ilustração, o sem número de anúncios de página inteira, publicados nas grandes revistas e dirigidos a estudantes universitários, à procura de administradores e técnicos.

Inevitàvelmente, o sistema de carreira assumiu grande importância. As grandes emprêsas enfrentam a necessidade de dar mais atenção às nomeações e às promoções. A preocupação com alcançar bom êxito na carreira aumenta à proporção da importância dêsse sucesso. Em conseqüência, são intensamente cultivados o estilo e os modos pelos quais o indivíduo procura ser promovido; disputam-se ávidamente os cargos favoritos e as tarefas que mais atraiam a atenção dos superiores; investigam-se os melhores caminhos para os postos mais elevados. E tais manobras são mais freqüentemente empregadas na conduta dos competidores.8 8 ) As dificuldades enfrentadas pelos pretendentes a cargos executivos foram ressaltadas por W. H. WHITE (The Organization Man) e por REINHARD BENDIX (Work and Authority in Industry, Wiley, Nova Iorque, 1956). Suas dramáticas possibilidades foram amplamente exploradas pela florescente escola publiciútária do executivo suite depois de 1950.

A maioria das emprêsas têm tomado providências para controlar o sistema de carreiras; quando menos, elas têm procurado melhorar as oportunidades de sucesso condicionando-as à qualidade do desempenho e a outras qualificações geralmente reconhecidas como merecedoras de promoção por mérito. Os cursos de formação de administradores de emprêsas indicam e esclarecem a natureza e o nível das tarefas de direção, especificando e desenvolvendo as técnicas e as qualidades pessoais indispensáveis ao dirigente. Seminários (reuniões de discussão) favorecem sua integração no mundo dos gerentes e dão às atividades diárias sentido social, econômico, político, intelectual e, às vêzes, até religioso; nelas são apresentados personagens representativos de administradores bem sucedidos que, dirigindo-se a diretores, gerentes e chefes, tecem considerações gerais sôbre a diversidade dos interesses da emprêsa, sôbre sua preocupação com o bem-estar de todos os supervisores, sôbre suas perspectivas para o futuro e sôbre o que ela espera de seus administradores. Algumas companhias submetem seus gerentes com qualidades promissoras a um estágio, por curto prazo, em estabelecimentos afastados, a fim de testar suas aptidões, ampliar sua experiência e distinguir habilidades próprias de um departamento, baseadas em técnicas ou conhecimentos especializados que demonstrem sua segurança na manipulação de recursos. Existem, ainda, os programas de aperfeiçoamento dos dirigentes, que abrem caminho ao progresso para jovens e promissores gerentes, a curto e médio prazos, colocando-os em posições onde possam explorar ao máximo sua potencialidade e enviando-os aos melhores cursos ministrados por associações de classe ou por escolas de nível universitário.

A essa altura as exigências da organização já estão visivelmente colocadas em têrmos de exigências de um sistema de carreira. Naturalmente, a emprêsa faz tudo isso na esperança de resultados substanciais, sob a forma de dirigentes superiores melhor selecionados, mais experimentados e melhor informados. Porém, ao gerente individualmente considerado, seja êle o realizador do programa ou a vítima perdedora de tôdas essas disputas, parecerá que o sistema competitivo de carreiras se tornou não apenas a preocupação mais importante na emprêsa, mas também um jôgo ardiloso, manejado, com anuência da diretoria, por um ou dois indivíduos poderosos, que anula a realidade do sistema cooperativo de administração. A liderança, entretanto, entendida como a capacidade de conduzir pessoas, promovendo colaboração e lealdade em relação aos interêsses da emprêsa, tem sido insistentemente enaltecida como elemento essencial do talento administrativo.

O curso seguido por êsse desenvolvimento não foi traçado por nenhum desígnio oculto ou sinistro. De modo natural (senão inevitável), tem havido um desvio na linha de ajustamento a situações novas, em direção a políticas que visam a preservar a imagem que a alta administração tem de si mesma, procurando reforçar sua autoridade numa época de inovações, de idéias novas e de novos homens, e dissimulando a aparência de ousadas reformas, pretensamente levadas a efeito para fazer face àquelas situações novas, muito embora, na verdade, os altos dirigentes conservem os mesmos princípios do sistema tradicional, dêles familiar, que os levou ao pináculo hierárquico da emprêsa. Muitas das mudanças estruturais a que inúmeras organizações têm sido submetidas decorrem, justamente, das influências dêsse estado de coisas.

A atenção dada ao sistema de carreira tem sua origem nas mudanças ocorridas no potencial do mercado de trabalho formado pelos dirigentes. Mas, a posição central que a grande emprêsa dedica, entre seus problemas de organização, à seleção, à admissão, à promoção e ao planejamento de carreira tem favorecido a idéia de que (como declarou um velho gerente): "organizar significa conseguir os homens mais capazes e treiná-los devidamente". Isso demanda, de um lado, que os cargos de alto nível sejam ocupados ou tenham sido criados por pessoas cujas qualidades não possam ser igualadas por seus sucessores, a não ser que sejam escolhidos e formados, com o maior empenho, durante anos a fio. Implica, por outro lado, que a direção haja cumprido, pela obtenção de um "homem capaz", sua dúplice tarefa de elaborar e aprimorar o modêlo estrutural da emprêsa, e de diligenciar para que aos administradores sejam asseguradas condições sob as quais êles possam decidir e agir com eficiência. A falta de cumprimento dessa tarefa significa não ter sido possível encontrar "homens capazes" disponíveis.

