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Mediação, Cultura e Política

RESENHAS

VELHO, Gilberto e KUSCHNIR, Karina (orgs.). 2001. Mediação, Cultura e Política. Rio de Janeiro: Aeroplano. 344 pp.

Carmen Rial

Professora, UFSC

Bons antropólogos, o Brasil tem muitos. Felizmente. Mas antropólogos que tenham feito escola, que constituam em torno de si grupos formados por outros antropólogos, esses são bem mais raros. Gilberto Velho é um deles. Doutorado pela USP, consolidou a antropologia urbana no país (ou a antropologia das sociedades complexas moderno-contemporâneas, como ele prefere), inspirando trabalhos que perscrutam nossas cidades, etnografias ousadas que desvendam um Brasil bem mais heterogêneo do que outros grandes intérpretes faziam pensar.

De tempos em tempos, aparece um livro novo, numa produção fértil e constante. Mediação, Cultura e Política é o último deles, organizado pelo próprio Velho e por Karina Kuschnir, uma ex-aluna sua. O livro é o resultado de um seminário realizado em 2000, no âmbito do projeto de pesquisa "Mediação e Cidadania na Sociedade Brasileira", coordenado por Velho no PPGAS-MN-UFRJ. Os artigos foram divididos em três blocos temáticos e comentados, respectivamente, por Luiz Fernando Dias Duarte, Celso Castro e Myriam Lins de Barros, em intervenções que não explicam nem repetem o que acabamos de ler, mas iluminam certos aspectos dos textos, levando-nos da etnografia a novos diálogos teóricos.

Articulando-se em torno da idéia da mediação, o livro aponta para a necessidade de deixarmos de pensar somente os extremos irreconciliáveis da cultura brasileira, seus mundos à parte (ricos e pobres, Zona Sul e Zona Norte), e passarmos a enfocar os agentes sociais que transitam entre os dois pólos, contrabandeando idéias, estilos de vida, práticas sociais, objetos. Nos termos de Velho, os go-betweens: "Os indivíduos, especialmente em meio metropolitano, estão potencialmente expostos a experiências muito diferenciadas, na medida em que se deslocam e têm contato com universos sociológicos, estilos de vida e modos de percepção da realidade distintos e mesmo contrastantes. Ora, certos indivíduos mais do que outros não só fazem esse trânsito mas desempenham o papel de mediadores entre diferentes mundos, estilos de vida e experiências" (:20). Para além de serem figuras mercurianas, prontas à comunicação, essas personagens são capazes de vivenciar esses dois lados da vida urbana. E porque o trânsito muitas vezes requer poder, são vistas como autênticos xamãs (idéia presente no comentário de Luiz Fernando Dias Duarte). De fato, a idéia de mediadores já aparecia em trabalhos anteriores de Velho (como Projeto e Metamorfose, de 1994, por exemplo). Aqui, no entanto, esses brokers ganham a centralidade da obra.

Gilberto Velho assina a apresentação, juntamente com Karina Kuschnir, além de um dos quinze capítulos do livro. São textos claros e simples que evocam os inspiradores da antropologia da comunicação cultural que a obra propõe: Weber, Simmel e, principalmente, Schutz. Os indivíduos são as unidades mínimas significativas de uma sociedade onde aparecem diferenciações não presentes em sociedades tradicionais. "Ressalte-se que em qualquer sociedade, por mais aparentemente simples, há diferenciação e descontinuidade em termos de papéis sociais e planos de realidade. No entanto, nas sociedades tribais e tradicionais, religião, família e parentesco, trabalho e guerra imbricam-se de tal forma que a diferenciação em domínios não se apresenta, em geral, de modo nítido" (:16). Os mediadores aceleram a comunicação, são intermediários entre mundos diferenciados, tradutores das diferenças culturais. O estudo de biografias e de trajetórias individuais foi o recurso utilizado para falar desses tradutores culturais.

O primeiro bloco do livro trata dos mediadores no campo da arte, música e literatura. Traz artigo de Hermano Vianna, que revela o encontro do morro e do asfalto na década de 60 através de "um artista carioca de 28 anos, chamado Hélio Oiticica, egresso dos embates intelectuais/estéticos do concretismo e do neoconcretismo, [que] havia tido a petulância de trazer para o museu uma ala de passistas da favela e da escola de samba Mangueira para apresentar, em seus corpos e em estandartes, suas novas obras, intituladas justamente de Parangolés" (:31). Vianna, através de artigos de jornais, cartas e outras fontes, conta a história desse artista de vanguarda que sobe o morro da Mangueira em busca de inspiração, se apaixona pela vida cotidiana que encontra, e ali se estabelece. O artigo aborda, como pano de fundo, um momento de grande ebulição na arte brasileira e de aprofundamento da relação cultura popular/cultura da elite, com as discussões travadas entre os representantes dos CPCs (Centro Populares de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes), do teatro de Arena e show Opinião.

Um movimento inverso ao de Oiticica é estudado por Letícia Vianna, no artigo que percorre a trajetória do rei (e inventor) do baião, Luiz Gonzaga. Entre o final da Segunda Guerra e meados dos anos 50, vemos Gonzaga tocando nas esquinas do Mangue, em gafieiras, dormindo no morro de São Carlos, participando no programa de Ari Barroso, na rádio Tupi e, enfim, em salões como o Copacabana Palace, consolidando o baião na mídia. "A música era (e é) um lugar privilegiado para a construção e afirmação de identidades regionais e nacionais. E o baião apareceu como música regional que trazia um sertão brasileiro para o cenário da música nacional" (:63), como a música caipira trazia a roça, e o samba "o Brasil urbanizado, trabalhador e bem-humorado". O baião era "representante do sertão", mas feito no Rio "por nordestinos de camadas populares e médias imigrados para o sul" que se integravam na indústria cultural. Com um texto atrativo e rico em informações, Letícia nos fala das muitas invenções de nordestinidade adotadas por Gonzaga, como o chapéu de couro e a roupa de cangaceiro. A penetração da música nordestina entre as camadas médias cariocas também é tema de Roberta Ceva no capítulo "Forró e Mediação Cultural na Cidade do Rio de Janeiro", onde vemos sua retomada hoje por estudantes cariocas.

