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Desafios e oportunidades para a participação no futsal escolar extracurricular: percepções de alunas do ensino médio 1 1 Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Andreza Silva (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br

Desafíos y oportunidades para la participación en el fútbol sala escolar extraescolar: percepciones de estudiantes de secundaria

Resumo

A participação das mulheres em modalidades esportivas de reserva masculina, como o futsal, é permeada de lutas por espaços e legitimidade, inclusive no contexto escolar. Para meninos, movimentar-se é algo valorizado, enquanto meninas são ensinadas a serem mais quietas, dificultando o acesso a determinadas práticas esportivas. O objetivo deste estudo foi analisar os desafios e oportunidades para a participação no futsal escolar extracurricular na perspectiva de alunas de ensino médio de uma escola privada. Os dados foram produzidos em entrevistas semiestruturadas e analisados com base na Teoria Fundamentada. A iniciativa da escola em oportunizar a prática, as atitudes heterodoxas das alunas, o apoio dos pais e o pertencimento ao grupo possibilitam às meninas uma atuação legítima no futsal nesta escola.

Palavras-chave
Esporte; Escola; Futsal; Gênero; Educação

Resumen

La participación femenina en modalidades deportivas masculinizadas, tales como el fútbol sala, está impregnada de luchas por la conquista de espacios y legitimidad, incluso en el contexto escolar. Para los niños, mostrarse dinámicos y en movimiento es algo que se valora, mientras que las niñas son educadas para mantener actitudes pasivas, lo que dificulta su acceso a ciertas prácticas deportivas. El objetivo de este estudio fue analizar, desde la perspectiva de las alumnas de secundaria de una escuela privada, los desafíos y las oportunidades existentes para la participación en el fútbol sala escolar extracurricular. Los datos se obtuvieron a partir de entrevistas semiestructuradas, y fueron analizados de en base a la Teoría Fundamentada. La iniciativa de la escuela a la hora de ofrecer oportunidades para la práctica, las actitudes heterodoxas de las alumnas, el apoyo de los padres y la pertenencia al grupo son factores que posibilitan que las niñas jueguen un papel legítimo en el fútbol sala en la escuela.

Palabras clave
Deporte; Escuela; Fútbol Sala; Género; Educación

Abstract

The participation of women in men preserve sports, such as futsal, is permeated by struggles for spaces and legitimacy, including in the school context. For boys, moving is valued, whereas girls are taught to be quieter, making it difficult to access certain sports activities. This study aimed to analyze the challenges and opportunities for women participation in extracurricular school futsal, from the perspective of high school students from a private school. Data were obtained with semi-structured interviews and analyzed based on the Grounded Theory. The school’s initiative to offer the opportunity for practice, the students’ heterodox attitudes, the support of parents, and feeling of belonging to the group, make it possible for girls to play a legitimate role in futsal at this school.

KeywordsKeywords
Sport; School; Futsal; Gender; Education

Introdução

A escola é um ambiente propício para produção e incorporação de conhecimento, sendo dialeticamente estruturada pelos agentes envolvidos, enquanto também estrutura as formas de ação deles (Hodkinson, Anderson, et al., 2007Hodkinson, P., Anderson, G. et al. (2007) Learning cultures in further education. Educational Review, 59(4), 399-413.). Por estar inserida em uma sociedade e momento histórico específicos, cada escola ensina valores e conteúdos legitimados arbitrariamente em sua própria cultura de forma relacional ao espaço social em que se encontra (Hodkinson, Biesta, et al, 2007Hodkinson, P. et al. (2008). Understanding Learning Culturally: Overcoming the Dualism Between Social and Individual Views of Learning. Vocations and Learning, 1(1), 27-47.). Assim, diversas maneiras de relações sociais estão presentes nos espaços da escola, reproduzindo algumas formas de dominação e desigualdade. Exemplos são as diferenças de acesso a oportunidades de aprendizagem entre alunos e alunas nas práticas esportivas (Altmann et al., 2012Altmann, H. et al. (2012). Corpo e movimento: produzindo diferenças de gênero na educação infantil. Pensar a prática, 15(2), 272-550.; Altmann et al., 2018Altmann, H. et al. (2018). Gênero e cultura corporal de movimento: práticas e percepções de meninas e meninos. Revista Estudos Feministas, 26, 1-16.).

É bastante comum observar meninos serem estimulados a incorporarem determinadas formas de cultura de movimento de maneira precoce, legitimada e diversificada. Por outro lado, meninas acabam sendo, por muitas vezes, educadas em contextos ligados a práticas menos ativas, que não demandam muito vigor ou esforço físico, desfavorecendo seu desempenho e aprendizado motor (Daolio, 2002Daolio, J. (2002). Cultura Educação Física e futebol. Editora da Unicamp.). Para os meninos, movimentar-se é algo valorizado inclusive em espaços escolares, enquanto as meninas são muitas vezes ensinadas a serem mais quietas e reservadas (Altmann et al., 2018Altmann, H. et al. (2018). Gênero e cultura corporal de movimento: práticas e percepções de meninas e meninos. Revista Estudos Feministas, 26, 1-16.).

Tal cenário legitima e reproduz simbologias ligadas à destreza física masculina em detrimento da passividade e fragilidade corporal feminina (Coakley, 2017Coakley, J. (2017). Sport in society: issues and controversies (12. ed). McGrath-Hill Education.), dificultando o acesso e participação da mulher em muitas atividades esportivas (Anderson & White, 2018Anderson, E., & White, A. (2018) Sport, theory and social problems: A critical introduction (2. ed). Routledge.), tanto na escola (Altmann et al., 2018Altmann, H. et al. (2018). Gênero e cultura corporal de movimento: práticas e percepções de meninas e meninos. Revista Estudos Feministas, 26, 1-16.), quanto em outros cenários (Delaney & Madigan, 2009Delaney, T, & Madigan, T. (2009). The sociology of sports: An introduction. Mcfarland & Company, inc. Publishers.; Oliveira et al., 2019Oliveira, F. V. C. et al. (2019). The women inclusion on rugby: perceptions of Brazilian national team players. Motriz, 25(3), 1-7.).

A participação das mulheres em modalidades esportivas tradicionalmente reservadas3 3 O termo “reserva masculina” (male preserve) foi utilizado pela primeira vez como uma referência aos clubes de rúgbi na década de 1970 para conceituar e expressar normas de masculinidade das classes médias e emergentes inglesas. Estas normas eram derivadas do ethos de uma elite com raízes militares, fonte e sustentação do conceito inglês de gentleman (Dunning & Sheard, 1973). ao público masculino, por exemplo o futebol e o futsal no Brasil, é permeada por histórias de lutas por espaços e legitimidade social, assim como formas de dominação masculina nem sempre explícitas (Salvini & Marchi Júnior, 2016Salvini, L., & Marchi Júnior, W. (2016). “Guerreiras de chuteiras” na luta pelo reconhecimento: relatos acerca do preconceito no futebol feminino brasileiro. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 30(2), 303-311.), inclusive no contexto escolar (Oliveira et al., 2017Oliveira, F. V. C et al. (2017, 3-8 dezembro). Futsal escolar como espaço de reserva masculina: análise da participação feminina nos Jogos Escolares do Estado de São Paulo/Brasil, região de Ribeirão Preto/SP, entre os anos de 2010 e 2016 [Apresentação de artigo]. XXXI Congresso Alas, Montevidéu, Uruguai.). Em consequência, inúmeras são as barreiras enfrentadas por jogadoras de futebol e futsal, das quais podemos citar a pouca oferta de locais para treino, manter-se engajadas na prática e o preconceito frente a um estereótipo que as afasta dos padrões de feminilidade esperados pela sociedade (Goellner, 2005Goellner, S. V. (2005). Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 19(2), 143-151.; Mascarin et al., 2017Mascarin, R. B. et al. (2017). Feminilidade e Preconceito de Gênero no Futsal: Uma perspectiva de atletas brasileiras. Fluxos & Riscos, 2(2), 83-96.).

