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FECHAMENTO DAS ESCOLAS DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19: EXPERIÊNCIAS MATERNAS COM FILHOS EM IDADE ESCOLAR

Cierre de las escuelas durante la pandemia de COVID-19: experiencias maternas con hijos en edad escolar

RESUMO

Este estudo teve por objetivo compreender as experiências maternas diante do fechamento das escolas, decorrente das medidas de distanciamento social impostas pelo combate à pandemia de COVID-19, e seus impactos nos vínculos familiares e na percepção da maternagem. Participaram da pesquisa 20 mulheres de camadas sociais médias, com idades entre 29 e 45 anos, que acompanharam seus filhos nas atividades escolares desenvolvidas em casa nesse período. Foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas por meio remoto. Os resultados encontrados apontaram que a pandemia resultou em mudanças significativas nos vínculos familiares. A transposição para aulas remotas acarretou um acúmulo de atividades assumidas pelas mães no contexto doméstico, resultando em sobrecarga e exigindo uma dedicação extra à educação dos filhos. Além disso, as participantes mostraram-se reflexivas sobre a vinculação com seus filhos e os valores relativos à educação. Evidenciou-se a sobrecarga vivida pelas mulheres, com possíveis repercussões na saúde mental e no bem-estar de suas famílias.

Palavras-chave:
COVID-19; maternidade; escola

RESUMEN

Este estudio tuvo por objetivo comprender las experiencias maternas ante el cierre de las escuelas resultante de las medidas de distanciamiento social impuestas por el combate a la pandemia de COVID-19, y sus impactos en los lazos familiares y en la percepción de la maternidad. Participaron en la investigación 20 mujeres de clase media con edades comprendidas entre los 29 y los 45 años que acompañaron a sus hijos a las actividades escolares en casa durante en ese período. Las entrevistas individuales semiestructuradas se realizaron a distancia. Los resultados apuntaron que la pandemia ha provocado cambios significativos en los vínculos familiares. La transición a las clases a distancia ha provocado una acumulación de actividades realizadas por las madres en el contexto doméstico, lo que ha dado lugar a una sobrecarga y ha exigido una dedicación adicional a la educación de sus hijos. Además, las participantes reflexionaron sobre el vínculo con sus hijos y los valores relacionados con la educación. Se evidenció la sobrecarga experimentada por las mujeres, con posibles repercusiones en su salud mental y en el bienestar de sus familias.

Palabras clave:
COVID-19; maternidad; escuela

ABSTRACT

This study aimed to understand mothers’ experiences of school closures due to social distancing measures imposed to combat the COVID-19 pandemic and its impacts on family ties and the perception of motherhood. Twenty middle-class women aged between 29 and 45 who accompanied their children to school activities at home during this period took part in the study. Individual semi-structured interviews were carried out remotely. The results showed that the pandemic has resulted in significant changes in family ties. The transition to remote classes has led to an accumulation of activities undertaken by mothers in the domestic context, resulting in overload and requiring extra dedication to their children’s education. In addition, the participants were reflective about the bond with their children and the values related to education. The overload experienced by the women was highlighted, with potential repercussions on the mental health and well-being of their families.

Keywords:
COVID-19; maternity; school

INTRODUÇÃO

A pandemia de COVID-19, doença provocada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), impôs a necessidade de adoção de medidas de distanciamento social (Oliveira, Oliveira-Cardoso, Silva, & Santos, 2020Santos, M. A.; Oliveira, W. A.; Oliveira-Cardoso, E. A. (2020). Inconfidências de abril: impacto do isolamento social na comunidade trans em tempos de pandemia de COVID-19. Psicologia & Sociedade , 32, e020018. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32240339
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), como a suspensão de aulas e o fechamento compulsório das escolas. Essa medida insólita afetou um grande contingente de crianças, adolescentes e jovens, que tiveram suas rotinas interrompidas e vivenciaram a transposição das atividades de ensino, anteriormente desenvolvidas no ambiente escolar, para o contexto doméstico, por meio de atividades remotas (Oliveira, Gomes, & Barcellos, 2020Oliveira, W.; Magrin, J.; Andrade, A.; Micheli, D.; Carlos, D.; Fernandez, J.; Silva, M.; Santos, M. (2020). Violência por parceiro íntimo em tempos da COVID-19: scoping review. Psicologia, Saúde & Doenças, 21(3), 606-623. http://dx.doi.org/10.15309/20psd210306
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). O surto pandêmico e as dificuldades encontradas para o seu controle acarretaram um prolongamento da experiência de confinamento, que produziram mudanças que impactaram significativamente a vida das famílias e comunidades (Moura et al., 2022Moura, A. A. M.; Bassoli, I. R.; Silveira, B. V.; Diehl, A.; Santos, M. A.; Santos, R. A.; Wagstaff, C.; Pillon, S. C. (2022). Is social isolation during the COVID-19 pandemic a risk factor for depression? Revista Brasileira de Enfermagem, 75(Suppl 1), e20210594. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0594
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; Santos, Oliveira, & Oliveira-Cardoso, 2020Santos, M. A.; Oliveira, W. A.; Oliveira-Cardoso, E. A. (2020). Inconfidências de abril: impacto do isolamento social na comunidade trans em tempos de pandemia de COVID-19. Psicologia & Sociedade , 32, e020018. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32240339
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).

A crise sanitária e humanitária incidiu de forma desigual na vida das pessoas. Especialmente as mulheres com dupla jornada de trabalho ficaram mais expostas a riscos tanto em seus locais de trabalho como em suas casas, e também se observou a fragilização da qualidade da assistência à saúde (Souza, Dumont-Pena, & Patrocino, 2022Souza, E. R.; Dumont-Pena, E.; Patrocino, L. B. (2022). Pandemia do coronavírus (2019-nCoV) e mulheres: efeitos nas condições de trabalho e na saúde. Saúde Debate, 46 (spe1), 290-302. https://doi.org/10.1590/0103-11042022E120
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). Esse período excepcional trouxe uma demanda de reconfiguração da esfera doméstica, na qual as atividades laborais e educacionais passaram a ser desenvolvidas simultaneamente e no mesmo espaço, impondo a necessidade de ajustamentos na organização do ambiente e na rotina doméstica (Oliveira, Magrin, et al., 2020Oliveira, W. A.; Oliveira-Cardoso, E. A.; Silva, J. L.; Santos, M. A. (2020). Impactos psicológicos e ocupacionais das sucessivas ondas recentes de pandemias em profissionais da saúde: revisão integrativa e lições aprendidas. Estudos de Psicologia (Campinas), 37, e200066. https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e200066
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). O cenário pandêmico evidenciou as persistentes desigualdades de gênero tanto no âmbito do trabalho quanto no espaço do lar (Braga, Oliveira, & Santos, 2020Santos, M. A.; Oliveira, W. A.; Oliveira-Cardoso, E. A. (2020). Inconfidências de abril: impacto do isolamento social na comunidade trans em tempos de pandemia de COVID-19. Psicologia & Sociedade , 32, e020018. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32240339
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).

