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A restituição de impostos indiretos no sistema jurídico-tributário brasileiro

ARTIGO

A restituição de impostos indiretos no sistema jurídico-tributário brasileiro

Luís Eduardo Schoueri

Consultor do Departamento de Impostos da Arthur Andersen S/C; aluno do Curso de Graduação em Administração Pública da EAESP/FG Vedo Curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

1. PROPÓSITO

O tema da repetição do indébito tributário convida o estudioso do direito à análise das Súmulas nº 71 e 546 do Supremo Tribunal Federal (STF) em face do art. 166 do Código Tributário Nacional e do próprio Ordenamento Jurídico Brasileiro.1 1 Súmula nº 71: "Embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indevido." Súmula nº 546: "Cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de fato o quantum respectivo." Art. 166 do CTN: "A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la."

O exame dos julgados que serviram de base à redação da Súmula n.º 712 2 Cf. ERE nf 33.115,2 de outubro de 1961 ; RE nf 46.450,10 de ja neiro de 1961; ERE nf 47.069, 27 de abril de 1962; ERE nf 45.678, cujos textos integrais são reproduzidos por Morschbacher, José. In: Repetição do indébito tributário indireto. São Paulo, Rev. dos Tribunais, 1984 p. 81-91. mostra que os membros do excelso pretório presumiam que, nos impostos indiretos, haveria sempre a translação do encargo financeiro para o consumidor, optando a Corte por admitir a cobrança ilegal do imposto, visto ser-lhe melhor o Estado enriquecer ilicitamente ao contribuinte receber de volta o que pagara a mais, já que aquele ônus fora transferido.

O enunciado genérico da Súmula n? 71 impediu numerosos casos de chegarem à excelsa segunda instância, visto ser aquele texto aplicado como se lei fora, despido dos casos concretos que o inspiraram. Pouco importava, para aqueles juízes,3 3 Cf. Noronha, Jardel & Martins, Odalea. Referências da Súmula do Supremo Tribunal Federal Brasília, 1969. v. 4, p. 207 e segs. a ocorrência ou não da translação, base da referida Súmula, optando, sempre, pela não-restituição de tributos indiretos.

Corroborando a tese vitoriosa no STF, tivemos, em 1966, a Lei n? 5.172, o Código Tributário Nacional, cujo art. 166, tratando da repetição do indébito tributário, condicionava-a, no caso de tributos que comportassem, "por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro", à prova de haver assumido o respectivo encargo.

Diante da redação do Código, passou-se à revisão do texto da Súmula 71, graças à influência do Ministro Aliomar Baleeiro, que, em sua incansável busca da justiça, fazia ver a seus pares o engano existente no pressuposto de os impostos indiretos sempre comportarem transferência do encargo econômico.4 4 "(...) o Supremo Tribunal Federal inclina-se a conceitos econômico-financeiros baseados no fenômeno da incidência e da repercussão dos tributos indiretos, no pressuposto errado, data vénia, de que, sempre, eles comportam transferência de ônus do contribuinte de jure para o contribuinte de fato. Então, haveria locupletamento indébito daquele às expensas deste, motivo pelo qual deveria ser recusada a repetição. É o suporte pretendidamente lógico da Súmula nf 71. " (RE nf 45.977 - Espirito Santo. In: Morschbacher, José. op. cit. 91-4 Seguindo esta orientação, passou o STF a reconhecer, em diversos julgados,5 5 RE nf 45.977,27 de setembro de 1966,2." T. (RTJ, 40/37); RE nf 58.290,17 de junho de 1966, 3." T. (RTJ, 39/325); ERE nf 58.660, 10 de abril de 1969, Pleno; todos reproduzidos na íntegra por José Morschbacher (op. cit.). o cabimento da "restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido, por decisão, que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo".

Neste artigo, repisaremos alguns conceitos básicos do direito tributário e de ciências afins, com o fito de procedermos a uma análise crítica do tratamento dado à restituição de tributos indevidos, em especial, dos denominados "impostos indiretos".

2. IMPOSTOS DIRETOS E INDIRETOS

A classificação dos impostos, segundo o binômio diretos/indiretos, atinge seu ápice no século XIX.6 6 Cf. Laufenburger, Henry. La Distinzionefra imposte diretteeindirette. In: Rivista di Diritto Finanzario e Scienza dele Finanze, Milano Dott. A. Giuffrè, págs: 3-18, mar. 1954 .

À evidência de que a distinção entre impostos diretos e indiretos necessitava de fronteiras definidas, vários foram os critérios apontados:

2.1 Critério da Translação Econômica7 7 Cf. Neviani, Tacísio. A restituição detributos indevidos. Seus problemas, suas incertezas. São Paulo, Resenha Tributária, 1983.63-71; Morschbacher. José. op. cit. 21-4.

De acordo com este critério, direto é o imposto cuja incidência econômica atinge (de modo direto) aquele contribuinte definido pelo legislador como sujeito passivo da obrigação tributária; indireto é aquele em que, dado o fenômeno da translação, o contribuinte definido como sujeito passivo daquela obrigação vê seu ônus transferido para outrem, que passa a ser contribuinte de facto na relação jurídico-tributária.

Parece ser este o critério adotado por nossa jurisprudência, ao enunciar a Súmula 546 do STF. De fato, na hipótese do imposto indireto, o contribuinte de jure recuperaria, em regra, do contribuinte de facto, o quantum pago indevidamente. Se lhe fosse dado o direito de pedir a repetição daquilo que pagou indevidamente, teríamos "locupletamento indébito (sic) daquele às expensas deste".8 8 Ver nota 4. Neste sentido, cabe ao solvens provar que o valor pago a título de imposto causou-lhe prejuízo, isto é, que não houve a translação do imposto. Não estabelecida esta prova, prevalece a presunção de que, para todo e qualquer imposto indireto, há translação, e, no caso de impostos diretos, o solvens é que suporta o ônus econômico.