Na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e, talvez, alhures tem prevalecido, entre os grupos de direção "burocratizados", um conjunto de crenças - ou, pelo menos, um sistema de comunicação - que os apresenta inquietos, cínicos e até mesmo participantes compulsórios da "corrida de ratos", uma competição pelo sucesso profissional que deve ser levada a efeito independentemente da lealdade pessoal, dos códigos de ética convencionais e das obrigações contratuais, sempre que êsses vínculos de comprometimento se oponham aos interêsses carreiristas. Pode ser que a consciência se tranqüilize quando o indivíduo procura justificar-se perante si mesmo, alegando ter sido vítima de coação, como que numa síndrome de "A Morte do Caixeiro-Viajante". Porém, ver a "corrida de ratos" como uma inovação contemporânea seria adotar uma perspectiva histórica demasiado restrita.

A coexistência de ética profissional com o progresso pessoal terá sido, provàvelmente, mais fácil de sustentar quando as normas que dirigiam as carreiras nas classes médias - tal como o descrevem romancistas e publicistas - decorriam do protótipo do profissional liberal e do "homem feito por si mesmo"; mas, não há nenhuma razão para supor que o sucesso, em sua acepção material, haja sido menos valorizado pelas gerações anteriores. Mudanças na ideologia patronal, do "rude individualismo" ao "viver bem com as pessoas", podem não ter acarretado nenhuma alteração substancial no equilíbrio individual entre o devotamente aos interêsses da comunidade e a dedicação aos interêsses pessoais.

A relativa importância das classes médias cresceu com o desenvolvimento das emprêsas e com o progresso tecnológico. Ao mesmo tempo, e por isso mesmo, as carreiras da classe média foram incorporadas nas grandes indústrias, nos serviços governamentais e nas entidades parestatais. Assim sendo, as condições sob as quais os carreiristas progrediam estão mudadas. No entanto, com o crescimento do tamanho e da complexidade técnica das organizações operativas a manter um avanço constante sobre a competência dos organizadores e sôbre seus conhecimentos técnicos, ainda parece possível, à maioria dos indivíduos, contrabalançar o crescimento dos vínculos em relação ao trabalho, graças aos complexos sistemas vigentes, estabelecendo-se uma coligação dos superiores hierárquicos com os subalternos, a fim de manter um equilíbrio estável entre os compromissos com a organização operativa e os vínculos que liguem o indivíduo aos seus próprios interêsses.

Nota da Redação: Reproduzimos êste artigo com autorização do autor e da Revista Sociologie du Traval, onde foi publicado, em francês, em abril de 1952 (ano IV n.º 3, págs. 209-229). O original foi escrito em inglês, sob o título Ends and Means in Management Internal Politics and Organizational Pathology" e traduzido por Flávio Penteado Sampaio.

  • 1) TOM EURNS e G. M. STALKER, The Management of Innovation Tavistock Publications, Londres, 1961, especialmente os capítulos 5 e 6, págs. 77 a 125.
  • 3) H. S. BECKER propôs a analogia de um side-best para explicar a noção de commitment. Vide seu artigo "Notes on the Concept of Commitment", American Journal of Sociology, vol. 66, págs. 32 a 40.
  • 6) H. E. DALE. The Higher Service, Oxford University Press, 1941.
  • 8) As dificuldades enfrentadas pelos pretendentes a cargos executivos foram ressaltadas por W. H. WHITE (The Organization Man) e por REINHARD BENDIX (Work and Authority in Industry, Wiley, Nova Iorque, 1956).
  • 1
    ) TOM EURNS e G. M. STALKER,
    The Management of Innovation Tavistock Publications, Londres, 1961, especialmente os capítulos 5 e 6, págs. 77 a 125.
  • 2
    ) TOM BURNS,
    The Sociology of Industry, em ARGYLE GLASS, MORRIS e WELDFORD, ed.
    Society, Londre:, 1952.
  • 3
    ) H. S. BECKER propôs a analogia de um
    side-best para explicar a noção de
    commitment. Vide seu artigo
    "Notes on the Concept of Commitment", American Journal of Sociology, vol. 66, págs. 32 a 40.
  • 4
    ) TOM BURNS e G. M. STALKER, op.
    cit., caps. 7, 8 e 9.
  • 5
    ) Para uma análise pormenorizada das conseqüências ds os interêsses políticos e os de carreira serem considerados como inexistentes no estudo e na elaboração das decisões, mesmo em setores onde a maioria das considerações são de caráter técnico, C. P. SNOW
    (Science and Government, Oxford University Press, 1961) apresenta a história "interna" da formulação da política do governo britânico no tocante às pesquisas sôbre o radar, realizadas nos idos de 1930, e à estratégia de bombardeio adotada durante a Segunda Guerra Mundial.
  • 6
    ) H. E. DALE.
    The Higher Service, Oxford University Press, 1941.
  • 7
    ) Vide à guisa de ilustração, o sem número de anúncios de página inteira, publicados nas grandes revistas e dirigidos a estudantes universitários, à procura de administradores e técnicos.
  • 8
    ) As dificuldades enfrentadas pelos pretendentes a cargos executivos foram ressaltadas por W. H. WHITE
    (The Organization Man) e por REINHARD BENDIX
    (Work and Authority in Industry, Wiley, Nova Iorque, 1956). Suas dramáticas possibilidades foram amplamente exploradas pela florescente escola publiciútária do
    executivo suite depois de 1950.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jul 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1964
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