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Trabalho e marginalidade: um estudo de caso

ARTIGOS

Trabalho e marginalidade: um estudo de caso* * Este artigo é uma parte modificada de um trabalho mais amplo, apresentado como dissertação de mestrado ao Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em dezembro de 1972, sobre o tema Desenvolvimento e marginalidade.

Maria Célia P. M. Paoli

Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo

O objeto central do presente trabalho consiste na exploração dos problemas sociológicos levantados pela existência de uma mão-de-obra "marginal" aos setores econômicos da área citadina dos municípios que formam a Baixada Santista, e tenta apreender sua significação como processo objetivo e integrante das relações sociais vigentes na área considerada. Por vários motivos, foi escolhida como universo de estudo uma área residencial operária situada no município de Vicente de Carvalho, distrito de Guarujá, defronte à zona portuária e comercial de Santos: o Sítio Pai Cará. De um lado, esta área reunia todos os fatores empíricos pelos quais se convenciona reconhecer uma "situação problemática" de pauperização: condições de habitação precárias, desorganização familiar, padrões de alimentação e saúde deficientes, inexistência de serviços mínimos e aparentemente grande contingente de pessoas sem nenhuma estabilidade de emprego. De um lado, ela contava com características próprias que a tornavam uma situação privilegiada de observação: constituída originalmente através da invasão gradativa de terras particulares, gerou uma expansão rápida e incontrolável que em poucos anos se consumou, obrigando o governo do estado a expropriá-las em 1958. Dez anos depois, foi planejada sua urbanização, em virtude dos graves problemas ali existentes e dos conflitos e tensões que sua expansão originava. Em 1970, iniciou-se a implantação do programa urbanístico, no qual se tentava regularizar a posse jurídica da terra e instalar uma infra-estrutura de serviços urbanos básicos. Esta intervenção restringia-se, no momento da coleta de dados deste trabalho, a uma área específica, definindo limites ecológicos que pareciam responder à disponibilidade de renda dos habitantes para suportar o programa. Além desses limites, expandia-se a invasão dentro dos padrões de favelamento, aparentemente formada pelas pessoas que não queriam ou não podiam pagar o seu terreno. É em relação a estas pessoas, distribuídas fora da área urbanizada pelo plano, que a investigação se constituiu. Em termos gerais, sua situação peculiar neste processo reforçava a exploração dos objetivos gerais da pesquisa.

Duas noções teóricas orientaram o trabalho. A primeira é a de "participação-exclusão", proposta por Luiz Pereira,1 1 Pereira, Luiz. Populações marginais. In Estudos sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo, Pioneira, 1971. que se refere ao mercado dos fatores de produção das formações capitalistas periféricas. Estas "são geradoras da superabundância da oferta da força de trabalho", excludentes portanto de grandes contingentes populacionais, "no sentido de que estes estão no interior de seu sistema econômico, participando do mercado de trabalho como ofertantes mas não necessária e definitivamente incorporados no processo de produção, dada a debilidade crônica da demanda da força de trabalho que tipifica o sistema econômico capitalista periférico em sua etapa contemporânea". As populações marginais são identificadas como as que "estão na margem ou na fímbria das necessidades de consumo da força de trabalho por cada sistema econômico capitalista periférico tomado em bloco". Como indicador empírico, a noção de participação-exclusão aponta para a renda-trabalho mínima per capita familiar, "na qual se traduz o valor social e historicamente fixado dessa parcela da força de trabalho coletiva global". A segunda noção é a de "campo de carências", proposta por Marialice Foracchi,2 2 Foracchi, Marialice M. Relatório final da pesquisa sobre As condições sociais da mobilização da força de trabalho: algumas características do subemprego urbano, apresentado à FAPESP, jan. 1972, mimeogr. que se refere ao sistema de relações sociais que se estabelecem entre os agentes marginais e que tipificam seu campo de ação como forma histórica de existência social. O campo de carência é constituído pelas significações e as práticas reais vividas pelos agentes considerados marginais e configuradas em universos simbólicos de representações significativas. Permite, desse modo, a apreensão do sentido da exclusão dos agentes marginais, uma vez confrontado com as condições objetivas que a constitui.

1. As relações sociais fundamentais

Entre os muitos obstáculos que impediam a criação de uma "comunidade integrada" na área do Pai Cará, tal como formulada pelos técnicos que implantavam a urbanização da área, estava o problema da integração econômica da população no quadro da economia regional ou municipal. Reconheciam eles que a área, podendo ser definida globalmente como um bairro operário, diferenciava-se internamente de modo nítido em termos de recursos econômicos e nível cultural, diferenciação esta que se operava também geograficamente. Desse modo, havia "setores" onde o padrão de vida era alto para a média local, com uma população estável "social e organicamente": suas casas eram as melhores, dispostas em ruas traçadas e em terreno aterrado; o grau de escolaridade predominante girava em torno do primário completo, e tinham empregos estáveis. Em suma, para o padrão vigente, esses setores seriam ocupados pela "classe média" local. Os demais setores, ocupados por uma mão-de-obra barata e não qualificada chamada de "classe média inferior", compunham o padrão típico dos habitantes da área, com habitações variavelmente precárias, dispostas em ruelas e contando com equipamentos urbanos precários, nos padrões de favelamento comuns às grandes cidades brasileiras. Na periferia, e para além da área delimitada para a intervenção urbanística, crescia em ritmo lento a ocupação dos terrenos por pessoas cujas rendas eram estimadas como muito baixas, cujas habitações, construídas sobre o mangue aterrado com lixo e feitas com qualquer material que para isso servisse, indicavam uma pobreza extrema, e onde se supunha muito alto o grau de problemas sociais, como a ociosidade, a prostituição e a desagregação familiar. Tal população era reconhecida, no linguajar comum de todos os que operavam na área, como "maloqueiros", e, através disso, oposta aos "trabalhadores", linguagem esta que os identificava, com base na maneira de morar, um tipo humano desqualificado socialmente.

Nada mais contrário a esta classificação do que a autodefinição do ocupante da área em questão. Sua consciência empírica estabelece solidamente a própria identificação com trabalhador assalariado. Esta é a primeira e a principal categoria introduzida em seu discurso, em torno da qual se estrutura o seu mundo e se definem as inconsistências e tensões geradas pela realidade objetiva em que está lançado. Subjetiva e objetivamente, ele se sabe possuidor de força de trabalho que deve ser vendida no mercado, o que lhe permite adquirir os meios necessários à sua subsistência. Este é o seu mundo "natural", por onde ele se apresenta e depõe sobre sua experiência de vida. A efetivação da condição "normal" do trabalho assalariado fundamenta o seu presente, enquanto aspiração, e constitui o horizonte histórico possível, enquanto projeto. De modo algum a situação do fechamento do mercado de trabalho, objetivamente dada na realidade presente, afetou esta sua identidade fundamental, embora ela tenha introduzido em sua consciência, como se verá, uma configuração peculiar, dada pela expulsão gradativa das formas regulares de ganhar a vida. Neste sentido, suas representações o inserem na integração típica e constitutiva do sistema. Assim é que, quando descreve o modo de ganhar a vida, reafirma a identificação com o trabalho assalariado: "Eu faço qualquer trabalho com as mãos, dou duro nisso" (bagrinho, 37 anos); "Sempre trabalhei, desde pequena, de doméstica, em fábrica, catando café. Agora lavo e passo pra fora" (lavadeira, 50 anos); "... Quando os tempos estão ruins, faço umas coisinhas por aí, mas trabalhei sempre em sacaria, construção... trabalho mesmo" (desempregado, fazendo "bicos", 26 anos); "Já fui operário, marítimo, e também na construção... hoje estou de ajudante de motorista, dá no mesmo" (ajudante de motorista, 29 anos); "Vida de trabalho é nós, é profissão de sofredor. Com essa idade toda que se vê, já dei saúde e muita força como trabalhador operário deste país" (70 anos, aposentado); "Anote aí: tudo aqui é trabalhador, ganhando a vida ali no braço. Os aleijões e os inutilizados, tudo foi trabalhando no braço, ficaram assim de tanto trabalho. Os outros, que parece que não estão trabalhando, estão do mesmo jeito" (56 anos, biscateiro).

O sentido do trabalho, para esses trabalhadores, determina-se, única e exclusivamente, como o meio de sobrevivência, ou seja, pelo salário. Dessa forma, eles reafirmam, na consciência, a sua força de trabalho como mercadoria, e não têm ligação alguma com os diferentes trabalhos que realizam ou realizaram: não distinguem significativamente o objeto do trabalho. Percebe-se isso quando se estuda os indivíduos de origem rural, que supostamente poderiam reter a distinção entre o trabalho rural e o urbano, pelo fato de serem atividades produtivas diferentes. Isto, no entanto, não acontece: o trabalho tem apenas o sentido de lhes permitir sobreviver: "Fui lavrador de roça a vida inteira, em terra dos outros. Nunca pensei em mudar, quando estava lá... quando mudei, aprendi logo. Não é diferente" (empacotador, 28 anos); "Não gosto da cidade, sempre lembro da Bahia... não que o trabalho seja pior ou melhor, isso não conta... é por outras coisas" (inutilizado por acidente, 31 anos); "Desde criança assim bati amendoim, algodão, tombava a terra... daí trabalhei em fábrica, lá no Moinho também... de último, recebia homem. Tudo é igual, tudo deixou eu assim, acabada... nenhum trabalho é bom" (ex-prostituta, 41 anos); "Trabalho para ganhar, né, qualquer coisa serve" (desempregado, pescando, 39 anos); "Nós tem que trabalhar, como tudo vai comer?" (desempregado, fazendo "bicos", 41 anos). Essas afirmações demonstram que o tipo de trabalhador em questão, longe de ser um "marginal fora de", se insere dentro do campo típico de relações estruturais do sistema, pois "...A força de trabalho em ação, o trabalho mesmo, é a atividade vital peculiar ao operário, seu modo peculiar de manifestar a vida. E é esta atividade vital que ele vende a um terceiro para assegurar os meios necessários. Sua atividade vital não lhe é, pois, senão um meio de poder existir. Trabalha para viver. Para ele próprio, o trabalho não faz parte de sua vida; é antes um sacrifício de sua vida. É uma mercadoria que adjudicou a um terceiro. Eis porque o produto de sua atividade não é também o objetivo de sua atividade... O que ele produz para si mesmo é o salário..."3 3 Marx, Karl. Trabalho assalariado e capital. Rio de Janeiro, Ed. Vitória, 1963, p. 24.

Balizada por estas duas categorias (trabalho e salário), a consciência do trabalhador se define pela junção das duas em um único estado: a pobreza. É como trabalhador assalariado pobre que ele trava as relações sociais fundamentais que estruturam sua vida e seu campo de ação. Desse modo, suas referências constantes são feitas em relação a duas figuras inerentes ao seu meio estrito e amplo, e necessárias à sua apreensão de mundo: o patrão, de um lado, e o operário industrial com estabilidade de emprego, de outro.4 4 Nesse sentido, suas referências são as mesmas que as do proletariado em geral. Cf. Pereira, Luiz. Tra-balho e desenvolvimento no Brasil. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1965; e Rodrigues, Leôncio Martins. Industrialização e atitudes operárias. São Paulo, Editora Brasiliense, 1970.

O patrão surge, para ele, em primeiro lugar como um indivíduo que retém o poder da sobrevivência dos trabalhadores, quando e como quiser. Daí resulta que ele depreenda sua condição de trabalhador assalariado dependente do patrão como a única maneira possível de ganhar a vida e manter-se dentro da estabilidade almejada, mesmo que - e talvez exatamente porque - recorre em épocas "difíceis" a outras formas de sobrevivência, como a coleta de produtos naturais que existem na área, ou mesmo a mendicância. De qualquer forma, o patrão é o poder e eles são basicamente dominados, dependentes do arbítrio e de uma vontade que não entendem: "Patrão é como a polícia, manda e desmanda como quer, não dá pra deixar de lado, desmancha coisas da gente quando quer" (lavadeira, 46 anos); "Patrão é um desacato à pobreza. Pobre tem é que lutar por si e nunca esperar do patrão, que é igual a político" (aposentado por invalidez, 45 anos); "Patrão é sina na vida de pobre, não tem que não tenha... pra viver" (servente de pedreiro, 26 anos); "Patrão é patrão. Mas não dá pra fazer nada. Bem ou mal, tem que agüentar..." (doqueiro, 29 anos). Disso surge uma consciência apenas aparentemente ambígua, pois ao final submetem-se pacificamente, por falta de alternativa; estas afirmações revelam que a consciência crítica tem seus limites no "bom patrão", pois o que ela pede é apenas uma inserção estável no processo de produção, que permita uma maior participação na renda: "O segredo do viver bem é saber tratar com o patrão... patrão é uma pessoa ruim, de nascença, mas tudo depende do empregado, que tem que conhecer o jeito e agradar..." (doméstica, 50 anos); "Meu patrão agora é bom tive sorte, é bom pagador e faz todo mundo tirar carteira de trabalho... já tive patrão ruim, todos acabam mandando embora" (catadeira de café, 47 anos); "Meu patrão agora é um sargento. Se o serviço é bom, ele gosta, se não é bom, ele não gosta. Mas grita do mesmo jeito o dia inteiro. É aluado... eu agüento" (29 anos, fazendo "bico" de pintor); "A gente tem que fazer tudo pro patrão gostar, eu fiz e agora sou a preferida dele... quem não gosta de patrão é porque não sabe lidar com eles" (vendedora de bilhetes de Loteria, 45 anos). Tais afirmações são características das pessoas que há mais de dois anos têm podido contar com salário regular, mesmo que de valor real muito abaixo do mínimo. É interessante notar que o antagonismo contra o patrão é manifesto de modo mais claro nas pessoas que então estavam procurando um emprego, e que retinham a dimensão da exploração mais viva na consciência: "Não me espanto mais da miséria do mundo, sei a maneira dessa gente... pra não fichar, eles admitem o sujeito por 10 meses, e depois mandam embora. Não dá pra fazer nada, ir contra ou ganhar a confiança do patrão. A coisa é assim mesmo" (pedreiro buscando emprego, 32 anos); "Não gosto nem de ver a cara dele (do último patrão), eu já tive muitos na vida e sei que é tudo igual. É outra gente" (37 anos, sem ocupação); "Ficar sem serviço, pelo menos isso, não tem patrão, né? A gente morre de fome sozinho" (26 anos, sem ocupação).