Este critério é falho, do ponto de vista científico, pois, nas palavras de José Morschbacher, "é totalmente falso (...) pretender-se definir os impostos indiretos em face de uma característica, de uma particularidade, de um efeito ou reflexo da repercussão econômica-a qual é comum (...) tanto aos impostos indiretos quanto àqueles tidos como diretos: embora habitual e normal nos impostos indiretos, ela pode deixar de ocorrer hic et nunc, seja por razões de mercado, seja por determinação do próprio contribuinte, por questões totalmente subjetivas, deixando de agregar ao custo do bem, ser-viço ou utilidade onerosamente transferida a terceiros, o quantum correspondente ao imposto indireto"9 9 Morschbacher, José. op. cit. 23. Voltaremos à translação de impostos no momento oportuno.

2.2 Critérios Técnico e Administrativo

O critério técnico surgiu na França, tendo como expoente máximo Trotabas.10 10 Apud: Laufenburger, Henry. op. cit. De acordo com este critério, seriam diretos os impostos incidentes sobre fatos registráveis em ruoll (cadastros, registros). Indiretos, por outro lado, seriam aqueles com incidência jurídica sobre fatos imprevisíveis. Este critério evoluiu para o administrativo, que classificava os impostos em diretos ou indiretos, de acordo com a competência do órgão arrecadador. Analisando estes critérios, afirma Laufenburger que "V esperienza francese contemporânea mette in evidenza che dal punto di vista técnico, amministrativo e giuridico le frontiere fra le imposte dirette ed indirette sono cancellate".11 11 Id.ibid. p. 18.

Dentro do critério administrativo, deve-se destacar a teoria do lançamento,12 12 Cf. Morschbacher, José. op. cit. 24-30. que propõe como diretos os impostos obrigatoriamente sujeitos ao lançamento, e indiretos os não-sujeitos, isto é, aqueles em que há o autolançamento (ou, na terminologia do art. 150 do Código Tributário Nacional, "lançamento por homologação"). Tal teoria, ainda que despida de critérios rigidamente científicos, tem a seu favor o elevado índice de acerto, visto que a grande maioria dos impostos considerados indiretos são autolançados.

Pode ocorrer, no entanto, que determinados impostos não-sujeitos a prévio lançamento e estruturados sobre hipóteses de incidência instantânea não sejam, de fato, indiretos, visto ter o legislador erigido em contribuinte legal aquela pessoa cuja capacidade contributiva a lei visava atingir. Morschbacher cita como exemplo o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) no caso de a Lei Ordinária, com fundamento no art. 66 do Código Tributário Nacional, erigir em contribuinte legal o segurado, ao invés do segurador.

2.3 Critério financeiro

De acordo com a moderna ciência das finanças, a renda sofre mutações cíclicas perfeitamente compreensíveis, de acordo com o processo econômico. A figura 1 mostra o fluxo circular da renda, apontando os diversos pontos de impacto dos impostos.13 13 Cf. Musgrav e, Richard A. Musgrave, Peggy B. Finanças públicas. Teoria eprática. Trad, Carlos Alberto Primo Braga, São Paulo, Campus Edusp, 1980. p. 171-94. A figura encontra-se na p. 190.


Podemos pensar no fluxo monetário de rendas e dispêndios apresentados na figura 1 como se ele ocorresse no sentido horário. Dessa forma, a renda é recebida pelas famílias e dividida entre dispêndios em consumo e poupança das famílias. Os primeiros vão para o mercado de bens de consumo e transformam-se nas receitas das firmas envolvidas nas vendas desses bens. As poupanças são canalizadas para os investimentos, transformando-se em gastos no mercado de bens de capital, e, conseqüentemente, na receita das firmas produtoras de bens de capital. Parte das receitas das firmas é separada, a fim de prover fundos para a depreciação, e o restante é utilizado na compra dos serviços do trabalho, do capital e de outros insumos no mercado de fatores. As participações dos fatores de produção na renda nacional, determinadas por este processo, são pagas aos ofertantes destes fatores, sob a forma de salários, dividendos, juros, alugueres etc, transformando-se na renda das unidades familiares. Uma parcelados lucros, no entanto, é retirada, não sendo distribuída como dividendos. Esta parcela, somada aos fundos de participação, configura as poupanças das firmas, que são combinadas às poupanças das famílias, para financiarem o investimento, completando-se o fluxo.

Identificam-se, assim, os vários pontos de impacto dos tributos. Podem ser aplicados à renda familiar (ponto 1), aos dispêndios de consumo (ponto 2), às receitas das empresas provenientes de vendas a varejo (ponto 3), às receitas brutas das empresas (ponto 4), as receitas líquidas das empresas, descontada a depreciação (ponto 5), às folhas de pagamento (ponto 6), aos lucros (ponto 7), aos salários (ponto 8), aos lucros retidos (ponto 9), ou aos dividendos (ponto 10).

Apresentados estes conceitos básicos da teoria das finanças, podemos entender o critério financeiro, defendido por Rubens Gomes de Sousa, que separa em quatro os momentos de incidência dos tributos:14 14 Cf. Sousa, Rubens Gomes de. Idéias gerais sobre impostos de consumo. Revista de Direito Administrativo, (10): 52-73, out./dez. 1947.

2.3.1 Tributos sobre a renda produzida, mas anteriores ao processo de sua distribuição e, sobretudo, anteriores ao seu consumo ou reinvestimento (ponto 4). Ex.: Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas (IRP J), Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) etc.

2.3.2 Tributos sobre a renda distribuída, que atingem a renda na fase seguinte do processo econômico, mas que são anteriores ao seu destino final de reinvestimento ou de consumo (pontos, 1,5,6,7,8 e 10). Ex.: Imposto de Renda de Pessoas Físicas (IRPF).

2.3.3 Tributos sobre a renda poupada ou reinvestida: impostos sobre reservas que incidem no momento de sua constituição e os de transmissão propriedade inter vivos e causa mortis (pontos 9 e 11).

2.3.4 Tributos sobre a renda consumida: são os tributos sobre vínculos obrígacionais, os impostos sobre consumo ou sobre produtos industrializados, vendas, importação, exportação, circulação de mercadorias etc. (pontos 2 e 3).

