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Proposições sobre a noção de sujeito no trabalho pedagógico 1 1 Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha - verah.bonilha@gmail.com

Propuestas sobre la noción de sujeto en el trabajo pedagógico

Resumo

Sistematiza-se estudo sobre a noção de sujeito, suas relações e implicações no trabalho pedagógico dos professores. A produção e a análise dos dados aconteceram por meio da Análise dos Movimentos de Sentidos, fundamento teórico e metodológico que visa ao estudo dos sentidos nos discursos, nas obras e nas produções que integraram o corpus do estudo bibliográfico. O trabalho pedagógico é tratado como um processo em que os professores se reconhecem como integrantes de uma classe trabalhadora e, em tal contexto, produzem, a despeito das contradições sociais, com vistas à superação, conscientes de sua historicidade.

Palavras-chave
trabalho pedagógico; sujeito; Análise dos movimentos dos sentidos

Resumen

Se sistematiza un estudio sobre la noción de sujeto, sus relaciones e implicaciones en el trabajo pedagógico de los docentes. La producción y análisis de los datos se realizó a través del Análisis de los Movimientos de los Sentidos, fundamento teórico y metodológico que tiene como objetivo el estudio de los sentidos en los discursos, es decir, en los trabajos y producciones que integraron el corpus de la bibliografía. El trabajo pedagógico es tratado como un proceso en el que los docentes se reconocen como miembros de una clase trabajadora y, en este contexto, producen, a pesar de las contradicciones sociales, con miras a la superación, conscientes de su historicidad.

Palabras clave
trabajo pedagógico; tema; Análisis de los movimientos de los sentidos

Abstract

In this work, we systematize the study of the notion of the subject, its relations, and implications in teachers' pedagogical work. We produced and analyzed data using the Analysis of the Movements of Senses. This theoretical and methodological foundation aims to study the senses in the discourses, works, and productions that constitute the corpus of the bibliographic study. Pedagogical work is seen as a process in which teachers recognize themselves as working-class members. They produce in this context, despite social contradictions, aiming to overcome and be aware of their historicity.

Keywords
Pedagogical work; Subject; Analysis of Senses Movements

Introdução

Considerando que a escola é parte da sociedade capitalista, e, nela, as relações entre os sujeitos acontecem em meio à totalidade do modo de produção capitalista, é objetivo deste texto apresentar proposições sobre a noção de sujeito, suas implicações e relações com o trabalho pedagógico dos professores. Este trabalho, majoritariamente, localiza-se na escola (além de outros lugares socialmente ampliados), espaço e tempo onde os sujeitos se representam em acordo com sua posição quanto ao conhecimento: gestores, estudantes, famílias, sujeitos externos à escola, governantes e tantos mais que se implicam direta ou indiretamente na instituição. Nessa confluência entre sujeitos, para realizar o trabalho pedagógico3 3 Trabalho pedagógico, uma das categorias centrais deste texto, terá sentidos explicados no decorrer da argumentação , eles entram em interação e também se educam, à medida que convivem.

Assim, pensa-se sobre a condição de sujeitos, tendo em conta os sentidos subjetivos4 4 Os sentidos subjetivos são caracterizados como produções individuais na relação permanente com a subjetividade social. Estabelecem a relação entre o simbólico e o emocional (González-Rey & Martinez, 2017). que são reformulados e revistos ao longo da vida. O fato é que tudo tem efeito sobre o que se é, efeito como instrumentalização para novas elaborações, novas instituições simbólicas, imaginárias e reais. O ser humano produz sentidos a partir da base social e histórica em que se encontra e vivencia. Então, pode-se dizer que viver é propor uma nova elaboração do mundo, ou seja, uma elaboração singular do social, mesmo que baseada nas determinações históricas da realidade em que se vive. Cada sujeito apresenta a sua forma de ser, convive com sua cultura e sociedade, as quais interferem em seu espaço e tempo, fazendo-o buscar formas de ser, viver, conviver.

Portanto, a constituição do sujeito se dá dialeticamente, em que objetividade e subjetividade são polos contraditórios de uma mesma realidade. Não se nega uma ou outra dimensão, pelo contrário, busca-se superar a visão dicotômica e naturalizante do ser humano, como salienta Gonçalves (2015)Gonçalves, M. da G. M. (2015). A psicologia como ciência do sujeito e da subjetividade: a historicidade como noção básica. In A. M. M. Bock, M da G. M. Gonçalves, & O. Furtado, Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia (6a ed., pp. 37-52). Cortez., quando escreve sobre a superação dessa polaridade: “Embora continuem a ser afirmadas em sua importância e especificidade, como elementos contrários, objetividade e subjetividade são afirmadas, ao mesmo tempo, como unidade de contrários, em constante movimento de transformação” (p. 56).

Nessa perspectiva, com este texto, objetiva-se refletir sobre os sentidos de sujeito quando se aborda o trabalho pedagógico, que é o trabalho dos professores, e este é pedagógico por excelência (Ferreira, 2017Ferreira, L. S. (2017). Trabalho pedagógico na escola: sujeitos, conhecimentos e tempo. Crv., 2018Ferreira, L. S. (2018, abr./jun.). Trabalho pedagógico na escola: do que se fala? Educação e realidade, 43(2), 591-608.). Para tanto, dialogou-se com autores da Pedagogia e da Psicologia, em uma sequência que, imbricada, visa a expor sistematizações quanto à concepção de sujeito, à relação sujeito e trabalho pedagógico, como trabalho específico de professores, entendidos como sujeitos.

Para elaborar os argumentos ora apresentados, realizou-se um estudo5 5 Pesquisa e estudo são distintos, na medida em que a primeira se refere ao âmbito da produção e da análise de dados, tão-somente. Por sua vez, o estudo abrange a pesquisa e analisa, além dos dados produzidos, as condições de produção, os sujeitos interlocutores e as produções de outros autores. , tendo por fundamento teórico e metodológico a Análise dos Movimentos de Sentidos – AMS, aplicando técnicas de produção de dados por meio da pesquisa bibliográfica. Um artigo como este, que visa à sistematização, resulta da elaboração de argumentos, o que implica retomar anotações, revê-las, compará-las. É nesse momento que se aplica a AMS, como um modo organizado de dar trato ao material a ser sistematizado, observando, interpretando e estabelecendo relações entre os sentidos em suas recorrências, e, a partir delas, categorizando. O trabalho com categorias possibilita elaborar sentidos em bloco, com base nos quais se produzem parágrafos, seções interligadas coesivamente, que constituem o texto, ou seja, a sistematização.