Desse modo, o que se tem é a afirmação de uma consciência proletária típica, colocada espontânea e naturalmente no discurso.5 5 Ver Pereira, Luiz. Situação operária. Trabalho e desenvolvimento no Brasil, cap. 4. No entanto, as dimensões enfatizadas no depoimento desse trabalhador, ainda que típicas, parecem ser outras que as do discurso do operário no desempenho estável do trabalho; a todo momento, desemprego e pauperização marcam a referência às suas relações antagônicas e às suas solidariedades. Excluído intermitentemente do processo de produção e no limite da participação na renda, este trabalhador se interroga sobre a situação em que está lançado. O patrão como um poder absoluto é uma das respostas a que chegou, e que marca incoerentemente sua aspiração de "outra vez trabalhar para o aumento da riqueza da burguesia e para o reforço do poder do capital".6 6 Marx, Karl. op. cit. p. 45. De outro lado, a utilidade e o valor de seu trabalho também estão presentes neste questionamento: "Quando cheguei aqui era 1930, se bem me lembro. Tinha ouvido falar do porto e da grandeza do café em Santos. Daí fui logo para a estiva, naquele tempo tava assim de lugar vago... Como sabe, sou trabalhador operário deste meu Brasil. Agora eu pergunto uma coisa: não valemos mais? O porto não tá aí, crescendo feito fábrica?" (70 anos, aposentado); "Tá duro conseguir emprego, não falo nem dos que prestam... E eu sei fazer as coisas rápido, não é disso que precisam?" (desempregado, fazendo "bicos", 26 anos); "Vou morrer de fome e doença, isso vou mesmo, me salvo porque ainda sou esperto... e olhe que eu já fui homem de escolher serviço" (56 anos, biscateiro); "Quando chamam (para algum emprego), vou cedinho e já tem um fila que só vendo... daí, espera a manhã inteira, entra um e olha e diz: não precisa... " Subjetivamente, este trabalhador confirma sua situação de participaçãoexclusão, ou seja, a pouca necessidade da incorporação direta de sua força de trabalho para a reprodução do capital. Mas para ele as coisas assim são porque os melhores lugares já têm dono; desta vez, seu antagonismo volta-se contra o operário estavelmente inserido no mercado, e isto significa duas coisas para o trabalhador "excluído": qualificação e sorte.

A qualificação do trabalho é um pesadelo mítico na vida do trabalhador excluído, que ele aspira a possuir, mas que é, concomitantemente, algo não mais alcançável do seu ponto de vista, no processo atual de sua vida. Desta forma, é uma aspiração rejeitada no seu valor intrínseco e não admitida enquanto tal: de modo algum a qualificação confere maior valor ao trabalho. Esta atitude é particularmente forte quando a participação no processo produtivo se faz permitida de modo estável, mesmo sem qualificação. Ela é problema na medida em que as melhores oportunidades do mercado de trabalho dependem de algum tipo de adestramento e de escolaridade, e mais ainda porque são os serviços melhor remunerados. E é em nome da qualificação que se faz a sua rejeição neste mercado. Dessa forma, o trabalhador nega o seu valor: "Esta coisa de estudar para trabalhar é moderno... tá todo mundo aí morrendo de fome com estudo e tudo... eu fiz muito serviço sem estudo" (aposentado, 70 anos);7 7 Este mesmo indivíduo considerou o investigador como uma pessoa que não trabalhava: "professor não é trabalho, tanto que só tem mulher nessa profissão". "Trabalhei sempre com sacaria... ninguém lá tem estudo, e não se está precisando" (desempregado, 26 anos); "Sei ler e escrever, mas não adianta nada para o serviço... fui operário especializado em papel, mas só ali na experiência... hoje, nem sei se ia ser aceito, nem na fábrica de papel, tudo tá mudado, eles exigem teste de conta, os que passam podem ser até ignorantes do serviço. Por isso não se tem mais caráter" (66 anos, trabalha em estaleiro); "As coisas estão mais difíceis... queria ter leitura e saber contar... não passei no teste das Docas. Não preciso mesmo, vou carregar saco, para que saber isso?" (ajudante de pedreiro em empreitada, 36 anos); "Não sei por que precisa de leitura, isso é enganação para não dar serviço... tenho um parente que sabe de escritório, e mesmo assim tá ruim, não acha serviço e agora tá fazendo fé nas Docas... prá mulher, sim, que não faz força, mas pros homens carregar saco? Leitura e conta não precisa, precisados tão é de braço" (desocupado, 35 anos). Ao lado dessa rejeição quanto ao valor em si da educação como fator de acesso ao trabalho regular, este trabalhador não vê possibilidade de chegar a aprender algum serviço diferente; no entanto, ao mesmo tempo em que o nega para si, projeta tal possibilidade para seus filhos, portadores de suas aspirações; ou seja, ao final de um processo de vida que se pautou pela luta por uma sobrevivência cujos limites se tornam cada vez mais estreitos, estes trabalhadores não visualizam mais oportunidades de uma melhoria de vida através de uma formação profissional superior, negando a ela, em si, a qualidade de conferir realmente maior valor de compra ao seu trabalho. Mas, ao projetarem tal futuro para os filhos, aceitam a qualificação do trabalho como a via possível, por excelência, para a negação das atuais condições de vida. É como se a eles, antes de mais nada, lhes competisse lutar pela existência nos limites do seu presente imediato; nos filhos estaria a oportunidade de sair dos limites dessa luta, negando antes de mais nada a instabilidade contida neste presente. Desse modo, quando falam de seu cotidiano e das possibilidades de mudança, assim se exprimem: "... é tarde para aprender um serviço que não sei. Prefiro andar em serviço mais conhecido, porque é o que se pode" (desocupado, 35 anos); "Não estudei porque sou ruim de cabeça. Serviço novo não é difícil, posso fazer tudo com as mãos... tudo se aprende para viver" (bagrinho, 37 anos); "Fui lavrador de roça a vida inteira... quando mudei, aprendi logo... Faço pacote o dia inteiro, e depois os outros pesam. Difícil? Não é, acho que capinar é mais difícil, queria ver os caras daqui indo pra lá, pra ver se sabem logo. A gente da cidade é muito atrapalhada, mas só tem lugar bom para eles" (empacotador, 28 anos); "Perdi a prática de leitura, aprendi na firma que trabalhava, em dois meses. Eles queriam... depois fui mandado embora, e não sei mais. Não precisei pra nada" (biscateiro, 31 anos); "Não arrumo serviço porque eles querem gente que já sabe fazer as coisas, não querem explicar" (26 anos, procurando emprego); "Não dou pra outra coisa, já cansei de aprender" (lavadeira, 46 anos). Projetada para os filhos, a situação se inverte: "... quero que os filhos tenham serviço com ponto e horário e sejam fichados. Digo sempre pra eles, é com estudo que se consegue" (catadeira de café, 47 anos); "Aprendi um pouco nas estradas que andei. Agora, minha filha vai ser professora; empregada não quero pra ela" (aposentado, 45 anos); "Queria que o rapaz, o mais velho, fosse pra São Paulo, nas fábricas de automóvel. Dizem que os operários lá vivem na lordeza, têm casa boa e tudo" (dona de casa, 50 anos); "Meu filho não fica aqui, não, vai ser operário dos bons em Cubatão, se Deus quiser aprende o ofício" (dona de casa, 45 anos).8 8 As três pessoas entrevistadas que tinham uma renda acima da média local (estivadores, os quais não foram considerados marginais) aspiravam, para seus filhos, as profissões de classe média: médico e funcionário público. Os demais tinham como referência o operário industrial.

A qualificação do trabalho é, nesse sentido, o elemento que justifica o modo peculiar pelo qual o trabalhador integra as condições e o estilo de existência marginal, na medida em que ela constitui, concretamente, o elemento ideológico que compõe a alternativa real de negação do status quo. É um dos elementos que garantem a conciliação dos antagonismos e inconsistências que estruturam objetivamente a vida desse trabalhador, elemento legitimado no contexto do trabalho, coberto de sentido uma vez que representa a possibilidade de participação efetiva e estável na obtenção da renda e oferece a idéia de controle das condições de existência, através de emprego regular e bem remunerado. Mais ainda, ela dá uma identidade que contém prestígio: não se trabalha "com qualquer serviço", mas se trabalha especializadamente "com uma produção". A crítica, vislumbrada por alguns, de que a exploração é a mesma, anula-se e se traduz na ilusão do controle sobre as condições de existência, inclusive implicando outra relação com o pólo "patrão". Assim, a submissão às atuais condições de vida é ligada invariavelmente às condições de vida dos operários estáveis e qualificados: "Aqueles de lá, de Cubatão, é que estão bem. Nem precisam de sindicato para brigar. Se não gostam de onde estão, dizem para o patrão: vou embora e largo a produção... Podem fazer isso, são precisados pras máquinas, pros fornos, sabem fazer o serviço"; "O governo protege eles (de Cubatão) ... já viu as casas? têm médico e tudo, e não se matam. A fábrica precisa, já fez tudo e ensinou eles, agora não quer perder... eles sim, têm sorte"; "O patrão deles, não que seja melhor, mas fala mais fino..."; "O bom em serviço assim, como os de lá das fábricas de Cubatão, é que pode trocar de serviço e de patrão... nem precisa ir pra São Paulo, tão melhor aqui, dizem que os operários de São Paulo também é assim, não têm peso nenhum..." 9 9 O trabalho de Plantec-Huper anotou o seguinte, sobre as expectativas em relação ao trabalho: "Estes dados mostram que (... ) preferem decididamente engajar-se como mão-de-obra operária... O total dos nossos entrevistados manifestou-se desinteressado por um emprego de escritório (0%!), o que não é de admirar ante a consciência que têm de que não estão intelectualmente preparados para exercer funções de empregados de escritório, dentro de uma perspectiva razoável de remuneração... Não resta dúvida de que a consciência que têm do seu despreparo intelectual é que os leva a essa posição..." Plantec-Huper. Levantamento socioeconômieo e cadastral do sítio Pai Cará. São Paulo, s.d. Mais ainda, os operários qualificados são "outra gente", cuja sorte em ter aprendido um ofício necessário tomou o lugar de trabalho que, em ultima instância, poderia ser deles: "... não é que não tenha serviço, mas tudo que é bom aqui já tem dono, é na estiva, é lá pra Cubatão, é na Cosipa, tá tudo tomado pelo operário, que tá tudo quase rico..."; "O serviço que tem aqui não é bom... os lugares bons já estão cheios... quando acho um serviço, depois de dez meses o patrão despede pra não fichar, daí tem que viver de coisinha aqui, coisinha ali. Só ficam no emprego esses que sabem fazer tudo e trabalham com as máquinas..." O antagonismo sentido pelo trabalhador marginal contra os operários estavelmente empregados en-contra confirmação e correspondência, como se verá, nestes próprios operários, em última instância ameaçados também pela presença dessa mão-de-obra barata e disposta a sobreviver a qualquer preço.

Desta maneira, para compreender o marginal como um tipo humano é necessário, antes de mais nada, entendê-lo como um trabalhador assalariado instavelmente inserido no processo de produção em termos da exploração direta e intensiva de sua força de trabalho. Na medida em que o caso da Baixada Santista é representativo de uma situação comum a muitos trabalhadores, tem-se uma opção de desenvolvimento industrial e urbano em crescente processo de expansão, que impõe o surgimento dos grupos marginais ao se apoiar na intensiva exploração do trabalho já regularmente incorporado em seu processo de produção pelo aumento da produtividade deste trabalho. Assim, em termos de estabilidade e renda, a mediação de um mercado de trabalho tendencialmente em processo de fechamento à mão-de-obra braçal distingue essa parcela da força de trabalho como "sobrantes" do tipo de exploração direta do capital, o que não significa dizer que sejam sobrantes também aos requisitos de multiplicação do capital - e talvez nem sequer de uma forma que se poderia chamar de "atípica" ao sistema capitalista. A configuração de consciência do trabalhador em questão, dentro das relações sociais fundamentais por ele vividas, mostra-o como um produto de tendências objetivamente dadas, assumidas pela ordem urbano-industrial em seu conjunto e atualmente dominantes como sua política deliberada. No plano das relações de produção vigentes, o elemento que integra e justifica esta opção de crescimento é a produtividade do trabalho já incorporado, cujo treino e qualificação atendem aos requisitos diretos de reprodução do capital e cuja remuneração garante, em parte, a constituição de um tipo de trabalhador integrado por um consumo efetivo superior.10 10 O termo "consumo efetivo superior" procede de Luiz Pereira, que o utiliza como um dos componentes principais da alienação nuclear capitalista dos agentes do trabalho. Ver Pereira, Luiz op. cit. especialmente cap. 3 e 4. Mas o que é preciso perguntar-se é se este elemento integrador teria condições de o ser sem a existência e o peso de uma força de trabalho "sobrante"; ao nível ideológico, pelo menos, não é à toa que existe um antagonismo, latente ou manifesto, entre os dois tipos de trabalhadores. No outro pólo, as condições concretas do mercado de trabalho não permitem, a uma grande parcela do proletariado, a reprodução de si mesmos como força de trabalho regularmente empregada; novamente, qualificação e despreparo são argumentos integradores. Em outros termos, o certo é que se está muito longe de uma situação que pudesse ser expressa pela palavra "marginalidade". Ambas as configurações da força de trabalho "se determinam tendencialmente como componentes de uma força de trabalho coletiva integrada e diferenciada pela divisão técnica do trabalho".11 11 Pereira, Luiz. op. cit.