Esta classificação é, cientificamente, a mais coerente.uma vez que não deixa dúvidas quanto a como classificar determinado tributo. Além disto se preocupa com o fenômeno da circulação da renda, em seus aspectos econômico financeiro e jurídico. Neste sentido, podem ser aceitos como impostos indiretos aqueles que agem sobre a renda consumida.

Não é muito diversa, neste ponto, a conclusão de José Morschbacher,15 15 Op. cit. p. 32-41 ao identificar três formas, procedimentos ou técnicas de tributação, correspondentes a três momentos distintos considerados econômica, financeira e politicamente oportunos à imposição ou tributação do setor privado da economia: a percepção da renda, a capitalização, e o acúmulo da renda. Para este autor, os impostos instituídos e cobrados em função do gasto, do consumo ou do dispêndio da renda podem ser denominados impostos indiretos.

Aceitamos esta classificação para fins didáticos, por ser rigorosamente científica. É, no entanto, ultrapassar os limites do científico, alcançando-se o casuísmo, pretender que, a partir desta classificação, possa-se justificar a Súmula n? 546. De fato, ela não foi feita com base neste critério, mas com base no critério econômico. A tentativa de se utilizar o critério financeiro para justificar a classificação de impostos entre diretos e indiretos e, depois, com base nisto, afirmar que todos os impostos indiretos geram a translação do ônus tributário é mero palpite. Não há, no critério financeiro, qualquer referência à translação dos encargos financeiros. Portanto, aceitar o critério financeiro enquanto científica e didaticamente válido não implica aplaudirmos a tese da translação econômica dos tributos indiretos. Muito menos, admitir que sejam os impostos indiretos (financeiramente falando) aqueles que, "por sua natureza", comportam "transferência do respectivo encargo financeiro". É o que veremos a seguir.

3. A TRANSLAÇÃO DOS IMPOSTOS

Uma vez que foi afirmado ser inverídica a correlação impostos diretos-não-translação e impostos diretos-translação, propomo-nos, agora, a investigar as condições para a ocorrência da translação.

É Cosciani16 16 Cosciani, Cesare. Princípios de la ciência de la hacienda. Trad. F.V.A. Domingo e J. G. Anoveros, Madrid, Ed. Derecho Financeiro, p. 303-73. V. Também Seligman, Edwin R.A. Théorie de la répercussion et de l'incidence dei l'impôt. Paris, V. Giard & E. Birère, 1910 p. 297. quem destaca os fatores a se verificarem para que se afirme que eventuais modificações no valor monetário das trocas econômicas se devem à superveniencia de um tributo ou ao seu aumento.

3.1 Fator tempo

É longo o prazo necessário para que determinada renda ou bem, que sofra uma primeira incidência jurídica de tributo, chegue ao consumidor final, passando por numerosas trocas intermediárias (tome-se, por exemplo, o tempo necessário para que o algodão, colhido na lavoura, chegue ao consumidor, na forma de roupas).

Longo prazo, de acordo com a teoria econômica, é o tempo suficientemente amplo para possibilitar que varie o número de empresas que atuam no mesmo mercado, ou que mudem as instalações físicas de cada empresa. Deste modo, torna-se possível que varie o preço das mercadorias, e esta variação pode-se confundir com aquela gerada pela variação tributária, tornando-se impossível para o analista estimar qual a parcela da variação do preço devida à translação do ônus dos impostos.

Para fins de estudo, Cosciani apresenta também a hipótese de translação a curto prazo,17 17 ... "traslación a corto plazo (short-run shifting). Hace referencia al período de tiempo durante el cual el número de empresas de una determinada industria que actuan en el mercado permanece constante y durante el que no varian las instalaciones ya existentes. Las consecuencias de un impuesto pueden ser diversas segun el grado de utilización de Ias instalaciones en el momento en que aquél se estabelece. La traslación se realiza a través de un cambio en el precio de una oferta determinada por la capacidad productiva ya las instalaciones existentes". Cosciani. op. cit. p. 310. quando a capacidade produtiva total da indústria não se altera. No entanto, o termo "indústria" é aplicado, na economia, para o conjunto de empresas que fabricam bens análogos. Tais empresas podem, individualmente, ter sua capacidade produtiva diversa daquele índice geral da indústria. Ora, não é a indústria como um todo que comparece aos tribunais, nos julgados que inspiram nossa jurisprudência, mas empresas individualmente, não podendo, portanto, os julgadores imputar a uma empresa aquela translação que ocorra na indústria.

Por fim, Cosciani aponta translação a curtíssimo prazo, ou muy breves, ou, ainda, market period shifting, referindo-se ao período em que o produtor não possa vender mais que os produtos já em estoque (ou no mercado).18 18 "... es aquel período de tiempo tan breve que no'permite llevar a efecto el proceso de producción dei bien gravado. Por tanto, la oferta viene dada por el montante de los bienes en almacenes disponibles para la venta". Cosciani. op. cit. p. 368. Tal situação, embora mais próxima daquelas submetidas aos tribunais, não corresponde ao pensamento de nossas cortes, ao julgar tais casos, alegando a translação, visto admitirem eles sempre a transferência do encargo sem redução dos lucros, o que necessariamente implica variação dos preços, ou, em outras palavras, variação do mercado.

3.2 Fator tributo

3.2.1. O montante do tributo pode ser grande ou pequeno. O montante pequeno não é, em regra, transladado; já o de grande relevância pode sê-lo.

3.2.2. O imposto pode ser calculado de modo:

- variável, de acordo com as quantidades produzidas;

- fixo;

- sobre o valor das vendas;

- sobre a renda marginal;

- sobre o capital investido na produção.

3.2.3 O imposto pode ser geral ou especial. Os impostos gerais dificilmente são transladáveis.

3.2.4 Sistema geral de arrecadação e lançamento: imposto pode ser embutido ou não no preço.

3.3 Bem onerado

3.3.1 Trajetória da curva de custos: para bens de custo fixo, a variação de preços é igual à dos impostos. Para bens como custos variáveis, não temos esta relação.