A AMS trata-se, enfim, de fundamento com o qual se trabalha, cuja centralidade é o estudo dos discursos. Os discursos são materialidades, cujos movimentos, sentidos, em suas contradições, contextos, historicidades são transformadas em categorias. Assim, os discursos se configuram em recorrências e evidências materiais, elaboradas pelos sujeitos, e, como tal, ao serem analisados, na condição de dados produzidos, possibilitam analisar os fenômenos. Por fim, se o sujeito produziu este discurso e não outro é porque este diz respeito à sua representação material no mundo (Ferreira, 2020Ferreira, L. S. (2020). Discursos em análise na pesquisa em educação: concepções e materialidades. Revista Brasileira de Educação, 25, e250006.).

Do ponto de vista do procedimento metodológico, portanto 1 – realizou-se um estudo, tendo por técnica de produção de dados a pesquisa bibliográfica; 2 – analisou-se o material estudado, observando os sentidos relativos às categorias centrais: trabalho pedagógico e sujeito; 3 –organizaram-se os dados produzidos em tabelas, visando a compará-los e analisá-los em seus movimentos de sentidos, alternâncias e dissonâncias; 4- reincorporados ao textos, analisaram-se também esses sentidos em suas continuidades, variações e profundidade; 5- iniciou-se a produção de sistematização, com base nos movimentos de sentidos observados.

Resultaram os argumentos a seguir esboçados e organizados em seções, buscando descrever os sentidos de sujeito, tecer as relações entre os sujeitos e o trabalho e entre os professores, entendidos como sujeitos, e o trabalho pedagógico que realizam. Na sequência, alinhavam-se tais argumentos em torno do destaque aos sentidos produzidos com o estudo.

Sentidos de sujeito

O que se entende quando se fala “sujeito”? São recorrentes alusões aos professores, tratando-os como indivíduos ou atores. Tais designações não são ingênuas, atrelam-se a perspectivas teóricas diferenciadas entre si. Nesse prisma, o que se diz, ao afirmar que os professores são ou deveriam ser “sujeitos do seu trabalho”? O que é um sujeito e o que o diferencia de um “indivíduo” ou de um “ator”? Primeiramente, a diferença básica não está no ser em si, mas na sua relação com a realidade concreta que o constitui. Inicia-se, portanto, por afirmar que se é ou não sujeito, conforme a pertença à cultura.

Entendemos por cultura o conjunto dos bens materiais e espirituais criados pelos homens ao longo do processo pela qual, mediante o trabalho, exploram a natureza e entram em relações sociais uns com os outros, com o fim de garantir a satisfação de suas necessidades vitais.

(Vieira Pinto, 1994Vieira-Pinto, Á. (1994). A questão da universidade. (2a ed.). Cortez., p. 40)

Há implícita nessa afirmação uma pertença cultural também, já que a cultura se produz no social, por meio do trabalho. Então, todo sujeito se constitui cultural e socialmente com base na estrutura produtiva que sustenta e configura a totalidade social. Tal fato determina historicamente a existência deste sujeito, bem como os bens culturais a que terá acesso, sendo, a partir destes, que, dialeticamente, será formado e/ou irá ser modificado ao longo de sua vida.

Acerca dessa relação dialética e constitutiva do sujeito, González-Rey e Martinez (2017)González-Rey, F. L., & Martinez, A. M. (2017). Subjetividade: teoria, epistemologia e método. Alínea., amparados nas concepções vigotskianas, dizem que a subjetividade é um sistema simbólico e emocional, que orienta e é orientada pela cultura, sendo socialmente institucionalizada e historicamente situada. Esse intercâmbio entre o social e o individual, constituinte do sujeito, acontece de forma mediada, principalmente pela linguagem. Ou seja, ao longo do desenvolvimento, os sujeitos terão acesso ao mundo simbólico pela linguagem, compartilhada culturalmente e, dessa relação, irá se compor o mundo psicológico.

Acontece que a cultura e a sociedade se modificam no tempo e no espaço. Como afirmado, são produtos dos bens materiais produzidos historicamente pelos seres humanos. Presentemente, vive-se um tempo que alguns chamam de pós-moderno, outros de neomoderno, ultramoderno etc. Contudo, tais conceitos não passam, em grande medida, de eufemismos para tratar sobre as mudanças que a sociedade capitalista vem sofrendo desde a sua origem.

Até mesmo o conceito de “modernidade” precisa ser revisto, dado o período histórico de sua origem ter concomitância à gênese da sociedade atual, fruto das revoluções burguesas – especialmente a Revolução Inglesa, realizada entre 1640/1688, e a Revolução Francesa de 1789. Desse modo, o que se convencionou chamar de “modernidade” é o capitalismo em sua origem como expressão das mudanças concretas da sociedade e não fruto das “ideias da modernidade”. Para não recair em idealismos, mas com base na análise a partir da realidade concreta, prefere-se denominar a sociedade atual de “contemporânea”, pois as relações de produção que a sustentam se mantêm as mesmas desde a origem do que se costumou chamar de “modernidade”. Ou seja, a divisão do trabalho em classes sociais, a centralidade no Estado e os valores universais como democracia, liberdade e direito seguem seu caráter burguês, por ser a classe detentora dos meios de produção.