As representações simbólicas dos trabalhadores excluídos a respeito de si mesmos e de seu próprio trabalho demonstram a confirmação objetiva destas tendências. De um lado, ao forçarem sua presença neste contexto, buscam reafirmar sua auto-identificação como trabalhadores passíveis de aproveitar as supostas alternativas com que o mercado urbano de trabalho acena, através da garantia de seu lugar nessa ordem e da possibilidade de ascensão pelo trabalho. É nessa medida que aceitam a qualificação como justificação de uma pobreza ilusoriamente conjuntural e que constróem seu projeto dentro da realização possível de si mesmos como operários estáveis com um consumo efetivo. As aberturas intermitentes do mercado encobrem (em parte) o fato de que as suas aspirações não são incorporadas e que não há o dilatamento das oportunidades de emprego, naquele sentido. Por outro lado, as motivações do trabalhador "marginal"12 12 A palavra "marginal", neste caso, precedida da palavra "trabalhador", continua a ser empregada no sentido da participação-exclusão, que caracteriza uma inserção específica da força de trabalho. Seu uso, embora infeliz, justifica-se pela absoluta falta de outro termo. para o trabalho e para o consumo regular são apenas parcialmente atendidas pelas necessidades que esse mercado tem da existência de uma mão-de-obra barata, utilizada em seus surtos de expansão. Nas condições em que vive, o trabalho, longe de ser uma fonte de ascensão e de riqueza, é apenas um meio de sobrevivência crescentemente empobrecedor. Deste modo, trabalho "sobrante" e pauperização exprimem o modo de ser marginal, e ambos surgem a cada tentativa que ele faz para realizar a autonomia definida em sua condição de trabalhador livre. A mobilidade objetivamente possível se faz dentro do âmbito desta experiência, e prende o trabalhador a esta condição. É somente a partir daí que o trabalhador marginal passa a encarar o "vale-tudo" como premissa de sua existência, que ele vive seus projetos e exprime suas ambigüidades. A discussão posterior tornará mais clara a determinação das relações acima apontadas entre trabalho e marginalidade.

2. Formas de ganhar a vida

A condição peculiar do mercado de trabalho local da Baixada pareceria indicar, à primeira vista, uma diversificação interna do sistema produtivo dado pelo nível de produtividade, este por sua vez definido pela predominância do processo tecnológico. Como se viu, existem ramos industriais de transformação, que operam com uma tecnologia elaborada e com altos níveis de produtividade, representando as principais fontes de acumulação de capital da área e configurando um mercado característico de absorção de mão-de-obra. De outro lado, definem-se ramos pouco tecnificados e com baixa produtividade, mas absorvedores de mão-de-obra não qualificada, que seriam a grande alternativa para a sobrevivência desses trabalhadores, dada a sua "expulsão" pelo outro.13 13 Esta situação não é exclusividade da Baixada Santista. Como se viu, a divisão do mercado de trabalho e, conseqüentemente, da produção econômica em duas estruturas diversas, coexistentes e relacionadas, é comum a vários trabalhos que tentam explicar a marginalidade. Ver, por exemplo, Quijamo, Aníbal. Polo marginal de economia y mano de obra marginada. mimeogr. Esta diferenciação do mercado de trabalho pareceria estar aparentemente em contradição com a situação de grande oferta de mão-de-obra, afinal não aproveitada em uma estrutura de produção em pleno desenvolvimento, uma situação irracional ao deixar essa mão-de-obra na dependência de um "mercado não formalizado"14 14 Esta expressão é retirada de Machado da Silva, L.A. Mercados metropolitanos de trabalho manual e marginalidade. Tese de mestrado apresentada no programa de pós-graduação em Antropologia Social da UFRJ, maio 1971. mimeogr. e pouco significativo para o sistema.

O estilo de vida e as condições efetivas dos trabalhadores em questão introduzem, no entanto, algumas dúvidas neste esquema de explicação, que no fundo traduz para o nível sociológico a setorização econômica em relação à produtividade para identificar as "populações marginais". De todas as pessoas entrevistadas, seis tinham uma ocupação regular com estabilidade de emprego, garantidas por um salário mínimo mensal e possuindo carteira de trabalho, registro e pagando INPS. A maioria dessas ocupações eram manuais e definiam o trabalhador típico do "baixo operariado": duas na área portuária (ajudante de motorista e empacotador), duas nos pequenos estaleiros da ilha de Santo Amaro e duas no Entreposto de Pesca de Santos. Nenhuma destas áreas poderia constituir um "pólo marginal" da economia ou áreas não funcionais do mercado de trabalho local.15 15 Pelo contrário, são as áreas predominantes e em crescimento contínuo na Baixada, mesmo que sejam "atrasadas" tecnologicamente. Os próprios trabalhadores o indicam, quando falam do acúmulo de serviço ou do movimento da unidade em que trabalham. Na entanto, todos eles ganham salário mínimo para sustentar famílias inteiras; não escapariam de uma caracterização de participaçãoexclusão ao nível da renda percebida.

De qualquer modo, o tipo de ocupação que eles têm é valorizado na área, por ser uma fonte certa de trabalho, mesmo que existam outras que em tese permitiriam maior renda, mas sem estarem marcadas pela estabilidade de emprego. Assim, todos eles se consideram relativamente privilegiados: "Tive sorte, sim... comecei como provisório, mas me dei bem no serviço logo, eu trabalhei bem pra ficar no serviço. Essa casa aqui, tudo o que tem dentro foi depois do serviço no estaleiro"; "Pago Instituto, tudo direitinho... só por ter médico pros filhos sem despesa já é bom... O dinheiro... é curto, mas é certo"; "O que é bom é poder comprar a prestação... é a garantia do emprego fichado." Todas as inconsistências e tensões sentidas, seja no trabalho como na área em que vivem, são abafadas pelo sentimento de "sorte" e da exclusividade da própria estabilidade, especialmente quando comparados à vida anterior ou aos vizinhos: o emprego estável é o grande expediente de controle sobre suas vidas. É comum a afirmação, inserida freqüentemente em seu discurso, de que "ao menos se sabe o dia de amanhã", ou de que, se as coisas seguirem nesse rumo, "de fome ninguém morre". O estado de pobreza em que vivem estas seis pessoas, aparentemente semelhante ao de todos na área, é sempre contrabalançado com a "segurança do amanhã", e estes trabalhadores se referem à sua privação de forma peculiar: para eles, viver de "bicos" pode até ser mais vantajoso, conforme a época, mas a possibilidade de exclusão intermitente faz com que avaliem negativamente esta forma de vida: "Emprego fichado tem isso, ganha salário certo todo mês ... se vive melhor a necessidade."

A estabilidade de emprego existe também para a categoria dos trabalhadores autônomos filiados a sindicatos, especialmente os sindicatos do porto, tradicionalmente fortes e já constituídos, em que pesem as restrições havidas após 1966. As três pessoas presentes nessa situação colocavam-se, em termos de renda, muito acima da média local - ganhavam no mínimo dois salários - e a visão que possuem do próprio trabalho é inteiramente condicionada à filiação a um sindicato poderoso. Tal como colocado: "A estiva é muito bom. Não tem horário nem obrigação, se trabalha quando quer... dá pra tirar bastante, e sempre tem serviço pro sócio." Mais ainda: "Nós somos donos do serviço... ninguém mais faz. Quando não quer trabalho, pode dar pros outros." O pessoal da estiva é visto com respeito, e quase todos almejam um lugar nela como resolução imediata de sua situação: nada menos do que 20 pessoas "faziam fé na estiva", esperavam a oportunidade de nela se engajarem como sócios. As razões apresentadas unem novamente as determinações básicas do trabalhador assalariado: maior renda auferida, estabilidade e "proteção" direta das necessidades, este último componente introduzido pelo sindicato. Mas o que a estiva representa de fundamental é o afrouxamento dos laços de submissão a ocupações pouco seguras e rentáveis, a grande saída para o campo "marginal" de existência. É o que está por trás das formulações de que "o melhor que tem é o sindicato. Tamos tudo garantido... já viu os prédios e os serviços? Tem a sede, o hospital, a sala de conferência..."; "Não tem horário nem obrigação. O trabalho é pesado, mas sempre dá pra contar com dinheiro na hora certa"; "Não tenho patrão, meu patrão é o sindicato"; "O sindicato é o melhor, porque não tem trabalho igual assim - protege os interesses dos trabalhadores, dá sempre trabalho e os direitos estão assegurados, sendo sócio." São também os únicos trabalhadores que têm uma idéia feita sobre o valor de seu trabalho: "Nós podemos fazer tudo isso parar... já viu um desenvolvimento sem porto? Somos a alavanca da exportação..."16 16 A linguagem utilizada reflete bem a filiação ao sindicato que entre suas atividades mantém cursos de formação e atualização do estivador. Dentre as matérias inclue-se educação moral e cívica. Mesmo assim, temem o excesso de oferta de mão-de-obra e a intervenção direta do governo nas taxas cobradas : "... os nordestinos, tudo aí que a senhora viu, esses são gente que pega qualquer emprego, e estão tudo louco pela estiva. Precisa estar de olho." E todos os três concordam: melhor que a estiva, só mesmo operário em São Paulo.

Para a grande maioria, que cotidianamente renova a sua sobrevivência em ocupações ou serviços vários, o emprego estável com salário, de um lado, e a estiva, de outro, representam as grandes alternativas viáveis para o tipo de trabalho que atribuem a si mesmos. O trabalho autônomo filiado a um sindicato e a sua constituição como operários manuais estáveis são as únicas possibilidades reais que indicam a si mesmos como solução imediata de sobrevivência. A inserção destes indivíduos nas atividades esporádicas pelas quais realizam efetivamente sua sobrevivência é vivida, o tempo inteiro, pela referência à sua candidatura àquelas ocupações. A sua efetiva inserção na divisão de trabalho local mostra, no entanto, que se constituem como trabalhadores destinados a permanecer nessa condição pela configuração específica do mercado de trabalho na Baixada. Contrariamente a todas as aparências, os trabalhadores marginais configuram um tipo humano necessário à expansão da área, como se verá.

Grande parte dos entrevistados vivia de ocupações pagas "por tarefa" ou "por empreitada", ou seja, ocupações constituídas para um determinado serviço. As mais freqüentes eram as atividades de construção civil, um ramo próspero na Baixada, tanto para as grandes empresas de engenharia como para as pequenas organizações empreiteiras. Ao que tudo indica, é uma produção realizada com base principalmente no uso puro de força de trabalho braçal, remunerada a níveis baixíssimos e com um tipo de vínculo empregatício não fixo; e esta deve ser exatamente a razão de ser um empreendimento bem sucedido. É possível pensar que a construção civil complementa a alta capitalização e produtividade dos outros ramos industriais da Baixada, permitindo uma acumulação de capital transferida, em parte, para as outras atividades econômicas. O mecanismo reflete-se na composição do mercado de trabalho: cria contingentes de mão-de-obra presos a certos tipos de atividades, pela exclusão objetiva de outras. Do ponto de vista do trabalhador marginal, as atividades de construção civil, de desmatamento para novas unidades de expansão urbana, etc, são a grande fonte de sobrevivência. Estas atividades são conseguidas por duas fontes: os amigos ou parentes que avisam da oportunidade, e algum trabalho anterior que pareceu satisfatório a um determinado empreiteiro ou pedreiro regularmente vinculado a alguma empresa, que manda chamar. Destas pessoas, três trabalhavam em empreitadas no momento da pesquisa, oito esperavam chamado e nove viviam de "bicos" variados enquanto esperavam ou o chamado para uma empreitada ou para um dos empregos a que sempre são candidatos. O campo marginal de carências aí se define claramente: a ação do trabalhador orienta-se sempre para o possível e o impede de bem compreender sua situação real. O presente de trabalho intermitente e pauperizador é vivido contraditoriamente: a exclusão é pensada pela possibilidade da passagem para a segurança e a efetivação de um outro estilo de vida. A impossibilidade desta passagem é que cria e marca o seu campo de experiência peculiar.

Enquanto esperam, exploram as possibilidades oferecidas dentro das balizas deste campo - os "bicos". A fonte de obtenção de renda mais satisfatória como "bico" é a pesca. Como atividade, ela se radica na possibilidade de dispor de uma canoa e de contar com uma certa experiência, especialmente em caso de trabalho a meias. Mais ainda, é preciso conhecer os locais melhores e também garantir relativamente os prováveis compradores do produto. Quando existem estas condições, o pescador chega a fazer de Cr$ 100,00 a Cr$ 170,00 por mês; quando não, varia entre Cr$ 50,00 e Cr$ 80,00. Se trabalha a meias com o dono da canoa, seu rendimento é mais baixo ainda. Por pior que seja - e a pesca é muito desvalorizada como atividade, pelo sacrifício que representa - é no entanto relativamente freqüente comprar ou ter um projeto de comprar um "barquinho" de segunda mão, " para se garantir nos tempos difíceis". Muitas vezes, é um negócio pesado para o comprador, que envolve longas prestações e que raramente se paga enquanto negócio, no sentido de uma rentabilidade satisfatória. Aqui, como em quase todas as atividades que exerce, o trabalhador marginal apenas se mantém nos limites da sobrevivência.