3.3.2 Elasticidade da demanda: a característica de a demanda do bem gravado contrair-se, mais ou menos sensivelmente, como conseqüência de um aumento do preço é relacionada com a possibilidade de maior ou menor translação do imposto.

3.3.3 Elasticidade da oferta.

3.3.4 Existência de bens complementares ou substitutivos.

3.3.5 Possibilidades de conservação ou deterioração dos bens gravados.(Os bens que se conservam dão a seu dono maior poder de barganha).

3.4 Fator regime econômico

3.4.1 Concorrência perfeita: situação quase inexistente em que há um mercado onde a produção e o consumo do produto estão distribuídos entre um número relevante de empresas, de modo que nenhuma empresa possa, individualmente, influir no mercado. Neste mercado ideal, todas as unidades de um mesmo bem são idênticas e fungíveis (produtos homogêneos), havendo liberdade de contratação e perfeita transmissibilidade do produto.

3.4.2 Monopólio:19 19 Cosciani. op. cit. 375-401. situação em que a oferta do bem se concentra nas mãos de uma só empresa, sendo impedido a qualquer outra empresa surgir para produzir os mesmos bens (por motivos jurídicos, econômicos, sociais etc). Não há bens no mercado concorrente com

o produzido pelo monopolista, ou, se o há, também são produzidos pelo detentor do monopólio. A demanda do bem monopolizado fraciona-se entre o número indefinido de consumidores.

3.4.3 Regimes intermediários.20 20 Cosciani. op. cit. 403-15.

a) monopólio bilateral: no mercado há dois monopolistas do mesmo bem, um dos quais possui o monopólio da demanda e o outro, o da oferta;

b) duopólio: há um regime de concorrência por parte dos consumidores, mas há somente dois produtores independentes, ou, vice-versa, dois únicos consumidores para um regime de concorrência entre os produtores;

c) oligopólio perfeito: um produto homogêneo (obtido pelo mesmo preço por qualquer contratante) é produzido por um número limitado de contratantes;

d) concorrência monopolística: no caso de haver heterogeneidade entre os produtos

3.5 Fatores relativos ao sujeito passivo da obrigação tributária

3.5.1 Possibilidade de estoques: grande, média, pequena ou nula.

3.5.2 Necessidade de manutenção de níveis mínimos de trocas.

3.5.3 Possibilidade de uso de linhas de crédito.

3.5.4 Possibilidade de abandonar a produção do bem tributado, pela de outro bem.

3.5.5 Motivação do pagamento indevido do imposto (conhecimento desta situação no momento do paga mento).

3.6 Fatores relativos à conjuntura econômica.

3.6.1 Taxa de juros.

3.6.2 Taxa de remuneração do capital, na produção do bem marcado.

3.6.3 Conjuntura: prosperidade, crise ou estagnação; inflação acentuada ou não.

Para melhor visualização do número de variáveis e de suas alternativas, a tabela 1 apresenta os fatores mencionados.

Por cálculo matemático combinatório, determina-se a possibilidade de ocorrência de 566.231.040 diferentes situações, considerando apenas estas variáveis. Poder-se-iam incluir, ainda, fatores como mobilidade do capital, tipo de bem (final ou intermediário) etc, ampliando-se o rol de possibilidades.

Fica, portanto, bastante claro o erro de nossas cortes ao atribuir a todo e qualquer imposto"indireto" (critério já demonstrado duvidoso) o fato de promover a translação. Sem dúvida, é possível que a transferência do ônus econômico ocorra, mas esta é apenas uma possibilidade, diante das diversas que poderiam ocorrer.

Dada a grande quantidade de possibilidades, acreditamos ser mais justo que o fisco, alegando ter ocorrido a translação, prove-o, pois a translação em impostos indiretos é, como vimos, uma entre mais de 550 milhões de possibilidades.

Reproduzimos, aqui, um trecho de Tarcísio Neviani.21 21 Neviani, Tarcísio, op. cit p. 151.

"O número astronômico de casos concretos possíveis(...) desperta uma reflexão. A jurisprudência criticada conseguiu, ou em lampejo de genialidade, ou por absoluta ignorância do problema em profundidade, reduzir a apenas duas as alternativas consideradas possíveis: a) se o tributo repetido é considerado indireto, houve a translação e não se defere o pedido; b) se o tributo é considerado direto, não houve a translação e concede-se a restituição. Isto não é simples, é apenas simplório. Infelizmente, graças às considerações já feitas, não é possível acreditar que a simplificação do problema em tais termos seja resultado da genialidade."

Pelo exposto, poderíamos, de antemão, concluir pelo erro de nossa jurisprudência. Propomos, no entanto, alguns outros aspectos que, acreditamos, possam corroborar nossa opinião no sentido de ser o argumento da translação do imposto inválido, quando se pensa em uma situação de mercado.

No mercado de concorrência perfeita,22 22 Os conceitos microeconômicos são extraídos de Stigum, Bernt P. & Stigum Mareia. Economia, São Paulo, Edgar Bluecher, v. I: Microeconomia, p. 158-71. como foi exposto, os compradores são muito numerosos, de modo que cada comprador possa adquirir tanto quanto queira, ao preço corrente de mercado, sem o risco de alterá-lo. Deste modo, torna-se possível estimar uma curva de demanda, *D*, que representa a reação do consumidor ao preço. Tal curva é decrescente da esquerda para a direita, de modo que quanto menor o preço, maior será a quantidade consumida. A segunda exigência de um mercado, em regime de concorrência perfeita, é de que os vendedores também sejam numerosos, a ponto de não poderem, isoladamente, afetá-lo, mas podendo vender o quanto que queiram ao preço corrente. Pode-se afirmar que a oferta de um bem será maior, conforme seja maior o preço do mesmo, delineando-se a curva de oferta *S*.

A figura 2 representa as curvas de demanda e oferta de um mesmo bem, num mercado de concorrência perfeita.