Destarte, falar em sujeito significa falar em sujeito contemporâneo, pois este é expressão das determinações capitalistas. Isto porque superar a “modernidade”, alçando a uma “pós-modernidade”, implica em ter sido superado o modo de produção capitalista, algo que ainda não ocorreu. O sujeito contemporâneo, constituído por sua subjetividade, é ainda expressão das condições históricas da “modernidade”, não tendo sido ela superada em termos de algum possível “pós”. Diferentemente, a concepção da pós-modernidade supõe esse “novo” estágio da sociedade, no qual o progresso estaria na resolução de problemas específicos, particulares e locais e não mais como a superação das classes sociais. Nessas condições, o sujeito também desapareceria, pois a capacidade e a possibilidade do uso dos signos, dos instrumentos, da linguagem, etc. ganham vida própria.

As concepções da pós-modernidade apresentadas até aqui recolocam a questão da relação objetividade-subjetividade. Mas, não pela sua separação e sim pela sua negação (não dialética). Nega-se a objetividade, já que a realidade é criação do signo. E nega-se a subjetividade, ao menos aquela com poder de criar e modificar a realidade. O sujeito se torna fluido, também ele se modifica pelo signo.

(Gonçalves, 2015Gonçalves, M. da G. M. (2015). A psicologia como ciência do sujeito e da subjetividade: a historicidade como noção básica. In A. M. M. Bock, M da G. M. Gonçalves, & O. Furtado, Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia (6a ed., pp. 37-52). Cortez., p. 75)

Entretanto, essas contradições sociais ainda não foram superadas, como já mencionado. Diante disso, busca-se recuperar o estudo do sujeito, mas sem negar a objetividade da realidade. A via para isso é pela concepção histórica e dialética, em um movimento contraditório entre as instâncias subjetivas e objetivas da vida dos sujeitos. O fenômeno social toma um espaço central, juntamente com o fenômeno subjetivo. Aquele deixa de ser coadjuvante na constituição da subjetividade e do sujeito, para ser produtor dos sujeitos. Isso não quer dizer que o sujeito seja passivo, pelo contrário, é a partir dessa inserção no mundo cultural, mediada pelos signos e pelos instrumentos (Vigotski, 2008Vigotski, L. S. (2008). Pensamento e Linguagem (4a ed.). Martins Fontes.), que ele, coletivamente, produz a história da humanidade e sua própria história, singulariza-se.

Historicamente, a noção de sujeito tem por referência o capitalismo, a partir do século XIX. Esse modo de produção proclama o sujeito como livre, capaz de ocupar o lugar que desejar na sociedade, bastando sua força de vontade para que isso aconteça. Porém, essa concepção entra em crise, visto que, da mesma forma que o afirma como sujeito de sua vida, também lhe nega essa possibilidade. Nesse contexto, cria-se a ciência psicológica, que se apropria em grande parte das discussões sobre a subjetividade e o sujeito. O problema se instaura no momento em que a ciência psicológica explica a subjetividade, sustentada em uma referência privatizada, individualista e, muitas vezes, a-histórica, reforçando a cisão entre corpo e mente, objetivo e subjetivo etc (Gonçalves, 2015Gonçalves, M. da G. M. (2015). A psicologia como ciência do sujeito e da subjetividade: a historicidade como noção básica. In A. M. M. Bock, M da G. M. Gonçalves, & O. Furtado, Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia (6a ed., pp. 37-52). Cortez.).

Em tal processo, a Psicologia entra em crise, como escreveu Vigotski (1999)Vigotski, L. S. (1999). Teoria e método em psicologia (2a ed.). Martins Fontes., no início do século XX, no texto “O significado histórico da crise na Psicologia: uma investigação metodológica”, pois se apropria de uma metodologia que fragmenta a concepção de sujeito. Diante dessa necessidade metodológica sobre a construção da ciência psicológica, Vigotski propõe que o fenômeno psicológico seja estudado pelos referenciais dialéticos e históricos.

Embora Vigotski não tenha tratado diretamente da categoria “sujeito”, Molon (2015)Molon, S. I. (2015). Subjetividade e constituição do sujeito em Vygotsky (5a ed.). Vozes., em Subjetividade e constituição do sujeito em Vigotski, salienta que a pesquisa sobre os sentidos de sujeito, para aquele autor, é emergente. Molon (2015)Molon, S. I. (2015). Subjetividade e constituição do sujeito em Vygotsky (5a ed.). Vozes. identifica três concepções que se desenvolveram a partir da obra vigostkiana: 1) ênfase aos aspectos intrapsicológicos; 2) ênfase aos aspectos interpsicológicos e, por fim, 3) ênfase na concepção dialética das dimensões intra e interpsicológicas. A concepção dialética das dimensões intra e interpsicológica é a que melhor representa a superação da dicotomia subjetividade e objetividade.

A constituição do sujeito não se esgota no privilégio de aspectos intrapsicológicos ou interpsicológicos, mas no processo dialético de ambos, e ainda, o que é mais expressivo, a constituição do sujeito acontece pelo outro e pela palavra em uma dimensão semiótica. Sendo a palavra e o signo polissêmicos, a natureza e a gênese do processo de constituição do sujeito implicam, necessariamente, o diferente e o semelhante.

(p. 57)

O sujeito emerge dessa síntese das condições materiais da realidade e das representações simbólicas que são internalizadas e ressignificadas ao longo da vida, em diferentes relações com outros sujeitos. Trata-se de um sujeito constituído pela subjetividade, mas, de igual forma, pelas condições sociais e históricas. O sujeito, então, pauta-se por sua subjetividade, enquanto se relaciona com o mundo externo e por ele também é determinado.