O fechamento das escolas acarretou a imediata necessidade de maior dedicação de tempo aos cuidados e à educação das crianças (Esper, Araújo, Santos, & Nascimento, 2022Esper, M. V.; Araújo, J. S.; Santos, M. A.; Nascimento, L. C. (2022). Atuação do professor de Educação Especial no cenário da pandemia de COVID-19. Revista Brasileira de Educação Especial, 28, e0092, 227-242. https://doi.org/10.1590/1980-54702022v28e0092
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; Oliveira et al., 2021Oliveira, W. A.; Andrade, A. L. M.; Souza, V. L. T.; De Micheli, D.; Fonseca, L. M. M.; Andrade, L. S.; Silva, M. A. I.; Santos, M. A. (2021). COVID-19 pandemic implications for education and reflections for school psychology. Psicologia: Teoria e Prática, 23(1), 1-26. https://doi.org/10.5935/1980-6906/ePTPC1913926
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), instaurando uma nova demanda cujo ônus recaiu em sua maior parte sobre as mulheres, o que evidenciou as desigualdades de gênero (Ferraz, 2020Ferraz, T. (2020). COVID-19 e perspectivas sobre desigualdade de gênero. Temas de Economia Aplicada: Boletim de Informações FIPE, 52-55. Recuperado dehttps://downloads.fipe.org.br/publicacoes/bif/bif479-52-55.pdf
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), a cristalização de papéis domésticos e as iniquidades relacionadas ao lugar ocupado pela mulher que é mãe na sociedade (Jayachandran, 2020Jayachandran, S. (2020). Social norms as a barrier to women’s employment in developing countries. National Bureau of Economic Research, Working Paper 27449. https://doi.org/10.3386/w27449
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). Por conseguinte, tornou-se imperioso refletir sobre a relação entre a sobrecarga materna e as novas exigências que emergiram a partir das transformações vividas em decorrência da pandemia da COVID-19 (Oliveira et al., 2020Oliveira, J. B. A.; Gomes, M.; Barcellos, T. (2020). A COVID-19 e a volta às aulas: ouvindo as evidências. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, 28(108), 555-578. https://doi.org/10.1590/s0104-40362020002802885
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).

Quando se examina a experiência excruciante da crise sanitária desencadeada pelo novo coronavírus, frequentemente se identifica na mídia a difusão de matérias e reportagens sobre os diversos dilemas enfrentados pelas mães em tempos de distanciamento social. Os estudos produzidos desde o aparecimento da pandemia oferecem as primeiras evidências acerca das dificuldades com que as mulheres com filhos em idade escolar se defrontavam no que tange à divisão mais igualitária das tarefas domésticas. Muitas mães tiveram que fazer homeoffice para darem continuidade ao seu trabalho remunerado, que foi transferido integralmente para o lar e transmutado em trabalho em tela, ao mesmo tempo em que tiveram que dar suporte contínuo às atividades escolares on-line das crianças (Bartlett, Griffin, & Thomson, 2020Barlett, J. D.; Griffin, J.; Thomson, D. (2020). Resources for supporting children’s emotional well-being during the COVID-19 pandemic. Recuperado dehttps://www.childtrends.org/publications/resources-for-supportingchildrens-emotional-well-being-during-the-covid-19-pandemic
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; Cifuentes-Faura, 2020Cifuentes-Faura, J. (2020). Consecuencias en los niños del cierre de escuelas por Covid-19: el papel del gobierno, profesores y padres. Revista Internacional de Educación para la Justicia Social, 9(3). https://doi/org/10.15366/riejs2020.9.3
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; Emidio, Okamoto, & Santos, 2021Emidio, T. S.; Okamoto, M. Y.; Santos, M. A. (2021). Impacto do isolamento social no cotidiano de mães em homeoffice durante a pandemia de COVID-19. Estudos de Psicologia (Natal), 26(4), 358-369. Recuperado de https://submission-pepsic.scielo.br/index.php/epsic/article/view/21451
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; Oliveira et al., 2021Oliveira, W. A.; Andrade, A. L. M.; Souza, V. L. T.; De Micheli, D.; Fonseca, L. M. M.; Andrade, L. S.; Silva, M. A. I.; Santos, M. A. (2021). COVID-19 pandemic implications for education and reflections for school psychology. Psicologia: Teoria e Prática, 23(1), 1-26. https://doi.org/10.5935/1980-6906/ePTPC1913926
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).

Considerando esse cenário, torna-se necessário investigar aspectos relacionados ao bem-estar pessoal das mães e às interações estabelecidas com os filhos em idade escolar, uma vez que as práticas parentais são consideradas preditoras do desenvolvimento infantil adequado (Coser, Martinez, & Pamplin, 2013Coser, D. S.; Martinez, C. M. S.; Pamplin, R. C. O. (2013). Personal well-being and family interactions of working couples with preschool children: a correlational study. Paidéia(Ribeirão Preto), 23,(56), 339-348. https://dx.doi.org/10.1590/1982-43272356201308
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). Bartlett et al. (2020)Barlett, J. D.; Griffin, J.; Thomson, D. (2020). Resources for supporting children’s emotional well-being during the COVID-19 pandemic. Recuperado dehttps://www.childtrends.org/publications/resources-for-supportingchildrens-emotional-well-being-during-the-covid-19-pandemic
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ponderam que, na situação extraordinária criada pela pandemia, é importante que os pais fortaleçam a comunicação com seus filhos e participem ativamente do acompanhamento e orientação das crianças nas suas atividades diárias, sejam de estudo, lazer ou alimentação. Considerando o contexto de incertezas e persistente sentimento de ameaça vivenciados pelas famílias no auge da experiência pandêmica (Oliveira-Cardoso, Silva, Santos, Lotério, Accoroni, & Santos, 2020Oliveira-Cardoso, E. A.; Silva, B. C. A.; Santos, J. H.; Lotério, L. S.; Accoroni, A. G.; Santos, M. A. (2020). The effect of suppressing funeral rituals during the COVID-19 pandemic on bereaved families. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 28, e3361. http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.4519.3361
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), a disponibilidade dos pais para se fazerem presentes na vida de seus filhos é um recurso essencial para que eles se sintam seguros, acompanhados e protegidos diante das mudanças e rupturas traumáticas vivenciadas com a situação de ameaça à continuidade da existência (Sola, Oliveira-Cardoso, Santos, & Santos, 2021Sola, P. P. B.; Oliveira-Cardoso, E. A.; Santos, J. H. C.; Santos, M. A. (2021). Psicologia em tempos de COVID-19: experiência de grupo terapêutico on-line. Revista da SPAGESP, 22(2), 73-88. Recuperado dehttp://pepsic.bvsalud.org/pdf/rspagesp/v22n2/v22n2a07.pdf
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).

Considerando o processo de transformações na vida familiar e os possíveis impactos psicológicos decorrentes do confinamento voluntário no espaço doméstico, este estudo teve por objetivo compreender as experiências maternas com o fechamento das escolas decorrente das medidas de distanciamento social provocadas pela pandemia de COVID-19 e seus impactos nos vínculos familiares e na percepção da maternagem.

MÉTODO

Trata-se de um estudo exploratório, transversal, com abordagem qualitativa. A pesquisa do tipo exploratório propõe-se a descobrir e elucidar um fenômeno de interesse, almejando fornecer informações sobre um processo ou objeto de estudo ainda pouco conhecido, de modo a permitir que o pesquisador possa formular hipóteses que orientarão investigações subsequentes. O enfoque transversal mostra-se apropriado quando o objeto de estudo solicita que a investigação seja realizada em um único momento, sem uma intenção de seguimento das participantes. A abordagem qualitativa é apropriada para responder a questões que se referem a um nível de realidade que não pode ser mensurado e que tangenciam um conjunto de significados, percepções, atitudes, motivações, expectativas, crenças e valores que requerem um enfoque compreensivo.