Uma vez que tanto compradores quanto vendedores são obrigados a aceitar o preço como um dado, podemos verificar que este é o ponto P(Φ), Q(Φ), o qual, uma vez estabelecido, tenderá a perdurar enquanto os fatores que tiverem determinado as posições das curvas de oferta e procura de mercado não se alterarem. Este preço provoca reações mutuamente coerentes de compradores e vendedores em termos de quantidade: tudo o que for produzido será consumido, sem sobras, sem excessos.

Suponhamos, agora, que seja instituído um imposto T. Deste modo, a curva *S* será colocada a uma distância T, para cima. Afetar-se-á, então, o equilíbrio do mercado como um todo, como se vê na figura 3. 23 23 Sobre os efeitos dos impostos nos preços, ver Stigum op. cit. p. 172-6.


Se a curva de oferta sobe de *S*para *S'*, numa distância equivalente ao imposto T, o ponto de equilíbrio não mais se encontra na interseção das curvas *S*e *D*, pois a curva *S* representa, agora, a resposta dos produtores ao preço líquido pago pelos compradores, enquanto a curva *D* é a resposta dos compradores ao preço bruto cobrado pelos produtores. A posição de equilíbrio do mercado, após a incidência do imposto, deve estar situada na interseção das curvas *S* e *D*, pois ambas dependem do preço bruto. Assim, depois da cobrança do imposto, os produtores venderão a quantidade Q(1) do produto; os compradores pagarão o preço bruto P(1), mas os produtores receberão o preço líquido P(2). Deste modo, o imposto aumenta o preço bruto pago pelos compradores, mas diminui o preço líquido recebido pelos produtores, bem como sua produção de equilíbrio.

Concluímos que a receita dos produtores, anteriormente determinada pelo quadrilátero O, P(Φ), E(Φ), QX(Φ), passa a ser o quadrilátero O, P(2), E(2), Q(1). A renda dos produtores é, conseqüentemente, diminuída do quadrilátero P(Φ), E(Φ), J, P(2).

Também no mercado oligopolista é possível verificar-se que o aumento nos impostos, se bem que implique aumento do preço pago pelo consumidor, implica, também, diminuição do preço líquido recebido pelo vendedor.24 24 Poupar-nos-emos de uma análise detalhada, que ultrapassaria os limites deste artigo. Enviamos o leitor a Stigum. op. cit. p. 237-47.

Portanto, o aumento de impostos envolverá redução da receita líquida das empresas, dado o aumento dos impostos. É este o ponto fundamental: o que o consumidor paga é o preço, pouco lhe importando seja este composto por alta taxa de imposto ou não. Do ponto de vista do consumidor, será mais conveniente adquirir um bem com baixo preço, ainda que com alta tributação, a adquirir bem semelhante, com menor tributação, mas cujo preço seja maior que o primeiro.

De fato, o imposto é parte do custo do produtor. O aumento nos impostos implicará redução no lucro do vendedor, se ele mantiver o preço do mercado.

Imagine-se a situação em que um fabricante de pregos venda sua produção antecipadamente, para, depois, comprar sua matéria-prima. Ele é obrigado a estimar a variação do custo do aço, a fim de estimar seu preço. A partir daí, entrará no mercado, concorrendo com os demais fornecedores. Suponha-se, agora, que o custo do aço aumente mais que o previsto. Naturalmente, deverá o vendedor arcar com a diferença, mantendo seu compromisso. Argumenta-se, a favor disto, que o lucro é a remuneração do risco, cabendo ao vendedor suportar o eventual prejuízo. Perguntamos, agora: se o preço do aço-determinado a nível mundial-for menor, à época da fabricação, do que aquele estimado pelo vendedor quando calculou seu custo, poder-se-á dizer que ele enriqueceu ilicitamente? Não!! De fato, o comprador pagou o preço de acordo com os padrões do mercado. Portanto, não foi logrado, pagando o preço que se lhe afigurava mais conveniente.

O mesmo se dá com relação aos impostos: fazem parte dos custos, não sendo procedente alegar-se o enriquecimento ilícito do contribuinte que, na melhor forma de direito, exige a repetição do indébito tributário. Não houve transferência de ônus por parte do vendedor ao comprador, uma vez que este pagou aquele preço determinado pelo mercado. Se fosse menor o preço do mercado, ainda assim arcaria o vendedor com a carga tributária.

O imposto é, portanto, forma de redução do lucro da empresa. O ônus financeiro e econômico do tributo ficou, conseqüentemente, para a própria empresa.

4. CONTRIBUINTE DE FATO

Contribuinte de fato é, segundo Morschbacher,25 25 Op. cit. p. 51. "aquela pessoa que, nos impostos de incidência jurídica indireta, arca em definitivo com o encargo financeiro do imposto incluído no preço do bem, serviço ou utilidade tributada, objeto de circulação econômica, constituída: a) em geral, pela pessoa que se situar na posição de consumidor ou usuário final do bem, serviço ou utilidade tributada; b) por vezes, pela pessoa do próprio contribuinte legal, o qual, em face de razões as mais diversas , pode deixar de passar adiante o valor correspondente ao imposto (...); c) por vezes, pelo primeiro adquirente do contribuinte legal (...)".

É de Becker a lição da impraticabilidade de se identificar o contribuinte de " fato", apontando ensinamentos de Lauré, Laferrière e outros.26 26 Cf. Becker, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo, Saraiva, 1963. p. 499.

Mesmo não considerando o fator impossibilidade de reconhecimento do contribuinte de fato, cabe perguntarmos qual seria a vantagem de se identificá-lo.

O contribuinte de fato é a figura desconhecida pelo legislador, que não o define nem lhe dá direitos ou obrigações.

É de Rubens Gomes de Sousa27 27 Cf. Sousa, Rubens Gomes de. Imposto de trânsito. Tráfego ou transporte-Imposto de exportação-Inconstitucionalidade-Pagamento sob protesto-Restituição. Revista de Direito A dministrativo, nf 24, Morschbacher, José. op. cit. 58-60. o princípio de que "o fisco só toma conhecimento do contribuinte legal, isto é, da pessoa expressamente designada pela lei como obrigada ao pagamento do tributo".