Contudo, o sujeito não é um “local”, um ser passivo, que age sem possibilidade de mudança, aceitando como e quando se representam os condicionantes histórico-sociais, determinando consequentemente seus desejos e seu agir. O sujeito e suas contingências estão em movimento contínuo, em interação com outros sujeitos. Com base na afirmação antes citada sobre a cultura (Vieira Pinto, 1994Vieira-Pinto, Á. (1994). A questão da universidade. (2a ed.). Cortez.), para superar uma concepção puramente determinista, é preciso caracterizá-lo também por aquilo que produz, como práxis6 6 Práxis, como categoria central à argumentação que se apresenta, será esclarecida ao longo da argumentação. , em um tempo e espaço determinados. Marx e Engels (2007)Marx K., & Engels, F. (2007). A ideologia alemã. Boitempo., em A ideologia alemã, descrevem o sentido pelo qual o sujeito se constitui em uma unidade singular, porém participante da humanidade em geral:

Os indivíduos partiram sempre de si mesmos, mas, naturalmente, de si mesmos no interior de condições e relações históricas dadas, e não do indivíduo “puro” no sentido dos ideológicos. Mas no decorrer do desenvolvimento histórico, e justamente devido à inevitável automatização das relações sociais no interior da divisão do trabalho surge uma divisão da vida de cada indivíduo, na medida em que há uma diferença entre sua vida enquanto subsumida a um ramo qualquer do trabalho e as condições a ele correspondente [ênfase no original].

( p. 64)

Essa vida subsumida na divisão do trabalho afeta, sobretudo, a capacidade de o sujeito produzir sua práxis intencional (explicada na sequência) e interferir, conscientemente, em seu trabalho. Seguem aqueles autores agora a fazer um contraponto entre a divisão do trabalho e uma sociedade sem classes, na qual a consciência intencional sobre o trabalho seria característica:

Ao contrário com a coletividade dos proletários revolucionários, que tomam sob seu controle as condições de existência e as de todos os membros da sociedade dá-se exatamente o inverso: nela os indivíduos participam como indivíduos. É precisamente essas associações de indivíduos que coloca sob seu controle as condições do livre desenvolvimento e do movimento dos indivíduos.

(Marx & Engels, 2007Marx K., & Engels, F. (2007). A ideologia alemã. Boitempo., p. 66)

Ao criticarem o caráter “puro no sentido dos ideológicos”, como distinção, e, a partir da qual se podem vincular ao sujeito certas características como que em uma base fixa, Marx e Engels qualificam o sujeito como produto e produtor de sua realidade efetiva. Essa concepção reconhece o desejo como uma construção histórica que, determinada pelos sujeitos em sociedade, implica na dialética em produzir e ser produzido, em determinar o mundo e por ele também ser determinado.

De um ponto de vista idealista, poder-se-ia afirmar, com a filosofia de Kant, que há um “sujeito da razão” e, com a Psicanálise de Freud, que há um “sujeito do desejo”, de tal forma que Dufour (2005)Dufour, D. R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Companhia de Freud. denomina “o sujeito crítico (kantiano) e o sujeito neurótico (freudiano)” (p. 10).

Quanto ao primeiro, Dufour (2005)Dufour, D. R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Companhia de Freud. afirma: “esse sujeito kantiano, como forma ideal, suscetível como tal de presidir à formação de todo indivíduo moderno, é hoje vivamente recusado” (p. 20). Explica o autor que esse sujeito não se coaduna harmonicamente com a ação de comprar e vender mercadorias própria do capitalismo. Quanto ao segundo, conforme se depreende da Psicanálise, é o sujeito perpassado pelo desejo, o qual se constitui na e pela linguagem, no e pelo (O)outro7 7 De acordo com Dufour (2005), na tentativa de explicar uma concepção de Outro, o “Outro figura como lugar terceiro da fala. Lugar terceiro tanto quanto lugar do terceiro” (p. 31). . E Dufour (2005)Dufour, D. R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Companhia de Freud. afirma: “Nesse sentido, o sujeito é tanto a sujeição quanto o que resiste à sujeição. Em outras palavras, o sujeito é o sujeito do Outro e é o que resiste ao Outro” (p. 33). Desejo que designa, entre outros aspectos, os caminhos pelos quais se busca a satisfação como o resultado da produção na historicidade do eu em ação. É a representação desse eu e, em termos de ideais, é a vivência contínua com e para a obtenção do prazer:

O que revela a própria conduta dos homens acerca da finalidade e intenção de sua vida, o que pedem eles da vida e desejam nela alcançar? É difícil não acertar a resposta: eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes.

(Freud, 2011Freud, S. (2011). O mal-estar na civilização. Companhia das Letras., p. 19)

Este sujeito do desejo relaciona-se diretamente ao processo mediador do trabalho como condição humana de produção da existência.

Isto é a vida, ou o ideal de uma possibilidade. Trata-se de determinações que não se fundam na consciência do sujeito, ou seja, ninguém opta em desejar ou não, todos desejam algo, de alguma forma possuem ímpetos que desconhecem. Este é o ser em si – mediado pelo social. Na solidão, permaneceria inócuo, sem sentido, muito embora a cultura não permita seu abandono. Sempre se é alguém, porém, ainda não se possui a garantia de se representar no mundo. Em contraponto ao idealismo, eis o valor fundamental do trabalho para o sujeito. Esta é sua forma de garantir sua sobrevivência, produzir história e ser socialmente.

A base material de constituição do sujeito e de sua subjetividade também é discutida por Aguiar e Bock (2016)Aguiar, W. M. J. de, & Bock, A. M. M. B. (2016). A dimensão subjetiva do processo educacional: uma leitura sócio histórica. Cortez.. As autoras reforçam a compreensão dialética desta constituição. Argumentam que as relações contraditórias do modo de produção capitalista, que negam e afirmam a condição como sujeitos, contribuem para que se entenda:

a expressão subjetiva pelo trabalhador a partir dessa condição ocorre como sua desefetivação do que produz (objetivação) e se realiza como estranhamento e alienação da produção. ... o trabalhador se conceberá como sujeito que estará alheio ao que produz e só terá como critério de ser no mundo o que será possível consumir a partir do seu salário. São essas as condições materiais que determinam a forma de sua inserção no mundo e a sua produção de vida.

