ABORDAGENS METODOLÓGICAS PARA ENFRENTAR O DESPERDÍCIO DE ALIMENTOS: AVANÇANDO A AGENDA

INTRODUÇÃO

A Covid-19 perturbou as cadeias de abastecimento de alimentos em todo o mundo. Os problemas existentes, como a insegurança alimentar e nutricional, aumentaram exponencialmente. Tornou-se imperativo mudar para um sistema alimentar mais sustentável e equitativo. Nesse sentido, o desafio de pesquisar sobre perdas e desperdícios de alimentos (PDA) e propor soluções mobiliza abordagens e processos transdisciplinares com o objetivo de transformar as cadeias de abastecimento de alimentos de modo eficaz. Compreender a quantidade de alimentos que produzimos e consumimos não é uma tarefa fácil. Tantos contextos geográficos, culturais e sociais e tantos níveis de desenvolvimento econômico e de urbanização diferentes resultam em limitações quantitativas e qualitativas.

Segundo Corrado et al. (2019), a contabilização do desperdício de alimentos é um elemento central na elaboração de uma política de PDA e nas intervenções propostas. A metodologia adotada para contabilizar o desperdício é fundamental para monitorar o progresso no sentido de reduzir as metas. Não existe a melhor maneira de enfrentar as perdas e o desperdício de alimentos, mas há muitas tentativas relevantes e rigorosas utilizando métodos diferentes. Algumas delas são discutidas neste artigo, que sugere uma agenda metodológica para pesquisadores da área de gestão de empresas interessados ​​nesse desafio.

LITERATURA RELEVANTE

A perda e o desperdício de alimentos podem ser definidos como uma diminuição na quantidade ou qualidade dos alimentos ao longo da cadeia de abastecimento alimentar. Empiricamente, considera-se que as perdas de alimentos ocorrem ao longo de toda a cadeia de abastecimento alimentar, desde a colheita/abate/captura até, mas não incluindo, o nível de varejo. Já o desperdício de alimentos ocorre nos níveis de varejo e consumo (Food and Agriculture Organization of the United Nations [FAO], 2019, p. 14).

As causas de PDA estão interconectadas em todas as cadeias de abastecimento de alimentos, desde a produção primária até o consumo final (Bilska, Wrzosek, Kołożyn-Krajewska, & Krajewski, 2016; Canali et al., 2017). Consequentemente, realizar pesquisas sobre PDA vem se revelando como uma questão prioritária para acadêmicos e profissionais. Grande parte das pesquisas, no entanto, concentra-se em apenas uma atividade da cadeia de abastecimento alimentar, e não nas interações entre os diferentes stakeholders, ou no fenômeno complexo de PDA. PDA é um tópico transdisciplinar, mas, dentro do campo de administração de empresas, vem atraindo a atenção da literatura de marketing (caso da maioria dos estudos que analisam o desperdício de alimentos pelo consumidor) e de gestão de operações. Essas duas unidades de análise e as tendências metodológicas utilizadas para estudá-las são discutidas a seguir.

O lado do consumidor

Diferentes métodos são utilizados ​​para medir o desperdício de alimentos do consumidor, como pesquisas de autorrelato, diários de desperdício de alimentos, codificação de fotos e análise da composição do lixo (Quested, Palmer, Moreno, McDermott, & Schumacher, 2020). Dada a necessidade de padronizar a quantificação em diferentes países como meio de rastrear o cumprimento de seu Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 12.3, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente sugere utilizar a análise da composição do lixo e a medição direta no domicílio por meio de escalas ou diários. Os diários são úteis no caso de alimentos que vão para o esgoto, são compostados em casa ou dados aos animais (United Nations Environment Programme [UNEP], 2021). Entrevistas e surveys, comuns em estudos acadêmicos, não devem ser utilizadas ​​isoladamente, devido a um grande elemento de subestimação (Herpen, Lans, Holthuysen, Nijenhuis-de Vries, & Quested, 2019). Matzembacher, Brancoli, Maia e Eriksson (2020) identificaram uma discrepância entre o comportamento declarado e o real em relação ao desperdício de alimentos pelo consumidor. Isso envolve questões metodológicas relevantes, visto que há uma série de estudos baseados em percepções e relatos de consumidores. Portanto, entrevistas e surveys devem ser combinadas em uma abordagem metodológica mista.

No contexto dos países em desenvolvimento, a análise da composição do lixo representa um desafio, uma vez que, em certas regiões, os lixos orgânico e inorgânico não são separados. Além disso, a medição direta no domicílio requer um investimento considerável e o treinamento dos participantes para separar os tipos de lixo, a fim de quantificá-los com precisão. Para superar essa dificuldade, uma solução potencial é utilizar a amostragem em massa com subamostragem aleatória, de modo a cobrir uma amostra representativa do lixo coletado em nível municipal, conforme realizado por Oelofse, Muswema e Ramukhwatho (2018), que quantificaram o desperdício doméstico de alimentos na África do Sul.