A coleta de caranguejos nos extensos mangues que margeiam o estuário é um recurso bastante usado nas épocas de desocupação, e é uma atividade freqüentemente atribuída aos menores, como atividade complementar. Como instrumento, precisa-se apenas de um balde e de "um bom golpe de vista". Em geral, o produto é vendido por dúzia, nas casas residenciais, ou então por balde, na feira e em alguns bares, ou mesmo na rua e nas estradas. Por dúzia, conseguem-se Cr$ 3,00 a Cr$ 4,00. De vez em quando, em lugares especiais do mangue, conseguem-se coletar ostras e mariscos, que valem mais. Em épocas particularmente difíceis, há depoimentos de que a família inteira vai coletar este produto e depois se dirige aos vários pontos da cidade para vendê-lo. De outro lado, na medida em que a constituição geográfica da região permite, há pessoas que vivem da coleta de produtos naturais das áreas onde ainda existe mato e frutos naturais. Um dos entrevistados havia montado uma vendinha na parte da frente do barraco onde morava, e vendia "tudo o que acho por aí. É assim: saio bem cedo, pego as bananas, palmitos, laranjas que dá num lugar que eu sei para dentro da ilha de Santo Amaro. Às vezes pego sobra de feira e das vendas do porto e aí de Itapema, que não estão ruins... É preciso só saber onde tem". Ele ganha pouco, pois "mesmo que quisesse, ninguém aqui tem dinheiro pra pagar". Ganha cerca de Cr$ 3,00 por dia, variando com o que achou e com a disponibilidade monetária das pessoas naquele dia.

Há também pessoas que descobriram, de uma forma ou de outra, alguns "protetores" nas residências de Santos e de São Vicente. Esses vão vender seu trabalho para qualquer serviço que arranjarem: limpar jardim, varrer calçadas, lavar carro; e quando não há nada para fazer, sempre se consegue "algum ajutório". É um serviço considerado bom, pois em geral as residências - e mesmo alguns bares ou locais que admitem serviços semelhantes - dão o almoço também. Mas é um serviço de difícil aceitação: às vezes anda-se o dia inteiro e não se consegue nada. O porto é outra fonte de algum dinheiro: não raro, vai-se para a área portuária e fica-se lá, "rodando e encontrando conhecidos, e sempre se arranja algum". Fazer ponto na cidade, como guardar carro ou mesmo mendicância, é mais difícil: os melhores pontos já têm dono, e se alguém quiser tomá-los, é ou por acordo ou por briga.

O trabalho feminino tem, relativamente, maiores alternativas, embora seja menos rendoso. Predomina o trabalho doméstico, que nem sempre é um bom emprego, porque os salários são baixos - entre Cr$ 80,00 e Cr$ 100,00 para quem trabalha por mês, e de Cr$ 5,00 a Cr$ 7,00 por dia. As mulheres que trabalhavam por dia freqüentemente tinham de dois a três dias de trabalho por semana, a maioria lavando e passando roupa exclusivamente. Em geral, as mulheres gostam desse trabalho e o valorizam especialmente se tiverem a sorte de ter uma "patroa boa", pois sempre é "um amparo, ouve as dificuldades e dá comida e roupa" embora seja difícil achar "patroa boa". Surpreendentemente, só quatro chefes de família opunham-se a que mulher trabalhasse fora - pelo contrário, valorizavam sua ajuda em casa. Ao que tudo indica, a urgência da sobrevivência faz cair o tão decantado padrão da divisão de papéis familiares. O serviço doméstico é considerado fácil: "Sempre fui doméstica, e não desgosto. É só saber lavar, passar e pôr um gosto na comida. Qualquer moça sabe isso, a senhora não sabe?"; "Já tentei outra coisa... mas cansa muito. Sei lavar e passar e fico nisso, tá bom..." Muitas vezes, a casa é sustentada exclusivamente pelo trabalho da mulher, como empregada doméstica. A outra profissão feminina freqüente na área é a de catadeira de café, nos Armazéns Gerais da área portuária. Esta ocupação é valorizada porque, de um lado, "não cansa, e o ambiente é bom. Trabalho numa mesa grande, ficam as mulheres de um lado e outro e o café vai passando... dá para ir conversando e ninguém tem disputa. De doméstica acho que dava mais, mas estou velha e é muita canseira, ainda mais agüentar patroa... no Armazém a gente fica sentada o dia inteiro". De outro lado, é um serviço irregular, pois quando não há café não há trabalho; o trabalhador dos Armazéns, avulso, não tem ponto nem horário e só trabalha quando há serviço. A média de renda obtida é de Cr$ 4,00 por dia.

As ocupações descritas constituem as únicas alternativas da população local, e representam o limite extremo permitido pela estrutura urbana do mercado de trabalho na Baixada. Esse mercado, no entanto, alarga as possibilidades de trabalho durante três meses por ano: a temporada de veraneio em Santos, São Vicente e Guarujá. É a grande época dos vendedores ambulantes, dos fotógrafos de praia, dos empregos nos bares e cafés, do chamamento para a venda de sorvetes e refrescos, da criação de outros "pontos" de guardar e lavar carros - e quando as prefeituras ou os serviços de assistência social não atrapalham, é a grande época também para a mendicância. Os produtos da pesca alcançam melhores preços, chama-se mais gente para os barcos e para a coleta nos mangues, há empregos mais bem remunerados para as domésticas. Mesmo quando acaba, a temporada deixa alguns rastros atrás de si: há construção de novas casas de veraneio, expandem-se os serviços urbanos, chamam-se pessoas para "abrir mato, levantar parede".

Finalmente, muitos dos entrevistados (cinco) eram aposentados, ou por tempo de serviço ou por invalidez - estes últimos, todos por acidentes de trabalho geralmente ocorridos no serviço de carga, deformadores da coluna vertebral. Vivem do INPS ou do Sindicato, com uma renda inferior ao salário mínimo (de 50 a 70% do valor desse salário). O comércio ambulante se fazia representar por duas pessoas apenas: uma delas dividia seu tempo entre a venda de bilhetes da Loteria Federal e uma representação de carnes de uma organização de artigos domésticos baratos, e a outra era fotógrafo ambulante de praia.

O "Levantamento socioeconômico cadastral do Sítio Pai Cará" encontrou, para a população ativa global da área (27,8% da população presente em 1968), 18,3% de desempregados e uma taxa de 27,9% de sobreposição de empregos. Por outro lado, a renda média familiar para a população global da área era de Cr$ 262,94, sendo Cr$ 158,86 provenientes de salário e Cr$ 103,08 de "outras rendas".17 17 O Levantamento... não define o que entende por "desemprego", e nessa medida o dado é de difícil utilização. Em todo o caso, deve estar se referindo às pessoas que não tinham vínculo empregatício formal. De qualquer forma, o dado é representativo. Desta forma, o próprio bairro operário por inteiro, onde se incluem 52,3% de empregos de turno fixo, contém não obstante uma alta taxa de instabilidade de participação na escala de ocupações oferecidas pelo mercado de trabalho local. Isto pode indicar que esta instabilidade é componente constitutivo das atividades e do crescimento econômico e urbano da Baixada, ou seja, que a ampliação de setores produtivos vai lado a lado com a incorporação instável da mão-de-obra.18 18 Segundo Maria da Conceição Tavares e José Serra, "... a incorporação e expulsão da mão-de-obra passam a ser duas tendências simultâneas e contraditórias do processo de expansão e modernização" do Brasil atual. Ver Tavares & Serra. Além da estagnação. In: Tavares & Serra. Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1972. Se tal tendência puder ser comprovada, é um fenômeno que estará sem dúvida muito longe da situação anômica ou mesmo economicamente irracional assinalada ou sugerida nos estudos sobre "marginalidade".

Uma análise das características das formas de ganhar a vida predominantes indica que não há desocupação aberta absoluta na área, embora o grau de desemprego seja grande.19 19 Por "desemprego" entendemos todas as pessoas que não estão ocupadas e "estão ativamente em busca de emprego". Singer, Paul. Força de trabalho e emprego no Brasil, 1920-1969. CEBRAP, São Paulo, 1971. Por "desocupação aberta" entende-se aqui todos os que estão ociosos ou ocupados em atividades individuais que, segundo Singer, não fariam parte da força de trabalho. Ou seja, existem formas intersticiais de ocupação que representam subsistência, pelas quais se vive efetivamente e que são permitidas pela estrutura econômica global da área em questão. Lança-se mão delas nos períodos de "intervalos" entre os serviços temporários regulares, e ambas as formas de atividade reforçam a esperança e a procura do emprego regular estável. Em segundo lugar, é de se notar que, excetuando as indústrias petroquímicas de Cubatão, todos os demais setores econômicos da Baixada permitem a presença do trabalho marginal e das formas intermediárias de subsistência. Basta lembrar que tais atividades distribuem-se pela área portuária, que permite um sem-número de biscates; pelo setor de serviços urbanos vários, que utilizam esta mão-de-obra para parte considerável de tarefas (ajudantes de tudo); o próprio comércio, que a "contrata" esporadicamente para tarefas múltiplas. Mesmo que alguns destes serviços sejam "desemprego disfarçado", não tendem a constituir unidades periféricas ou marginais do mercado, do ponto de vista de sua importância na estrutura de produção local. Dessa forma, se a teoria da marginalidade, que se apoia na setorialização econômica para indicar a importância de alguns setores tecnificados em detrimento de outros, indicar também a pouca importância econômica destes últimos, de modo a serem apenas importantes como absorvedores de mão-de-obra , então ela parece estar equivocada. Sem dúvida, as atividades marginais guardam uma relação direta e importante com a "heterogeneidade tecnológica"20 20 Expressão de Maria da Conceição Tavares e José Serra. op. cit. que diferencia os vários setores econômicos entre si e em si mesmos, do ponto de vista de sua produtividade. A absorção de empregos na Baixada, como se viu, expressa essa relação direta com o nível de tecnificação de cada ramo produtivo. Como assinala Goldenstein, "o pessoal requerido pelas indústrias de Cubatão é pouco numeroso, principalmente quando comparado com o capital investido e o valor da produção".21 21 Goldenstein, Léa. A industrialização da Baixada Santista: estudo de um centro industrial satélite. São Paulo. Instituto de Geografia da Universidade de São Paulo, 1972. Nesse caso, Cubatão, que representa na Baixada o "setor moderno" da indústria de transformação, repousa seu dinamismo na exploração mais intensa da força de trabalho já incorporada, excluindo com isso grande parte da mão-de-obra presente na área. Mas tudo isso não invalida a hipótese de que a mão-de-obra excluída deixe de ser rentável ao capital. Pelo contrário, existem pelo menos dois sentidos, conectados, em que pode representar um fator rentável ao capital, nesse contexto: primeiro, a extrema compressão da renda pode representar o baixo custo de reprodução da força de trabalho, que se torna significativo quando se pensa que os trabalhadores marginais são aproveitados, intermitentemente, em atividades urbanas necessárias à expansão econômica e urbana (principalmente construção civil, abertura de estradas e serviços urbanos vários), não se constituindo em força de trabalho "desprezada". A sua condição, de participação-exclusão, longe de representar o resultado de um desprezo econômico pela sua potencialidade produtiva, representa o resultado de uma política ao que tudo indica racionalmente feita do ponto de vista da acumulação. O que se tem é o seu grande aproveitamento como mão-de-obra braçal, trabalho barato, sustentador de parte da expansão econômica e urbana da área - direta e indiretamente. Não se trata apenas de atividades que "encobrem" a diminuição da taxa de absorção de empregos produtivos, no sentido de uma política deliberada de sustentação desta mão-de-obra. Representa também uma solução rentável pelo baixo custo do trabalho em produtos cuja natureza faz, de seu uso, uma boa alternativa. Em segundo lugar, se tal hipótese for correta, a remuneração baixíssima e intermitente desta força de trabalho representaria uma transferência de renda em favor dos setores médios e altos, tornando estes últimos os grupos sociais realizadores do consumo interno e significativo do sistema22 22 Tavares, Maria da Conceição & Serra, J. op. cit. - o que implica reconhecer que a marginalização é essencial para a concentração de renda, e para a expansão do sistema, nos moldes em que está sendo levada.23 23 Id. ibid.

Desse prisma, a mão-de-obra "sobrante" assume caráter funcional, exatamente na medida em que existe como excedente da mão-de-obra total já aproveitada diretamente na reprodução do capital. Ás formas de subsistência das pessoas estudadas indicam duas coisas fundamentais: primeiro, os custos ínfimos necessários à reprodução da força de trabalho enquanto fator de produção.24 24 Valemo-nos aqui da montagem feita por Luiz Pereira no artigo sobre "Populações marginais", de excertos de Marx sobre o trabalho nas formações capitalistas: "1. '...d o ponto de vista social, a classe operária (entendamos: assalariados) é ... como qualquer outro instrumento de trabalho, uma dependência do capital, cujo processo de reprodução implica, dentro de certos limites, o consumo individual dos trabalhadores.' (Marx. Le capital, trad. Paris, Eds. Sociales, 1960, LI. , t. 3, p. 16). 'A soma dos meios de subsistência (existência) necessária à produção da força de trabalho compreende (também) os meios de subsistência dos substitutos, isto é, dos filhos dos trabalhadores, a fim de que esta raça singular se perpertue no mercado. De outra parte, para modificar a natureza humana de modo a fazê-la adquirir aptidão, precisão e celeridade num gênero de trabalho determinado, ou seja, para dela fazer uma força de trabalho desenvolvida num sentido especial, é necessária uma certa educação que custa uma soma maior ou menor de equivalentes em mercadorias. Esta soma varia segundo o caráter mais ou menos complexo da força de trabalho. Os custos da educação, aliás ínfimos para a força de trabalho simples, estão compreendidos no total das mercadorias necessárias à produção da força de trabalho.' (Idem. L.I., t. 1, p. 174-5); 2. Se, 'enquanto valor, a força de trabalho representa o quantum de trabalho social (necessário) nela realizado (pelo consumo)', ou complementarmente, se 'o tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho consiste (... ) no tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência', o certo é que a 'força de trabalho encerra, ... do ponto de vista do valor, um elemento moral e histórico, o que a distingue das demais mercadorias. Todavia, para um país e época dados, a medida necessária dos meios de subsistência é também dada." (idem, L.I., t. 1, p. 173-4). Ver Pereira, Luiz. Populações marginais. In: Estudos sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo, Pioneira, 1971. p. 165-6. As atividades muito pouco produtivas e em certos casos fora da interferência direta do capital, que, em princípio, não gerariam valor e não constituiriam trabalho socialmente necessário, descobrir-se-iam a si mesmas com o sentido desta reprodução gratuita de um fator de produção. Em segundo lugar, a mão-de-obra, uma vez reproduzida e mantida enquanto força de trabalho, pode ser requisitada para participar de parte das obras de expansão econômica e urbana, onde passaria a participar do produto de forma plena; nestes períodos, sua exclusão e atipicidade desaparecem. O que resta desse movimento todo é o delineamento de um campo específico de existência, marcado pela pauperização, que subjetivamente se estrutura como participação-exclusão. Nessa medida, assume as características clássicas de um exército de reserva para a acumulação de capital de toda a área urbana, mesmo qüe não o seja especificamente para as atividades industriais de alta capitalização, em termos de rotação de mão-de-obra facilmente substituível.