Existe uma doxa, ou seja, “o ponto de vista dos dominantes, que se apresenta e se impõe como ponto de vista universal” (Bourdieu, 2011Bourdieu, P. (2011) Razões Praticas: sobre a teoria da ação (11. ed.) Papirus., p. 120), ligada às diferenças entre homens e mulheres no campo esportivo. Tal estrutura mostra-se como o principal limitador para que elas estejam envolvidas de forma plena no esporte (Salvini & Marchi Júnior, 2015Salvini, L., & Marchi Júnior., W. (2015). O aprendizado pelo corpo: conceitos de Pierre Bourdieu para uma leitura do futebol feminino. Revista Tempos e Espaços em Educação, 8(15), 179-181.), um espaço social, histórica e majoritariamente dominado por homens (Coakley, 2017Coakley, J. (2017). Sport in society: issues and controversies (12. ed). McGrath-Hill Education.).

Neste sentido, existe tanto na escola quanto no campo esportivo uma divisão simbólica entre homens e mulheres (Altmann et al., 2018Altmann, H. et al. (2018). Gênero e cultura corporal de movimento: práticas e percepções de meninas e meninos. Revista Estudos Feministas, 26, 1-16.; Daolio, 2002Daolio, J. (2002). Cultura Educação Física e futebol. Editora da Unicamp.; Pfister & Bandy, 2018Pfister, G., & Bandy, S. J. (2018). Gender and sport. In R. Giulianotti (Ed.), Routledge handbook of the sociology of sport (pp. 220-230). Routledge.), definida por um processo de dominação (Bourdieu, 2014aBourdieu, P. (2014a). A Dominação Masculina. Best Bolso.) que consagra diferenças biológicas frente a um paradoxo de configuração binária, sob a qual homens são masculinos, viris e fortes, enquanto as mulheres são femininas, frágeis e dóceis (Goellner, 2007Goellner, S. V. (2007). Feminismos, mulheres e esportes: questões epistemológicas sobre o fazer historiográfico.Movimento, 13(2), 171-196.). Neste contexto, uma modalidade esportiva tem mais chances de ser adotada por determinado grupo na medida em que não contradiga o esquema corporal estereotipado, enquanto depositário de uma visão dóxica do mundo social (Salvini & Marchi Júnior, 2015Salvini, L., & Marchi Júnior., W. (2015). O aprendizado pelo corpo: conceitos de Pierre Bourdieu para uma leitura do futebol feminino. Revista Tempos e Espaços em Educação, 8(15), 179-181.).

Assumir que mulheres praticam esporte, mas não tão bem quanto os homens, legitima formas de dominação que delegam a elas um papel secundário (Anderson & White, 2018Anderson, E., & White, A. (2018) Sport, theory and social problems: A critical introduction (2. ed). Routledge.). Considerar o esporte praticado por mulheres como menos violento, intenso e vigoroso remete a uma crença de que este não é um lugar legítimo para elas (Coakley, 2017Coakley, J. (2017). Sport in society: issues and controversies (12. ed). McGrath-Hill Education.). Nesse contexto, os homens se posicionam como o grupo estabelecido, ortodoxo, que zela pelo funcionamento ordinário das relações sociais, enquanto as mulheres são as agentes recém-chegadas, heterodoxas, que procuram transformar a doxa vigente (Bourdieu, 2014Bourdieu, P., & Passeron, J. C. (2014). Os Herdeiros: os estudantes e a cultura. UFSC.a).

Este processo binário de dominação envolve também uma forma de associação estereotipada entre praticantes de determinada modalidade esportiva e sua orientação sexual (Coakley, 2017Coakley, J. (2017). Sport in society: issues and controversies (12. ed). McGrath-Hill Education.). A literatura demonstra que jogadoras de futsal parecem se preocupar em zelar por sua imagem feminina hegemônica como estratégia de melhor divulgar a equipe e seus feitos esportivos, especialmente por praticarem uma modalidade esportiva considerada como de reserva masculina (Mascarin et al, 2017Mascarin, R. B. et al. (2017). Feminilidade e Preconceito de Gênero no Futsal: Uma perspectiva de atletas brasileiras. Fluxos & Riscos, 2(2), 83-96.). Essa preocupação se fortalece e reproduz pelo preconceito que associa determinadas práticas, como o futsal aos homens (Silveira & Stigger, 2010Silveira, R., & Stigger, M. P. (2010). Ocio y homosexualidad: um estúdio etnográfico sobre el asociativismo deportivo de mujeres, em el contexto de um deporte dicho masculino. Polis: Revista Latinoamericana, 26, 133-155.) e a ginástica rítmica às mulheres (Boaventura & Vaz, 2010Boaventura, P. L. B., & Vaz, A. F. (2010, 23-26 agosto). Políticas do corpo feminino: a(s) identidade(s) feminina(s) em atletas de Ginástica Rítmica (GR) [Apresentação de artigo]. Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, Florianópolis, SC, Brasil.; Pfister & Bandy, 2018Pfister, G., & Bandy, S. J. (2018). Gender and sport. In R. Giulianotti (Ed.), Routledge handbook of the sociology of sport (pp. 220-230). Routledge.).

Apesar deste cenário, diferentes abordagens pedagógicas na escola podem produzir comportamentos diversos nos grupos de alunos(as). Tais desigualdades podem ser menores nas culturas de aprendizagem em que meninas e meninos são educados com menor diferenciação entre si (Altmann et al., 2012Altmann, H. et al. (2012). Corpo e movimento: produzindo diferenças de gênero na educação infantil. Pensar a prática, 15(2), 272-550.). Uma abordagem com ofertas de oportunidades de experiências e valorização de feitos mais igualitária no ambiente escolar parece ser um fator diferencial para o desenvolvimento corporal de meninos e meninas (Castejón & Gimenéz, 2015Castejón, F. J., & Giménez, F. J. (2015). Teachers’ perceptions of physical education content and influences on gender differences. Motriz: Revista de Educação Física, 21(4), 375-385.). Destaca-se, neste contexto, o papel da escola em contribuir ou não para evitar ou reproduzir tais diferenças, além de auxiliar no sucesso ou fracasso da continuidade da prática esportiva por parte das alunas (Altmann et al., 2012Altmann, H. et al. (2012). Corpo e movimento: produzindo diferenças de gênero na educação infantil. Pensar a prática, 15(2), 272-550.).

Frente ao exposto, o objetivo deste estudo foi analisar os desafios e oportunidades para a participação no futsal escolar no contexto extracurricular a partir da perspectiva de alunas de ensino médio de uma escola privada de uma cidade do interior de São Paulo.

Este estudo, ao investigar a participação de alunas na prática de uma modalidade esportiva de reserva masculina no contexto escolar, se justifica por oferecer subsídios e contribuições relacionados: a) aos modos como as estudantes-atletas percebem as barreiras e oportunidades ligadas à sua prática esportiva; b) às formas como tais relações se expressam no ambiente escolar; c) aos meios e atitudes com que as participantes lidam com as barreiras e desafios para a prática; e d) à participação e influência da instituição escolar sobre a prática de futsal por meninas. Espera-se que os resultados deste estudo possam contribuir para futuras intervenções pedagógicas relacionadas ao fomento da prática esportiva por meninas nas escolas, assim como reflexões ligadas à oferta de oportunidades mais igualitárias de participação social entre homens e mulheres na sociedade contemporânea e a influência da educação escolar neste processo.