Participantes

Participaram deste estudo 20 mulheres, mães de crianças com idade entre dois e 10 anos, residentes em municípios de diferentes regiões do Estado de São Paulo e que acompanhavam no âmbito doméstico as atividades de ensino de seus filhos. A maior parte dessas atividades, no período anterior à pandemia, eram desenvolvidas no ambiente escolar.

Os critérios de inclusão na amostra de conveniência foram: ser mãe de crianças na faixa etária de dois a 10 anos, estar em confinamento doméstico em decorrência do distanciamento social imposto como medida de combate à pandemia de COVID-19, ter vínculo empregatício e ter aderido ao sistema de trabalho em casa (homeoffice).

Esses critérios foram estabelecidos considerando a realidade brasileira, especificamente o estado de São Paulo, que além de ser uma das unidades federativas mais impactadas pela doença, estabeleceu protocolos sanitários e sancionou decretos com critérios de isolamento social que incluíam determinações para fechamento compulsório das escolas e transferência das atividades escolares para o ambiente on-line. Para atender ao escopo da pesquisa, foi recrutada uma faixa da população que teve condições de aderir à campanha do “Fique em Casa”, mantendo a continuidade de sua atividade laboral em tempo integral graças ao trabalho em tela. São mulheres que pertencem aos estratos sociais médios, que exercem profissões que exigem nível superior de escolaridade e ocupam postos de trabalho qualificados.

As entrevistadas tinham idades entre 29 e 45 anos, exerciam atividade profissional remunerada fora do lar no período pré-pandemia e que, no momento da entrevista, estavam trabalhando em homeoffice. Das 20 participantes que concordaram em colaborar com a pesquisa, 13 eram casadas e viviam com o companheiro, duas eram solteiras e viviam na casa dos pais, e cinco eram divorciadas e únicas responsáveis pelo cuidado das crianças em tempo integral. A média de renda familiar variou entre três e 25 mil reais. O número de filhos variou de um a três. A maioria dos filhos estudava em escola privada (16 participantes) e todos estavam tendo aulas on-line no período de isolamento social. Considerando o perfil delineado, pode-se afirmar que o grupo estudado é homogêneo do ponto de vista de suas características sociodemográficas. Tratam-se de mães que estavam entre a terceira e quarta décadas de vida, profissionalmente ativas e pertencentes às camadas médias da população.

Outro fator que confere uniformidade ao universo de participantes é o fato de estarem inseridas em núcleos familiares tradicionais, nos quais as mães são responsáveis pela educação das crianças, não havendo compartilhamento ou exercício igualitário da função parental entre pais e mães (Koltermann, Souza, Bueno, Paraventi, & Vieira, 2019Koltermann, J. P.; Souza, C. D.; Bueno, R. K.; Paraventi, L.; Vieira, M. L. (2019). Openness to the world by fathers and mothers of preschoolers in two-parent families. Paidéia(Ribeirão Preto), 29, e2934. https://dx.doi.org/10.1590/1982-4327e2934
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).

Instrumento

O instrumento utilizado para a coleta de dados foi um roteiro de entrevista semiestruturada, contendo informações sociodemográficas, com o propósito de caracterizar as participantes da pesquisa, e 10 questões abertas e fechadas. Essas questões foram elaboradas para facilitar a exploração dos pontos de interesse, mas com um roteiro flexível o suficiente para proporcionar uma interação fluida e coloquial, de modo a não deixar o diálogo enrijecido (Bleger, 1998Bleger, J. (1998). Temas de Psicologia: entrevistas e grupos (2a ed., R. M. M. de Moraes, Trad.).São Paulo: Martins Fontes.).

Coleta de dados

As entrevistas foram realizadas no período de abril a julho de 2020, portanto, entre o segundo e o quarto mês de pandemia. O contato com as entrevistadas se deu por meio de técnica da “bola de neve”,1 1 Trata-se de um tipo de amostragem não probabilística, a partir da qual se lança mão de documentos e/ou informantes-chave, nomeados sementes, com a finalidade de localizar algumas pessoas que atendam aos critérios do perfil delineado para a composição da amostra da pesquisa. Assim, solicita-se que as pessoas sugeridas pelas sementes indiquem outros contatos, a partir de sua rede pessoal e que atendam ao perfil desejado, até que o quadro de amostragem atinja a saturação necessária para a consecução dos objetivos da pesquisa. Neste estudo foram utilizados informantes que apontaram mães que atendiam aos critérios de perfil para compor a amostra (Turato, 2003). a partir de uma primeira indicação de terceiros. Em respeito às regras do distanciamento social, as entrevistas foram realizadas por chamada de vídeo ou áudio (a critério da entrevistada) por meio do aplicativo WhatsApp. A escolha pela entrevista remota se mostrou apropriada às recomendações de isolamento social, viabilizando uma forma segura de comunicação com as entrevistadas.

Os encontros virtuais duraram uma hora e meia em média. As entrevistas foram audiogravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra. Nesse sentido, é importante destacar que a gravação foi autorizada pelas participantes e os registros foram utilizados apenas para atender aos objetivos do estudo, seguindo o delineamento metodológico, de modo a resguardar a identidade das participantes e seu direito ao sigilo quanto às informações fornecidas.

Análise dos dados

As entrevistas transcritas na íntegra foram analisadas a partir de uma aproximação com a produção científica sobre a temática da maternidade na contemporaneidade, buscando instigar reflexões sobre a experiência do isolamento social e seus potenciais impactos na vida familiar, na perspectiva de mães com filhos em etapas iniciais de desenvolvimento.

O exame do corpus de pesquisa se baseou na proposta da análise de conteúdo de Bardin (2010Bardin, L. (2010). Análise de conteúdo.Lisboa: Edições 70.). Depois de transcritas, as entrevistas foram lidas e relidas exaustivamente em busca de recorrências, símbolos e códigos. Após essa etapa exploratória, os dados foram organizados em unidades de significado, que deram origem às categorias de análise. A partir das releituras exaustivas e da categorização do material transcrito, foram selecionados trechos das entrevistas considerados relevantes para responder aos objetivos do estudo e ilustrar os conteúdos apresentados em cada categoria de análise.

A análise se deu por meio da articulação entre os dados obtidos e a literatura pertinente, na confluência de perspectivas psicológicas, sociológicas e antropológicas da maternidade, tendo como eixo organizador os estudos desenvolvidos no campo da Psicanálise das Configurações Vinculares sobre a intersubjetividade e a teoria da transmissão psíquica intergeracional.

Cuidados éticos

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, protocolo CAEE nº 30248920.8.0000.5401. Foram tomados todos os cuidados éticos, como a garantia do anonimato das entrevistadas, que receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) por e-mail e o devolveram assinado. Para assegurar a privacidade das entrevistadas e a confidencialidade dos dados, os nomes das mães entrevistadas e dos filhos foram substituídos por pseudônimos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da análise temática foram elaboradas duas categorias: “Educação no ambiente doméstico e sobrecarga materna” e “Eu quero a mamãe: os dilemas da presença-ausência da figura materna”.