3. Tensões e conflitos

A mão-de-obra marginal realiza-se a si mesma, como tipo humano sociologicamente caracterizável, dentro da expansão de um sistema produtivo já formado, e caracteriza-se por ser basicamente força de trabalho disponível, cuja participação no mercado de trabalho se dá pela oferta constante de sua venda, mas não incorporada estavelmente, em termos de exploração regular direta, no processo de produção. A disponibilidade e oferta constantes da força de trabalho, aproveitadas intermitentemente pelo sistema em áreas e épocas específicas de sua expansão, constituem os marcos da situação marginal, um campo de atuação vivenciado pela impossibilidade da passagem à efetivação de um outro estilo de vida.

A situação de participação-exclusão, pautada pela relativa sedimentação de um estilo de vida instável e pressionado a manter-se nos limites possíveis de existência social, revela-se claramente no tipo de inconsistência e tensões formuladas pelo trabalhador marginal, que, ao mesmo tempo que nega o seu estilo de vida, a ele está, não obstante, "adaptado". Isto é descoberto, em primeiro lugar, pela atitude assumida frente ao esgotamento objetivo da demanda de ocupações estáveis. O discurso do trabalhador marginal aponta para a apropriação efetiva dos lugares e das oportunidades de trabalho por outras pessoas, criando assim um outro tipo de trabalhador ao qual se opõe, seja pela falta de "sorte" ou pela falta de qualificação. Estes "outros" trabalhadores dividem, com o patrão, o papel de objeto principal das tensões crescentemente sentidas. A propriedade das oportunidades de trabalho marca as relações sociais entre todos os participantes - efetivos e potenciais - do mercado, gerando uma luta pela ocupação rendosa em um mercado onde o ser dono e proprietário do direito efetivo do trabalho chega a ser disputado violentamente. O antagonismo latente sentido pelo trabalhador marginal contra o operário estável encontra correspondência no forte preconceito pelo qual este se refere àquele: são "baianos", "maloqueiros", "fracos", "não sabem fazer nada", são "malandros" e "é preciso estar de olho". Seu sentido principal é a urgência que o trabalhador estável tem de se defender contra a redução do mercado de trabalho e de renda salarial, ameaçado em grande parte pela existência de pessoas que vendem trabalho a qualquer preço. É claro que esta disputa se circunscreve às ocupações passíveis de serem preenchidas por qualquer trabalho - em geral, trabalho simples, braçal e de baixa qualificação. O sistema de trabalho imposto pelos sindicatos do porto indica que acumulam suas funções de proteção e garantia do trabalhador a eles associado, também contra a utilização direta da mão-de-obra disponível. Veja-se, por exemplo, o cuidado tido na contagem de horas trabalhadas pelos "bagrinhos", representando pontos efetivos que os tornarão sócios do sindicato; a categorização do trabalho definida e controlada pelos donos reais do direito de trabalhar, conquistado duramente ao longo da história da constituição do porto. Um dos entrevistados, estivador, assim se expressava: "Claro que a situação às vezes se encrenca. Mas nós, que somos operários portuários, temos que ter jeito, tratar com paz e igualdade, como falou um professor que foi ao Sindicato falar pros da estiva, mês passado. Se não, prejudica o desenvolvimento. Eu tenho cultura e sei disso, tá certo? Sei os truques, não sou como estes aqui (os seus vizinhos). Nós pode fazer tudo isso, tudinho, parar: já viu um desenvolvimento sem porto? Somos a alavanca para a exportação. Como sei? Eu leio nas revistas e sei disso. Sou amigo do Delegado do Trabalho marítimo e leio as publicações todas, gosto de saber das grandezas do Brasil e de Santos. Não sou como estes daqui, estes são baianada, não sabem fazer nada... Mas a greve está proibida, a senhora sabe, a senhora faz estatística, então não pode fazer porque prejudica o Brasil. Não estamos precisados, agora não... os nordestinos tudo aí que a senhora viu, tudo muito ignorante, esses são gente que pega qualquer serviço e estão tudo louco pela estiva... precisa estar de olho, o Sindicato controla..." É constante a referência a esta mão-de-obra, mesmo que se saiba que ela não tem condições de ser aproveitada de imediato, e que, quando o for, será permitida pelo Sindicato. O que acontece na área do porto deve também acontecer nas outras áreas, embora não haja dados que permitam a afirmação. Há, no entanto, pistas para isso: "Na Ultrafértil... trabalhavam quatro grandes firmas empreiteiras (...) as quatro juntas chegaram a ter três mil homens trabalhando; os operários sem qualificação são contratados na própria obra, sem que se precise anunciar. Diariamente apresentam-se mais de 50 homens apesar de já se estar em fase final de obra. (...) O número de empregados fixos das companhias empreiteiras é mínimo, contratam e despedem segundo os serviços."25 25 Goldenstein, Léa. A industrialização da Baixada Santista, estudo de um centro industrial satélite, op. cit., p. 310-11.

A relativa "adaptação" do trabalhador marginal a este estado de coisas é a sua esperança - um dado variável mas sempre presente - de superar sua condição de venda intermitente de trabalho barato através do fator sorte, ou então de projetar aos filhos a sonhada aspiração de ser operário qualificado. E o dado que corporifica essa esperança, contraposta à sua consciência de expulsão, é o sucesso (relativo) da invasão dos terrenos que ocupam, e que para eles tem o significado de auto-afirmação: é o seu chão, conquistado e garantido por direito de fato numa ordem onde tudo o mais está fora do seu controle.

A formação do Sítio do Pai Cará, como se viu, deu-se em meio à verdadeira luta - nem sempre manifesta - pela posse dos seus terrenos, gerando tensões indisfarçáveis no que toca à efetiva permanência do pessoal invasor, e fazendo da regularização dos lotes o tema que sintetiza a condição marginal. No momento desta investigação, iniciava-se a implantação urbanística básica, que contava entre seus objetivos de execução prioritária a "regularização do domínio jurídico da área por parte do estado, possibilitando a subseqüente regularização da posse individual (Levantamento... p. 22), o que traria a perspectiva de regularização de 6 600 residências e um "acréscimo previsto nos serviços de arrecadação municipal" (Levantamento ... p. 23). Para os moradores da área que foram o objeto desta pesquisa,26 26 Estes moradores, no dizer dos técnicos, estavam fora da área a ser urbanizada (veja-se introdução desse trabalho). O fato de estarem fora não diminuía o seu temor de serem atingidos por algo que não podiam pagar. a intervenção era simplesmente uma ameaça, coisa de "má fé" e "politicagem, tem gente ganhando com isso, às custas de nós". Era constante no seu discurso o temor frente a uma possível expulsão da área, que simbolizava para alguns a completa expulsão do próprio direito de vida: "Cada lugar novo que nós morou acabou. Aqui foi primeiro no morro do Jabaquara, lá era bom, daí durou até o desabamento. Daí nós fomos morar na Areia Branca, um lugar que a prefeitura deu, daí um dia chegou a polícia e desmontou tudo, pondo todos os barracos embolados juntos na rua. Aqui é o que durou mais... já cansei de tanta transação. O marido está com serviço agora, porque tirar nós daqui? Quando foi lá no Jabaquara, o marido falou pra mim e eu pro marido: nós ficamos. Mas era pedra e terra caindo, um rolo... a água levou tudo, não deu pra salvar nada. Na Areia Branca, só não brigamos porque era polícia, eles são muito fortes. Eu daqui só vou pro cemitério, digo para eles"; "Eles não sabem da trabalheira toda... a profissão de sofredor não rende dinheiro, deviam saber"; "Somos tudo contra esse loteamento, preço absurdo pra morar... estou faz 11 anos aqui, desde oito ouço falar que o governo vai interferir e melhorar as coisas. Sempre fica na mesma. Agora dizem que tem que pagar tudo de novo, isso é que melhora? Tava nós melhor sem eles."

O clima de insegurança que esse assunto gera faz com que tudo o que eles têm de agressivo venha à tona, tornando a regularização dos lotes a preocupação política fundamental e assunto de discussão obrigatória. Em primeiro lugar, a tomada do terreno e a moradia efetiva já dão um direito fundamental. Em segundo lugar, a posse é garantida por recibos dos mais variados, contas pagas de luz, principalmente. Em terceiro lugar, os terrenos pertencem à Marinha, e portanto o governo não pode intervir. Estes são os argumentos utilizados secundariamente, pois o principal é um direito "moral" à posse. Nesse clima, não é de estranhar que o plano de urbanização recomende "uma mobilização das forças psíquicas", um aproveitamento dos "valores rurais" em termos do "alto espírito de colaboração da população, particularmente no que diz respeito ao entusiasmo pelo chamado mutirão", comprovado na experiência do IPESP; o plano preocupa-se especificamente em "assegurar a plena cooperação da população na implantação dos projetos específicos".27 27 Levantamento... p. 1 (29) a 1 (33). Capítulo: Resistências e potencialidades latentes na comunidade. A intervenção urbanística contava, no momento da pesquisa, com três assistentes sociais, um engenheiro e um advogado. E as condições específicas pelas quais lutaram são: "acanhados barracos de madeira, construídos sobre 'mourões', ao abrigo das inundações... apenas cerca de um quarto dessas habitações encontra-se em bom estado de conservação, e, dadas as características climáticas adversas e a tecnologia precária, raramente ultrapassam cinco anos de utilização (...) Destituída de melhoramentos públicos permanentes, dotada de um traçado urbano irracional, encontra-se a área parcialmente servida por precárias redes de água e luz (...) Inexiste rede de esgoto. O escoamento das águas servidas se faz por valas a céu aberto nas ruas...".28 28 Levantamento ... p. 1 (13) e 1 (14). O interessante de se notar é que foi a partir de uma invasão conjunta, e ainda o é nessa medida, que as pessoas começam a definir-se dentro de uma situação comum. O próprio Pai Cará por inteiro passa a ser definido como uma dinâmica própria, destacado das áreas vizinhas e contíguas por uma particularidade própria.

A permanência nos terrenos invadidos ultrapassa, portanto, o significado de ser um simples fator de moradia. Ela expressa a instabilidade existencial característica do tipo humano que nela força sua presença. No entanto, a esperança de estabilidade ainda está presente, nas frases como: "se fosse acabar com isso logo, uma legalização de uma vez por todas" - nessas condições seria sem dúvida bem recebida a intervenção. Na verdade, não estão contra a compra e venda como critério de acesso ao terreno, e sim contra o valor estipulado para ele, acima de suas posses e possibilidades imediatas. O que foi uma vitória perde-se no descortínio histórico que têm de si: a integração estável no sistema.

4. Migração e marginalidade

Do total dos indivíduos entrevistados, a maior parte era migrante, ou seja, não originária da Baixada Santista. Os nascidos na Baixada compunham apenas 20% do total de pessoas das famílias entrevistadas, não considerando as crianças até 15 anos, que faria esse número aumentar a 49% dos entrevistados. Os migrantes eram originários principalmente do Nordeste e, em menor grau, de Minas Gerais e Paraná. Como se vê, trata-se de uma composição freqüentemente assumida, em certos esquemas explicativos, como típica da situação de marginalidade, onde "a migração pode ser metodologicamente considerada como variável independente nos fenômenos de urbanização, formação e oferta de mão-de-obra industrial, criação de zonas urbanas marginais, decadência da aldeia rural e mudanças culturais na sociedade receptora".29 29 Margulis, Mário. Migración y marginaliãad en la socieãad argentina. Buenos Aires, Paidós, s.d. p. 11. O estudo do caso em questão mostra, entretanto, que esta ligação indissolúvel entre migração e marginalidade pode ter, em seus dois componentes, significação explicativa diversa do que a comumente atribuída. Para tanto, a exposição que se segue distingue os indivíduos entrevistados e sua história entre os que são originários da Baixada e os que são originários de outras localidades e regiões brasileiras. Dentre estes últimos, nove haviam nascido em um meio urbano com mais de 20 000 pessoas, sendo predominantes, portanto, os originários de áreas rurais.30 30 As famílias objeto desta investigação compreendiam ao todo 142 indivíduos. Foram entrevistados 39, que correspondiam a chefes de famílias ou responsáveis pela manutenção da unidade familiar. É somente a eles que os dados se referem. Sua distribuição, por origem, é a seguinte: originários da Baixada: 7; originários de regiões urbanas: 9; originários de regiões rurais: 23.

Havia sete indivíduos cuja situação original era a de participarem de famílias de pequenos proprietários autônomos rurais, e que persistiram nesta condição pelo menos até a idade adulta (21 anos). Todos eles tiveram, como primeira atividade, o trabalho em "roça própria", onde se plantava "alguma coisinha do necessário e para vender"31 31 Infelizmente, não se recolheram dados para conhecer o tipo de lavoura que estes indivíduos cultivavam, tanto para subsistir como para vender. na feira dos núcleos mais próximos. O produto da venda era gasto no armazém, comprando o que desse. Era uma produção familiar, todos participavam "capinando de manhã até de noite". Por várias razões, começa a não dar certo: a seca, primeiro, e o comércio do produto, que "acabava não rendendo nada". Ao longo do processo, começaram a exercer atividades a princípio subsidiárias, mas que acabaram sendo ao final as principais: "Meu pai tinha dois lotes de burros e um pasto grande. Ia de manhã pelos sítios adentro e voltava com a produção que ia vender na cidade. Isto porque a roça não dava mais" (Jacobina, Bahia). Mas o papel de intermediário é uma exceção: a atividade "extra" principal que começou a ser gradativamente predominante foi a de "trabalho por dia na terra dos outros" - de onde ao trabalho volante como decorrência necessária. Muito em breve, estes trabalhadores venderam ("perderam") a roça e acabaram transferindose para outras áreas agrícolas com maiores possibilidades, aí já transformados em trabalhadores assalariados agrícolas.