(p. 31)

A partir destes pressupostos, entende-se por sujeito aquele que tem consciência acerca de suas necessidades, fruto da natureza humana, bem como consciência das necessidades produzidas historicamente pela sociedade. Sujeito constituído coletivamente, inserido em um mundo cultural que lhe oferece um campo simbólico para que componha sua subjetividade. Esse mundo cultural que é determinado e determinante e, ao mesmo tempo, possibilita a relação do sujeito com o mundo. O trabalho como processo de mudança consciente da natureza forma também o ser humano e, no caso dos professores, o trabalho é pedagógico, tendo a linguagem como matéria-prima (Ferreira, 2017Ferreira, L. S. (2017). Trabalho pedagógico na escola: sujeitos, conhecimentos e tempo. Crv., 2018Ferreira, L. S. (2018, abr./jun.). Trabalho pedagógico na escola: do que se fala? Educação e realidade, 43(2), 591-608.).

Importante frisar esta diferença estabelecida entre as noções de sujeito, indivíduo e ator:

  1. Sujeitos são os seres humanos constituídos subjetiva e objetivamente, dotados de pertença a um lugar social, no qual se representam, do qual participam e no qual interferem, conscientemente, tendo por base a estrutura social que sustenta sua posição de classe.

  2. Indivíduo é o ser humano em si, visto distintamente do grupo social e não consciente da classe da qual é parte.

  3. Ator é associado à função social, referente a determinado contexto, passível de mudança sem reconhecimento de pertença à classe.

Sendo assim, ser sujeito é conhecer sua historicidade e a implicação desta em si mesmo, produzindo necessidades e desejos a partir da produção da existência por meio do trabalho. Contudo, há de se levar em conta a característica específica do trabalho no modo de produção capitalista (neste caso, não o trabalho, mas a força de trabalho, a capacidade humana de produzir trabalho). Neste modo de produção, a força de trabalho é mercadoria, representa ao capitalista apenas seu valor de uso como a única mercadoria capaz de criar mais valor e torna o trabalho meio para receber o salário, que permite ao trabalhador acessar as mercadorias necessárias para manter sua existência. É nestes termos que o sujeito precisa ser compreendido, sem, contudo, deixar de ter como base a definição anteriormente apresentada: a realidade concreta do modo de produção capitalista que faz da força de trabalho do trabalhador aquilo que lhe é condição de existência e potência de vida, também o seu limite.

Tendo em vista que a força de trabalho se configura em mercadoria central no modo de produção capitalista, o aparato jurídico/ideológico que sustenta as relações de produção e contribui para amalgamar, em um processo reprodutivo de capital, a oposição entre capitalistas e trabalhadores. Este é um exemplo de como até os direitos trabalhistas servem para reforçar a exploração e a extração de mais valor da força de trabalho. O devir do modo de produção capitalista é práxico por definição, não é imóvel, faz com que os sujeitos desta sociedade tenham no trabalho tanto um meio para sua vida, quanto um meio que os subjuga em serviço do capital.

Nestes termos, Sánchez Vàzquez (1977)Sánchez Vázquez, A. (1977). Filosofia da práxis. Paz e Terra. caracteriza o agir humano, no sentido de constituir sua existência, em um ato que “é violação constante da natureza” (p. 374). Ou seja, estando atentos aos argumentos de Marx (2010)Marx, K. (2010). Manuscritos Econômicos-filosóficos. Boitempo., aliados aos argumentos de Sánchez Vázquez (1977)Sánchez Vázquez, A. (1977). Filosofia da práxis. Paz e Terra., entende-se que a realidade em que vivem os seres humanos é elaborada a partir do agir humano no mundo. Um agir que, transformando a natureza, transforma também o ser humano. Para Marx, nos Manuscritos, de 1844 (2010):

E como tudo o que é natural tem de começar, assim também o homem tem como seu ato de gênese a história, que é, porém, para ele, uma [história] sabida e, por isso, enquanto ato de gênese com consciência, é ato de que se suprassume. A história é a verdadeira história natural do homem.

(p. 128)

A práxis, em sentido mais pleno é essa ação consciente, sob a forma de trabalho, no sentido de uma práxis intencional. Aplica-se o “termo práxis para designar a atividade consciente e objetiva, sem que, no entanto, seja concebida com o caráter estritamente utilitário” (Sánchez Vázquez, 1977Sánchez Vázquez, A. (1977). Filosofia da práxis. Paz e Terra., p. 30). É por estas razões que se compreende a realidade do ser humano como ser genérico que age sobre o mundo, constituindo-se efetivamente, sendo o que fundamentalmente Marx descreve, nos Manuscritos, de 1844 (2010), como sendo a práxis. Neste texto de sua juventude, tem-se o pressuposto para refletir acerca da relação entre sujeito e trabalho.

A partir dessa concepção de práxis, como condição de o ser humano produzir sua realidade, tem-se um contexto presente que, em grande medida, subtrai a condição de intencionalidade da práxis – seu fim não é mais produzir valor de uso, mas valor de troca com vistas ao recebimento do salário . É nestes termos que se entende a relação entre sujeito e trabalho, isto é: partindo da realidade concreta atual do modo de produção capitalista, sendo ele a forma hegemônica de reprodução da sociedade, não é a práxis intencional, mas a alienação do ser humano na divisão do trabalho, aquilo que representa a sociabilidade que compõe o sujeito contemporâneo. Assim:

Como trabalho é a essência do homem, essa essência só se realiza como alienada ou negada nas relações concretas reais que os homens mantêm com seus produtos, com sua própria atividade e com os outros homens (os não trabalhadores) na produção.

(Sánchez Vázquez, 1977Sánchez Vázquez, A. (1977). Filosofia da práxis. Paz e Terra., p. 406)

Em cada período histórico, os valores e as tendências engendram o discurso social vigente, o qual oferece bases de sustentação, normas imperativas à constituição subjetiva. Contudo, é crível que o ser humano não seja passível, determinável tal qual uma máquina. Há algo de subjetivo nas ações que se pratica, algo capaz de produzir a contradição necessária para mudar a realidade. Entretanto, o que se faz sintoma na atualidade, ou o que “toma” o sujeito na contemporaneidade? Podem ser os fatos históricos e suas consequências que delineiam formas e características de uma época, de um tempo, ou ainda, de um momento, já que as mudanças ocorrem por meio de relações de produção cada vez mais aligeiradas, dado o desenvolvimento técnico com base nas tecnologias de informação, na cibernética e na algorimitzação cada vez mais acentuada.