É fato que, na hipótese de o contribuinte de jure não cumprir a obrigação tributária, não tem o fisco qualquer amparo legal para exigir do contribuinte de fato este pagamento. Daí a conclusão de Rubens Gomes de Sousa:"Ora, se assim é em matéria de cobrança do tributo, tudo indica que assim também deva ser em matéria de restituição; por outras palavras, se o fisco não admite que a translação lhe seja oposta como defesa por ocasião da cobrança, tampouco lhe caberá opô-la, ele próprio, como defesa quando pedida a restituição (...).

O fundamento da conclusão é, tão-somente, o fato de que o fisco só conhece o contribuinte legal, e esse fato permanece constante em ambas as hipóteses."

Na realidade, o Código Tributário Nacional, no art. 121, qualifica dois tipos possíveis de sujeito passivo: o contribuinte ou o responsável.28 28 Cf. Nogueira, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 5. ed. São Paulo, Saraiva, 1980. p. 146 e segs.

Contribuinte, de acordo com aquele artigo, é o que tem"relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador"; responsável é o que, "sem revestir a condição de contribuinte", tenha sua obrigação decorrente de disposição expressa da lei.

Não é dado, portanto, ao contribuinte, de fato, o direito à repetição do indébito, por não participar ele da relação jurídico-tributária.

5. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 166 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

Ao chegarmos a este ponto, percebemos a conseqüência da aplicação do art. 166 do Código Tributário Nacional:

1. De acordo com o art. 166 citado, deve o contribuinte, no caso de repetição de tributos em que ocorre transferência do ônus financeiro, provar que não houve tal transferência, ou que foi autorizado pelo contribuinte de facto a exigir a restituição.

2. O fisco pode alegar-sem provar-que houve transferência do ônus tributário, cabendo ao contribuinte provar que a transferência não ocorreu.

3. Na hipótese - freqüente - de o contribuinte não ser bem-sucedido na prova da não-transferência, não lhe cabe a repetição.

4. O contribuinte defacto, por outro lado, não tem direito de exigir do fisco a repetição do ônus (econômico, pois o ônus financeiro não pode ser transferido, sendo daquele a quem cabe o desembolso) que lhe foi transferido , visto não ser ele parte da relação jurídico-tributária.

5. Opta-se, portanto, pelo enriquecimento do fisco, visto ser impraticável a exigência da repetição do indébito tributário dito indireto.

É a mesma conclusão a que chegaram os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, no acórdão que reproduzimos:29 29 Embargos Infringentes nf 105.361, de 17 de outubro de 1961. Apud: Neviani, Tarcísio, op. cit. p. 52.

"O mesmo contribuinte, que pode defender-se da exigência fiscal e ver reconhecido seu direito de não pagar o tributo, não pode deixar de ter legítimo interesse em lhe pedir a restituição. Note-se, aliás, que a Fazenda, ao mesmo passo que nega ação de repetição àqueles de quem exigiu o tributo, não chega a admitir que a tenham aqueles outros que, a seu ver, suportam o ônus fiscal. É de se supor que, se algum dos por isso chamados contribuintes defacto viesse ajuízo reclamar devolução da parcela indevida, teria que enfrentar a mesma objeção de que não empobreceu, pois apenas adquiriu mercadorias pelo preço que no mercado lhe eram oferecidas. E assim, não se dispondo a restituir o imposto, quer àqueles de quem o exigiu, quer àqueles que o teriam suportado, o que o fisco pretende é reter o indevido, no que não vê, aliás, nada de extraordinário, chegando mesmo a sustentar que, a enriquecer-se alguém com o indevido, melhor é que seja a coletividade, pois o enriquecimento reverterá para o bem comum."

Importa, no entanto, lembrar que a restituição de impostos é fundamentada no art. 165 do Código Tributário Nacional, cujo caput diz que "o sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo".

Este artigo é redigido na conformidade com a Constituição federal, que, no § 29 do art. 15 3, determina que "nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça...". Tal princípio, de importância ímpar em um regime constitucional, é repisado no art. 19, inciso I de nossa Carta, ao determinar que "É vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios: I.instituir ou aumentar tributos sem que lei o estabeleça...".

Portanto, a restituição dos tributos indevidos baseia-se no próprio princípio da legalidade dos tributos: o contribuinte foi coagido a pagar o imposto ilegal. Deve, portanto, ver restituído aquilo que foi coagido a pagar ilegalmente. Não pode uma norma de natureza complementar, como o Código Tributário Nacional, limitar este direito que, repetimos, é assegurado por nossa Constituição. Já que o contribuinte pagou o imposto, cabe-lhe a restituição, não porque tenha sofrido empobrecimento, mas porque foi coagido a pagar ilegalmente. Qualquer argumento de que o contribuinte de jure enriqueceria ilegalmente na restituição torna-se inválido, uma vez que é perfeitamente legal ver ao contribuinte restituído o quantum que pagou por coação.

Neste sentido, reforça-se esta tese de Brandão Machado:30 30 Cf. Machado, Brandão. Repetição do indébito no direito tributário, in Direito tributário - estudos em homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. Coord. Brandão Machado, São Paulo, Saraiva, 1983. 1983.

"Ofende, portanto, a Constituição a regra legal que anula a pretensão do solvens a ter de volta o dinheiro que o Estado lhe toma, como tributo, sem autorização legal, retendo-o sob a justificativa de que foi ganho desta ou daquela maneira, ou obtido de outrem a este ou aquele título. Se, em nenhuma hipótese, pode o Estado cobrar ou receber tributo ilegal, evidente que, quando o faz, comete ato ilícito, não enriquece ilicitamente, como pensavam, em sua maioria, os antigos juristas (...). O direito do solvens tem razões no princípio da legalidade da administração pública: individualiza-se na relação jurídica anômala criada pela tributação ilegítima (...). Com a superação da doutrina do enriquecimento injustificado, não há como justificar o art. 166 do Código Tributário Nacional, nitidamente inconstitucional, porque pretende legitimar a cobrança de tributos ilegais (...). Autorizar a cobrança do ilegal e autorizar a retenção do ilegalmente cobrado conduzem a uma mesma categoria lógica, pois a legitimidade da retenção do ilegal admitida pelo Código implica, necessariamente, a legitimidade do ato da cobrança que a antecede. Com o apoio no seu art. 166, ficam, assim, os agentes do Poder Executivo autorizados a cobrar ou apenas a receber tributos não-previstos em lei, em franco desrespeito ao art. 153, § 29, da Constituição."