O grau de subestimação do desperdício de alimentos em diários varia de 7% a 40% em comparação com a análise da composição do lixo, segundo Quested et al. (2020). Em comparação com as surveys, no entanto, os diários apresentam melhor desempenho na estimativa do desperdício de alimentos pelo consumidor (Giordano, Alboni, & Falasconi, 2019). Um método viável para a medição do desperdício de alimentos nos países em desenvolvimento seria uma abordagem mista, combinando diários, especialmente aqueles que utilizam plataformas digitais, com o upload de fotos para confirmar a quantidade de desperdício informada, e análise da composição do lixo em áreas onde o lixo orgânico é coletado separadamente.

Em uma quantificação nacional do desperdício de alimentos pelo consumidor no Brasil, realizada como parte de um projeto financiado pelos Sector Dialogues European Union-Brazil, foram utilizados diários ​​por meio de uma plataforma para celular em que os consumidores podiam indicar, em um formulário simples, os alimentos desperdiçados e as quantidades. O aplicativo também podia ser utilizado para fazer o upload de fotos, a fim de comparar se os alimentos e as quantidades eram informados com precisão (Porpino, Lourenço, Araújo, & Bastos, 2018). Herpen et al. (2019) consideram que a codificação de fotos tem potencial para melhorar a precisão das medições, mas é demorada e pode não ser viável para grandes amostras.

A quantificação do desperdício de alimentos é fundamental para a promoção de políticas alimentares urbanas baseadas na ciência, mas o valor das abordagens qualitativas para compreender melhor as causas do desperdício de alimentos pelo consumidor não deve ser subestimado em estudos acadêmicos. Além das contribuições teóricas, os métodos qualitativos são úteis, por exemplo, para orientar o desenvolvimento de campanhas de comunicação voltadas para mudanças de comportamento.

As observações em domicílio combinadas com entrevistas laddering são um método qualitativo rico para descobrir comportamentos de desperdício de alimentos que não são facilmente identificados em autorrelatos, como os que surgem em surveys. No entanto, a aplicação dessas abordagens qualitativas requer pesquisadores bem-treinados, bem como a capacidade de realizar entrevistas sem influenciar os entrevistados a dar as respostas desejadas. Assim, as técnicas de laddering, nas quais os respondentes são expostos a perguntas do tipo “por que”, são importantes para se obter uma compreensão mais profunda do comportamento do consumidor (Veludo-de-Oliveira, Akemi, & Campomar, 2006).

Em termos de contribuições teóricas, a teoria fundamentada também pode ser aplicada para identificar os comportamentos que resultam em desperdício de alimentos. A codificação na teoria fundamentada (Corbin & Strauss, 2015), utilizada por Porpino, Wansink e Parente (2016) para investigar o desperdício de alimentos em famílias de classe média baixa, e por Papargyropoulou et al. (2016) para estudar o desperdício de alimentos no setor da hospitalidade, é adequada para gerar contribuições teóricas e fornecer insights em estratégias orientadas para políticas, como campanhas de educação nutricional e de consumo sustentável. Ela também é utilizada para identificar conceitos relevantes para mensagens de enquadramento destinadas a influenciar as escolhas de alimentos em ambientes de varejo, por exemplo.