Educação no ambiente doméstico e sobrecarga materna

Ao longo das entrevistas as mães abordaram reiteradamente as questões relacionadas à escolarização das crianças. Quando questionadas sobre aquilo de que mais sentiam falta durante o período de confinamento, a maioria referiu a escola dos filhos e o apoio que recebiam na educação das crianças. Bruna declarou ter saudades da escola e evocou em seu relato o quanto era importante o suporte da instituição escolar antes da eclosão da pandemia. Convergindo com o relato de outras mães, a escola emergiu como um lugar que lhes permitia usufruir de momentos de afastamento físico de seus filhos sabendo que eles estariam em segurança e sendo bem cuidados. Laura mencionou o quanto a vida familiar se encontrava articulada à rotina escolar das crianças, de modo que a escola funcionava como um recurso de suporte fundamental para a organização da vida familiar. Beatriz revelou as dificuldades que vinha enfrentando para acompanhar o filho em fase de alfabetização e Lívia questionou o lugar de “professora” dos filhos que as mães tiveram que assumir sem estarem preparadas.

Eu tenho que saber se fez a tarefa. Do dia para noite tenho que providenciar um carimbo de dinossauro, uma pesquisa sobre os antepassados da família e ainda brincar, fotografar e enviar para a professora. Nisso tudo, um período do meu dia em que eu podia trabalhar eu passo fazendo essas atividades com ele, que ainda é pequeno e não faz sozinho, então o acompanho, mas o que acontece? Passo as madrugadas colocando o meu trabalho em dia, ou adiantando algo para o dia seguinte. Ser “professora” do meu filho não era algo que eu imaginava viver. É cansativo, estressante. E eu não vejo a hora de a escola voltar. (Lívia)

Olha, depois dessa pandemia eu passei a valorizar muito a professora. Como elas conseguem ensinar tantas coisas brincando? Haja disposição! Além disso, eu percebi que a escola vai para além dos conteúdos, do ensinar conteúdos. A escola é um espaço de socialização para a criança, de segurança para a família e um apoio importante na nossa rotina; me sinto sem apoio com a escola fechada e, além disso, não sei ensinar os conteúdos para os meninos. Estou cansada, tenho muitas demandas e eles vêm com uma conta de matemática, ou me perguntando se o M é antes de P, nossa! (Ana)

As falas de Lívia e Ana evidenciam que, com a reorganização do cotidiano doméstico, as mães se sentiam sobrecarregadas com as atividades escolares dos filhos, que passaram a ser desenvolvidas no formato remoto. O acúmulo de responsabilidades faz com que elas se sintam desamparadas com a falta do apoio que tinham da instituição antes da pandemia. Os relatos também trazem à tona uma nova percepção do lugar da escola na vida familiar. Essa compreensão ampliada permite ver que o contexto escolar está muito além da relação de ensino-aprendizagem, sendo também um lugar de convívio e socialização das crianças, o que abre um espaço livre para que as mães possam desenvolver com tranquilidade suas atividades de trabalho e se dedicar a outros interesses pessoais. Quando trabalho e escola invadem o ambiente doméstico, as mães se veem assoberbadas com tantos afazeres, que se avolumam e tomam quase todas as horas do dia e da noite. Por isso se dizem mais suscetíveis à fadiga, cansadas ou em completa exaustão no final do dia, além de terem de se manter em estado de alerta permanente, não podendo mais contar com o conforto propiciado pela escola na divisão da responsabilidade pela educação formal das crianças.

É importante destacar que as crianças oriundas de famílias de classe média passam grande parte do dia envolvidas em atividades escolares ou participando de projetos e atividades esportivas e de formação cultural. Essas tarefas, além de seu objetivo primordial de formação para a vida em sociedade, também colaboram, indiretamente, para que as mães possam se sentir menos sobrecarregadas com o exercício da função materna. Assim, os relatos maternos nas entrevistas posicionam a escola como uma fonte de apoio para que possam exercitar sua experiência de maternagem. As experiências de ruptura com a normalidade e o imperativo do isolamento social imposto pela pandemia ampliaram o olhar das participantes para a importância da parceria entre família e escola, dando visibilidade para o papel central da instituição escolar e da educação infantil, que transcende os conteúdos ensinados e envolve uma rede colaborativa que modela o processo de constituição subjetiva das crianças.

1A vivência da perda dessa fonte de amparo oferecida pela escola fez com que as mães tivessem que assumir a organização da rotina educacional das crianças, oferecendo apoio contínuo e constante para seus filhos, que ainda se encontram em uma etapa do ciclo vital marcada por intensa dependência da supervisão dos adultos. Além disso, elas precisam apoiar as crianças e ajudá-las a atravessarem as situações traumatizantes da pandemia, com os desafios inerentes a uma experiência sem precedentes na história da humanidade, permeada por privações e transformações, o que incrementa ansiedade e gera instabilidade emocional (Sola, Garcia, Santos, Santos, & Oliveira-Cardoso, 2022Sola, P.; Garcia, J.; Santos, J.; Santos, M. A.; Oliveira-Cardoso, E. (2022). Grupo online para familiares enlutados no contexto brasileiro. Psicologia, Saúde & Doenças, 23(2), 390-397. https://doi.org/10.15309/22psd230205
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).

É algo que exige de nós, mães, além de energia para organizar tudo, força e maturidade, porque a vontade que eu tenho é de dizer: suspende o ano escolar, querida, o que facilitaria muito para mim. Mas vejo que minha filha já está sofrendo com as mudanças na vida dela, ela mal entende tudo o que está acontecendo, e ver a professora e os amigos por uma tela de computador tem sido um dos momentos mais divertidos do dia para ela. Então, eu respiro fundo, sento e a acompanho na escola. Fazemos as tarefas, me desdobro procurando material para as atividades da escola, mas temos caminhado. Eu me sinto cansada, mas ao mesmo tempo vejo o quanto isso é importante para ela poder enfrentar tudo isso que estamos vivendo. Então me mantenho firme. (Paula)

Nota-se, assim, que a escola, mesmo que reconfigurada pela comunicação mediada por uma plataforma digital, pode funcionar como um elo saudável com a vida pré-pandemia que foi momentaneamente suspensa, e a manutenção desse vínculo passou a ser percebido pelas mães como um esforço necessário para preservar a saúde emocional de seus filhos. Isso desperta um sentimento de satisfação e bem-estar pessoal nas mães, ao perceberem que sua dedicação extrema está sendo recompensada. Nesse sentido, pode-se entender que o ensino remoto impôs um novo patamar de exigências para as mães, que vão além do fornecimento das condições necessárias para preservar a educação formal das crianças, na medida em que se configura como um esforço para manter a continuidade da conexão emocional dos filhos com um espaço social valorizado por eles e que, de fato, é imprescindível para seu processo de subjetivação e não apenas para seu desenvolvimento sócio-cognitivo.

As organizações metapsíquicas, como a escola, servem de “pano de fundo da psique individual e entre esta e os enquadres mais amplos - culturais, sociais, políticos, religiosos - nos quais elas se apoiam” (Käes, 2011Käes, R. (2011). Um singular plural: a psicanálise à prova do grupo (L. P. Rouanet, Trad.).São Paulo: Loyola., p. 20). O grupo e os pertencimentos comunitários e partilhados antecedem à constituição do espaço psíquico individual. Nisso reside a importância estrutural dos vínculos no estabelecimento das fundações do psiquismo. As queixas das mães apontam para as falhas percebidas nas funções de sustentação propiciadas pelas organizações metapsíquicas, devido ao período disruptivo e turbulento, o que sugere o reconhecimento do potencial desorganizador das descontinuidades instauradas pelo surto pandêmico.

