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Nas franjas dos arquivos – incursões, biografias e memórias 1 1 Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Lara Nunes – Tikinet – revisao@tikinet.com.br 3 3 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Cunha, M. T. S.. 2019. (Des)arquivar. : Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor

É fazendo alusão ao gesto de arquivar que Maria Teresa Santos Cunha escolheu nomear sua mais recente publicação (Des)arquivar: arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Esse mesmo gesto, porém, aparece invocando o movimento de desarquivamento, a partir do qual arquivos pessoais e ego-documentos4 4 A autora conceitua os ego-documentos evocando as definições de James Amelang (2005) e Antonio Castillo Gómez (2013) já na apresentação do livro. Ela os considera, sob esse respaldo, textos escritos a respeito de experiências, sentimentos e vivências pessoais. são mobilizados por historiadores no tempo presente. Arquivamento e desarquivamento também ganham espaço em nove dos 11 artigos que compõem o livro e chamam atenção pelo fato de ambos não serem evocados em uma chave de ambivalência, já que a autora apresenta o primeiro como parte de experiências pessoais que comportaram textualidades e materialidades específicas e o segundo como o ato – também datado e produtor de textualidade – de interrogar, histórica e historiograficamente, as fontes inquiridas. Assim, a lida historiográfica com arquivos pessoais e os chamados ego-documentos são apresentados pela via da descrição metodológica e amparados teoricamente por um percurso de pesquisas sobre o tema já bastante consolidado.

Maria Teresa Santos Cunha é professora titular do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), já tendo também lecionado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Seu percurso institucional foi marcado pela elaboração e execução de projetos de pesquisa que mobilizaram um conglomerado de bolsistas de graduação e pós-graduação em torno da organização, catalogação e acondicionamento de diversos arquivos pessoais. Dentre os projetos, destacam-se “Territórios de muitas escritas: os arquivos pessoais dos irmãos Boiteux (Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, séculos XIX e XX)”, “Perfil de uma biblioteca, traços de um leitor: estudos sobre o acervo de um professor – Victor Márcio Konder (1925-2005)”, “Do traçado manual ao registro digital: o acervo pessoal e profissional do professor catarinense Elpídio Barbosa (1909-1966): dimensões e possibilidades” e “Do manual ao digital: arquivos pessoais de educadores catarinenses: Elpídio Barbosa e Walter Piazza (século XX)”5 5 Dados retirados da Plataforma Lattes (CNPq). http://lattes.cnpq.br/1895532605964830. .

De maneira semelhante, os artigos selecionados para a composição do livro ilustram partes do percurso de pesquisa que tomou tônus na elaboração e execução dos projetos supracitados. É também por ter sido escrito em meio à lida de execução de um projeto de pesquisa que o compilado executa satisfatoriamente a exposição de percursos metodológicos e arrazoados teóricos. O livro, tal qual anunciado já no prefácio escrito por Maria Helena Câmara BastosBastos, M. H. C., Cunha, M. T. S., & Mignot, A. C. V. (2002). Destino das letras: História, educação e escrita epistolar. Editora UPF., é uma reunião de estudos organizados em duas categorias: arquivos pessoais e “documentos da intimidade”. Assim, a primeira parte traz um conglomerado de quatro artigos que versam sobre experiências de pesquisa que tiveram como fonte os arquivos pessoais de Lucas Alexandre Boiteux e Elpídio Barbosa. Os documentos da intimidade, cuidadosamente apresentados na segunda parte, dizem respeito a diários, cartas e álbuns de recordação de normalistas e professoras primárias que datam da década de 1940 a de 1960.

A primeira parte do escrito, que se incumbe de apresentar e tematizar os arquivos pessoais de Lucas Boiteux e Elpídio Barbosa, mostra o cuidado em biografar o acervo, bem como quem o produziu. Assim, recebem atenção tanto as materialidades quanto as interações discursivas dos arquivos. Três6 6 São eles: “Essa coisa de guardar... Homens de letras e acervos pessoais”, “Tempos vividos na escola militar: memórias de um aluno (1897-1900)” e “Lembranças escolares em um arquivo pessoal: bordejos sobre a formação de Lucas Alexandre Boiteux na Escola Naval”. dos quatro artigos acondicionados nessa categoria versam sobre Lucas Alexandre Boiteux, a quem a autora credita a alcunha de um “homem de letras” (Cunha, 2019Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor., p. 21). A autora matiza, então, as práticas de colecionismo, colocando-as como parte de um dispositivo de constituição de um protagonismo político que exige a construção de homens públicos modelares. Opta, então, por se centrar na série de escritos “Bordejos sobre meio século de Marinha”, veiculada no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro entre janeiro e junho de 1955. É por meio dela que Maria Teresa Santos Cunha revisita os seus escritos a respeito do trote dos calouros, do prédio escolar e da alimentação oferecida aos estudos da Escola Naval do Rio de Janeiro.