6. CONCLUSÃO

Pelo exposto neste artigo, fica nítida a impropriedade da redação do art. 166 do nosso Código, bem como, data vénia, a ilegalidade das Súmulas nº 71 e 546 do STF, visto basearem-se no enriquecimento ilícito do contribuinte. C

Cabe, portanto, a reforma daquele dispositivo legal no sentido de garantir - para qualquer tributo - o direito de se mover a ação de repetição de indébito fiscal, com fundamento no princípio constitucional da legalidade. O imposto ilegalmente cobrado deve ser, sempre, restituído.

Poderá, naturalmente, o legislador optar - valendo-se, agora, de critério econômico, próprio das relações entre particulares - pelo direito de ação regressiva por parte de quem provar (quem alega, prova) a transferência do encargo econômico, contra o sujeito passivo reembolsado pelo fisco. Deste modo, preservar-se-á o Princípio Constitucional da Legalidade, ao mesmo tempo em que protegerá o legislador aquele consumidor que, de fato e conscientemente, arcou com o ônus do tributo. Seria, por exemplo, o caso de, no instrumento de contrato de compra e venda, expressamente o comprador assumir o encargo do tributo.

Ficará esta solução longe do ideal que, em nossa opinião, seria caber a restituição, sempre, ao contribuinte de fato. No entanto, é preciso que nos conformemos com os nossos próprios limites, no sentido de ser impossível a identificação do contribuinte de fato, na grande maioria das vezes. Deste modo, cabe assegurar ao contribuinte de jure o direito de ação contra o Estado, garantindo-se, assim, a incolumidade do Princípio da Legalidade.

Entre o contribuinte de jure ver seu lucro aumentado - licitamente - por ter conseguido vender sua mercadoria por preço alto, de um lado, e, de outro, ver o fisco aumentar sua arrecadação, ao arrepio do Princípio Constitucional da Legalidade, cabe escolhermos a primeira opção. Não deve o legislador, no entanto, fechar suas portas àquele consumidor que possa provar seu direito à restituição em seu negócio privado com o contribuinte de jure. Perceba-se que o consumidor não faz, em nenhum momento, parte da relação jurídico-tributária. Simplesmente, exige ele seu direito, decorrente de seu negocio particular com o vendedor. Levantada a conclusão, passamos, agora, a uma proposta no sentido de contribuirmos para a evolução dos estudos de direito tributário.

É a moderna teoria de direito comercial, de origem italiana, encabeçada por Guido Alpa, que nos leva a pensar na ampliação da noção de consumidor, passando a ser considerado como tal não apenas aquele que compra determinado bem, mas também aqueles terceiros que, eventualmente, venham a compartilhar o uso do mesmo. Neste sentido, seria consumidora a mãe de família que compra um produto para prepará-lo para a refeição dos seus. No entanto, seus familiares, que não participaram da relação de compra e venda, também são considerados consumidores, visto que não só usam a mercadoria, mas também assumem o risco de dano inerente ao seu consumo. Deste modo, passa a ser aceita pela moderna doutrina a participação de terceiros naquela relação contratual de compra e venda, visto que estes concorrem no risco econômico do uso do bem.

Para o direito tributário, no entanto, somos forçados, ainda, a acatar o uso restrito da figura jurídica do consumidor, assumindo-o como apenas o adquirente, visto ser este o único a desembolsar um quantum financeiro.

Dentro de nossa convicção na unidade do direito, acreditamos na influência recíproca de seus ramos.

É conveniente, portanto, estudiosos do direito tributário, começarmos a pensar na evolução do conceito de consumidor também em nossos trabalhos. Afinal, não há como contestar o fato de que terceiros, que não o adquirente, usam o mesmo bem. Ao usarem-no, arriscam seu patrimônio, uma vez que assumem os riscos de eventuais danos que ele lhes cause.

Ainda que imensurável, não há como negar uma participação do patrimônio dos terceiros no uso do bem. Neste sentido, seria possível pensarmos - a nível teórico, insistimos - na possibilidade de os terceiros terem direito a uma parcela da restituição, na proporção de seu risco. Aceitando-se esta idéia, a relação vendedor/comprador passaria a sofrer a influência de terceiros, interessados no seu desenrolar. Se fosse dado, portanto, direito ao consumidor de pedir a restituição do quantum que o vendedor viu repetido em sua relação com o fisco, desde que provasse que assumiria o encargo financeiro, seria possível, também, chegarmos ao ponto de garantirmos aos terceiros que usassem o bem, assumindo, conjuntamente com o adquirente, o ônus econômico do seu uso do bem, a restituição de parte daquele valor.

Antevemos reações por parte daqueles que peregrinam na sua vigília em prol da incolumidade do direito tributário. Certamente, não hesitarão eles em levantar o fato de não ter havido fato econômico tributável, na participação de terceiros, não cabendo, portanto, a restituição. A estes, respondemos que a relação que propomos não é de natureza jurídico-tributária, visto que esta se encerra na medida em que o fisco restitui ao solvem o quantum pago indevidamente. É, antes, de natureza civil, mas de origem tributária. Aqui vemos a interligação dos ramos do direito a que nos referimos. Todos, os que nos preocupamos com o desenvolvimento do direito, devemos desprezar os limites de nossos ramos, ampliando nossos estudos a outras áreas do conhecimento, a fim de garantirmos a boa execução de nossa tarefa.