O cenário insólito criado pelas medidas protetivas para evitar o contágio do vírus causador da COVID-19 produz um novo perfil: a mãe confinada em casa com seus filhos. Acontece que, tipicamente, trata-se de uma mulher que, no contexto da família contemporânea, sempre esteve sobrecarregada por inúmeras demandas. A feminização do cuidado faz com que a mulher acumule as funções que tradicionalmente são atribuídas ao gênero feminino, como o cuidado com a prole e a gestão da casa, com funções relativas ao seu trabalho remunerado e aos demais interesses pessoais e aspirações de carreira profissional (Braga et al., 2020Braga, I. F.; Oliveira, W. A.; Santos, M. A. (2020). “História do presente” de mulheres durante a pandemia da COVID-19: feminização do cuidado e vulnerabilidade. Revista Feminismos, 8(3), 190-198. Recuperado de https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/article/view/42459/23919
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). O que a pandemia introduziu de novidade é a necessidade de conciliar a simultaneidade de tempo e espaço na execução de inúmeras tarefas com a inquietação suscitada por uma atmosfera social ameaçadora.

Em conformidade com essa hipótese, o prolongamento das medidas de isolamento social decorrentes do descontrole sobre a pandemia no Brasil se mostrou particularmente desafiador para as mulheres, que se viram de repente tendo de arcar com uma sobrecarga expandida de tarefas e responsabilidades (Macêdo, 2020Macêdo, S.(2020). Ser mulher trabalhadora e mãe no contexto da pandemia COVID-19: Tecendo sentidos. Revista do NUFEN, 12(2), 187-204. http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02rex.33
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; Souza et al., 2022Souza, E. R.; Dumont-Pena, E.; Patrocino, L. B. (2022). Pandemia do coronavírus (2019-nCoV) e mulheres: efeitos nas condições de trabalho e na saúde. Saúde Debate, 46 (spe1), 290-302. https://doi.org/10.1590/0103-11042022E120
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), em um momento no qual perderam muitos de seus apoios institucionais e vinculares (Sola, Souza, Rodrigues, Santos, & Oliveira-Cardoso, 2023Sola, P. P. B.; Souza, C.; Rodrigues, E. C. G.; Santos, M. A.; Oliveira-Cardoso, E. A. (2023). Family grief during the COVID-19 pandemic: A meta-synthesis of qualitative studies. Cadernos de Saúde Pública, 39(2), e00058022. http://doi.org/10.1590/0102-311XEN058022
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). As mulheres, no contexto pandêmico, ficaram expostas a níveis de estresse elevados decorrentes da privação do contato social e da sobrecarga de atividades no espaço do lar, ao que se somou a sobrecarga emocional que elas já vinham administrando em suas relações cotidianas, anteriormente à irrupção da pandemia (Emídio et al., 2021; Moraes, 2020Moraes, R. F. (2020). Prevenindo conflitos sociais violentos em tempos de pandemia: Garantia da renda, manutenção da saúde mental e comunicação efetiva(Nota Técnica 27).Ipea: Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia. Recuperado de http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9836
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).

Além dessas questões, Oliveira et al. (2020Oliveira, W. A.; Oliveira-Cardoso, E. A.; Silva, J. L.; Santos, M. A. (2020). Impactos psicológicos e ocupacionais das sucessivas ondas recentes de pandemias em profissionais da saúde: revisão integrativa e lições aprendidas. Estudos de Psicologia (Campinas), 37, e200066. https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e200066
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) apontam que, dentre os diversos conflitos exacerbados pelo fechamento das escolas na situação de pandemia, um deles se refere à limitação da capacidade dos pais em ensinar, evidenciada, sobretudo, com filhos matriculados em séries mais avançadas e quando se deparam com necessidades de estimulação durante a primeira infância. Por outro lado, estudos (Cifuentes-Faura, 2020Cifuentes-Faura, J. (2020). Consecuencias en los niños del cierre de escuelas por Covid-19: el papel del gobierno, profesores y padres. Revista Internacional de Educación para la Justicia Social, 9(3). https://doi/org/10.15366/riejs2020.9.3
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; Oliveira et al., 2021)Oliveira, W. A.; Andrade, A. L. M.; Souza, V. L. T.; De Micheli, D.; Fonseca, L. M. M.; Andrade, L. S.; Silva, M. A. I.; Santos, M. A. (2021). COVID-19 pandemic implications for education and reflections for school psychology. Psicologia: Teoria e Prática, 23(1), 1-26. https://doi.org/10.5935/1980-6906/ePTPC1913926
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reafirmam a importância do envolvimento da família na educação dos filhos, colaborando para a complementação do processo de ensino-aprendizagem. Na situação específica de distanciamento social, os relatos das entrevistadas apontam que as mães se tornaram protagonistas no processo de educação de seus filhos. É possível localizar, em seus discursos, a sobrecarga que tal inversão acarretou diante do despreparo e do desamparo a que se viram lançadas. A despeito dos seus investimentos, esforços e tentativas de proporcionar experiências satisfatórias para seus filhos, houve um acirramento das fragilidades, seja pelo confinamento de toda a família ou pelo fato de que as mães continuaram a desempenhar suas atividades profissionais no mesmo espaço doméstico sem poderem contar com sua rede de apoio.

Braga et al. (2020Braga, I. F.; Oliveira, W. A.; Santos, M. A. (2020). “História do presente” de mulheres durante a pandemia da COVID-19: feminização do cuidado e vulnerabilidade. Revista Feminismos, 8(3), 190-198. Recuperado de https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/article/view/42459/23919
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) atribuem o desgaste decorrente da sobrecarga de tarefas à manutenção da divisão social do trabalho, que ao designar à mulher a exclusividade da função de cuidar do lar e dos filhos, perpetua desigualdades incorporadas culturalmente, naturalizando a feminização das práticas de cuidado. Além disso, no curso da pandemia a ajuda externa da rede de apoio foi dificultada pela necessidade de manter o isolamento. Nessa perspectiva, os autores questionam: quem cuida das mulheres, especialmente daquelas que são mães de crianças, durante a pandemia?

Cifuentes-Faura (2020Cifuentes-Faura, J. (2020). Consecuencias en los niños del cierre de escuelas por Covid-19: el papel del gobierno, profesores y padres. Revista Internacional de Educación para la Justicia Social, 9(3). https://doi/org/10.15366/riejs2020.9.3
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) pondera que, embora muitos pais consigam dedicar tempo e atenção para o acompanhamento educacional de seus filhos, tal processo nunca será impecável ou constante, podendo resultar em algumas situações tranquilas e divertidas, assim como outras que podem produzir frustração, ao se verem confrontados por uma multiplicidade de responsabilidades que acarretam exaustão física e mental. De toda maneira, é certo que, na média, o empenho parental, por melhor que seja, não substitui com total eficácia a aprendizagem que ocorre nas escolas.

Existem ainda outros fatores que influenciam negativamente nos desfechos, principalmente as enormes diferenças sociais que se observam no acesso aos recursos disponíveis, o que pode ampliar a vulnerabilidade de certas configurações familiares. O tempo que os pais conseguem investir na educação de seus filhos é variável em cada lar, assim como a curiosidade intelectual, a atitude epistemofílica, o capital simbólico e o grau de conhecimento e desenvolvimento cognitivo parental. Permeando essas vicissitudes, há profundas disparidades socioeconômicas que caracterizam as famílias brasileiras, constituindo outro fator vulnerabilizador que precisa ser considerado.