Método

Contexto:

Este trabalho enquadra-se em uma abordagem qualitativa de pesquisa e como opção metodológica foi adotada a Teoria Fundamentada (Grounded Theory – termo original em inglês) (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa (2. ed). Artmed.; Strauss & Corbin, 2008Strauss, A., & Corbin, J. (2008). Pesquisa Qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de Teoria Fundamentada (2. ed). Artmed.). No caso deste trabalho, os dados são oriundos de entrevistas semiestruturadas com as participantes do estudo: alunas de ensino médio praticantes de futsal de uma escola privada em uma cidade do interior do estado de São Paulo.

Essa instituição de ensino faz parte de uma rede nacional de escolas católicas e oferece uma série de atividades extracurriculares opcionais aos(às) alunos(as). Dentre as atividades esportivas oferecidas para os(as) estudantes do ensino médio estão o futsal, a dança, a ginástica artística, o handebol e o voleibol.

O futsal feminino extracurricular teve início nesta escola com treinamentos sistemáticos na década de 1990. Nesta época, não havia muitos campeonatos para alunas que as incentivasse a continuar nesta prática e por esse motivo as equipes deixaram de existir, ficando um período longo em inatividade. Em 2011, o então coordenador das modalidades esportivas extracurriculares da escola iniciou um trabalho para incentivar as alunas a praticarem futsal. Para isso, foi realizado no segundo semestre deste referido ano um torneio interclasses entre os oitavos e nonos anos do ensino fundamental, incluindo também as turmas de ensino médio, em que as alunas poderiam organizar suas equipes por afinidades pessoais, não necessariamente por divisão de turma de sala de aula. Em 2012, a escola aproveitou este momento em que algumas alunas estavam envolvidas com o futsal e estruturou uma equipe destinada às estudantes do ensino médio.

No ano de 2016, quando as entrevistas deste estudo foram realizadas, a equipe era composta por 12 estudantes-atletas. As alunas entrevistadas participavam voluntariamente da equipe de futsal, que representa a escola em competições em esferas regional e nacional. Os treinos acontecem duas vezes por semana, com duração de uma hora cada, no período contrário ao das aulas curriculares. A equipe possui uma treinadora bacharela em Educação Física e Esporte, contratada especificamente para os treinos de futsal deste grupo.

Participantes:

Neste trabalho, foram entrevistadas cinco estudantes-atletas de futsal escolar que foram nomeadas como P1, P2, P3, P4 e P5 para preservar suas identidades. Os contatos iniciais foram feitos com a direção da escola e professores responsáveis pelas equipes de futsal da instituição, que indicaram as datas e o local adequado para a realização das entrevistas. Para a seleção das participantes, foram seguidos alguns critérios, sendo as participantes alunas do ensino médio que: a) praticassem futsal pela equipe representativa da escola; b) tivessem participado de ao menos uma partida do JEESP4 4 A importância dos Jogos Escolares do Estado de São Paulo (JEESP) se dá pela abrangência, pois participam Unidades Escolares de Ensino Fundamental e Médio das Redes Pública Estadual, Pública Municipal, Privada, além das Escolas Técnicas Estaduais e Federais. A organização e realização dos JEESP são de responsabilidade das Secretarias de Estado da Educação; Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude; Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência; e Secretaria do Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação. de 2015 e/ou 2016 (este último critério se dá de modo a garantir um nível de envolvimento mais profundo das entrevistadas com a prática do futsal); c) praticassem futsal sistematicamente apenas no ambiente escolar; d) tivessem mais tempo de experiência de participação na equipe.

Após a apresentação dos procedimentos e do caráter voluntário de participação na pesquisa, todas as alunas entrevistadas assinaram o Termo de Assentimento, assim como seus pais ou responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Ambos os documentos foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade sede do último autor deste artigo.

Produção e análise de dados:

As entrevistas ocorreram de forma individual, presencial e no próprio local de treinamento da equipe. Quando houve necessidade de aprofundar algum tópico que se mostrou importante para a pesquisa, foi realizada uma nova entrevista com as voluntárias.

Por se tratar de entrevistas semiestruturadas, o roteiro de perguntas inicial é um ponto de partida que pode ser modificado durante a entrevista, de acordo com novos temas que possam surgir e que sejam pertinentes (Minayo, 2006Minayo, M. C. S. (2006). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde (9. ed). Hucitec.). Por isso, este instrumento foi reconstruído continuamente durante o processo de produção e análise de dados. A partir da primeira rodada de entrevistas e transcrições das respostas, iniciou-se o processo de análise, que consistiu em alguns momentos em movimentos de idas e vindas entre as categorias e eixos temáticos: Microanálise; Codificação aberta; Codificação axial; Codificação seletiva; Validação do esquema teórico (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa (2. ed). Artmed.).

Resultados e discussão

A partir da percepção de alunas de ensino médio que jogam futsal na escola estudada, foi possível refletir sobre a participação das mulheres dentro dos campos esportivo e escolar, além de alguns de seus desdobramentos. Os resultados são apresentados em dois eixos temáticos (ET): 1) “Percepções sobre a participação de mulheres no futsal”, tendo como categorias principais as noções sobre a legitimidade do futsal praticado por mulheres, as barreiras para a prática, o abandono por parte de colegas, estereótipos e preconceitos sobre sexualidade e feminilidade; 2) “O engajamento no futsal: as influências da família e da escola sobre oportunidades de prática e transformação social”, com categorias principais relacionadas aos primeiros contatos com a prática do futsal, a influência familiar sobre o engajamento nesta modalidade esportiva e a participação da escola na oferta de oportunidades de prática e transformação social.

Nesta estrutura, o primeiro eixo apresenta desafios e barreiras que envolvem a prática do futsal por mulheres, enquanto o segundo demonstra a influência positiva da família e da escola no engajamento das alunas nesta prática esportiva, além da oportunidade de transformação social em relação a oportunidades mais igualitárias de prática esportiva na escola.

ET 1: Percepções sobre a participação das mulheres no futsal

O primeiro aspecto evidenciado nos discursos das entrevistadas foi a dificuldade de legitimação do futsal praticado por mulheres, tanto na escola quanto na sociedade em geral. Todas as participantes mencionaram que a atenção e reconhecimento oferecidos a esta modalidade esportiva são muito pequenos, principalmente quando comparado ao futsal praticado por homens.

Acho muito baixa [legitimação e divulgação] e que deveria ser maior. Tudo que é ligado ao futebol5 5 Considera-se o futsal, neste trabalho, como uma modalidade esportiva específica e autônoma, diferente do futebol. Porém, devido sua origem histórica no futebol de salão e, consequentemente, no futebol de campo, é comum que o futsal compartilhe valores culturais com o futebol (Mascarin et al., 2017). Por esta razão, em alguns momentos do texto, existe uma proximidade semântica do modo de abordagem e interpretações sobre fenômenos sociais próprios dessas modalidades esportivas. As entrevistadas, ao falarem sobre uma, também se remetem à outra. Por esta razão, em alguns trechos dos discursos o futebol foi mencionado, por vezes referindo-se à prática do futsal, por vezes a certa generalização dos “jogos com bolas nos pés” (Scaglia, 2011, p. 23). é só masculino, só menino faz futebol, ou que não é coisa de menina. Esses dias a minha mãe falou que ia me levar para o futsal e a amiga dela falou: “Mas ela faz futsal? Nossa que diferente!” E eu falei: “Pois é, né!” E ela falou que só fazia vôlei, essas coisas assim. Não que seja ruim ela só fazer vôlei, mas para ela é estranho fazer futsal, pelo fato de ser mulher.