Assim, cada pessoa singular está realmente presa; está presa por viver em permanente dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que a prendem. Essas cadeias não são visíveis e tangíveis como grilhões de ferro. São mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e decerto não menos fortes. E é essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação as outras, a ela e nada mais, que chamamos sociedade.

(Elias, 1994Elias, N. (1994). O processo civilizador: uma história dos costumes (2a ed., Vol. 1). Zahar., p. 23)

Entendido desse modo, é também no trabalho, imerso na sociedade capitalista, uma vez empregada a força de trabalho, que o ser humano se autoproduz, porque cria, em função de sua subjetividade e, ao mesmo tempo, diminui a angústia de permanecer excluído da cidadania. Então, pode-se pensar o trabalho como a manifestação de um desejo e de uma necessidade, mesmo quando capturado pela função de produzir valor de troca, pois o que ele representa é a condição de cada sujeito, agora inserido no processo de produção, que passa a ser socializado.

Em suma, sujeito e trabalho são categorias que não se dissociam. Isto porque a força de trabalho como mercadoria caracteriza o modo de ser deste sujeito. Do mesmo modo limita sua condição de vendedor de força de trabalho, condição histórica que determina seus desejos também como mercadoria. Desejar, nestes termos, é parte central no processo de reprodução do modo de produção capitalista. Destarte, a condição mediadora do trabalho humano é subvertida à condição individual de garantia da existência, implicando no modo de o sujeito se compreender como ser histórico e, também, nessas condições, é que o trabalho pedagógico acontece.

Nessa sociedade, um indivíduo torna-se sujeito à medida que aceita e ocupa seu lugar social. Ou seja, na relação entre o eu e a “ordem”, a moral, as leis. De todo, representar-se é poder ser aquilo que ocorre no decorrer das relações, na apropriação da realidade naturalmente peculiar em uma determinada época ou período, sendo esta peculiaridade somente possível na cultura. Dessa apropriação, na relação com o outro, o sujeito defronta-se com o sofrimento e mal-estar, porém essa via de subjetivação poderá permitir a emergência do sujeito. Como González-Rey e Martinez (2017)González-Rey, F. L., & Martinez, A. M. (2017). Subjetividade: teoria, epistemologia e método. Alínea. salientam: “o indivíduo não é ‘vítima’ de sua subjetividade, ele pode tornar-se sujeito dela, o que define um processo ativo de tomada de caminhos e decisões que são fontes geradoras de sentidos subjetivos [ênfase no original]” (p. 53).

Até aqui objetivou-se descrever a compreensão do sujeito, em sua relação com o social, com o trabalho e o conceito de práxis. A seguir, centra-se nos professores, entendidos como sujeitos, e na sua produção, o trabalho pedagógico.

Os professores, como sujeitos; e seu trabalho, como pedagógico

O trabalho é, então, um modo de o sujeito produzir e reproduzir cultura, socializar-se, ou seja, autoproduzir-se. Pelo trabalho, o ser humano se autoproduz e aspira à liberdade:

O desenvolvimento da liberdade está, pois, ligado ao desenvolvimento do homem como ser prático, transformador ou criador, isto é, está vinculado ao processo de produção de um mundo humano ou humanizado, que transcende o mundo dado, natural, bem como ao processo de autoprodução do ser humano que constitui precisamente a sua história.

(Sánchez Vázquez, 1977Sánchez Vázquez, A. (1977). Filosofia da práxis. Paz e Terra., pp. 129-130)

Paradoxalmente, a maneira como o trabalho se apresenta na contemporaneidade é uma afronta à condição de sujeito, tendo em vista, por exemplo, o imperativo da qualidade, essa concepção representativa do ideário na atual fase neoliberal do capitalismo, sobre a natureza do trabalho que deve ser desenvolvido e sobre, em decorrência, o trabalhador, que, nesse âmbito, deve ser sempre “competente”. Em razão da “qualidade”, da “produtividade”, da “flexibilidade”, percebe-se a exclusão de características básicas a qualquer sujeito, sendo as mais relevantes e humanas, a condição de desejo, de sonho, ou ainda, as características estéticas voltadas ao belo, que dão lugar ao “útil”, que dão lugar “aquilo que é importante apenas por ser mercadoria”. Neste caso, os proprietários dos meios de produção e da força de trabalho ou simplesmente aqueles que são “classe que não vive do trabalho” (Antunes, 2005Antunes, R. (2005). Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. (7a reimpressão). Boitempo.) se encontram em vantagem, pois desfrutam de uma autonomia maior na operacionalização de suas atividades. Imagina-se que, na operacionalização de uma máquina, prevaleçam as metas e a qualidade, portanto, esta é uma imposição de “fora”, que não obedece a princípios do sujeito, apenas do mercado. O trabalhador, nesta perspectiva, é uma máquina, cujo motor é a força de trabalho vendida ao mercado, e o regulador são as políticas de gestão da empresa.

Tais relações não se apartam de forma alguma do trabalho dos professores, dado ser este fundamental para a formação da força de trabalho, seja das novas gerações, seja para a especialização em alguma área da produção. Nessas condições materiais, o sujeito vai produzindo dialeticamente os sentidos e constituindo assim sua subjetividade. A liberdade ofertada normalmente vem acompanhada com os limites até onde pode chegar, sejam estes de ordem externa (mercado) ou gerencial. No “mercado do trabalho”, o que se oferece para o trabalhador é ou vender sua força de trabalho ou cair no desemprego, pois vender sua força de trabalho é garantir o salário para gerir sua vida. Diferentemente dos trabalhadores, aqueles que detêm os meios de produção encontram formas de satisfazer as suas necessidades e desejos, pois têm maior acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade.