Eu quero a mamãe: os dilemas da presença-ausência da figura materna

Anteriormente à realização das entrevistas, foi solicitado que as mães indagassem aos seus filhos como estava sendo o momento de isolamento social para eles, e que identificassem aquilo de que eles mais gostavam e do que menos gostavam nesse período de pandemia. As perguntas sugeridas foram: “O que você está achando desse período de isolamento que estamos vivendo por conta da pandemia do novo coronavírus? Do que você está gostando mais e do que está gostando menos?” Recomendou-se que as questões fossem elaboradas de forma coloquial, dialogada e o mais próxima possível da linguagem infantil, de modo que as crianças pudessem compreender o que estava sendo perguntado e preservassem uma certa espontaneidade em suas respostas. No entanto, vale ressaltar que o que interessava nesse momento era a narrativa e o olhar da mãe para a resposta de seus filhos, uma vez que o foco da pesquisa era a experiência materna.

No início de cada entrevista, solicitou-se que as participantes narrassem as respostas dos filhos e refletissem sobre essa questão, como se sentiram ao conversarem com eles e o que pensaram ao ouvir as crianças. Todos os filhos disseram que gostavam de ficar em casa com todos juntos, que tinham medo do novo coronavírus e da morte, mas que se sentiam seguros junto aos pais. As crianças também mencionaram as dificuldades de adaptação ao sistema de ensino on-line e percebiam que os pais trabalhavam muito, mesmo permanecendo em casa o dia todo e que, por isso, não podiam brincar com elas por mais tempo.

A questão do tempo decorrido desde o início da pandemia mostrou ser um fator crítico nas diferenças observadas nas respostas das crianças. Ao relatarem que apreciavam estar em casa, na companhia de seus pais, as crianças nos primeiros meses da pandemia (entre abril e maio de 2020) apresentavam poucas queixas em relação à interrupção de suas atividades cotidianas e ao afastamento do convívio com os amigos. Já os filhos das mães entrevistadas entre os meses de junho e julho de 2020 relataram que se sentiam cansados e que estavam com saudade dos amigos; também sentiam falta do contato com o ambiente escolar e da vida que levavam antes do início da pandemia.

A questão do tempo, considerando os meses nos quais ocorreram as entrevistas, mostra como os impactos do isolamento e das rupturas da rotina são subjetivados de forma diferente pelas mães e crianças em função da duração do confinamento. De forma recorrente, o termo cansaço foi utilizado para descrever a relação estabelecida com a necessidade de manter o distanciamento social. Nesse sentido, é importante estar atento aos impactos que a exposição ao estresse crônico, a suscetibilidade à fadiga e o distanciamento das pessoas produzem no vínculo mãe-criança, com suas prováveis repercussões no processo de subjetivação (Scorsolini-Comin, Rossato, & Santos, 2020Scorsolini-Comin, F.; Rossato, L.; Santos, M. A.(2020). Saúde mental, experiência e cuidados: implicações da pandemia de COVID-19. Revista da SPAGESP, 21(2), 1-6. Recuperado dehttp://pepsic.bvsalud.org/pdf/rspagesp/v21n2/v21n2a01.pdf
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).

A fala de Lucas, filho de Luíza, ilustra como muitas crianças narraram para suas mães aquilo que sentiam em relação ao momento pandêmico.

Eu não estou gostando, estou amando! Odeio ir para a escola on-line, amo ficar com a mamãe e o papai, amo quando jogamos juntos e almoçamos juntos, adoro games e ficar livre o dia todo. Não gosto quando você fica dando aula, mas já me acostumei porque eu olho para o lado e vejo você ali, meu coração fica quentinho.

Todas as entrevistadas se emocionaram ao relatarem as respostas de seus filhos e ao perceberem que sua figura e função de mãe são tão importantes para eles. Sentiam-se reconfortadas por serem amadas e reconhecidas, porém se mostraram surpreendidas com o elevado valor emocional que isso parecia ter para seus filhos. Essa percepção suscitou vivências de culpa, que emergiram nas falas quando elas refletiram sobre como organizavam suas vidas antes da pandemia e como puderam se aproximar ainda mais de seus filhos durante esse período de exceção.

Me angustiou, fiquei pensando na real importância que as crianças dão para as coisas e no que nós adultos continuamos insistindo em fazer; só fico pensando em como é importante ter um olhar mais simples para as coisas. (Joana).

Tem sido curioso escutar e conviver com os sentimentos do Enzo. Conversamos sobre o assunto sem obrigações e grandes novelas, e quando ele está incomodado tento orientá-lo para que ele se expresse. Isso não acontecia muito na nossa vida, então é surpreendente também. Na verdade fico surpresa, é como se estivesse conhecendo, reconhecendo meu filho. (Patrícia)

A questão do tempo redimensionado, com a aceleração ou lentificação do ritmo da vida sob o regime da pandemia, ao mesmo tempo que produz desafios que requerem ajustamentos, cria uma oportunidade única de reflexão. As mães reconhecem que houve maior aproximação, o que lhes permite (re)conhecer facetas da personalidade dos filhos que passavam despercebidas anteriormente. Essa percepção traz à baila a questão da vinculação da díade e as nuanças envolvidas nessa relação tão especial. A função materna é pensada por Winnicott (1956/2000Winnicott, D. W. (2000). Preocupação materna primária. In Winnicott, D. W. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise (D. Bogomoletz, Trad., pp. 491-498). Ubu, Francisco Alves. (Original publicado em 1956)) como um componente central na constituição e desenvolvimento emocional da criança. A qualidade do vínculo estabelecido é um aspecto vital na construção do laço que a criança é capaz de estabelecer com o mundo e com os objetos, modulando a confiança que ela vai ter no ambiente e nas relações humanas. Apesar do discurso psicanalítico ter contribuído em alguma medida para a legitimação do lugar do cuidado materno na constituição da subjetividade dos filhos, muitas vezes não atentando para os diferentes modos possíveis de se exercer a maternidade, uma questão se evidencia nas falas dessas crianças refratadas pelas narrativas maternas: elas desejam desfrutar do convívio com mães mais disponíveis e atentas durante o dia, e se sentem mais seguras emocionalmente por estarem mais próximas de seus progenitores.

Isso remete a uma discussão sobre o tecido vincular, fonte de sustentação da experiência de ser no mundo. Percebe-se que a sensação de presença constante provocada pela maior proximidade física das mães, um efeito direto do imperativo de confinamento doméstico, parece ter dado visibilidade a certas necessidades emocionais dos filhos que anteriormente passavam despercebidas ou não estavam tão evidentes, explicitando falhas ou privações de cuidado. Deparar-se com essas insuficiências produz desconforto nas mães, à medida que expõem seus sentimentos de pesar por não poderem atender às exigências de contato contínuo do modo como gostariam, caso tivessem total disponibilidade durante o dia, exceto em circunstâncias excepcionais como ocorre durante as férias do trabalho ou, no presente, devido à possibilidade de trabalharem em regime de homeoffice.