Merece destaque o tratamento que a autora emprega à escrita memorialística, entendida como lacunar e polifônica. Ela, portanto, comporta o esquecimento e pressupõe escolhas e seleções (Cunha, 2019Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor.). Essa consideração respalda o necessário movimento de crítica à fonte utilizada como objeto para a escrita dos artigos, já que, ao considerar que o esquecimento constitui o texto memorialístico, endossa o questionamento historiográfico necessário para “biografar o acervo”. Para além disso, algumas das considerações de Lucas Alexandre Boiteux, então estudante, a respeito dos conteúdos ministrados permitem elaborar questionamentos acerca das práticas escolares reais, sobretudo quando confrontadas com o currículo prescrito para a Escola Naval. Para Boiteux, o caráter demasiadamente teórico dos ensinamentos pouco conversava com o viés prático que era institucionalmente anunciado (Cunha, 2019Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor.). Nesse sentido, as memórias discentes avultadas nos artigos são entendidas como ferramentas valiosas para o entendimento de alguns aspectos da cultura escolar que formou e sociabilizou os então futuros militares. Ademais, essa cultura permitiu a elaboração de reflexões acerca da formação escolar de um perfil profissional específico (Cunha, 2019Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor.).

O arquivo de Elpídio Barbosa é apresentado em um artigo específico7 7 O artigo carrega o título “O arquivo pessoal do professor catarinense Elpídio Barbosa (1909-1966): do traçado manual ao registro digital”. , que se demora sobre sua trajetória profissional e sobre a constituição e a organização dos documentos. Depositado no Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas (IDCH) da Udesc, o arquivo é composto por cerca de 200 peças em suportes variados. Nele, estão salvaguardados vestígios, sobretudo, de sua atuação profissional em cargos de inspetoria escolar e gerenciamento do ensino. Para matizar os seus trâmites profissionais, que nuançam a constituição do acervo e são o centro das tematizações do professor/colecionador, Maria Teresa Santos Cunha se questiona sobre a constituição de uma rede de sociabilidades específicas e entende o sujeito como um intelectual mediador (Cunha, 2019Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor.). Além disso, a autora advoga em seu escrito pela centralidade do arquivo pessoal revisitado para pensar a existência de um passado que reverbera a experiência do tempo. Essa premissa permite, assim, pensar a atuação do historiador que se debruça sobre esse fundo documental e matizar as diversas temporalidades que repousam no arquivo (Cunha, 2019Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor.).

A segunda categoria de documentos avultados recebe a alcunha documentos da intimidade, compondo a segunda parte do livro. Dos cinco capítulos que narram as experiências de pesquisa, com fontes categorizadas, três tematizam os diários pessoais de professoras ou professorandas brasileiras. O primeiro deles – “Do baú ao arquivo: escritas de si, escritas do outro” – retoma os diários de duas jovens normalistas florianopolitanas, escritos entre 1967 e 1969. Ambos são entendidos como escritas ordinárias, documentos da intimidade responsáveis pela documentação de aspectos cotidianos e de vivências passageiras. Também por tais características, Maria Teresa Santos Cunha (2019)Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor. entende que os diários pessoais inexistem fora da gravitação temporal que os suporta e ressalta sua operacionalização como fonte histórica e o difícil, porém necessário, movimento historiográfico de problematizar as experiências pessoais que ganham voz nos diários, relacionando-as às experiências sociais mais vastas. Por fim, deixa clara a urgência de discutir políticas de formação de acervos e arquivos, a fim de que as instituições também abracem tais documentos, uma vez que eles são importantes para a percepção de distintos territórios de sensibilidades e narrativas do vivido.

Para a escrita de “A bio que foi grafada: gênero e modelos geracionais no diário de MRRH”, também foi usado como fonte um diário pessoal. Nessa investida, dois cadernos usados como diários por uma adolescente gaúcha entre os anos de 1964 e 1966 foram inquiridos para nuançar as suas experiências individuais e estratégias de construção de subjetividade. Cunha (2019)Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor. destaca o entendimento generificado de sua escrita memorialística, já que muitos dos espaços e experiências de socialização descritos foram tipicamente protagonizados por mulheres de classe média de 1960. Pensar tais escritas permite matizar as formas pelas quais se dá a construção de subjetividades, para além dos modelos geracionais e da experienciação das vivências de gênero. A autora defende, ainda, o valor teórico das escritas em si para estudos de História Cultural da Educação, que privilegiam o estudo das representações construídas e das experiências partilhadas (Cunha, 2019Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor.). O mesmo viés de pesquisa se mantém no capítulo seguinte – “Uma vida em primeira pessoa: leituras de ego-documentos de uma professora brasileira” –, em que quatro cadernos de anotações da jovem “Senhorita M.” são tomados como fontes. A Senhorita M., uma professoranda, ocupou-se em registrar as suas memórias entre 1967 e 1969. Chama atenção, nesse documento, o exercício reiterado de reportar as práticas de leitura dos romances da Biblioteca das Moças, pois ele permite inferir sobre a formação da sensibilidade romântica e a permanência de lógicas religiosas nos cursos de formação de professoras. Por fim, Maria Teresa Santos Cunha (2019)Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor. defende a consideração dessas escritas como partes de uma cultura material escolar, já que permitem uma maior aproximação com o funcionamento interno das instituições educativas.