É por isso que o trabalho é uma categoria necessária para justificar a subjetividade e a condição de sujeito referente aos professores. O trabalho do sujeito permite fazer eco à subjetividade como forma de anunciá-la no social em busca de reconhecimento. Mesmo com as contradições apresentadas em relação aos trabalhadores e à venda de sua força de trabalho, é pelo trabalho, enfim, que se toma o social de modo particular, ou seja, se oferece de alguma forma sentido a ele, definindo socialmente a posição que o sujeito ocupa em sociedade, cada um à sua maneira, em seu tempo e de acordo com as contingências. No momento em que se chega a um local de trabalho se encontrará estabelecida uma relação com o meio, com os outros sujeitos, o que poderá ou não apresentar viabilidade. Daí, decorrem conflitos, mal-estares, não realizações. Esses são os impactos dos e sobre os sujeitos no mundo. Tudo isso permite afirmar que, na contemporaneidade, é a mercadoria que organiza o trabalho e as relações de produção.

No contexto capitalista até agora descrito, insere-se o trabalho pedagógico, um trabalho realizado para a produção e (re)produção do conhecimento, pelo qual se amalgamam trabalho e educação, resultando em uma produção que pode ser descrita nestes termos:

O ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.

(Saviani, 2003Saviani, D. (2003). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações (8a ed.). Autores Associados., p. 13)

Dado que os seres humanos produzem sua história, mas não a partir de sua livre vontade (Marx, 2008Marx, K. (2008). O 18 Brumário de Luiz Bonaparte. In K. Marx, A revolução antes da revolução. Expressão Popular.), “os elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos” são produto de toda a carga ideológica que sustenta a reprodução da sociedade da qual ele é parte. Assim, considera-se que trabalho pedagógico seja o trabalho dos professores “[...] ao selecionar, organizar, planejar, realizar, avaliar continuamente, acompanhar, produzir conhecimento e estabelecer interações” (Ferreira, 2020Ferreira, L. S. (2020). Discursos em análise na pesquisa em educação: concepções e materialidades. Revista Brasileira de Educação, 25, e250006., p. 605). Como tal, está inscrito e “[...] imerso em um contexto capitalista, no qual a força de trabalho dos professores é organizada pelas relações de emprego e no qual os sujeitos agem em condições sociais, políticas” (p. 605). Não obstante, mesmo estando inserido nas relações capitalistas, por suas características, o trabalho pedagógico “apresenta possibilidades de o sujeito trabalhador ir além, projetar-se no seu trabalho de modo a confundir-se e movimentar-se humanamente com ele, uma vez que uma matéria-prima é a linguagem” (p. 605).

O trabalho pedagógico, como não poderia deixar de ser, é parte do processo de reprodução da sociedade capitalista, entendido, como o trabalho dos professores na escola, portanto, práxis pedagógica, que é o trabalho profissional dos professores e, nessa perspectiva, torna-se científica, por isso, metódica, sistemática, elaborada e teoricamente sustentada (Ferreira, 2017Ferreira, L. S. (2017). Trabalho pedagógico na escola: sujeitos, conhecimentos e tempo. Crv.). Pode se dizer práxis pedagógica, então, uma práxis social, porque “socialmente elaborada e organizada conforme intencionalidades, conhecimentos” (Ferreira, 2008Ferreira, L.S. (2008, jul./dez.). Gestão do pedagógico: de qual pedagógico se fala? Currículo sem fronteiras, 8(2), 176-189., p. 184). Em todo trabalho pedagógico há um objetivo a atingir: produzir educação, o que implica produzir e reproduzir conhecimento. Educação é constitutiva do humano, uma perspectiva ontológica do humano, e, em decorrência, indissociável do trabalho também em sua dimensão alienada, como referida na seção anterior sobre “sujeito e trabalho”. Educação e trabalho, portanto, fazem o humano e permitem atingir a condição de sujeito:

A educação se define por uma forma particular de trabalho, o trabalho não-material, mas isso não significa que seus métodos de ensino devam ter, obrigatoriamente, a mesma natureza, senão pelo contrário, o trabalho material, concreto e socialmente útil deve ser o ponto de partida dos processos educativos como trabalho não-material. Nesta concepção, além do produto do trabalho não ser material (conhecimento), o produto da atividade não se separa do ato de sua produção, no qual o ser humano atribui um valor de uso particular que é imediatamente consumido concomitantemente à sua produção.

(Frizzo et al., 2013Frizzo, G. E., Ribas, J. F. M., & Ferreira, L. S. (2013, set./dez.). A relação trabalho-educação na organização do trabalho pedagógico da escola capitalista. Educação, 38(3), 553-564., p. 557)

Ao realizar seu trabalho, os professores, investidos da condição de sujeitos no âmbito da sociedade capitalista, como apresentado anteriormente, estão se (auto)produzindo como seres, dimensionados histórica e socialmente agindo como trabalhadores. É neste sentido que o limite do trabalho concreto dos professores, como sujeitos conscientes das contradições historicamente produzidas pela sociedade de classe, se apresenta. Seu trabalho, como já mencionado, é a produção da aula e, nela, a produção e a (re)produção do conhecimento, junto com outros sujeitos ‒ o que inclui também participar em toda as interações que integram os tempos e espaços da educação, de modo político e profissional ‒, lhes permite elaborar um tempo e um lugar de trabalhadores, de onde, inclusive, pode advir satisfação:

Supomos que a busca de satisfação ocorra permanentemente na vida do indivíduo, da infância à velhice; assim, também nas relações de trabalho, onde o sujeito busca inserir-se no mundo cultural e conviver com outras pessoas torna-se lugar do encontro entre o desejo e a angústia. Isto é, a busca pela vivência de satisfação e o sofrimento. O sujeito em questão é o sujeito de desejo e sofrimento.