Stangherlin, Barcellos e Basso (2018) recentemente estudaram o efeito das normas sociais sobre o incentivo ao consumo alimentar subótimo no Brasil. As normas sociais representam o comportamento comum e aceito em uma determinada situação, afetando diretamente as atitudes, intenções, preferências e escolhas (Cialdini. Reno, & Kallgren, 1990). O consumidor prefere não comprar frutas e verduras com aparência incomum, produtos com embalagens danificadas ou que estejam perto da data de validade; tais produtos são geralmente denominados subótimos (Aschemann-Witzel, Hooge, Amani, Bech-Larsen, & Oostindjer, 2015; Hooge et al., 2017; Loebnitz & Grunert, 2015; Loebnitz, Schuitema, & Grunert, 2015). Esse padrão de comportamento e a consequente demanda por alimentos “cosmeticamente perfeitos” contribuem para altos níveis de desperdício de alimentos (Godfray et al., 2010; Gustavsson, Cederberg, Sonesson, Otterdijk, & Meybeck, 2011), ensejando intervenções destinadas a incentivar a compra de alimentos subótimos. O estudo também verificou se a consciência do problema do desperdício de alimentos é o mecanismo subjacente à relação entre as normas sociais e a intenção de comprar alimentos subótimos. Os resultados mostram que os recursos que utilizam normas sociais têm um efeito positivo sobre a intenção de comprar produtos de aparência incomum ou com embalagens danificadas. A consciência do problema do desperdício de alimentos também medeia o efeito das normas sociais sobre a intenção de compra de um produto com aparência incomum. Em termos teóricos, o estudo analisou o efeito dos estímulos no consumo de alimentos subótimos, aplicando a teoria das influências normativas. As implicações práticas consistem na indicação de estratégias para aumentar a aceitação dos produtos alimentícios subótimos. A tomada de decisão dos consumidores pode ser influenciada positivamente se forem utilizadas as mensagens adequadas por parte dos varejistas e comerciantes de alimentos. Uma sugestão seria desenvolver intervenções no ponto de venda que mostrem as características sensoriais e organolépticas dos produtos. O nudge marketing, as campanhas de educação do consumidor e o uso de celebridades ​​para endossar o consumo são estratégias que podem levar a intenções crescentes de consumo de produtos alimentícios subótimos. A mudança no comportamento do consumidor deve, portanto, ser sistematicamente apoiada em educação e em diferentes iniciativas capazes de levar a um declínio substancial da quantidade de alimentos desperdiçados lançados em aterros sanitários, economizando recursos públicos e privados e contribuindo para alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS).

O lado da cadeia de abastecimento

Morgan, Hawkes, Dangour e Lock (2019) realizam estudos sobre a cadeia de valor de alimentos e nutrição para identificar oportunidades de redução do desperdício em toda a cadeia. Embora, na maioria das vezes, a estrutura da cadeia de abastecimento coincida com a cadeia de valor, a primeira enfatiza a logística do fluxo do produto. O modo de governança e a extensão da cadeia de abastecimento são fatores que influenciam a ocorrência de PDA.

Os estudos que enfocam casos de cadeia de abastecimento apresentam uma abordagem mais sistêmica, na medida em que buscam entender como as relações interorganizacionais podem mitigar PDA. Existem duas teorias principais para entender a governança da cadeia de abastecimento. A economia dos custos de transação (ECT) é a análise teórica das relações entre os agentes da cadeia de abastecimento que permite que a análise da governança seja dividida em três tipos: hierarquia, mercado e híbrido. Uma relação híbrida ou colaborativa entre comprador e fornecedor pode reduzir os custos envolvidos na transação (Williamson, 2000). No entanto, como os relacionamentos geralmente não são puramente colaborativos ou oportunistas, a ETC pode ser utilizada em conjunto com outras abordagens.

A segunda estrutura teórica é a visão relacional (VR), que pode ser considerada uma extensão da visão baseada em recursos (VBR). Enquanto a VBR se concentra nos recursos internos da empresa, a VR sugere que há relações idiossincráticas entre as organizações. Essas teorias podem levar a uma perspectiva complementar dos mecanismos de governança formal e informal em uma cadeia de abastecimento (Cislaghi, Wegner, & Vieira, 2021). O principal pressuposto dessas teorias é que as relações colaborativas dentro da cadeia de abastecimento podem influenciar a conscientização sobre o desperdício de alimentos e, consequentemente, reduzi-lo. Nessa perspectiva, o desperdício de alimentos é um custo econômico relacionado às práticas de gestão de resíduos.

Essas abordagens teóricas subsidiam estudos de caso que têm uma empresa ou uma díade como unidade de análise, como Mena, Adenso-Diaz e Yurt (2011), que adotaram uma abordagem de comprador-fornecedor ao coletar dados em dois países. Posteriormente, os autores Mena, Terry, Williams e Ellram (2014) realizaram uma pesquisa mais abrangente, com o objetivo de compreender as principais causas de PDA nas duas categorias de produtos com maior demanda no setor de mercearias do Reino Unido. A pesquisa utilizou métodos mistos, como o uso de dados quantitativos para avaliar o impacto do desperdício. Em seguida, realizou vários estudos de caso utilizando uma abordagem indutiva e de construção de teoria com questões abertas. O cruzamento dos estudos de caso apresenta proposições destinadas a realizar contribuições teóricas para a visão baseada em recursos naturais (VBRN). Richards, Hurst, Messner e O'Connor (2021) expandiram a unidade de análise de modo a incluir toda a cadeia de abastecimento da horticultura, em uma tentativa de identificar os paradoxos existentes, utilizando, para isso, perguntas abertas e semiestruturadas e dados secundários. Este estudo busca adotar uma visão mais holística, evitando apontar onde os alimentos são desperdiçados, mas indicando como e por que são desperdiçados. Matzembacher, Vieira e Barcellos (2021) argumentam ser necessária uma perspectiva multissetorial, e sustentam que não apenas os agentes fornecedores devem ser investigados, mas também outros stakeholders intervenientes, como ONGs, órgãos públicos, a academia etc.