(P1)

É um pouco diferente do [futsal] masculino. Porque no masculino eles [escola] incentivam bem mais, tanto que tem [torneio] interclasses masculino, mas feminino não tem mais.

(P2)

Quando veem um cara jogando, falam “Nossa, vai ter jogo de futsal!” Quando é [futsal] feminino eles falam “Vai ter futsal feminino”. Como se fosse uma diferença. É menos reconhecido. Tem uma diferença.

(P3)

Essa pequena legitimação do futsal praticado por mulheres tem grande relação com a sua rotulação como uma prática esportiva masculinizante (Goellner, 2005Goellner, S. V. (2005). Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 19(2), 143-151.). Dentre as consequências deste valor arbitrário estariam a falta de patrocínios para as equipes (Mascarin et al., 2017Mascarin, R. B. et al. (2017). Feminilidade e Preconceito de Gênero no Futsal: Uma perspectiva de atletas brasileiras. Fluxos & Riscos, 2(2), 83-96.), especialmente decorrente de menor apoio midiático, além de ser associado à masculinização da mulher (Silveira & Stigger, 2013Silveira, R., & Stigger, M. P. (2013). Jogando com as feminilidades: um estudo etnográfico em um time de futsal feminino de Porto Alegre. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 35(1), 179-194.).

Pode-se perceber que as alunas entrevistadas se posicionam como agentes que buscam legitimação social dentro de um cenário androcêntrico, no qual elas precisam atuar de forma a subverter a doxa instaurada (Salvini & Marchi Júnior, 2015Salvini, L., & Marchi Júnior., W. (2015). O aprendizado pelo corpo: conceitos de Pierre Bourdieu para uma leitura do futebol feminino. Revista Tempos e Espaços em Educação, 8(15), 179-181.). Pode-se então relacionar a heterodoxia às mulheres (e meninas adolescentes) que jogam, pois fazem parte de um campo onde os homens detêm o poder e legitimação.

Por muito tempo, as mulheres foram restringidas às oportunidades de práticas esportivas devido a discursos que sugeriam a perda de características femininas, ou o prejuízo à geração de filhos. Historicamente, o futebol e o futsal fazem parte deste grupo de modalidades esportivas das quais as mulheres foram proibidas de praticar no passado (Mascarin et al., 2019; Salvini & Marchi Júnior, 2016). No discurso de P1 é possível verificar os desdobramentos dessa proibição quando refere que as pessoas percebem com estranhamento uma mulher jogando futsal, mas percebem com normalidade sua participação no voleibol. Um discurso interessante neste sentido foi o de P3, ao dizer que pessoas se dirigem ao futsal praticado por mulheres com diferença, com menor reconhecimento. Percebe-se uma ênfase no termo “futsal feminino”, indicando não ter o mesmo valor que o futsal praticado por homens, sem a utilização de qualquer adjetivo. Este, por sua vez, é comumente legitimado apenas como “futsal”, fundamentado em uma doxa sob a qual não é necessário qualificar a modalidade esportiva praticada pelos homens, diferente daquela que envolve as mulheres.

Atualmente, apesar de estar vivenciando um processo de maior valorização e reconhecimento material e simbólico (Mascarin et al., 2019Mascarin, R. B. et al. (2019). Brazilian women elite futsal players’ career development: diversified experiences and late sport specialization. Motriz, 25(2), 1-10.; Souza & Martins, 2018Souza, A. C. F., & Martins, M. Z. (2018). O paradoxo da profissionalização do futsal feminino no Brasil: entre o esporte e outra carreira. Pensar a prática, 21(1), 26-39.), o futsal praticado por mulheres ainda está à margem do futsal praticado por homens no ideário de legitimidade em nossa sociedade. Organizado e regido em sua maioria por homens, são deixados para as mulheres espaços restritos nas federações, meios de comunicação, espaços de jogo, como também no incentivo à prática (Salvini & Marchi Júnior, 2015Salvini, L., & Marchi Júnior., W. (2015). O aprendizado pelo corpo: conceitos de Pierre Bourdieu para uma leitura do futebol feminino. Revista Tempos e Espaços em Educação, 8(15), 179-181.). Conforme mencionado por P2, existe um incentivo maior ao futsal praticado por homens no ambiente escolar, uma vez que existe um torneio de futsal interclasses masculino, mas não feminino.

Quanto ao ideário comum na sociedade sobre uma menina que joga futsal, a maioria das entrevistadas disse que existe um estranhamento por parte de quem não está acostumado a acompanhar meninas que praticam esta modalidade esportiva. Apesar disso, as alunas demonstram saber que este fato é algo relacionado com a cultura e costumes de uma sociedade. Acreditam muitas vezes que as pessoas ainda possuem esta percepção, mas que isso é algo em processo de transformação.

Em relação às outras pessoas, ninguém é acostumado a ver mulher jogar, e por mais que tenha muito, tem muita gente que acha estranho ainda […] tem gente que acha que menina joga por querer atenção, sabe? E eu acho que também não tem nada a ver, porque a gente joga porque gosta, como os meninos.

(P1)

Quando nasce um homem e uma mulher, a primeira coisa que a mulher ganha é uma boneca, e o homem ganha uma bola […] ela vai começar ou a não gostar de esporte nenhum ou ir para dança, vôlei, esse tipo de coisa […] Minha família, por exemplo, nunca diferenciou. É mais questão de como a sociedade vê […] a pessoa que faz [pratica alguma modalidade esportiva] eu acho que não muda nada. Até melhora, porque você não vai ser aquela menininha que tipo, qualquer toque já vai começar a reclamar […] mais questão de como a sociedade vê mesmo.

(P2)

Às vezes as pessoas falam “Nossa, você é menina e vai jogar bola?” Elas [jogadoras de futsal] deixam de jogar pensando na opinião do próximo. A sociedade é muito machista.

(P4)

As participantes deste estudo referiram um estranhamento por parte da sociedade, e exemplificaram alguns costumes, como diz P2, quanto à forma de educação diferenciada entre meninos e meninas, especialmente através das brincadeiras costumeiramente incentivadas. A virilidade é algo culturalmente esperado e relacionado aos homens e meninos, assim como a fragilidade às mulheres e meninas, e consequentemente, a opção por atividades que reproduzam esses valores são mais costumeiramente incentivadas e ensinadas (Daolio, 2002Daolio, J. (2002). Cultura Educação Física e futebol. Editora da Unicamp.).

A violência simbólica (Bourdieu, 1983Bourdieu, P. (1983). Questões de sociologia. Marco Zero.) é percebida no relato das entrevistadas quando denunciam uma visão machista da sociedade (P4). O futsal se encaixaria nessas práticas ditas viris e, por esse motivo, as pessoas estariam inclinadas a estranhar quando se trata de uma mulher. Apesar disso, as alunas que fizeram essa escolha parecem acreditar que não há relação direta entre uma modalidade esportiva ser ou não masculina. Conforme disseram P1 e P2, não há problemas em jogar futsal e qualquer forma de estranhamento é uma percepção da sociedade construída de forma a reproduzir valores arbitrários e preconceituosos pautados em uma relação dóxica e binária entre homens e mulheres.