Nos últimos tempos, muito se tem debatido sobre as fragilidades dos vínculos familiares, as dificuldades dos enlaces, da constituição da relação com o outro e dos diversos sintomas ou quadros psicopatológicos que emergem como demandas clínicas na contemporaneidade. Para Birman (2007Birman, J. (2007). Laços e desenlaces na contemporaneidade. Jornal de Psicanálise, 40(72), 47-62. Recuperado dehttp://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352007000100004&lng=pt&tlng=pt
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), essas demandas estão vinculadas aos modos de vida que ressoam automaticamente nos processos de subjetivação na atualidade, resultando em problemáticas situadas no campo das fragilidades da existência e das experiências do sentir. O autor considera que tais questões podem ser articuladas às transformações sociais e familiares contemporâneas e que um elemento-chave para pensar essas transições é a entrada maciça da mulher no mercado de trabalho. A conquista do espaço público retirou as mulheres do lugar tradicional de presença permanente na casa, centro gravitacional da família e grande “gestora do lar”, abrindo novos horizontes para a inscrição do feminino para além do exclusivo papel de cuidadora da vida dos filhos e do marido. Essa mudança efetivamente não é o fulcro dos problemas desencadeados pelas transformações dos papeis sociais, mas sim as dificuldades que as famílias passaram a enfrentar para produzir novos enlaces a partir das mudanças ocorridas no papel materno.

Quando a mãe se afasta do centro da cena familiar e ninguém ocupa o seu lugar, fortalecem-se os espaços dos cuidados institucionais (escolas, hospitais, consultórios médicos e psicológicos) e a medicalização passa a atravessar a vida familiar para o controle do comportamento errático das crianças. Mesmo assim, o olhar que se lança para os lugares, para os papéis e funções exercidas pela família contemporânea permanece engessado, fixado na reprodução das expectativas de modelos pautados na figura materna moldada no sistema patriarcal, a partir do advento da família nuclear burguesa, quando à mãe foi outorgado o papel de gestora dos cuidados de toda a família (Braga et al., 2020Braga, I. F.; Oliveira, W. A.; Santos, M. A. (2020). “História do presente” de mulheres durante a pandemia da COVID-19: feminização do cuidado e vulnerabilidade. Revista Feminismos, 8(3), 190-198. Recuperado de https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/article/view/42459/23919
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). A mulher ainda é percebida como a soberana do espaço privado, a “rainha do lar”. Nesse sentido, compreende-se que esse clamor pela “mamãe” mitificada e todas as queixas relativas ao trabalho da mulher e os relatos maternos de que a permanência prolongada em casa permitiu estabelecer novas conexões com os filhos, são significados que o contexto pandêmico contribui para redimensionar, funcionamento também como uma advertência para que elas se permitam ser docilmente recapturadas pelo discurso que naturaliza o materno (Badinter, 2011Badinter, E. (2010). O conflito: a mulher e a mãe (2a ed., V. L. dos Reis, Trad.).Rio de Janeiro: Record.). O clamor do afeto e a auto-responsabilização pela qualidade da vinculação, assim como a exigência da conexão produzida com tempo e disponibilidade, exigem um compartilhamento no qual os lugares e funções dos membros do grupo familiar possam ser pensados em termos de uma rede de afetos que promovem a sustentação para o vir a ser, tão importante nos processos de subjetivação.

Por outro lado, uma mãe em farrapos, vestida com as vestes históricas que não lhe servem mais, sem o apoio de sua rede vincular, pode adoecer e ver os filhos adoecerem também. Ao sentir-se desamparada, ela pode recorrer a soluções imediatistas, entendendo que o problema é pessoal, que é ela quem fracassou em sua função, o que legitima a culpa que sente por ter feito a escolha de estar também presente no universo laboral. Isso pode favorecer a repetição do aprisionamento nas engrenagens dos papéis tradicionais de gênero. Embaladas pelos enunciados ideológicos que se camuflam nas nomenclaturas enaltecedoras, tais como “guerreira”, “leoa”, “fortaleza”, “heroína”, “estrela do lar”, as mães muitas vezes ocultam suas dores, renunciam a seus projetos e sufocam seus desejos, como se tivessem que carregar a sina de perpetuar um padrão de comportamento feminino que não cabe mais no mundo contemporâneo.

Essas questões transparecem na fala de Talita, mãe de Mariana, de dois anos, autora do apelo: “Eu quero a mamãe”. Quando a mãe perguntou sobre o que achava da pandemia, a menina disse: “Tem mamãe, olha a mamãe”. Talita disse que ela tem repetido o dia todo que quer a mamãe. Isso a levou a refletir sobre o modo como tem olhado para a maternagem na atualidade.

Olha, eu tenho pensado muito com minhas colegas professoras o quanto ser mulher é difícil, mas o quanto ser mãe talvez seja uma possibilidade mais legal de ser mulher. Acho que é isso, ser mãe dá um conforto de ver o sorriso deles, o amor deles, tudo isso, mas ao mesmo tempo parece que a gente quer atingir o inatingível, parece que a gente quer dar conta de tudo a qualquer preço, e olha que pouco falamos aqui dos parceiros, do corpo, das cobranças de ser bonita, sexy e competente, tanta coisa que vem no nosso dia... Eu queria poder só ser feliz, meio que quebrar uns padrões, ser mãe do meu jeito, poder ser feliz no meu trabalho, relaxar um pouco, mas hoje vivo em busca de atingir, atingir, atingir... e sofro, me sinto sufocada, no limite, parece que essas roupas não me servem mais. (Talita)

Nesse sentido, o estribilho “eu quero a mamãe” parece atualizar a marca de uma demanda que precisa ser olhada no horizonte histórico e por meio da constituição subjetiva das mulheres, no caminho de um processo de emancipação que levou à ressignificação de seu papel social e familiar, e que certamente reverbera nos vínculos familiares, na saúde mental das mães e dos demais membros da família. A pandemia oportunizou um inesperado tempo de reflexão para essas mulheres que desfrutam de certos privilégios, ao mesmo tempo em que também experimentam as agruras de serem mães e profissionais. Com o processo de emancipação feminina, elas tiveram acesso a oportunidades de educação superior e pertencem às camadas médias na hierarquia social, contudo ainda se sentem aprisionadas às injunções condicionadas pelo patriarcado. É preciso expandir sua reflexão crítica para que possam reorientar seu olhar para a maternagem, de modo que a maternidade possa ser redimensionada e reconhecida em sua potência subversiva, o que poderia contribuir para repensar o materno e suas transformações também como experiências de luta e resistência histórica que se ligam à possibilidade de acesso a questões emocionais que nutrem a esperança e fortalecem a confiança no futuro.

Nessa vertente, evitando cristalizar um olhar individualizante para o contexto vincular explicitado pelos discursos maternos e filiais analisados, o conceito de aliança inconsciente desenvolvido por Käes (2014Käes, R. (2014). As alianças inconscientes (L. Cazarotto, Trad.).São Paulo: Ideias & Letras.) permite compreender os obstáculos encontrados no processo de transformação do exercício da maternidade, levando em consideração a polissemia da maternagem na contemporaneidade.

Käes (2014Käes, R. (2014). As alianças inconscientes (L. Cazarotto, Trad.).São Paulo: Ideias & Letras.) considera a aliança inconsciente uma construção psíquica intersubjetiva celebrada entre sujeitos engajados em um vínculo, de modo a estabelecer e reforçar, em cada membro, os investimentos narcísicos e objetais, e assegurar a continuidade dos processos, funções e estruturas psíquicas necessárias, resultantes do recalque ou da denegação, da desautorização ou da rejeição. Assim, as alianças inconscientes, bem como os contratos e pactos estabelecidos, sedimentam a realidade psíquica, remetendo os sujeitos ao lugar simbólico ocupado por cada um no conjunto. Concomitantemente, os sujeitos envolvidos e conectados uns com os outros contraem, pela via das alianças estabelecidas, compromissos, obrigações e sujeições, da mesma maneira que distribuem benefícios e satisfações, medidos em função dos custos psíquicos exigidos de cada um para a partilha de tais benesses.