Este movimento, que resume o fundamental de histórias empiricamente diferentes, indica fatores importantes apreendidos pela consciência do trabalhador. Não só a seca (Sergipe, Bahia) , mas principalmente a falta de um mercado onde seus produtos pudessem ser bem vendidos é, na verdade, o principal fator apontado para a desistência da roça própria. Quando falam dessa época de suas vidas, a pauperização que se apodera de todos na região é a referência constante que organiza o depoimento: havia mais gente pobre do que gente que podia comprar. As frutas estragavam-se ao sol. A comida começou a ficar escassa e não dava para comprar até o essencial. O lote de burros não compensava. Faziam plantação nova e perdiam tudo. Dessa forma, aos poucos rompia-se o universo de sobrevivência possível, que se aproximava cada vez mais de uma auto-subsistência não desejada e nem possível objetivamente, na medida em que havia o forte apelo de um mercado já constituído em moldes urbanos, nas cidades próximas. Para estes pequenos proprietários, a transição para o trabalho assalariado agrícola e posteriormente urbano se deu "naturalmente", no sentido de ser uma transição determinada por dois fatores: uma condição insustentável de mercado para a sua produção como pequenos proprietários e a efetiva orientação para um estilo de vida urbano. No primeiro caso, é lícito dizer o que foi dito para a outra situação de trabalho independente: "o que era fonte de fartura transforma-se em fonte de miséria. O trabalho independente não é mais do que proletarização virtual".32 32 Martins, José de Souza. A comunidade na sociedade de classes, estudo sociológico sobre o imigrante italiano e seus descendentes no subúrbio de São Paulo (Núcleo colonial de São Caetano). Tese de doutoramento apresentada ao Dept.º de Ciências Sociais (sociologia) da Faculdade de Filosofia, Letras e ciências Humanas da USP. p. 11. No segundo caso, trata-se da "socialização antecipada" dos indivíduos para a "... generalização e consolidação da vida urbana como padrão de referência positivo".33 33 Pereira, Luiz. urbanização e industrialização. In: Trabalho e desenvolvimento no Brasil, p. 114. Essa reorientação, no caso em questão, tem um sentido a mais: tal como colocado no discurso dos indivíduos, a passagem para o trabalho assalariado foi feita por uma perspectiva de melhoria de vida, não havendo nenhuma referência a qualquer dificuldade de adaptação ou assimilação ao que deveria ser um novo estilo de vida e consciência: "Todos falavam que era melhor, que tinha mais facilidade... eu saí de Pernambuco e fui direto pro Norte do Paraná, que tinha uns parentes que se arrumaram trabalhando lá e ganhando bem, no café"; "Vendemos tudo e fomos embora, pra Minas, bater algodão... diziam que pagavam bem, que podia comprar as coisas." A falta dessa referência pode indicar que, desde o início, esses pequenos proprietários já descortinavam, sem maiores dificuldades, o papel de trabalhador assalariado como um horizonte histórico provável, conformando-se antecipadamente com a impossibilidade de sobreviver como proprietários-trabalhadores autônomos. Esse parece ser o sentido de sua "socialização antecipada"; mais do que aos padrões estritos da vida urbana, representa a adesão ao estilo de vida suposto no papel de trabalhador assalariado, como a via possível para â efetivação de um modo de vida mais compensador: "Sentir ir embora? A gente sente, já conhece tudo... mas a roça não dava mesmo, eu já sabia que era uma vida atrasada antes mesmo de sair..."; "Não desclassifico minha terra, de jeito nenhum, lá era melhor de tudo... mas não na roça, que tava cada dia pior... é uma questão de meios, não de gente e de vizinhos." A passagem que todos (menos um) fizeram pelo trabalho assalariado agrícola antes de tentarem a cidade representa a perseguição desta possibilidade. Nesse sentido, a migração não representou, aqui, neste caso,-uma transição entre mundos sociais opostos e inconciliáveis, no sentido de uma identificação subjetiva que se desintegra frente a imposição de um outro papel histórico. Sua auto-aceitação como trabalhador assalariado era um projeto antecipado e reforçado continuadamente pelas tendências objetivas do mercado.

Desde o momento em que se constituíram efetivamente como trabalhadores agrícolas assalariados, podem ser reunidos aos 16 indivíduos que inicialmente já estavam nesta condição. O que une suas histórias é a tentativa, comum a todos, de terem experimentado o trabalho agrícola em regiões diferentes, e a conseqüente rejeição, aberta e declarada, das relações de trabalho vividas e vigentes no mundo rural. É por aí que apreendem a diferenciação entre campo e cidade: esta última oferece combinações mais amplas para se negociar a venda de trabalho, e a parte de sua vida que se passou no mundo rural é pautada pelo desencanto progressivo dele como um mundo possível de existência social. Por um lado, esse desencanto se marca pela "alteração da estrutura das necessidades materiais e não materiais, implicando um quantum maior de consumo, expressa pela aspiração de uma renda-salário maior".34 34 Pereira, Luiz. op. cit. p. 115-6. De outro lado, implica a gradativa compreensão dos seus direitos por este estilo de vida: "... às vezes eu penso que pedra que muda muito não cria limo... mas também não se sabe nada que a vida pode dar, tem que arriscar, ter um lugar na vida, toda a gente tem direito de comer, de morar, de trabalhar, né? o errado é morrer de miséria" - e o que o mundo rural representa é essa miséria aberta, a negação completa da possibilidade de efetivação do estilo de vida superior. "Na roça, a gente morre de fome, mesmo tendo fartura. Trabalho o ano inteiro pro dono e mesmo assim fica devendo tanto, que às vezes tem até que fugir de noite por causa da situação"; "Negócio de meia? Pior ainda, só se trabalha e depois não recebe"; "Já viu uma plantação de cacau, das boas? É bonito, muito movimento, corre gente assim pra trabalhar... mas tudo miserento, aquilo é ganhar não, é só morrer de fome"; "Já andei por aí que nem Deus conta... do Sergipe fui a Minas, daí Paraná, daí pra Ribeirão, daí para Minas de novo, até no estado fluminense já tive... tudo em fazenda grande, trabalho onde o caminhão levava... tudo igual, nem conto que é história ruim"; "Roça não gosto nem de pensar, não é trabalho, é a carestia... o pior era o mês de maio, da plantação, o mês da fome pra tudo... aquilo não tem jeito, só pro patrão dono de fazenda grande."

A transição para o trabalho assalariado urbano opera-se, dessa forma, novamente sem grandes rupturas. Em geral, ela se deu através da passagem por pequenos centros urbanos regionais por meio do trabalho esporádico. O trabalha assalariado urbano era feito, então, concomitantemente, com o trabalho rural: dependia de onde estivesse a oferta. O serviço não agrícola constituía, em sua maioria, empreitadas de construção civil e aberturas de estradas e ruas; para as mulheres, empregos domésticos. Na medida em que este serviço se mostrava crescentemente satisfatório em relação ao trabalho rural, e que subiam as referências ao consumo, é que surgiam as aspirações de um emprego fixo no setor industrial, ou seja, a aspiração de ser operário, principalmente operário "superior". É nesse momento que tentam a cidade grande; a imagem desta é a imagem do trabalho regular como operário, do consumo permitido por um bom salário, pelas fontes de crédito e de uma "casa própria". A forma peculiar desta migração transformou-os durante algum tempo, em famílias do tipo "misto": alguns membros participavam da situação de assalariados urbanos e outros de assalariados rurais. Mas não se sustentaram durante muito tempo nesta situação. Logo apareciam, à sua consciência, as vantagens do trabalho urbano: a possibilidade de regularização e a estabilidade de um salário certo. O movimento migratório tende, então, para as cidades que possam representar uma fonte de ocupação rentável nestes moldes, preferencialmente onde já tinham alguma referência de pessoas próximas que representem um apoio solidário com suas expectativas, referência esta que condiciona as decisões de migrar e imprime a direção geográfica da migração. Esta rede de relações informais é fundamental no movimento migratório, presente em todos os casos.

Para as mulheres, deixar a família na roça e ir para a casa de parentes, ficando lá provisoriamente até se empregarem, foi, em certos casos, o primeiro passo para trazer o resto da família. O emprego que mais surge aí é o de empregada doméstica, morando com os patrões. A prostituição surge como a outra ocupação possível, e também encaminhada por essas relações informais. Nos dois casos, elas acabam engajando-se dentro de um "sistema" próprio e daí em diante não saem destas ocupações. Secundariamente elas se encaminham para o trabalho assalariado formalizado, mesmo que a estrutura das cidades o permitisse. Há apenas um caso onde a transição do meio rural à cidade representou diretamente a incorporação como operária, emprego abandonado apenas por uma nova migração.

Dois casos serão contados a título de explicitação: no primeiro, uma família de Aldeia, em Sergipe, emigra para uma cidade maior, no mesmo estado. Não encontrando ocupação alguma, passam a viver do mangue, colhendo ostras e mariscos vendidos na feira por lata. Eram três pessoas trabalhando e o pai, entrementes, arranjava bicos de carregador na cidade, trabalhando também "num bananal grande". Os parentes também moravam lá e todos se ajudavam, "tudo do mesmo sangue na pobreza". De tempos em tempos, rodavam pelas cidades próximas onde tinham conhecidos, "às vezes até Aracaju, não era longe". Ficaram assim nada menos do que 15 anos (possivelmente de 1945 a 1960). Aí começou a não ser mais possível, os filhos crescidos não encontravam bom trabalho. Resolveram então ir a Santos, onde a mãe já tinha uma irmã. Primeiro foi a filha mais velha, empregou-se como doméstica e mandou chamar os outros. Por algum tempo, o salário certo foi só o das mulheres. Os homens conseguiam empreitadas piores ou melhores. Quando parecia melhorar, acabava um serviço e não se achava outro - e todos se voltavam novamente para o mangue. Quando finalmente construíram um lugar para morar, num dos morros de Santos, um filho quebrou a espinha por carregar excesso de peso; recebeu indenização, mas ficou inutilizado. Desalojados do morro, foram ao Pai Cará e se instalaram novamente por sobre o mangue. A mãe arranjou emprego de catadeira de café, nos Armazéns Gerais, os filhos casaram e continuaram em empreitadas, e um deles está servindo o Exército - "este está bem, tudo garantido". São unânimes em afirmar que agora é o melhor que já tiveram: não querem mais nada "nem com a terra nem com a lama". A cidade representa para eles, portanto, uma forma menos cruel de exclusão. Outro caso é de um indivíduo que desde os 10 anos trabalhava na cana, em Pernambuco, onde ficou até os 23 anos. Morava com sua família "num sítio do engenho, terra do patrão". Em 1955, ele resolveu ir embora, para melhorar de vida. Durante um ano, mais ou menos, veio descendo até encontrar uns parentes que moravam em Londrina, norte do Paraná. "No caminho, tive muitos ofícios, o que dava, aprendi a fazer tudo." Em Londrina, empregouse numa firma empreiteira, como pedreiro. Conseguiu carteira de trabalho e estava bem, até que a firma o despediu. "Fui posto por engano na lista dos mais velhos." Com o dinheiro que sobrou, comprou um carrinho de pipoca; não deu certo. De Londrina foi a Maringá, ser servente de bar, onde trabalhava 12 horas por dia e "ganhava salário". Era muito sacrifício, e então veio para Santos com um amigo, que lhe assegurou trabalho fácil. Realmente conseguiu, como servente de pedreiro numa firma, onde ficou quatro anos, morando em Santos, numa casinha alugada. Saiu para um emprego melhor, o de empacotador num moinho, onde ficou mais quatro anos; depois o moinho faliu. Estava com 41 anos, não conseguia mais emprego; teve de sair da casa alugada, foi para o Pai Cará. Hoje faz de tudo, desde serviço de pintura até "abrir mato para os postes da eletricidade". Diz: "Não me espanto mais de nada, sei a maneira dessa gente", "não tem jeito mesmo", "o mundo é assim", mas tem alguma esperança ainda de arrumar a vida. A roça, nunca mais pensa em voltar.

Com maior ou menor variação, a história desses indivíduos demonstra que o sentido da migração, qualquer que seja a direção que se dê a ele, representa a procura de alternativas melhores de vida contidas na condição geral de trabalho assalariado, e desde o início representa a afirmação desse papel um ajustamento preexistente à migração e inserido nas representações integradoras requeridas para a reprodução do sistema. A motivação maior, expressa pela efetivação de um estilo de vida mais alto, configura a alienação típica constitutiva do trabalho como mercadoria, a procura de uma "reatualização superior da alienação capitalista nuclear do trabalhador... a afirmação, pelos agentes do trabalho, de um valor maior para a mercadoria força de trabalho e a busca, por eles, dos meios de realização desse valor maior".35 35 Pereira, Luiz. Trabalho e desenvolvimento, p. 128 (grifos meus). A mobilidade ocupacional, representada exclusivamente pelo aprendizado de novas funções "urbanas", quase não é citada em seu discurso e não representa dificuldade maior, desde que tais funções sejam circunscritas ao trabalho manual, como efetivamente o foram para todos os entrevistados migrantes: as ocupações do "baixo" operariado, concentrados nos setores de construção civil, serviços urbanos e trabalho manual no comércio ou indústrias. Nesse sentido, inexiste um processo de ressocialização que se configure claramente pelo objeto de trabalho.