Adriana Facina percorre as referências usuais da antropologia urbana (Simmel, Escola de Chicago de Park e Wirth) para chegar à cidade da literatura e especialmente a Nelson Rodrigues, que "toma o Rio de Janeiro como o próprio mundo, como um laboratório onde são produzidos e testados sua visão de mundo, sua concepção acerca da natureza humana, seus preceitos ético-morais, ou seja, tudo aquilo que informa sua dramaturgia e que pretende universal" (:95). Nelson Rodrigues recria o Rio enquanto um mundo imaginado, onde áreas de anonimato (como o Centro e a Zona Sul da cidade) contrapõem-se a territórios onde predominam relações pessoais que "definem e classificam os tipo que nela residem".

A predominância da "pessoalização" no Brasil mereceu já uma vasta literatura. Mas, como isso efetivamente se realiza? Os capítulos do segundo bloco fornecem exemplos, atuais e do passado, de inúmeras relações sociais pessoalizadas na esfera pública em geral, aí incluída a política. Karina Kuschnir estuda a trajetória biográfica de um político do Partido dos Trabalhadores, originário da Zona Sul e defensor das comunidades carentes, revelando-o como um mediador, interessado em estabelecer "pontes de comunicação entre os universos pelos quais transita", entre o poder público e a população. Alessandra Barreto, num artigo que dá conta de uma pesquisa ainda em andamento, aborda a associação de moradores e amigos do Leblon. Já Cristina Patriota de Moura opta por um político conhecido, Pedro Ludovico, o interventor de Getulio Vargas no Estado de Goiás. É toda a história recente da era Vargas que vislumbramos através dos conflitos da elite de um Brasil profond, no concurso de vontades encarnado em Ludovico, e na vitória da modernização, materializada em uma nova cidade: Goiânia.

Andrea Moraes abre o último bloco (bem caracterizado nos comentários de Myriam Barros como tematizando a hierarquia) colocando em pauta um tema incontornável para a pesquisa na cidade brasileira hoje: o do medo. O texto percorre o cotidiano de mulheres da terceira idade, seus trajetos na cidade e as estratégias de evitação dos supostos perigos urbanos: a evitação de lugares isolados, mas também os de multidão, dos caixas-eletrônicos, dos suspeitos que conseguem identificar graças a uma capacidade de observação que desenvolvem com a experiência. Claudia Rezende, com "Entre Mundos: Sobre Amizade, Igualdade, e Diferença", debruça-se sobre as relações entre empregadas e patroas, ora tensas e conflituosas, ora de "amizade", onde está presente de modo permanente o processo de afirmação de distinções sociais. Rezende conclui que "Ser amiga para elas é mais um adjetivo – a patroa amiga, a empregada amiga – do que uma forma substantiva de relação" (:257). "Sobre Agradecimentos e Desagrados: Trocas Materiais, Relações Hierárquicas e Sentimentos", de Maria Claudia Coelho, descreve esse "fato social total" que é o presente, com exemplos esclarecedores dos padrões de intercâmbio entre patroas e empregadas, reveladores de algumas relações hierárquicas no Brasil de hoje (a patroa que se ofende pelo presente caro dado pela empregada; a empregada que pede dinheiro e recebe CDs). Por fim, a empregada também está presente no último capítulo, "O Doutor e a Pomba-Gira. Um Estudo de Caso da Relação entre Psiquiatria e Umbanda", assinado por Patricia Guimarães.

Entre os momentos mais fortes do livro estão os comentários que fecham os blocos. Luiz Fernando Dias Duarte ressalta a opção analítica dos autores em torno de um grande divisor ("erudito e popular, individualista e hierárquico, Zona Sul e Zona Norte, grande tradição e pequena tradição, cidade e sertão, asfalto e morro"), evocando o romantismo como iniciador dessa abordagem do social a partir de metades complementares. Duarte usa a metáfora da capilarização para afirmar que a cultura brasileira teria buscado, até os anos 60, referências na cultura popular, e a partir daí se voltado para o exterior (o que seria evidente na música, com a Bossa Nova e os movimentos musicais posteriores).

Outro comentarista, Celso Castro, além de sublinhar a presença da cidade e da política no segundo bloco, age ele mesmo como um mediador, aproximando os conceitos de "campo de possibilidade" e de "projeto" dos termos de Maquiavel, fortuna e virtú: "[...] metade de nossa existência é determinada pela fortuna, por aquilo que não controlamos; a outra metade pela virtú, a responsabilidade inalienável que nos cabe por nossas ações" (:211).

Vários dos autores reunidos aqui subiram o morro, aplicando às classes populares conceitos teóricos forjados no estudo das classes médias. Fornecem assim uma ponte entre dois campos que tradicionalmente têm sido estudados de forma estanque, a partir de referncias teóricas distintas. Os autores de Mediação, Cultura e Política, nesse sentido, são eles tambem mediadores, servindo como comunicadores entre, pelo menos, esses dois campos da antropologia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2002
  • Data do Fascículo
    Out 2001
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