Nesse contexto, a GCS vem evoluindo de uma perspectiva isolada de investigação das interfaces entre os temas ambientais e econômicos para uma visão da responsabilidade social corporativa aplicada à cadeia de abastecimento. Esses estudos (Matzembacher et al., 2021; Mena et al., 2014; Richards et al., 2021) exemplificam um avanço nas pesquisas, do foco em um único ponto, ou em uma relação dentro da cadeia de abastecimento, para uma análise mais holística. Embora haja várias limitações relativas à medição ou à generalização nesse tipo de pesquisa, ele envolve vários stakeholders na tarefa de enfrentar o problema de PDA. A utilização de uma abordagem multissetorial aproxima a pesquisa do mundo real. Em muitos casos reais, reduzir PDA a um único ponto (produção, processamento, distribuição) resulta na transferência do desperdício para o próximo elo da cadeia de abastecimento e não combate o problema.

Na busca de mais compreensão acerca dos dados referentes à quantificação de PDA e seus impactos, a avaliação do ciclo de vida (ACV) é uma metodologia de grande relevância. A ACV é uma abordagem sistemática para avaliar os impactos ambientais ocasionados ao longo da vida de um produto ou processo, desde a extração da matéria-prima até o descarte. Eriksson e Spångberg (2017) conduziram algumas pesquisas interessantes a esse respeito. A metodologia da ACV é amplamente utilizada no exame dos impactos ambientais associados à gestão de PDA. Isso é importante para os processos de tomada de decisão e para a elaboração de políticas públicas. As análises de ACV também podem incorporar uma perspectiva holística. Conforme proposto por Omolayo, Feingold, Neff e Romeiko (2021), em vez de focar em apenas uma ou algumas atividades, é interessante incluir todas as fases da cadeia de abastecimento alimentar dentro dos limites do sistema, de modo a capturar com mais detalhes a influência de todo o processo nas intervenções, e identificar os pontos de alavancagem dentro da cadeia, para reduzir eficazmente os impactos ambientais de PDA.

ALIMENTANDO REFLEXÕES

Como as pesquisas sobre PDA ainda estão divididas entre o consumidor e a cadeia de abastecimento, os quais são analisados ​​separadamente, elas devem avançar no sentido de adotar uma abordagem integrada que posicione o consumidor no contexto da cadeia de abastecimento. O desafio é desenvolver teorias e métodos que possibilitem essa interface entre o marketing e a gestão de operações, mesclando metodologias e unidades de análise.

O papel da pesquisa aplicada no combate a PDA é fundamental para oferecer soluções eficazes. Políticas baseadas em evidências (Oliver & Boaz, 2019) e gestão baseada em evidências (Pfeffer & Sutton, 2006) podem abrir espaço para intervenções em curto prazo e para uma mudança consistente de comportamento em longo prazo. Os pesquisadores são desafiados a transformar os resultados das pesquisas em políticas ou práticas de gestão, de modo a produzir um impacto positivo na redução de PDA. As políticas podem incluir uma boa combinação de medidas regulatórias e voluntárias, embora as medidas econômicas e financeiras sejam limitadas. Ferramentas e soluções de gestão são necessárias para apoiar a implementação de medidas voluntárias e o atingimento dos ODS no que diz respeito à redução de PDA.

Uma abordagem holística pode expandir a unidade de análise no sentido de incluir vários stakeholders e incorporar o uso de métodos mistos, como a realização de minissurveys e o uso de técnicas como a análise de redes sociais, para entender qual stakeholder influencia outro quando se trata de mudanças de comportamento. Análises que utilizam a metodologia da ACV também podem buscar oferecer uma imagem mais geral de toda a cadeia de abastecimento, buscando, assim, uma visão mais holística.

Uma agenda de pesquisas futuras poderia considerar afastar-se da visão “unitária”, compreendida como adoção de análise de um único ator em nível de cadeia de abastecimento/consumidor, ou como utilização de uma única metodologia. PDA é um problema complexo, interligado nos níveis de abastecimento e consumo, em que a ação de um agente produz impactos em outros. Cada metodologia tem seus pontos fortes e fracos quando utilizada sozinha. Dada essa complexidade, sugere-se que uma abordagem mais holística seja integrada nas agendas de pesquisa, quer por meio de análises multissetoriais, quer pela combinação de metodologias, a fim de obter uma visão mais profunda e concisa do problema de PDA, e alcançar um impacto integrado com as soluções propostas.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  23 Ago 2021
• Data do Fascículo
  2021