Entretanto, existe sem dúvida uma modificação significativa ao longo deste processo de migração, que parece representar uma ressocialização fundamental - em termos da constituição tendencial de algo semelhante a um "proletariado marginal", cuja possibilidade de existência concreta é dada na medida em que o processo de participação-exclusão, mantido constante ao longo da existência dos sujeitos desta investigação, possa compor um dos traços fundamentais do processo de desenvolvimento, ou seja, na medida em que possa representar uma configuração histórica do fator trabalho. Essa ressocialização é em parte fruto da experiência migratória, que no caso em questão culminou com o apego a um lugar possível de sobrevivência,36 36 Possível porque uma cidade "com funções eminentemente comerciais tem uma maior capacidade de oferecer condições de subemprego que centros fundamentalmente industriais. Quanto ao mais, facilidades de pesca e coleta de frutas, clima ameno, etc. são fatores que multiplicam as possibilidades de sobrevivência local daqueles sem colocação produtiva de caráter permanente". Castro, Antônio. Sete ensaios sobre a economia brasileira, p. 178. no sentido de oferecer acomodação a uma forma de vida marcada pela exclusão intermitente. O que o processo de migração parece ter deixado claro a esses trabalhadores é a noção de fluidez dos liames que os prendem, a si e ao seu trabalho, ao sistema constituído. Em outras palavras, os agentes assalariados, pressionados a se manterem numa inserção instável no sistema, desenvolvem uma forma específica de viver as relações sociais dadas: forma-se neles uma consciência da própria exclusão, orientadora e ordenadora da própria experiência e constitutiva de seu discurso. Embora não seja produto exclusivo da experiência migratória, a consciência da exclusão tem nela um de seus componentes principais. Como todo e qualquer processo de migração, o deles contém também um duplo aspecto fundamental: "... enquanto mobilidade e remanejamento da força de trabalho no mercado... nível da questão em que o migrante cede à condição de objeto, uma vez que a origem e a direção do movimento não caem sob o seu domínio; e enquanto a migração também é um movimento social, dado que subjetivamente tem sentido como preservação ou rejeição de um tipo de vida, como conservação ou inovação. É justamente o conteúdo da migração que permite destacá-la... como transição entre uma etapa e outra da história ou no âmbito de uma mesma etapa".37 37 Martins, José de Souza. A comunidade na sociedade de classes, p. 13-4. Se este for o caso, a ressocialização dada no processo de migração representou uma relativa adaptação à condição marginal, ao mesmo tempo que a constituiu como forma específica de existência social.

Isto pode ser pensado também pela ordenação do discurso pelo qual este trabalhador se explica, que gira sempre em torno do presente. O mundo do trabalhador marginal repousa invariavelmente no imediato, em torno do cotidiano, e se solidifica em volta da sobrevivência, diariamente renovada como problema. No fundo, o presente representa a explicitação de todo o processo de exclusão, fundamentando o preconceito, a dominação, e classificação que lhe é atribuída na ordem social e o fechamento das alternativas diferenciais de vida. É através da experiência dada no presente que ele ordena o passado e avalia o seu futuro.

A comparação com os trabalhadores assalariados não migrantes, mas que partilham com os migrantes a situação de instabilidade e insuficiência na área em questão, é importante para avaliar o peso da migração na formação de uma consciência "adaptada" à situação de participação-exclusão - ou seja, na formação de um universo simbólico marginal. Os quatro indivíduos presentes nessa situação38 38 São sete ao todo, mas três não podem ser categorizados como trabalhadores marginais. testemunhavam um processo de pauperização formulado através de sua experiência de trabalho dentro do âmbito da cidade. Seus pais trabalhavam na área do porto ou nos serviços urbanos. Eles começaram a trabalhar por volta de 13 anos, em geral nos bares ou no pequeno comércio, ajudando na limpeza ou em alguns serviços de manutenção. Para os homens, a opção de trabalho foi principalmente o porto, onde por várias razões não conseguiram vincular-se como sócios efetivos de algum sindicato nem como empregados regulares nas Docas. Engajar-se na Marinha foi a outra opção, havendo referências de que era um projeto a longo prazo. Mas de uma ou outra forma acabaram pedindo baixa, tentando posteriormente empregar-se nas fábricas de Cubatão (Cosipa, principalmente), de onde saíram por causa de cortes do pessoal. Hoje se voltam novamente para o porto, como "bagrinhos" candidatos a sócio; no intervalo, trabalham em empreitadas várias e não deixam de procurar constantemente algum emprego na área industrial. Para as mulheres, é comum ter o dado de se empregarem como domésticas desde 14 anos, vinculando-se às famílias empregadoras em moldes paternalistas. Posteriormente, ou continuam no serviço de doméstica ou aprendem costura, de que lançam mão como complementação da renda. Um desses casos é de um indivíduo que começou a trabalhar aos 14 anos como ajudante de ensacador de um moinho. Posteriormente trabalhou como ajudante de limpeza num bar, até os 18 anos, quando se engajou na Marinha como grumete. Pretendia ser marítimo embarcado, mas pediu baixa para ir trabalhar na Prefeitura de Guarujá, como ajudante de caminhão. Foi a melhor época de sua vida, construiu uma casinha em Itapema e sentia-se seguro. Mas houve mudança de prefeito, e todos foram substituídos. Sem uma ocupação que lhe parecesse segura, resolveu tentar Santo André, onde foi estagiar em uma fábrica. Ficou só três meses, porque não passou nos testes de qualificação. Com medo da vida em São Paulo, voltou para Santos, onde se associou a um amigo num barco, para pescar. Hoje trabalha associado a um irmão, como fotógrafo de rua. Ambos trabalham junto com o dono da máquina, que fica com metade da renda; a outra metade é repartida entre os dois. Como é um serviço que depende muito de temporada, continua a pescar nos intervalos; entrementes, há um ano espera um emprego nas Docas. Apesar de haver certas vantagens iniciais, em relação aos migrantes, especialmente um maior conhecimento prático do mercado de trabalho e também um grau de escolaridade melhor, o que representa uma margem de movimentação mais ampla, a significação de sua experiência é a mesma e o sentido da história contada é também captado pela ótica de um presente que se deteriora e impõe, ainda que de modo difuso, um novo estilo de vida.

O que precede permite concluir (conservando estas conclusões um caráter hipotético em relação ao objeto pesquisado) que: em primeiro lugar, o caráter excludente do universo rural, revelado nas histórias de vida expostas e também afirmado em vários estudos sociológicos e econômicos,39 39 Não ficou discutida aqui a relação entre agricultura e expulsão de mão-de-obra, por não cair diretamente nos limites deste trabalho. Em todo caso, a questão parece estar relacionada com as regiões cujo mercado de abastecimento interno entra em crise. Se a interpretação de Antônio Castro - de que a agricultura expulsa mão-de-obra porque não se expande mais do que o requerido pelo setor industrial, este último o pólo dominante da economia que condiciona o desempenho dos demais setores - (ver Castro, A. op. cit. especialmente parte 2 e 3) estiver correta, nesses termos, podemos colocar a hipótese de que o pouco desenvolvimento de certas regiões agrícolas e a pauperização que acarreta explicaria a migração dos indivíduos com o custo que a cidade paga pela sua dominação. Ao se tornarem um "problema social", a cidade tenta incorporá-los institucionalmente no seu sistema específico de estratificação e participação, propondo resolver o problema pela incorporação marginal institucionalizada. tende a reproduzir-se no universo urbano, mantendo seu caráter fundamental de remanejamento de força de trabalho no mercado. Desse ponto de vista, a migração não tem o significado do encontro entre dois mundos diversos, assim experimentados pelos sujeitos. Sem dúvida existem diferenças marcantes, no plano dos acontecimentos da vida cotidiana: a forma de morar, de trabalhar, de relacionar-se deve ser evidentemente diversa. Mas, do ponto de vista aqui adotado, é a experiência da constituição e recriação de uma situação fundamental, a da constituição de um campo próprio de existência social, marcado pela exclusão intermitente como forma de participação. Não é por acaso que os sujeitos entrevistados apontam para a vivência das relações de trabalho como sendo "a mesma coisa". Em segundo lugar, podem-se perceber os limites da própria noção deste universo marginal. Se entendido como a constituição de um modo específico de inserção do trabalho assalariado - participação-exclusáo - marcado pela renda-salário abaixo do mínimo e pela não-inserção em um emprego produtivo de caráter permanente, tal universo existe subjetiva e objetivamente como uma configuração própria ao momento histórico: de um lado, como decorrência necessária aos dilemas próprios de uma política econômica assumida dentro dos marcos da dependência, que assim condiciona o remanejamento da força de trabalho para a rentabilidade do capital. De outro lado, como formação em curso de um tipo humano acuado entre alternativas que representam a sua constituição no "limite possível da existência ou da sobrevivência na ordem social subdesenvolvida",40 um campo próprio que em sua persistência se afirma como componente nas relações de dominação vigentes. Sob qualquer outro aspecto, o conceito de marginalidade representa a transfiguração do caráter da necessidade deste remanejamento em um estado senão anômico, pelo menos lateral aos interesses do sistema - um "problema social". Deste prisma, o conceito de marginalidade, se não é abertamente ideológico, é pelo menos equivocado, pois não há nada que se lhe assemelhe na realidade concreta. No caso em questão, pode-se perceber a relação de importância da existência desta mão-de-obra em dois sentidos: o valor pago ao seu trabalho, no tipo de atividade exercida, acarreta uma pauperização que pode representar uma redistribuição de renda (transferência) em favor dos grupos situados acima; e o fato de poder representar um exército-de-reserva, na concepção marxista do conceito. Isto significa que, do prisma do sistema, esses trabalhadores estariam numa mesma escala de exploração progressiva que caracteriza o proletariado no momento histórico atual.41 41 Segundo Léa Goldenstein, "A indústria de Cubatão é conhecida pelo seu nível salarial, dos mais elevados de São Paulo e portanto do País (... ) Esse salário é tido como privilegiado e, no entanto, em se tratando de indústrias altamente equipadas e de grande produtividade, a despesa com a mão-de-obra, pouco numerosa no conjunto, constitui uma pequena parcela no custo do produto. Aliás, tem-se mantido bastante constante a participação da mão-de-obra, nos custos gerais da produção" (op. cit. p. 298). Sua peculiaridade é em relação ao grau e à forma pelos quais se faz a exploração e o uso deles como força de trabalho. A metamorfose operada pelo conceito de marginalidade - com exceção do de participação-exclusão - é equivocada em duplo sentido: primeiro, apoia-se na idéia de uma "conseqüência não desejada" pela política econômica do desenvolvimento. Nesse caso, é um problema social passível de correção - pela educação ou pela qualificação do trabalho, principalmente - ou então é assumida como um dado estrutural, no sentido de representar uma crescente e irreversível expulsão de uma parcela de mão-de-obra, sobrante em relação aos requisitos do capital e em nada lhe servindo, na medida em que substituída pela utilização intensiva de tecnologia. Estas duas hipóteses parecem não se sustentar no caso estudado. O que está mais próximo é que o surgimento da situação marginal, que recobre parte da mão-de-obra operária, representa a introdução de elementos novos na sustentação da continuidade de um mesmo estado de coisas, recompondo a mão-de-obra segundo um aproveitamento racional à configuração histórica do capital - pelo seu confinamento a determinadas formas de exploração e a uma conseqüente baixa participação nas relações de distribuição. Da mesma forma, não se poderia dizer que os ramos produtivos nos quais se concentra sejam marginais, mas sim, pelo menos no caso em questão, compõem uma forma específica de exploração social que dá vida ao trabalhador marginal - é a via pela qual esta situação é gerada.

O universo de representações simbólicas, contido no discurso do trabalhador marginal indica estes componentes que, rebatidos ao nível objetivo, apontam para estas relações. Seu caráter é, portanto, de hipóteses consistentes e referidas unicamente ao caso concreto considerado. Decorre dessas hipóteses, no entanto, a proposição de uma abordagem que permite destacar os fatores históricos que dão o significado social concreto à existência de uma mão-de-obra marginal ao conjunto de relações internas que dinamizam e particularizam as formações econômicas e sociais periféricas. Por um lado, a situação marginal está referida a uma forma de existência social singular do trabalho assalariado . Tem a ver, portanto, com a direção assumida pelo processo de realização das formações capitalistas periféricas; o que significa que se inscreve nas transformações e descontinuidades que esse processo assume na forma de organização de seus recursos internos, por sua vez determinados pela dependência externa às sociedades capitalistas avançadas e à divisão internacional do trabalho. Por outro lado, a situação de dependência aumenta ou diminui a margem de movimentação para a realização interna do sistema, ocasionando o remanejamento dos seus fatores de produção e elaborando a cada momento uma constelação singular de relações sociais de dominação. É aí que a "exclusão" da mão-de-obra pode representar um fato significativo: na forma peculiar de exploração destes trabalhadores estaria a reprodução "barata" da força de trabalho como mercadoria, o seu uso em atividades necessárias à produção (embora não diretamente produtivas) e a formação de um papel "ajustado" à concentração de renda que parece tipificar a estratégia de crescimento atual, na sociedade brasileira.