A troca de correspondências entre duas missivistas – Cláudia e Lúcia – legou à pesquisadora um conjunto de 171 cartas. As cartas foram trocadas entre 1967 e 1968 e são tomadas como lugares de memória (Nora citada por Cunha, 2019Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor.) e analisadas como práticas culturais e um conjunto de documentos históricos no artigo “Por hoje é só...: cartas entre amigas”. Ambas as correspondentes eram professoras primárias, sendo que a primeira era também aluna do curso de Pedagogia. Cunha (2019)Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor. optou por dar ênfase aos fragmentos das práticas escolares reportadas como meio de acessar os excertos de um cotidiano escolar. Por meio deles, segundo a autora, foi possível pensar nas artes de viver, nas condições a que professoras e alunas estavam submetidas e na sua representação, a partir dos dispositivos narrativos tipográficos de que Cláudia e Lúcia lançaram mão.

O último capítulo da obra toma como fonte álbuns de poesia e recordações de quatro normalistas compilados entre 1941 e 1966. O esforço foi o de recorrer a esses objetos e fazê-los dialogar com a História da Educação, ultrapassando a dimensão afetiva e a comum atração e curiosidade que geram quando acessados. Considerou-se esses documentos como da vida cotidiana, cuja produção tem um norte institucionalmente fornecido pela escola. Essa consideração é respaldada pelo expediente de sinalização de ensinamentos escolares nos supracitados suportes documentais e até mesmo pelo recorrente uso da linguagem escrita, tradicionalmente aprendida nas instituições formais de ensino. A pesquisadora destaca, por fim, a riqueza da fonte, para além da sua importância como portadora de uma cultura escrita e de um mundo de afetos e sensibilidades, como uma forma de perceber os resvalos e trânsitos de uma cultura escolar, ainda que indiretamente (Cunha, 2019Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor.).

Vale ressaltar que, embora a obra traga artigos cuja circulação já teve vez em periódicos especializados da área, ela tem o mérito de organizá-los por meio de categorias coerentes e de expor o arsenal metodológico e o leque teórico empregado pela autora ao longo de sua trajetória como professora e pesquisadora. A esse respeito, a cara atuação da professora Maria Teresa Santos Cunha fica evidenciada não só pela diversidade e vastidão dos acervos pesquisados, mas também pela constante atualização dos referenciais teóricos mobilizados em seus movimentos de pesquisa. Conforme o posfácio do livro, o percurso da produção acadêmica apresentado na obra faz ver uma história sensível dos documentos da intimidade. É o olhar da pesquisadora que confere sentido à história dos afetos, das proximidades e das redes de sociabilidades. Por fim, o livro tem uma dimensão biográfica perceptível na apresentação dos encontros proporcionados em meio aos percursos de arquivos e nas trajetórias de pesquisa ilustradas pelas iniciativas reportadas. Alguns desses encontros ganharam espaço e corpo na orelha da obra, de autoria de Felipe Matos, e no posfácio, de Ana Luíza Mello Santiago de Andrade, ambos ex-orientandos da autora.

“(Des)arquivar: arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente” traz um convite à incursão em arquivos pessoais e à olhar atentamente para os documentos da intimidade, bem como contribuições significativas à História da Educação ao apresentar um leque de possíveis fontes para a escrita historiográfica. Para além disso, o rol de conceitos, aportes teóricos e aproximações metodológicas da obra permite aos leitores pensar os possíveis usos de tais documentos para entender a cultura escolar e as suas interfaces com o entorno que a cerca.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Lara Nunes – Tikinet – revisao@tikinet.com.br
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    Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
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    A autora conceitua os ego-documentos evocando as definições de James Amelang (2005) e Antonio Castillo Gómez (2013) já na apresentação do livro. Ela os considera, sob esse respaldo, textos escritos a respeito de experiências, sentimentos e vivências pessoais.
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    Dados retirados da Plataforma Lattes (CNPq). http://lattes.cnpq.br/1895532605964830.
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    São eles: “Essa coisa de guardar... Homens de letras e acervos pessoais”, “Tempos vividos na escola militar: memórias de um aluno (1897-1900)” e “Lembranças escolares em um arquivo pessoal: bordejos sobre a formação de Lucas Alexandre Boiteux na Escola Naval”.
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    O artigo carrega o título “O arquivo pessoal do professor catarinense Elpídio Barbosa (1909-1966): do traçado manual ao registro digital”.

Referências

  • Bastos, M. H. C., Cunha, M. T. S., & Mignot, A. C. V. (2002). Destino das letras: História, educação e escrita epistolar. Editora UPF.
  • Cunha, M. T. S. (2019). (Des)arquivar: Arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. Rafael Copetti Editor.
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Editor responsável: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo. https://orcid.org/0000-0003-2221-5160

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2020
  • Aceito
    07 Mar 2020
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