Sobre meninos e meninas jogarem juntos no contexto da escola estudada, foi questionado como aconteceu para as alunas a entrada neste espaço de reserva masculina e se há diferenciações entre os jogadores e jogadoras. Elas disseram jogar junto com meninos frequentemente e que a princípio não é muito bem aceito por eles quando a menina joga bem, pois deslegitima o pretensioso maior sucesso e legitimidade dos homens no futsal. Ademais, acreditam que mesmo que isso esteja enraizado na cultura de determinado grupo, as mulheres estão buscando legitimar seus feitos no campo esportivo e escolar, demonstrando que possuem corpos capazes de praticar qualquer modalidade esportiva com bom desempenho.

Mulheres estão ganhando mais espaço, estão jogando melhor, e a gente está quase no mesmo nível dos homens […] a gente vai jogar fora às vezes, junta as meninas para alugar uma quadra, e às vezes os homens ficam olhando: “Nossa um monte de mulher jogando”.

(P3)

Eu fui a um clube e perguntei para os meninos se eu podia jogar com eles. Estava eu e uns primos meus. Aí eu consegui roubar a bola de um deles e outro falou assim: “Nossa, você está perdendo bola pra menina?” E ele falou assim: “Ah, eu estou deixando, né?”

(P1)

Nota-se um processo de deslegitimação por parte dos meninos sobre os feitos esportivos das meninas. A masculinidade, enquanto questão de honra, encontra no campo esportivo um local onde há a expressão pública e a possibilidade de preservação dos padrões tradicionais arbitrariamente estabelecidos (Elias & Dunning, 1992Elias, N., & Dunning, E. (1992). A busca da excitação: Desporto e lazer no processo civilizacional. Difel.). As divisões da ordem social, mais precisamente as relações sociais de dominação entre homens e mulheres, se inscrevem sob a forma de hexis6 6 O conceito de hexis consiste na incorporação das formas corporais e posturas, que em longo prazo torna-se um sistema visível de conhecimento e reconhecimento social. A hexis é um capital físico ou corporal correspondente a uma disposição e uma trajetória individual além de uma dimensão de grupo (Bourdieu, 2014a). corporais opostas, por princípios de divisão que classificam e legitimam as práticas entre masculinas e femininas (Bourdieu, 2014bBourdieu, P. (2014b). Notas provisórias sobre a percepção social do corpo. Pro-Posições, 25(1), 247-256. https://doi.org/10.1590/S0103-73072014000100014
https://doi.org/10.1590/S0103-7307201400...
). Fica clara nessa perspectiva uma luta por poder simbólico no campo esportivo, que no caso deste estudo se estende ao campo escolar, pois as alunas se colocam como um grupo que está jogando cada vez melhor, realizando feitos antes reservados aos homens e assim ganhando espaço e legitimidade, incomodando e questionando a doxa vigente.

Por outro lado, algumas entrevistadas manifestaram que colegas abandonaram a equipe de futsal da escola por influência externa, principalmente por parte dos pais.

Eu tenho uma amiga que treinava com a gente, ela treinou três meses e parou porque o pai dela não deixou mais. Ele é bem machista e ela não treina mais com a gente […] No início eu fiquei meio assustada, né? Eu perguntei: “Por que seu pai não deixa? O meu deixa, por que o seu não deixa?” E ela disse que não ia discutir com o pai dela, que ele é bravo, e não tem como lutar contra isso. E de certa forma não tem mesmo, né? É ela contra o pai.

(P3)

Expressões similares a essa proibição por parte dos pais podem ser encontradas na literatura quando se fala na restrição histórica imposta a mulheres em determinadas práticas esportivas sob a alegação de fragilidade física e emocional (Barreira et al., 2018Barreira, J. et al. (2018). Produção acadêmica em futebol e futsal feminino: estado da arte dos artigos científicos nacionais na área da educação física. Movimento, 24(2), 607-618.; Oliveira et al., 2019Oliveira, F. V. C. et al. (2019). The women inclusion on rugby: perceptions of Brazilian national team players. Motriz, 25(3), 1-7.). O fato de que o ambiente esportivo fortalece o “espírito do guerreiro masculino” é sustentado pela lógica que vê homens e mulheres como seres em oposição. Essa oposição binária engessa as relações ao procurar determinar comportamentos fixos relacionados diretamente às diferenças sexuais biológicas (Goellner, 2007Goellner, S. V. (2007). Feminismos, mulheres e esportes: questões epistemológicas sobre o fazer historiográfico.Movimento, 13(2), 171-196.).

A atitude dos pais mencionados pelas alunas entrevistadas está de acordo com o que se espera de uma sociedade patriarcal que nega às mulheres as práticas que são tidas como masculinizantes. A construção/apresentação corporal das mulheres se constitui como o principal limitador das práticas cuja base é o discurso de dominação dos agentes legítimos no campo esportivo, no caso, os homens (Salvini & Marchi Júnior, 2015Salvini, L., & Marchi Júnior., W. (2015). O aprendizado pelo corpo: conceitos de Pierre Bourdieu para uma leitura do futebol feminino. Revista Tempos e Espaços em Educação, 8(15), 179-181.).

A sexualidade também surgiu como um tema de destaque no discurso das participantes, sendo que todas acreditam não haver qualquer relação entre modalidade esportiva e orientação sexual, embora isso tenha sido inúmeras vezes uma forma de questionamento e até de barreira à prática.

Meu pai não aceitava [que ela jogasse futsal], porque ele é um cara à moda antiga, muito machista. Ele tinha amigas que eram lésbicas e jogavam bola, então falava que futsal era só para meninas que eram lésbicas, e que eu futuramente poderia querer ser uma por querer jogar futsal. E foi muito difícil, porque meu pai não aceitou, por não entender tudo isso.

(P4)

A inserção da mulher no futsal foi se constituindo ao longo do tempo com o enfrentamento de barreiras, sendo algumas relativas a preconceitos sobre sexualidade. Há uma recorrente associação estabelecida de forma preconceituosa e arbitrária entre mulheres praticantes de futebol e futsal com homossexualidade (Mascarin et al., 2017Mascarin, R. B. et al. (2017). Feminilidade e Preconceito de Gênero no Futsal: Uma perspectiva de atletas brasileiras. Fluxos & Riscos, 2(2), 83-96.). As participantes deste estudo mencionaram que foram diversas vezes questionadas acerca de sua sexualidade apenas pelo fato de terem escolhido o futsal como modalidade esportiva. Essa construção social leva a uma suspeita violenta de que mulheres que jogam futebol e futsal são homossexuais, e a referência constante a isso tenta legitimar tal relação através de uma falsa naturalidade. As alunas demonstram isso ao dizer que as pessoas fazem uma associação de que elas irão “para o outro lado” em relação à sua sexualidade, devido ao fato de praticar um esporte de reserva masculina, como presente na fala de P1.

Só porque joga, só porque faz uma coisa diferente, acham que está indo para o outro lado, para mim não influencia em nada.