  • 2 Foracchi, Marialice M. Relatório final da pesquisa sobre As condições sociais da mobilização da força de trabalho: algumas características do subemprego urbano, apresentado à FAPESP, jan. 1972, mimeogr.
  • 3 Marx, Karl. Trabalho assalariado e capital. Rio de Janeiro, Ed. Vitória, 1963, p. 24.
  • 5 Ver Pereira, Luiz. Situação operária. Trabalho e desenvolvimento no Brasil, cap. 4.
  • 9 O trabalho de Plantec-Huper anotou o seguinte, sobre as expectativas em relação ao trabalho: "Estes dados mostram que (... ) preferem decididamente engajar-se como mão-de-obra operária... O total dos nossos entrevistados manifestou-se desinteressado por um emprego de escritório (0%!), o que não é de admirar ante a consciência que têm de que não estão intelectualmente preparados para exercer funções de empregados de escritório, dentro de uma perspectiva razoável de remuneração... Não resta dúvida de que a consciência que têm do seu despreparo intelectual é que os leva a essa posição..." Plantec-Huper. Levantamento socioeconômieo e cadastral do sítio Pai Cará. São Paulo, s.d.
  • 13 Esta situação não é exclusividade da Baixada Santista. Como se viu, a divisão do mercado de trabalho e, conseqüentemente, da produção econômica em duas estruturas diversas, coexistentes e relacionadas, é comum a vários trabalhos que tentam explicar a marginalidade. Ver, por exemplo, Quijamo, Aníbal. Polo marginal de economia y mano de obra marginada. mimeogr.
  • 14 Esta expressão é retirada de Machado da Silva, L.A. Mercados metropolitanos de trabalho manual e marginalidade. Tese de mestrado apresentada no programa de pós-graduação em Antropologia Social da UFRJ, maio 1971. mimeogr.
  • 19 Por "desemprego" entendemos todas as pessoas que não estão ocupadas e "estão ativamente em busca de emprego". Singer, Paul. Força de trabalho e emprego no Brasil, 1920-1969. CEBRAP, São Paulo, 1971.
  • 21 Goldenstein, Léa. A industrialização da Baixada Santista: estudo de um centro industrial satélite. São Paulo. Instituto de Geografia da Universidade de São Paulo, 1972.
  • 29 Margulis, Mário. Migración y marginaliãad en la socieãad argentina. Buenos Aires, Paidós, s.d. p. 11.
  • 32 Martins, José de Souza. A comunidade na sociedade de classes, estudo sociológico sobre o imigrante italiano e seus descendentes no subúrbio de São Paulo (Núcleo colonial de São Caetano). Tese de doutoramento apresentada ao Dept.ş de Ciências Sociais (sociologia) da Faculdade de Filosofia, Letras e ciências Humanas da USP. p. 11.
  • 35 Pereira, Luiz. Trabalho e desenvolvimento, p. 128 (grifos meus).
  • 36 Possível porque uma cidade "com funções eminentemente comerciais tem uma maior capacidade de oferecer condições de subemprego que centros fundamentalmente industriais. Quanto ao mais, facilidades de pesca e coleta de frutas, clima ameno, etc. são fatores que multiplicam as possibilidades de sobrevivência local daqueles sem colocação produtiva de caráter permanente". Castro, Antônio. Sete ensaios sobre a economia brasileira, p. 178.
  • 37 Martins, José de Souza. A comunidade na sociedade de classes, p. 13-4.
  • 40 Foracchi, Marialice M. Relatório ... p. 6.
  • *
    Este artigo é uma parte modificada de um trabalho mais amplo, apresentado como dissertação de mestrado ao Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em dezembro de 1972, sobre o tema
    Desenvolvimento e marginalidade.
  • 1
    Pereira, Luiz. Populações marginais. In
    Estudos sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo, Pioneira, 1971.
  • 2
    Foracchi, Marialice M. Relatório final da pesquisa sobre As condições sociais da mobilização da força de trabalho: algumas características do subemprego urbano, apresentado à FAPESP, jan. 1972, mimeogr.
  • 3
    Marx, Karl.
    Trabalho assalariado e capital. Rio de Janeiro, Ed. Vitória, 1963, p. 24.
  • 4
    Nesse sentido, suas referências são as mesmas que as do proletariado em geral. Cf. Pereira, Luiz.
    Tra-balho e desenvolvimento no Brasil. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1965; e Rodrigues, Leôncio Martins.
    Industrialização e atitudes operárias. São Paulo, Editora Brasiliense, 1970.
  • 5
    Ver Pereira, Luiz. Situação operária.
    Trabalho e desenvolvimento no Brasil, cap. 4.
  • 6
    Marx, Karl.
    op. cit. p. 45.
  • 7
    Este mesmo indivíduo considerou o investigador como uma pessoa que não trabalhava: "professor não é trabalho, tanto que só tem mulher nessa profissão".
  • 8
    As três pessoas entrevistadas que tinham uma renda acima da média local (estivadores, os quais não foram considerados marginais) aspiravam, para seus filhos, as profissões de classe média: médico e funcionário público. Os demais tinham como referência o operário industrial.
  • 9
    O trabalho de Plantec-Huper anotou o seguinte, sobre as expectativas em relação ao trabalho: "Estes dados mostram que (... ) preferem decididamente engajar-se como mão-de-obra operária... O total dos nossos entrevistados manifestou-se desinteressado por um emprego de escritório (0%!), o que não é de admirar ante a consciência que têm de que não estão intelectualmente preparados para exercer funções de empregados de escritório, dentro de uma perspectiva razoável de remuneração... Não resta dúvida de que a consciência que têm do seu despreparo intelectual é que os leva a essa posição..." Plantec-Huper.
    Levantamento socioeconômieo e cadastral do sítio Pai Cará. São Paulo, s.d.
  • 10
    O termo "consumo efetivo superior" procede de Luiz Pereira, que o utiliza como um dos componentes principais da alienação nuclear capitalista dos agentes do trabalho. Ver Pereira, Luiz
    op. cit. especialmente cap. 3 e 4.
  • 11
    Pereira, Luiz. op. cit.
  • 12
    A palavra "marginal", neste caso, precedida da palavra "trabalhador", continua a ser empregada no sentido da participação-exclusão, que caracteriza uma inserção específica da força de trabalho. Seu uso, embora infeliz, justifica-se pela absoluta falta de outro termo.
  • 13
    Esta situação não é exclusividade da Baixada Santista. Como se viu, a divisão do mercado de trabalho e, conseqüentemente, da produção econômica em duas estruturas diversas, coexistentes e relacionadas, é comum a vários trabalhos que tentam explicar a marginalidade. Ver, por exemplo, Quijamo, Aníbal.
    Polo marginal de economia y mano de obra marginada. mimeogr.
  • 14
    Esta expressão é retirada de Machado da Silva, L.A.
    Mercados metropolitanos de trabalho manual e marginalidade. Tese de mestrado apresentada no programa de pós-graduação em Antropologia Social da UFRJ, maio 1971. mimeogr.
  • 15
    Pelo contrário, são as áreas predominantes e em crescimento contínuo na Baixada, mesmo que sejam "atrasadas" tecnologicamente.
  • 16
    A linguagem utilizada reflete bem a filiação ao sindicato que entre suas atividades mantém cursos de formação e atualização do estivador. Dentre as matérias inclue-se educação moral e cívica.
  • 17
    O
    Levantamento... não define o que entende por "desemprego", e nessa medida o dado é de difícil utilização. Em todo o caso, deve estar se referindo às pessoas que não tinham vínculo empregatício formal. De qualquer forma, o dado é representativo.
  • 18
    Segundo Maria da Conceição Tavares e José Serra, "... a incorporação e expulsão da mão-de-obra passam a ser duas tendências simultâneas e contraditórias do processo de expansão e modernização" do Brasil atual. Ver Tavares & Serra. Além da estagnação. In: Tavares & Serra.
    Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1972.
  • 19
    Por "desemprego" entendemos todas as pessoas que não estão ocupadas e "estão ativamente em busca de emprego". Singer, Paul.
    Força de trabalho e emprego no Brasil, 1920-1969. CEBRAP, São Paulo, 1971. Por "desocupação aberta" entende-se aqui todos os que estão ociosos ou ocupados em atividades individuais que, segundo Singer, não fariam parte da força de trabalho.
  • 20
    Expressão de Maria da Conceição Tavares e José Serra. op. cit.
  • 21
    Goldenstein, Léa.
    A industrialização da Baixada Santista: estudo de um centro industrial satélite. São Paulo. Instituto de Geografia da Universidade de São Paulo, 1972.
  • 22
    Tavares, Maria da Conceição & Serra, J. op. cit.
  • 23
    Id. ibid.
  • 24
    Valemo-nos aqui da montagem feita por Luiz Pereira no artigo sobre "Populações marginais", de excertos de Marx sobre o trabalho nas formações capitalistas:
    "1. '...d o ponto de vista social, a classe operária (entendamos: assalariados) é ... como qualquer outro instrumento de trabalho, uma dependência do capital, cujo processo de reprodução implica, dentro de certos limites, o consumo individual dos trabalhadores.' (Marx.
    Le capital, trad. Paris, Eds. Sociales, 1960, LI. , t. 3, p. 16). 'A soma dos meios de subsistência (existência) necessária à produção da força de trabalho compreende (também) os meios de subsistência dos substitutos, isto é, dos filhos dos trabalhadores, a fim de que esta raça singular se perpertue no mercado. De outra parte, para modificar a natureza humana de modo a fazê-la adquirir aptidão, precisão e celeridade num gênero de trabalho determinado, ou seja, para dela fazer uma força de trabalho desenvolvida num sentido especial, é necessária uma certa educação que custa uma soma maior ou menor de equivalentes em mercadorias. Esta soma varia segundo o caráter mais ou menos complexo da força de trabalho. Os custos da educação, aliás ínfimos para a força de trabalho simples, estão compreendidos no total das mercadorias necessárias à produção da força de trabalho.' (Idem. L.I., t. 1, p. 174-5); 2. Se, 'enquanto valor, a força de trabalho representa o
    quantum de trabalho social (necessário) nela realizado (pelo consumo)', ou complementarmente, se 'o tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho consiste (... ) no tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência', o certo é que a 'força de trabalho encerra, ... do ponto de vista do valor, um elemento moral e histórico, o que a distingue das demais mercadorias. Todavia, para um país e época dados, a medida necessária dos meios de subsistência é também dada." (idem, L.I., t. 1, p. 173-4). Ver Pereira, Luiz. Populações marginais. In:
    Estudos sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo, Pioneira, 1971. p. 165-6.
  • 25
    Goldenstein, Léa.
    A industrialização da Baixada Santista, estudo de um centro industrial satélite, op. cit., p. 310-11.
  • 26
    Estes moradores, no dizer dos técnicos, estavam fora da área a ser urbanizada (veja-se introdução desse trabalho). O fato de estarem fora não diminuía o seu temor de serem atingidos por algo que não podiam pagar.
  • 27
    Levantamento... p. 1 (29) a 1 (33). Capítulo: Resistências e potencialidades latentes na comunidade. A intervenção urbanística contava, no momento da pesquisa, com três assistentes sociais, um engenheiro e um advogado.
  • 28
    Levantamento ... p. 1 (13) e 1 (14).
  • 29
    Margulis, Mário.
    Migración y marginaliãad en la socieãad argentina. Buenos Aires, Paidós, s.d. p. 11.
  • 30
    As famílias objeto desta investigação compreendiam ao todo 142 indivíduos. Foram entrevistados 39, que correspondiam a chefes de famílias ou responsáveis pela manutenção da unidade familiar. É somente a eles que os dados se referem. Sua distribuição, por origem, é a seguinte: originários da Baixada: 7; originários de regiões urbanas: 9; originários de regiões rurais: 23.
  • 31
    Infelizmente, não se recolheram dados para conhecer o tipo de lavoura que estes indivíduos cultivavam, tanto para subsistir como para vender.
  • 32
    Martins, José de Souza.
    A comunidade na sociedade de classes, estudo sociológico sobre o imigrante italiano e seus descendentes no subúrbio de São Paulo (Núcleo colonial de São Caetano). Tese de doutoramento apresentada ao Dept.º de Ciências Sociais (sociologia) da Faculdade de Filosofia, Letras e ciências Humanas da USP. p. 11.
  • 33
    Pereira, Luiz. urbanização e industrialização. In:
    Trabalho e desenvolvimento no Brasil, p. 114.
  • 34
    Pereira, Luiz. op. cit. p. 115-6.
  • 35
    Pereira, Luiz.
    Trabalho e desenvolvimento, p. 128 (grifos meus).
  • 36
    Possível porque uma cidade "com funções eminentemente comerciais tem uma maior capacidade de oferecer condições de subemprego que centros fundamentalmente industriais. Quanto ao mais, facilidades de pesca e coleta de frutas, clima ameno, etc. são fatores que multiplicam as possibilidades de sobrevivência local daqueles sem colocação produtiva de caráter permanente". Castro, Antônio.
    Sete ensaios sobre a economia brasileira, p. 178.
  • 37
    Martins, José de Souza.
    A comunidade na sociedade de classes, p. 13-4.
  • 38
    São sete ao todo, mas três não podem ser categorizados como trabalhadores marginais.
  • 39
    Não ficou discutida aqui a relação entre agricultura e expulsão de mão-de-obra, por não cair diretamente nos limites deste trabalho. Em todo caso, a questão parece estar relacionada com as regiões cujo mercado de abastecimento interno entra em crise. Se a interpretação de Antônio Castro - de que a agricultura expulsa mão-de-obra porque não se expande mais do que o requerido pelo setor industrial, este último o pólo dominante da economia que condiciona o desempenho dos demais setores - (ver Castro, A. op. cit. especialmente parte 2 e 3) estiver correta, nesses termos, podemos colocar a hipótese de que o pouco desenvolvimento de certas regiões agrícolas e a pauperização que acarreta explicaria a migração dos indivíduos com o custo que a cidade paga pela sua dominação. Ao se tornarem um "problema social", a cidade tenta incorporá-los institucionalmente no seu sistema específico de estratificação e participação, propondo resolver o problema pela incorporação marginal institucionalizada.
  • 40
    Foracchi, Marialice M.
    Relatório ... p. 6.
  • 41
    Segundo Léa Goldenstein, "A indústria de Cubatão é conhecida pelo seu nível salarial, dos mais elevados de São Paulo e portanto do País (... ) Esse salário é tido como privilegiado e, no entanto, em se tratando de indústrias altamente equipadas e de grande produtividade, a despesa com a mão-de-obra, pouco numerosa no conjunto, constitui uma pequena parcela no custo do produto. Aliás, tem-se mantido bastante constante a participação da mão-de-obra, nos custos gerais da produção" (op. cit. p. 298).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1973
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