(Bertão & Hashimoto, 2006Bertão, F. R. B. M., & Hashimoto, F. (2006, dez.). Entre o desejo e o sofrimento psíquico no trabalho: um estudo de caso com professora de educação infantil. Psicologia em Revista, 12(20), 141-163., p. 149)

Trabalho pedagógico porque movimenta aspectos da Pedagogia, relacionados à Didática e à Metodologia. Tais aspectos devem ser amplamente conhecidos pelos professores em relação à ciência que praticam em aula. Eles configuram o trabalho que realizam (Ferreira, 2017Ferreira, L. S. (2017). Trabalho pedagógico na escola: sujeitos, conhecimentos e tempo. Crv.). A efetividade do trabalho pedagógico está diretamente relacionada às escolhas que os sujeitos-professores realizam, em acordo com a convivência com os estudantes, no espaço e tempo que se denomina aula. Não é, portanto, um trabalho simples, pois amálgama conhecimentos, subjetividades, técnicas para atingir um objetivo que, em suma, é o objetivo da educação escolar: produzir o conhecimento (Ferreira, 2017Ferreira, L. S. (2017). Trabalho pedagógico na escola: sujeitos, conhecimentos e tempo. Crv.). Não se entende por produção do conhecimento a invenção, a descoberta do conhecimento, mas simplesmente aprender o que, antes, não se sabia. Esse é, no final da aula, o propósito que se pretende atingir.

Tal processo representa o movimento fundamental do trabalho pedagógico, aquilo que se faz necessário para a reprodução da sociedade de classes, dado ele ter sido incorporado como trabalho concreto central para a formação da força de trabalho no modo de produção capitalista. Então, a consciência histórica dos limites contraditórios que subjugam o sujeito professor e seu trabalho pedagógico é produzida justamente no momento em que seu agir está vinculado à classe trabalhadora, sendo capaz de produzir, por meio da consciência de classe, a crítica ativa à sociabilidade imposta pelo modo de produção capitalista.

Os professores têm condições de se autoproduzirem sujeitos de seu trabalho pedagógico, na medida em que: a) elaboram continuamente sentidos do trabalho que realizam; b) entendem a autoria e entendem-se autores daquilo que produzem; c) localizam e denotam pertença à classe trabalhadora, respeitando os limites e as contingências da especificidade do trabalho que realizam, o trabalho pedagógico; d) com seu trabalho, visam à transformação do social e dos demais sujeitos, mediada pela linguagem. Trata-se de sujeitos que trabalham e o fazem sob a forma de trabalho pedagógico. Portanto, não são “sujeitos pedagógicos”, mas sujeitos que realizam o trabalho pedagógico.

Considerações finais

No sentido de alinhavar os estudos realizados até o momento, iniciou-se o artigo descrevendo noções de sujeito. Contextualizadas essas noções, na seção seguinte os professores foram apresentados como sujeitos e seu trabalho como trabalho pedagógico. O estudo, então, desse modo encaminhado, permitiu vislumbrar a necessidade e a possibilidade de os professores, compreendendo-se sujeitos, encaminharem seu trabalho pedagógico, o qual é crítico, por excelência.

Neste mesmo sentido, a relação entre o trabalho dos professores, como processo para efetivação consciente de seu trabalho pedagógico, é fruto, pois, de determinadas condições histórico-sociais, produzidas por pessoas em determinadas classes. Este fato, por sua vez, implica diretamente na formação destes sujeitos no contexto do trabalho nas escolas.

O primeiro elemento a ser evidenciado, após a argumentação exposta, é entender os sujeitos professores dentro da totalidade da sociedade da qual fazem parte. Os professores, como sujeitos, são trabalhadores que, ao vender sua força de trabalho, estão determinados pela realidade concreta na qual estão inseridos. Logo, seu trabalho, mais que pedagógico por excelência e centrado na Educação, é capturado pela necessidade de reproduzir a força de trabalho desde o ponto de vista do conhecimento objetivo (saber técnico) à reprodução ideológica.

Como segundo elemento central, destaca-se o caráter dialético e não determinista no entendimento dos professores como sujeitos do trabalho pedagógico. Ou seja, o trabalho pedagógico é resultado de um processo em que os professores se reconhecem como parte da classe trabalhadora e, partindo desta, trabalham no sentido de apresentar, por meio da crítica, as contradições do modo de produção capitalista, evidenciando seus limites com vistas à superação da sociabilidade do capital, se apresentam como sujeitos conscientes de sua historicidade. Em suma, sem a base crítica oriunda da consciência de classe, provocando o agir dos sujeitos professores em seu trabalho pedagógico, a produção do conhecimento dá espaço à mera transposição didática dos conteúdos, firmando-se, com maior ênfase, no caráter reprodutivo do trabalho pedagógico.

Por fim, definir em termos mais exatos o que se entende por sujeito, especialmente no âmbito do trabalho pedagógico dos professores, permite compreender melhor as reais condições que determinam a Educação no País. Este é, sem dúvida, o ponto de partida para entender acerca dos sentidos que possibilitam o trabalho pedagógico fundamentado na crítica transformadora da sociedade por parte dos professores em escolas e espaços de educação.

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    Normalização, preparação e revisão textual: Vera Lúcia Fator Gouvêa Bonilha - verah.bonilha@gmail.com
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    Trabalho pedagógico, uma das categorias centrais deste texto, terá sentidos explicados no decorrer da argumentação
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    Os sentidos subjetivos são caracterizados como produções individuais na relação permanente com a subjetividade social. Estabelecem a relação entre o simbólico e o emocional (González-Rey & Martinez, 2017González-Rey, F. L., & Martinez, A. M. (2017). Subjetividade: teoria, epistemologia e método. Alínea.).
  • 5
    Pesquisa e estudo são distintos, na medida em que a primeira se refere ao âmbito da produção e da análise de dados, tão-somente. Por sua vez, o estudo abrange a pesquisa e analisa, além dos dados produzidos, as condições de produção, os sujeitos interlocutores e as produções de outros autores.
  • 6
    Práxis, como categoria central à argumentação que se apresenta, será esclarecida ao longo da argumentação.
  • 7
    De acordo com Dufour (2005)Dufour, D. R. (2005). A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Companhia de Freud., na tentativa de explicar uma concepção de Outro, o “Outro figura como lugar terceiro da fala. Lugar terceiro tanto quanto lugar do terceiro” (p. 31).

Referências

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Editor responsável: Carmen Lúcia Soares. https://orcid.org/0000-0002-4347-1924

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2021
  • Revisado
    04 Set 2021
  • Aceito
    22 Nov 2021
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