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Crise do petróleo e o fim do milagre: uma nota

COMENTÁRIOS

Crise do petróleo e o fim do milagre - uma nota

Alkimar R. Moura

Professor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica Aplicados à Administração da EAESP/FGV

Em artigo recente nessa Revista,1 1 Oliveira Lima, L. A. Crise do petróleo e evolução recente da economia brasileira. Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, v. 17, n 2, mar./abr., 1977. o Prof. Oliveira Lima discute o problema da influência da crise do petróleo sobre o comportamento recente da economia nacional. O propósito do ensaio é o de demonstrar que, contrariamente aos pronunciamentos oficiais, a elevação dos preços do petróleo não deve ser elevada a categoria de bode expiatório, responsável único pelas dificuldades econômicas recentes e pelo arrefecimento do curto, mas certamente polêmico, milagre brasileiro. Neste sentido, o artigo cumpre sua finalidade. De fato, ele demonstra que o tipo de política econômica posta em prática a partir de 1967, deveria logicamente conduzir a uma vulnerabilidade maior do sistema econômico a choques externos. A crise do petróleo veio apenas antecipar uma situação de dificuldades que já se fazia notar no início de 1973. Apesar dessas indicações, os responsáveis pela política econômica persistiam extrapolando para, o longo prazo, as tendências favoráveis de curto prazo que o mercado internacional de produtos e de capitais apresentava no início da década de 70.

O objetivo desta nota não é o de questionar tais conclusões, às quais esse leitor empresta sua modesta adesão. Em vez disto, procura-se oferecer uma hipótese alternativa, para explicar um dos problemas abordados no ensaio, vale dizer, o do crescimento conjunto do endividamento externo e da dívida pública interna. De acordo com O. Lima, a entrada maciça de recursos externos em moeda, sob o amparo da Lei n.º 4.131, Instrução 289 e Resolução 63, veio apenas favorecer a especulação no mercado financeiro, pois a maior parte dos fundos era canalizada para compra de ativos financeiros, e não, aplicada no financiamento das empresas "para expansão da capacidade produtiva da economia. Prova disto, segundo o articulista, pode ser encontrada no aumento do valor das letras imobiliárias e no crescimento vertiginoso dos títulos da dívida pública (LTN e ORTN).

Na verdade, o aumento das transações com letras imobiliárias não se constitui, por si só, em base sólida para o argumento que se quer demonstrar. É bem provável que tenha havido uma modificação nas preferências dos investidores em títulos, em favor, das letras imobiliárias (por questões de rentabilidade, risco, liquidez, incentivos fiscais, etc.) e em detrimento de outros ativos de renda fixa e ações. Assim, o comportamento individual de um segmento do mercado não nos permite inferir muita coisa sobre os movimentos do mercado financeiro como um todo. Além disso, parte do crescimento das letras imobiliárias pode ser explicada pelo próprio processo de expansão econômica, o qual, ao aumentar a renda dos indivíduos (de uma maneira nada democrática, como já se comentou ad nauseam, na literatura especializada), acaba gerando poupanças para aplicações financeiras.

A segunda associação - entre entrada de recursos externos e aumento da dívida pública em títulos - merece uma análise mais cuidadosa. Aqui, o autor conclui que o sistema bancário prefere comprar títulos do governo, por questões de rentabilidade, do que aumentar os empréstimos às atividades produtivas, a juros nominais fixos. O fato de que o governo tabele juros nominais, com taxa de inflação positiva, não é de maior importância para a rentabilidade do sistema bancário, pois os bancos também captam recursos a preços subsidiados (é bom lembrar que os detentores de depósitos à vista recebem uma remuneração de 0% por ano para os seus recursos). A lucratividade de qualquer intermediário financeiro depende apenas da diferença entre as taxas de juros nas operações de empréstimo e de captação de recursos.

No entender desse leitor, existe outra hipótese alternativa para o fenômeno analisado. Esta aponta a política monetária posta em execução pelo Banco Central, a fim de contrabalançar os efeitos monetários dos sucessivos superávits no balanço de pagamentos de 1968 a 1973, como sendo a principal causa do crescimento dos títulos públicos em circulação. A explicação é simples: saldos positivos no balanço de pagamentos geram acúmulos de reservas estrangeiras em poder do Banco Central e conseqüente aumento da base monetária. Para evitar que este crescimento na base provoque acréscimos substanciais nos meios de pagamentos e crédito, as autoridades monetárias procuram neutralizar a expansão de dinheiro, através da política de open-market. Isto significa, então, vender títulos públicos no mercado, para eliminar a liquidez excedente no sistema. Esta política, chamada de esterilização dos efeitos monetários do balanço de pagamentos, tem sido constantemente utilizada por bancos centrais de alguns países desenvolvidos, com o objetivo de neutralizar o impacto interno dos superávits nas transações externas.2 2 A literatura sobre o assunto é vasta. Entre outras indicações, veja: Kouri, P. & Porter, M. International capital flows and portfolio equilibrium. Journal of Political Economy, May/lune, 1974; Claassen, E. & Salin, P. ed. Recent issues in international monetary economics; studies in monetary economics. North Holland, Amsterdan, 1976. v. 2; Heering, R. & Marston, R. National monetary policies and international financial markets. North Holland, Amsterdan, 1977. Desta maneira, a expansão de dívida pública interna nos últimos tempos, no Brasil, pode ser, em parte, explicada por aquele mecanismo. É óbvio que, a fim de colocar uma quantidade crescente de títulos no mercado, o Banco Central se vê na obrigação de oferecer uma remuneração mais elevada para tais títulos. Isto deve pressionar para cima a taxa de juros no mercado financeiro. Daí, a sensação de que existe uma especulação desenfreada no open-market e que fica confirmada pelas inúmeras crises causadas pela inexperiência, falta de qualificação e mesmo má fé de muitos operadores. De outro lado, a alta taxa de juros no mercado interno estimula a entrada de mais empréstimos estrangeiros em moeda, os quais, por sua vez, exigirão novas emissões de títulos públicos, e assim por diante.