(P1)

Atletas de futsal de elite (Mascarin et al., 2017Mascarin, R. B. et al. (2017). Feminilidade e Preconceito de Gênero no Futsal: Uma perspectiva de atletas brasileiras. Fluxos & Riscos, 2(2), 83-96.) e da seleção brasileira de rúgbi (Oliveira et al., 2019Oliveira, F. V. C. et al. (2019). The women inclusion on rugby: perceptions of Brazilian national team players. Motriz, 25(3), 1-7.) mencionam que demonstrações de feminilidade em modalidades esportivas de reserva masculina estão diretamente ligadas a uma necessidade de serem bem-vistas pelo mercado esportivo. Neste contexto, as jogadoras precisam adotar um padrão de feminilidade próximo daquele hegemonicamente imposto, o que facilitaria a atração de patrocinadores e espectadores aos jogos, configurando como uma forma de violência sobre as mulheres atletas. Desta forma, a mulher esportista busca incorporar ações de outros espaços sociais para o espaço esportivo a fim de legitimar uma feminilidade esperada socialmente e se estabelecer no campo do esporte. Essa forma de incorporar elementos pertencentes ao “ser feminino” já reconhecidos, como comportamentos, cabelos compridos ou uniformes mais ajustados, busca legitimar um corpo que é tanto feminino, em suas diversas possibilidades de manifestação, quanto capaz de desenvolver características exigidas pelo esporte, como força e resistência (Salvini et al., 2012Salvini, L. et al. (2012). A violência simbólica e a dominação masculina no campo esportivo: algumas notas e digressões teóricas. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 26(3), 401-410.).

Nota-se, tanto nos discursos das alunas entrevistadas neste estudo, assim como no de atletas de elite, o incômodo com a associação preconceituosa entre a prática de modalidades esportivas de reserva masculina e a homossexualidade. Porém, ao mesmo tempo em que demonstram insatisfação, as atletas acabam por sujeitar-se à violência simbólica e binária de apresentarem uma única forma hegemônica de feminilidade, algo implicitamente incorporado e externado também entre as alunas entrevistadas, conforme o exemplo de P3.

Não tem nada a ver. Eu sou superfeminina e jogo futsal há três anos, jogo handebol, mas sou totalmente feminina. Não interfere em nada. Tem a ver com sei lá, se você gosta de correr, se você gosta de pular, você tem um destaque pra isso, mas não como uma forma estética, ou outra coisa qualquer. Às vezes perguntam se eu sou homossexual porque jogo futsal. É muito machista.

(P3)

Tal manifestação reflete a necessidade de se justificar, mesmo em posição de discordância com a doxa vigente, reconhecendo as ações de violência e reproduzindo o estereótipo feminino hegemônico que atravessa e influencia os campos esportivo e escolar.

ET 2: O engajamento no futsal: as influências da família e da escola sobre oportunidades de prática e aprendizado social

Quanto às formas de primeiros contatos das alunas entrevistadas com a prática do futsal, destaca-se a influência familiar desde a infância, especialmente através do pai, irmãos ou primos. É possível destacar uma ligação entre as famílias e a cultura do futebol e futsal através de costumes ligados ao lazer, como assistir a partidas de outros membros da família, assistir jogos de futebol pela televisão ou brincar de bola com primos e irmãos.

Eu sempre achei muito legal, via na TV, meu pai assistia aos jogos. Eu frequentava o campo com ele, então acho muito legal.

(P4)

Eu e o meu pai, a gente sempre foi no parque […] a gente se divertia muito. Ele jogava com os amigos e eu ia à noite ver o futsal dele.

(P5)

É notável a influência de uma herança cultural familiar (Bourdieu & Passeron, 2014Bourdieu, P., & Passeron, J. C. (2014). Os Herdeiros: os estudantes e a cultura. UFSC.) que tornou possível o contato precoce e naturalizado das alunas entrevistadas com o futsal, além do desenvolvimento do gosto por esta modalidade esportiva. As famílias transmitem aos seus filhos um capital cultural que influencia o ethos, ou seja, um sistema de valores implícitos e interiorizados que ajudam a constituir as atitudes do indivíduo (Bourdieu, 1998Bourdieu, P. (1998). Capital social: Notas provisórias. In M. A. Nogueira & A. Catani (Orgs.), Escritos de Educação (pp. 65-69). Vozes.).

A maioria das alunas entrevistadas neste estudo teve apoio familiar para praticar futsal. Em alguns casos, a princípio houve questionamento por parte dos pais e até mesmo o incentivo à prática de outras modalidades esportivas culturalmente tidas como mais adequadas às mulheres. No entanto, esses posicionamentos mudaram conforme as alunas demonstraram real interesse e envolvimento com o futsal.

Eu comecei fazendo judô e minha mãe ficava insistindo para eu fazer balé. Só que não era uma coisa que eu queria, que sentia vontade de fazer. Aí chegou uma época em que ela desistiu e me deixou fazer o que eu quisesse.

(P2)

Minha mãe me apoiou muito […] tive apoio da minha mãe e a gente passou por cima do meu pai, e eu joguei. Hoje meu pai é outra pessoa.

(P4)

Assim como as alunas entrevistadas, as atletas de futsal sul-americanas de elite do estudo de Altmann e Reis (2013)Altmann, H., & Reis, H. H. B. (2013). Futsal feminino na América do Sul: Trajetórias de enfrentamentos e de conquistas. Movimento, 19(3), 211-232. também receberam apoio e incentivo familiar ao longo de sua trajetória, com destaque para a figura do pai. Apesar de receber certo suporte, grande parte das atletas mencionou que também sofreu certa resistência de ao menos um membro da família, mas que foi superado em um segundo momento através da demonstração de sua competência esportiva.

Através da literatura apresentada e dos relatos das participantes, nota-se uma tendência de apoio à prática, o que ajuda as estudantes-atletas a se manterem envolvidas com o futsal. No entanto, este apoio se deu pela demonstração prévia de competência, de vontade de jogar, e não um incentivo em um primeiro momento, como costuma ser o caso dos meninos (Daolio, 2002Daolio, J. (2002). Cultura Educação Física e futebol. Editora da Unicamp.).

Porém, frente às barreiras e desafios manifestados no eixo temático 1, e as resistências iniciais da família para a prática do futsal, a escola em que este estudo foi realizado teve influência determinante sobre o engajamento das estudantes-atletas com a prática do futsal.

A maioria das alunas entrevistadas iniciou esta prática na própria escola, quando resolveram entrar para a equipe de futsal no contraturno de suas atividades escolares.

Comecei aqui mesmo […] A minha amiga falou para a gente começar a fazer e se a gente não gostasse, parava. Só que a gente começou a fazer e foi gostando, formou o time e continua jogando.

(P1)

Quando eu era pequena, eu não jogava muito. Mas há três anos eu e as meninas combinamos de formar um time, era só as meninas da sala mesmo, e o ensino médio, que era separado, juntou esse ano.

(P3)

A escola parece ser um ambiente de grande importância na oferta de oportunidades para iniciação e engajamento na prática, especialmente no caso do futsal praticado por mulheres, como no estudo de Santana e Reis (2003) com jogadoras de elite de futsal no estado do Paraná, em que o principal local de iniciação da maioria das atletas foi justamente a escola, tanto nas aulas de Educação Física quanto nas atividades extracurriculares. Destaca-se nestes cenários, o potencial da escola de não apenas disseminar uma cultura esportiva ligada ao futsal, mas também a ação transformadora e heterodoxa em relação aos preconceitos e estereótipos que envolvem esta prática.

Embora o caso da escola em que as alunas entrevistadas estudam não seja um cenário imune aos preconceitos e estereótipos que apresentam barreiras e desafios às praticantes de futsal, ela atua como um ambiente auxiliar na construção de disposições e gostos esportivos, pois possibilita e valoriza algumas práticas às quais essas estudantes não teriam acesso.

Além da herança cultural familiar e as oportunidades oferecidas pela escola em questão, outro aspecto que influenciou o engajamento das alunas com o futsal foi a identificação delas com o grupo de colegas interessadas por esta modalidade esportiva. A rede de apoio criada entre elas mostrou-se de grande influência no suporte ao envolvimento e dedicação ao futsal na escola.