Dessa forma, as alianças inconscientes constituem, ao mesmo tempo, o agente e a matéria-prima da transmissão psíquica intergeracional, que é baseada na renúncia pulsional e na transmissão dos pactos estabelecidos para fixar os contratos inconscientes. Isso significa que é justamente por meio da renúncia pulsional, sobretudo daquelas moções destrutivas, que emerge a possibilidade do estabelecimento de um contrato que possa beneficiar todos os membros do conjunto - o casal, a família, o grupo - enquanto uma comunidade de direitos que “nos protege contra a violência, impõe a necessidade e torna possível o amor” (Käes, 2011Käes, R. (2011). Um singular plural: a psicanálise à prova do grupo (L. P. Rouanet, Trad.).São Paulo: Loyola., p. 202).

Nesse sentido, localizamos nos discursos maternos que o contrato estabelecido geracionalmente sustenta o lugar (con)sagrado da mulher/mãe ainda vigente no imaginário, reproduzindo os antigos padrões historicamente estabelecidos na família burguesa. A despeito das inúmeras transformações subjetivantes que sacodem a sociedade contemporânea, o lugar da mulher continua sendo investido e sustentado por valores organizadores das gerações anteriores. Ao se depararem com tal conflito, as mães ficam suscetíveis a sentimentos de culpa, como se não tivessem cumprido a contento o papel que lhes cabe no pacto inconsciente estabelecido com as gerações que as antecederam.

O rompimento desse ciclo subjetivante gera um conflito em cadeia - tanto com a geração anterior, como com os demais envolvidos nessa aliança - os companheiros e filhos. Os relatos sobre fadiga, desgaste e culpa decorrentes da sobrecarga gerada pela naturalização da feminização dos cuidados demonstram a dificuldade de distribuição equilibrada dos investimentos narcísicos e objetais das mulheres, embora resultem dos benefícios e custos psíquicos vivenciados pelo casal e na vida em família, em conformidade com a modalidade vincular estabelecida.

Na perspectiva dos filhos, a expressão coloquial “Eu quero a mamãe” pode condensar múltiplos significados. A princípio, pode demonstrar a necessidade de investimento narcísico endereçado pelas figuras parentais aos filhos, porque é o investimento do grupo que estabelece o lugar ocupado por cada membro no conjunto microssocial da família. Trata-se do contrato narcísico, conceito introduzido por Castoriadis-Aulagnier (1975Castoriadis-Aulagnier, P. (1975). La violence de l’interprétation: le pictogramme et l’énoncé.Paris: PUF.) para designar uma aliança estruturante no qual a cadeia familiar investe narcisicamente o sujeito, reconhecido como portador da continuidade do grupo, de modo a garantir a inscrição simbólica de seu lugar no conjunto. Por outro lado, tal investimento não seria resultante apenas do investimento materno, apesar da importância que o estabelecimento anterior desse vínculo tem para o desenvolvimento da criança, uma vez que a cobrança que recai sobre as mães está longe daquela que incide sobre os pais. Isso mostra que a distribuição desigual de custos e benefícios pela educação das crianças perpetua os lugares tradicionalmente ocupados por homens e mulheres na cadeia familiar e geracional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo possibilitou compreender as experiências de mães de filhos em idade escolar em resposta às demandas suscitadas pelo fechamento compulsório das escolas, destacando seus impactos sobre os vínculos familiares e a percepção da maternagem, considerando a importância desse conhecimento para redimensionar as necessidades de saúde mental de mães e filhos.

Os resultados mostram que, embora as figuras parentais possam colaborar e complementar o processo educativo dos filhos, com a suspensão das atividades presenciais nas escolas e o isolamento doméstico, os impactos na vida familiar exacerbaram as funções tradicionais atribuídas às mulheres na rotina doméstica, na qual já acumulavam o papel feminino tradicionalmente reservado à maternidade, acrescido do papel profissional característico do contemporâneo.

Com o vácuo deixado pelas escolas, é possível questionar o tipo e a intensidade dos investimentos narcísicos nas crianças, uma vez que parte deles era sustentado pela instituição escolar, até passarem quase que exclusivamente para o domínio das famílias, mais especificamente das mães. A escuta das participantes evidenciou o desgaste resultante do acúmulo de novas exigências que recaíram de forma desproporcional sobre elas, acarretando exaustão física e psíquica.

O aumento da exposição das mães trabalhadoras ao desamparo e sofrimento durante a pandemia da COVID-19 expõe a necessidade de avanços nas políticas e na rede de proteção à saúde mental das mulheres e das crianças, especialmente em períodos críticos e de crise prolongada. É preciso assegurar que a atenção às necessidades emocionais não fique comprometida nesses períodos. Também é fundamental investir na transformação da sociedade no sentido de uma redistribuição mais igualitária entre mulheres e homens das tarefas e responsabilidades pelo cuidado e educação das crianças, caminhando rumo a maior equidade nas relações de gênero, de raça, de classe e de geração.

A experiência sem precedentes da pandemia, ao proporcionar o convívio integral com os filhos, também ofereceu uma oportunidade para as mães reverem prioridades e ponderarem os efeitos de suas ausências no desenvolvimento da criança. Também pode ser um momento ideal para que os adultos que não têm filhos consigam valorizar e entender a complexidade dos cuidados parentais.

Este estudo contém algumas limitações que precisam ser destacadas, como o fato de a amostra ser restrita a mães oriundas de um único estado brasileiro e de uma região altamente desenvolvida. A pesquisa se limitou à escuta de mulheres das camadas sociais médias da população. Outra limitação que pode ser apontada é o fato de não terem sido incluídas outras perspectivas, como as vozes dos maridos e professores das crianças, o que eventualmente poderá ser contemplado em estudos futuros. Esses aspectos requerem cautela na generalização dos resultados para outros contextos.

REFERÊNCIAS

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  • Bardin, L. (2010). Análise de conteúdoLisboa: Edições 70.
  • Barlett, J. D.; Griffin, J.; Thomson, D. (2020). Resources for supporting children’s emotional well-being during the COVID-19 pandemic Recuperado dehttps://www.childtrends.org/publications/resources-for-supportingchildrens-emotional-well-being-during-the-covid-19-pandemic
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  • 1
    Trata-se de um tipo de amostragem não probabilística, a partir da qual se lança mão de documentos e/ou informantes-chave, nomeados sementes, com a finalidade de localizar algumas pessoas que atendam aos critérios do perfil delineado para a composição da amostra da pesquisa. Assim, solicita-se que as pessoas sugeridas pelas sementes indiquem outros contatos, a partir de sua rede pessoal e que atendam ao perfil desejado, até que o quadro de amostragem atinja a saturação necessária para a consecução dos objetivos da pesquisa. Neste estudo foram utilizados informantes que apontaram mães que atendiam aos critérios de perfil para compor a amostra (Turato, 2003Turato, E. R. (2003). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação na área da saúde e humanas.Petrópolis, RJ: Vozes.).
  • A pesquisa foi realizada com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, por meio de Bolsa de Produtividade em Pesquisa PQ-1A.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2020
  • Aceito
    16 Maio 2021
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