Os fundamentos lógicos da hipótese alternativa parecem razoáveis. Resta saber se ela realmente descreve com precisão o comportamento das autoridades monetárias, no período em foco. Esta questão é mais difícil de ser discutida, pois um teste adequado da hipótese exigiria a construção e estimação de um modelo macroeconômico, que mostrasse as relações entre o balanço de pagamentos, oferta monetária e equilíbrio no mercado financeiro. Naturalmente, tal empreendimento ultrapassa os limites desta nota. Contudo, existe evidência empírica a indicar que, de fato, as autoridades monetárias no Brasil têm conseguido esterilizar os efeitos monetários dos superávits cambiais.3 3 Miller, N. & Askin, S. Monetary policy and the balance of payments in Brazil and Chile. Journal of Money, Credit and Banking, v. 7, May, 1976. A mesma hipótese, sem confirmação empírica, é sugerida por José Eduardo P. Carvalho em: Financiamento externo e crescimento econômico no Brasil, 1966-73. Rio de Janeiro, Ipea/Inpes, 1974.

Poder-se-ia insistir na pergunta: por que o Banco Central persiste neste tipo de política, cujas conseqüências implicam aumento do endividamento externo e crescimento da dívida pública interna? Há várias respostas possíveis. Prefiro acreditar que as autoridades monetárias no Brasil ainda não se deram conta de um fato que os economistas já vêm, há muito, reconhecendo: a virtual impossibilidade de se controlar a expansão monetária, por meio dos instrumentos tradicionais, em uma economia aberta aos fluxos internacionais de capital, e num regime de taxa cambial não totalmente flexível. Nesta situação, torna-se cada vez mais difícil manter uma política monetária independente, sem embargo das melhores intenções do Banco Central.

Em resumo, a hipótese aqui sugerida indica que a inserção da economia brasileira no mercado financeiro internacional implica perda de controle dos mecanismos de política monetária. Ao não querer reconhecer este fato, a política governamental tem contribuído para manter uma situação de desequilíbrio entre os mercados financeiros interno e externo. Em conseqüência, o nível de endividamento tem sido superior ao que seria necessário para financiar a transferência de recursos reais do resto do mundo, para a economia nacional.

Resta saber o papel dos banqueiros neste processo. É bem provável que os gnomos da Rua Boa Vista, para adaptar uma expressão muito em voga em épocas de crise monetária internacional, tenham-se limitado a seguir as regras do jogo, ditadas pela tecnocracia de Brasília. Afinal, sistemas em desequilíbrio geram fortes interesses econômicos para evitar o retorno a uma situação de normalidade. A hipertrofia do setor financeiro, mencionada pelo autor, nada mais é do que o resultado das tentativas, por parte das autoridades monetárias, em manter um grau de controle sobre os intermediários financeiros, incompatível com o nível de abertura externa da economia.

O Prof. Oliveira Lima adverte-nos do perigo de aceitarmos interpretações maniqueístas da realidade, como causas próximas de nossas dificuldades econômicas reais. Cumpre evitar, com igual vigor, que, no processo de destruir os bodes expiatórios oficiais, não cheguemos ao extremo de convocar o auxílio de duendes e outros seres fantásticos, dotados de poderes mágicos para manipular a realidade.

  • 1 Oliveira Lima, L. A. Crise do petróleo e evolução recente da economia brasileira. Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, v. 17, n 2, mar./abr., 1977.
  • 2 A literatura sobre o assunto é vasta. Entre outras indicações, veja: Kouri, P. & Porter, M. International capital flows and portfolio equilibrium. Journal of Political Economy, May/lune, 1974;
  • Claassen, E. & Salin, P. ed. Recent issues in international monetary economics; studies in monetary economics North Holland, Amsterdan, 1976. v. 2;
  • Heering, R. & Marston, R. National monetary policies and international financial markets. North Holland, Amsterdan, 1977.
  • 3 Miller, N. & Askin, S. Monetary policy and the balance of payments in Brazil and Chile. Journal of Money, Credit and Banking, v. 7, May, 1976.
  • A mesma hipótese, sem confirmação empírica, é sugerida por José Eduardo P. Carvalho em: Financiamento externo e crescimento econômico no Brasil, 1966-73. Rio de Janeiro, Ipea/Inpes, 1974.
  • 1
    Oliveira Lima, L. A. Crise do petróleo e evolução recente da economia brasileira.
    Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, v. 17, n 2, mar./abr., 1977.
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    A literatura sobre o assunto é vasta. Entre outras indicações, veja: Kouri, P. & Porter, M. International capital flows and portfolio equilibrium.
    Journal of Political Economy, May/lune, 1974; Claassen, E. & Salin, P. ed.
    Recent issues in international monetary economics; studies in monetary economics. North Holland, Amsterdan, 1976. v. 2; Heering, R. & Marston, R.
    National monetary policies and international financial markets. North Holland, Amsterdan, 1977.
  • 3
    Miller, N. & Askin, S. Monetary policy and the balance of payments in Brazil and Chile.
    Journal of Money, Credit and Banking, v. 7, May, 1976. A mesma hipótese, sem confirmação empírica, é sugerida por José Eduardo P. Carvalho em:
    Financiamento externo e crescimento econômico no Brasil, 1966-73. Rio de Janeiro, Ipea/Inpes, 1974.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 1978
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