Tal envolvimento fica evidente nas descrições das iniciativas de algumas alunas, que convidaram amigas para participar dos treinos e, em forma de rede de contatos, configuraram uma equipe. Neste cenário, a amizade foi um grande impulsionador para que várias alunas iniciassem a prática do futsal nesta escola. Destaca-se deste modo, a importância da formação de redes de convivência e a busca por associações com indivíduos que compartilham de disposições semelhantes (Bourdieu, 1986Bourdieu, P. (1986). The forms of capital. In J. F. Richardson (Ed.), Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education (pp. 241–258). Greenword Press.).

Achava [o futsal] uma modalidade esportiva muito legal […] todas as meninas fazem porque ajuda o físico […] sempre gostei, minhas amigas vinham junto, a gente se trocava junto, e falava “Vamos para o futsal!”.

(P4)

As meninas daqui são superlegais, a gente se vê no recreio, eu passo o recreio com elas, a gente tem uma amizade superforte […]. A gente já viajou para jogar em outras cidades, e acaba se ligando mais na hora do ônibus. É a parte mais legal da viagem. A gente dorme todo mundo no mesmo quarto e tem todas aquelas brincadeirinhas de viagem, e eu gosto disso.

(P5)

Pelo futsal a gente virou amiga […] é muito bom treinar, é uma relação de fora de quadra e que a gente consegue manter dentro de quadra.

(P2)

Tal importância dada às colegas de equipe e amigas, no caso das alunas deste estudo, também foram relatados por jogadoras de futsal paranaenses como fatores que contribuem para a continuidade de seu envolvimento com a prática do futsal (Santana & Reis, 2003Santana, W. C., & Reis, H. H. B. (2003). Futsal feminino: perfil e implicações pedagógicas. Revista brasileira de Ciência e movimento, 11(4), 45-50.).

Além do contato com as amigas e a formação de um grupo que compartilha de disposições para a prática de futsal, a escola ainda contribui neste caso para este engajamento com uma prática esportiva de reserva masculina, criando um ambiente de manifestação cultural de resistência e de afirmação das meninas, consistindo em uma cultura de aprendizagem (Hodkinson, Biesta, et al., 2007Hodkinson, P., Anderson, G. et al. (2007) Learning cultures in further education. Educational Review, 59(4), 399-413.) importante para as alunas entrevistadas neste estudo. Além disso, a oportunidade de representar a escola em competições externas é outro fator que as une e fortalece o vínculo com a prática do futsal, legitimando tanto esta atividade dentro da instituição quanto o valor simbólico das estudantes-atletas perante a comunidade escolar.

A gente tem que representar a escola. E quando a gente sai para jogar fora em outras escolas é muito tenso porque fica toda a torcida deles, vaiando e torcendo. A gente fica lá, tipo, a gente precisa ganhar para voltar [para a escola de origem] e contar para todo mundo que a gente ganhou. E tem amigas que saem daqui para acompanhar e torcer por nós [nos jogos fora da escola]. Então, a pressão é muito grande, mas é legal.

(P4)

Tal perspectiva demonstra o potencial do futsal de afirmar os gostos e disposições das alunas, assim como legitimar suas práticas e fortalecer laços de amizade. Estas relações são importantes para uma percepção diferenciada e mais fortalecida acerca da prática em que estão inseridas (Silveira & Stigger, 2010Silveira, R., & Stigger, M. P. (2010). Ocio y homosexualidad: um estúdio etnográfico sobre el asociativismo deportivo de mujeres, em el contexto de um deporte dicho masculino. Polis: Revista Latinoamericana, 26, 133-155.).

As entrevistadas mostram a importância da oferta de uma modalidade esportiva no ambiente escolar, pois talvez elas não estivessem jogando futsal se não fosse através deste vínculo com a escola. A facilidade de praticarem no ambiente onde estudam, aliada ao incentivo das amigas, foi um fator influenciador para que várias alunas continuem envolvidas como parte desta equipe. Frente a este contexto, a escola também atua como um espaço de transformação e aprendizagem social, não apenas para as estudantes-atletas, mas também para os colegas que acompanham as práticas como espectadores e torcedores. A relação com as amigas de escola se fortaleceu tanto dentro quanto fora de quadra após a formação da equipe, além do fato de que os demais alunos passaram a se mobilizar para assistir aos jogos. A presença da equipe de futsal na escola faz com que meninas jogando passe a ser algo incorporado na cultura de aprendizagem (Hodkinson, Biesta, et al., 2007Hodkinson, P., Biesta, G. et al (2007). Understanding learning cultures. Educational Review, 59(4), 415-427.) da instituição, transformando lógicas preconceituosas de estranhamento da participação de mulheres nesta modalidade esportiva.

Dentro da escola não acontece nada [sobre manifestações de preconceito], todo mundo acha até normal […] até chamam a gente para jogar, convidam quando tem algum jogo, sabe? A gente marca de jogar às vezes fora da escola. Aluga uma quadra para jogar.

(P1)

Meus colegas acham normal [a participação feminina no futsal]. Eles não têm diferenciação de menino e menina. Eles até incentivam o time assim, sabe? Quando tem jogo, eles vêm torcer, com eles não tem diferenciação.

(P2)

Todo ano a gente tem gincana, e os meninos dão superapoio para a gente […] Eles apoiam a gente e falam, “Nossa, meu Deus, você é minha ídola”. Ficam fazendo essas brincadeirinhas.

(P5)

A maioria das opiniões positivas e incentivos dos colegas de escola sobre as alunas praticarem futsal mostra que não há certo estranhamento, possivelmente por estarem também inseridos neste grupo e cultura de aprendizagem de uma escola que oportuniza a prática do futsal para meninas, legitimando tal envolvimento perante sua comunidade, inclusive contribuindo para a naturalização de certa percepção de igualdade. Altmann et al. (2012)Altmann, H. et al. (2012). Corpo e movimento: produzindo diferenças de gênero na educação infantil. Pensar a prática, 15(2), 272-550. apontam para a importância do ambiente escolar na reprodução das diferenças entre meninos e meninas, e como essas expectativas podem ser determinantes para que elas se engajem em práticas esportivas ou não. Como colocado pelas participantes deste estudo, dentro desta escola parece não haver forte diferenciação e preconceito com as meninas que jogam futsal.

A literatura evidencia a importância da escola revelando que tanto as atitudes docentes quanto o ambiente pedagógico como um todo exercem influência sobre a formação acadêmica e social do aluno, desde a educação infantil (Hodkinson, Anderson, et al., 2007Hodkinson, P., Anderson, G. et al. (2007) Learning cultures in further education. Educational Review, 59(4), 399-413.). A cultura própria da escola pode estimular a formação de grupos, experiências e relacionamentos, o que pode ser feito através de palavras, ideias e atitudes que serão fundamentais para a segregação ou inclusão (Altmann et al., 2012Altmann, H. et al. (2012). Corpo e movimento: produzindo diferenças de gênero na educação infantil. Pensar a prática, 15(2), 272-550.). A inserção de práticas que oportunizam uma participação social mais igualitária a meninos e meninas na escola faz com que o aprendizado ocorra não de forma verbal ou imposta, mas sim por meio de vivências e construções sobre questões sociais que são incorporadas pelos alunos e passam a fazer parte de sua própria cultura (Hodkinson, Biesta, et al., 2008Hodkinson, P. et al. (2008). Understanding Learning Culturally: Overcoming the Dualism Between Social and Individual Views of Learning. Vocations and Learning, 1(1), 27-47.), em certa medida, sob a impressão de naturalização de tais fenômenos.