Lembramos que a proposta aqui feita é mera sugestão, que enseja a convidar a reflexões sobre uma possível evolução do direito, no sentido de garantir a justiça, sem ferir princípios constitucionais. Não esperamos a aplicação de tais idéias a curtíssimo prazo, mas as expomos como forma de plantarmos algo novo no já bastante fértil terreno tributário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Stigum, Bernt P. & Stigum, Mareia. Economia São Paulo, Edgard Blucher.
  • 1
    Súmula nº 71: "Embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indevido." Súmula nº 546: "Cabe a restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão que o contribuinte
    de jure não recuperou do contribuinte de fato o
    quantum respectivo." Art. 166 do CTN: "A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la."
  • 2
    Cf. ERE nf 33.115,2 de outubro de 1961 ; RE nf 46.450,10 de ja neiro de 1961; ERE nf 47.069, 27 de abril de 1962; ERE nf 45.678, cujos textos integrais são reproduzidos por Morschbacher, José. In: Repetição do indébito tributário indireto. São Paulo, Rev. dos Tribunais, 1984 p. 81-91.
  • 3
    Cf. Noronha, Jardel & Martins, Odalea.
    Referências da Súmula do Supremo Tribunal Federal Brasília, 1969. v. 4, p. 207 e segs.
  • 4
    "(...) o Supremo Tribunal Federal inclina-se a conceitos econômico-financeiros baseados no fenômeno da incidência e da repercussão dos tributos indiretos, no pressuposto errado,
    data vénia, de que, sempre, eles comportam transferência de ônus do contribuinte
    de jure para o contribuinte de fato. Então, haveria locupletamento indébito daquele às expensas deste, motivo pelo qual deveria ser recusada a repetição. É o suporte pretendidamente lógico da Súmula nf 71. " (RE nf 45.977 - Espirito Santo. In: Morschbacher, José. op. cit. 91-4
  • 5
    RE nf 45.977,27 de setembro de 1966,2." T. (RTJ, 40/37); RE nf 58.290,17 de junho de 1966, 3." T. (RTJ, 39/325); ERE nf 58.660, 10 de abril de 1969, Pleno; todos reproduzidos na íntegra por José Morschbacher (op. cit.).
  • 6
    Cf. Laufenburger, Henry.
    La Distinzionefra imposte diretteeindirette. In: Rivista di Diritto Finanzario e Scienza dele Finanze, Milano Dott. A. Giuffrè, págs: 3-18, mar. 1954 .
  • 7
    Cf. Neviani, Tacísio.
    A restituição detributos indevidos. Seus problemas, suas incertezas. São Paulo, Resenha Tributária, 1983.63-71; Morschbacher. José. op. cit. 21-4.
  • 8
    Ver nota 4.
  • 9
    Morschbacher, José. op. cit. 23. Voltaremos à translação de impostos no momento oportuno.
  • 10
    Apud: Laufenburger, Henry. op. cit.
  • 11
    Id.ibid. p. 18.
  • 12
    Cf. Morschbacher, José. op. cit. 24-30.
  • 13
    Cf. Musgrav e, Richard A. Musgrave, Peggy B.
    Finanças públicas. Teoria eprática. Trad, Carlos Alberto Primo Braga, São Paulo, Campus Edusp, 1980. p. 171-94. A figura encontra-se na p. 190.
  • 14
    Cf. Sousa, Rubens Gomes de. Idéias gerais sobre impostos de consumo.
    Revista de Direito Administrativo, (10): 52-73, out./dez. 1947.
  • 15
    Op. cit. p. 32-41
  • 16
    Cosciani, Cesare.
    Princípios de la ciência de la hacienda. Trad. F.V.A. Domingo e J. G. Anoveros, Madrid, Ed. Derecho Financeiro, p. 303-73. V. Também Seligman, Edwin R.A.
    Théorie de la répercussion et de l'incidence dei l'impôt. Paris, V. Giard & E. Birère, 1910 p. 297.
  • 17
    ... "traslación a corto plazo
    (short-run shifting). Hace referencia al período de tiempo durante el cual el número de empresas de una determinada industria que actuan en el mercado permanece constante y durante el que no varian las instalaciones ya existentes. Las consecuencias de un impuesto pueden ser diversas segun el grado de utilización de Ias instalaciones en el momento en que aquél se estabelece. La traslación se realiza a través de un cambio en el precio de una oferta determinada por la capacidad productiva ya las instalaciones existentes". Cosciani. op. cit. p. 310.
  • 18
    "... es aquel período de tiempo tan breve que no'permite llevar a efecto el proceso de producción dei bien gravado. Por tanto, la oferta viene dada por el montante de los bienes en almacenes disponibles para la venta". Cosciani. op. cit. p. 368.
  • 19
    Cosciani. op. cit. 375-401.
  • 20
    Cosciani. op. cit. 403-15.
  • 21
    Neviani, Tarcísio, op. cit p. 151.
  • 22
    Os conceitos microeconômicos são extraídos de Stigum, Bernt P. & Stigum Mareia.
    Economia, São Paulo, Edgar Bluecher, v. I: Microeconomia, p. 158-71.
  • 23
    Sobre os efeitos dos impostos nos preços, ver Stigum op. cit. p. 172-6.
  • 24
    Poupar-nos-emos de uma análise detalhada, que ultrapassaria os limites deste artigo. Enviamos o leitor a Stigum. op. cit. p. 237-47.
  • 25
    Op. cit. p. 51.
  • 26
    Cf. Becker, Alfredo Augusto.
    Teoria geral do direito tributário. São Paulo, Saraiva, 1963. p. 499.
  • 27
    Cf. Sousa, Rubens Gomes de. Imposto de trânsito. Tráfego ou transporte-Imposto de exportação-Inconstitucionalidade-Pagamento sob protesto-Restituição.
    Revista de Direito A dministrativo, nf 24, Morschbacher, José. op. cit. 58-60.
  • 28
    Cf. Nogueira, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 5. ed. São Paulo, Saraiva, 1980. p. 146 e segs.
  • 29
    Embargos Infringentes nf 105.361, de 17 de outubro de 1961. Apud: Neviani, Tarcísio, op. cit. p. 52.
  • 30
    Cf. Machado, Brandão. Repetição do indébito no direito tributário, in
    Direito tributário - estudos em homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. Coord. Brandão Machado, São Paulo, Saraiva, 1983. 1983.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 1987
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