Inseridas neste contexto positivo para seu envolvimento com o futsal, as alunas entrevistadas pensam que para a continuidade do processo de desenvolvimento do esporte praticado por mulheres, mais meninas precisam se envolver com a prática. A partir disso, haveria um maior número de pessoas e mais equipes, proporcionando mais jogos, melhores resultados e, consequentemente, mais oportunidades de legitimação nos campos esportivo e escolar.

Queria que mais gente da escola jogasse, porque está tendo [campeonato] intercalasse e só tem time masculino, e a gente não pode jogar. Nas outras escolas também.

(P1)

O processo de transformação e aprendizagem social que acontece nesta escola demonstra, através do aumento do incentivo à prática, uma forma de desmistificação de certos estereótipos (Salvini & Marchi Júnior, 2016Salvini, L., & Marchi Júnior, W. (2016). “Guerreiras de chuteiras” na luta pelo reconhecimento: relatos acerca do preconceito no futebol feminino brasileiro. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 30(2), 303-311.), apresentando uma nova forma de legitimação ao futsal praticado por mulheres.

O esporte, como um fenômeno sociocultural, é passível de transformações e adaptações relativas aos indivíduos envolvidos e suas disposições para ação. Por esse motivo, tem um importante papel educacional e na formação e transformação de paradigmas, estereótipos e traços culturais da sociedade como um todo (Coakley, 2015Coakley, J. (2015). Assessing the sociology of sport: On cultural sensibilities and the great sport myth. International Review for the Sociology of Sport, 50(4-5), 402-406.). É um fenômeno com grande relação com os processos educacionais, exercendo importante influência sobre a formação de opiniões de praticantes, espectadores e consumidores (Marques, 2015Marques, R. F. R. (2015). O conceito de esporte como fenômeno globalizado: pluralidade e controvérsias. Revista Observatorio del Deporte, 1, 147-185.). Assim, a escola coloca-se como um espaço privilegiado para tais transformações (Sanches & Rubio, 2011Sanches, S. M., & Rubio, K. (2011). A prática esportiva como ferramenta educacional: trabalhando valores e a resiliência. Educação e Pesquisa, 37(4), 825-842.), especialmente em um sentido que possa desfazer preconceitos e estereótipos que apresentam barreiras à participação social plena de meninas e mulheres.

Considerações finais

O objetivo deste estudo foi analisar os desafios e as oportunidades para a participação de meninas no futsal escolar no contexto extracurricular a partir da perspectiva de alunas de ensino médio de uma escola privada de uma cidade do interior de São Paulo. Apesar de ainda existir preconceito com mulheres que praticam futsal em diversos cenários, este estudo demonstrou uma posição de enfrentamento apresentada pelas alunas entrevistadas, além de sugerir que a iniciativa de uma escola em oferecer oportunidades para alunas praticarem futsal e representarem a instituição em competições interescolares pode ser uma forma interessante de promover transformações sociais sobre formas de percepções ainda inscritas na cultura de nossa sociedade.

A instituição escolar tem um papel fundamental no processo de educação e transformação social, sendo responsável por disseminar diferentes formas de bagagens culturais que extrapolam o conhecimento acadêmico, além de influenciar a formação de disposições dos(as) alunos(as) sobre diferentes aspectos da vida em sociedade. Cabe à escola atuar como um agente de reprodução ou de transformação de desigualdades sociais e manifestações de dominação presentes na sociedade. As atitudes heterodoxas das alunas dentro do campo escolar, o apoio dos pais e o pertencimento a um grupo foram importantes fatores que possibilitaram a participação nas práticas de futsal, transformando-se em uma forma mais legitimada de afirmação social.

No caso das alunas entrevistadas, a herança cultural também se fez presente nas escolhas pelas práticas. As meninas que optaram pelo futsal relatam um gosto pelo esporte presente na família, contando com certo apoio familiar para o engajamento no futsal, sendo alguns de forma tardia. Além disso, relatos de abandono por resistência e pressão por parte da família ocorreram e levantam um importante alerta para a disseminação da discussão sobre oportunidades de participação social entre meninos e meninas, de forma ampla e intergeracional não somente entre os alunos, mas também envolvendo os familiares da comunidade escolar.

Este estudo oferece subsídios teóricos que podem apoiar intervenções práticas ligadas à administração escolar relacionada às atividades esportivas, por exemplo, o fomento a oportunidades de práticas esportivas de reserva masculina a alunas que não teriam outros meios de se envolver com tais atividades. Do mesmo modo, também subsidia intervenções pedagógicas que desmistifiquem diferenças socialmente e arbitrariamente estipuladas entre meninos e meninas, homens e mulheres, e o engajamento em práticas diversas através da naturalização do convívio nas práticas esportivas, assim como a valorização dos feitos atléticos das alunas.

Novos estudos se fazem pertinentes de modo a aprofundar esta discussão, especialmente que possam explorar novos ambientes, como escolas públicas, e que considerem a perspectiva de outros importantes agentes neste espaço social: professores(as), gestores(as), familiares e demais alunos(as).

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Andreza Silva (Tikinet) – revisao@tikinet.com.br
  • 3
    O termo “reserva masculina” (male preserve) foi utilizado pela primeira vez como uma referência aos clubes de rúgbi na década de 1970 para conceituar e expressar normas de masculinidade das classes médias e emergentes inglesas. Estas normas eram derivadas do ethos de uma elite com raízes militares, fonte e sustentação do conceito inglês de gentleman (Dunning & Sheard, 1973Dunning, E. G., & Sheard, K. G. (1973). The Rugby Football Club as a Type of “Male Preserve”: Some Sociological Notes. International Review of Sport Sociology, 8(3), 5-24.).
  • 4
    A importância dos Jogos Escolares do Estado de São Paulo (JEESP) se dá pela abrangência, pois participam Unidades Escolares de Ensino Fundamental e Médio das Redes Pública Estadual, Pública Municipal, Privada, além das Escolas Técnicas Estaduais e Federais. A organização e realização dos JEESP são de responsabilidade das Secretarias de Estado da Educação; Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude; Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência; e Secretaria do Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação.
  • 5
    Considera-se o futsal, neste trabalho, como uma modalidade esportiva específica e autônoma, diferente do futebol. Porém, devido sua origem histórica no futebol de salão e, consequentemente, no futebol de campo, é comum que o futsal compartilhe valores culturais com o futebol (Mascarin et al., 2017Mascarin, R. B. et al. (2017). Feminilidade e Preconceito de Gênero no Futsal: Uma perspectiva de atletas brasileiras. Fluxos & Riscos, 2(2), 83-96.). Por esta razão, em alguns momentos do texto, existe uma proximidade semântica do modo de abordagem e interpretações sobre fenômenos sociais próprios dessas modalidades esportivas. As entrevistadas, ao falarem sobre uma, também se remetem à outra. Por esta razão, em alguns trechos dos discursos o futebol foi mencionado, por vezes referindo-se à prática do futsal, por vezes a certa generalização dos “jogos com bolas nos pés” (Scaglia, 2011Scaglia, A. J. (2011). O futebol e as brincadeiras de bola: a família dos jogos com os pés. Phorte., p. 23).
  • 6
    O conceito de hexis consiste na incorporação das formas corporais e posturas, que em longo prazo torna-se um sistema visível de conhecimento e reconhecimento social. A hexis é um capital físico ou corporal correspondente a uma disposição e uma trajetória individual além de uma dimensão de grupo (Bourdieu, 2014Bourdieu, P., & Passeron, J. C. (2014). Os Herdeiros: os estudantes e a cultura. UFSC.a).

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Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2020
  • Revisado
    02 Dez 2020
  • Aceito
    11 Fev 2021
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