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Chile, país sem saída

Chile, país sem saída

Na sua primeira entrevista coletiva, após ser eleito presidente do Brasil, Tancredo Neves declarou que se solidarizava plenamente com a luta dos democratas chilenos. O que há com o Chile?

Desde 1983 o Sul da América Latina começou a desfazer-se de seus pesadelos ditatoriais. Em dezembro de 1983 Alfonsín assumiu a presidência do governo argentino, em 1984 foi a vez do Uruguai realizar eleições presidenciais e, no Brasil, a eleição indireta de Tancredo Neves para a presidência da República pôs um ponto final em um período militar de vinte e um anos da história brasileira. A pequena abertura política concedida por Pinochet desde maio de 1984, no Chile, parecia indicar que nesse país o mesmo destino promissor se avizinhava. Mas, em novembro de 1984, o panorama se fechou: estado de sítio, toque de recolher, prisões em massa... Como interpretar tais acontecimentos?

Interessada em esclarecer a situação chilena, LUA NOVA entrevistou o cientista político chileno RAUL GONZALES FLORES, que esteve em março deste ano no Rio de Janeiro, para participar de um simpósio sobre América Latina.

Da redação da LUA NOVA, estiveram presentes como entrevistadores Marijane Lisboa e Edison Nunes.

MARIJANE — Gostaríamos que você nos fizesse uma análise dos últimos acontecimentos no Chile. O que significa o recente endurecimento do regime de Pinochet, em novembro de 1984?

RAUL — O fechamento do processo chileno era algo que muita gente esperava, mas que não se acreditava que iria, de fato, chegar. E chegou. Comenta-se que Pinochet estava apenas esperando a eleição de Reagan para iniciar essa repressão, que ele já havia prometido "caso os chilenos não se comportassem bem". De fato, no mesmo dia em que Reagan foi eleito, implantou-se o estado de sítio e o exército iniciou grandes operações "pente-fino" nas poblaciones de Santiago, que são espécie de favelas em terrenos ocupados pela população que não tem meios de pagar pelo direito de moradia. As operações eram feitas de madrugada, prendia-se todos os homens maiores de 15 anos, fazia-se uma triagem, e os que ficavam detidos eram enviados para campos de concentração situados em regiões isoladas do Chile.

MARIJANE: Prenderam também os principais dirigentes políticos e sindicais?

RAUL — Não, foi uma repressão muito curiosa, diferente das outras. Não soubemos de casos de tortura e mortes; não houve nem prisões nem expulsões para o exterior de dirigentes importantes, tanto político quanto sindicais. Em parte isso se deve à preocupação de evitar protestos internacionais contra o Chile, justamente em um momento em que o Chile tem que negociar o pagamento de sua enorme dívida externa. Por outro lado, a ditadura chilena sabe que o importante no Chile não são as grandes lideranças políticas, mas a capacidade organizativa das massas, que têm uma longa tradição de luta. Por isso procuraram atingir justamente as lideranças intermediárias e apavorar e humilhar diretamente a população, por meio destas operações pente-fino.

Uma sólida capacidade de organização

A capacidade de organização da população chilena sempre foi muito grande, herança de quase cento e cinqüenta anos de democracia. Um exemplo disso são as invasões de terrenos, feitas pela população desabrigada. Dias após essas invasões, os pobladores já estão totalmente organizados em comissões de creches, segurança, limpeza, saúde etc. O mesmo podemos notar com relação aos sindicatos. Nunca deixaram de existir. No dia seguinte ao golpe de Pinochet já estavam reorganizados, cumprindo atividades esportivas e culturais que a ditadura, em princípio, não tinha por que reprimir. Também as organizações de bairros, os clubes de mães se mantiveram, e a Igreja auxiliou muito ao organizar os comedores populares. O que ocorreu, dessa época para cá, é que, com o fracasso do modelo econômico de Pinochet, a resistência popular ao regime militar se intensificou, porque recebeu a adesão das classes médias descontentes.

MARIJANE — Esse endurecimento do regime chileno pode ser entendido como os últimos atos desesperados de uma ditadura prestes a cair ou, ao contrário, como uma demonstração de que o regime militar ainda tem muito fôlego?

RAUL — Tenho uma opinião muito pessimista. Não acho que a ditadura chilena esteja em vias de cair. O que acho que ocorre no Chile, é um impasse político entre as suas classes sociais e um impasse que já é antigo entre nós. As principais classes sociais chilenas — o proletariado, a classe média e a burguesia — têm cada uma delas projetos próprios para o país, projetos, porém, que não contemplam os interesses das demais, pelo contrário, os excluem. Além disso, temos os militares, uma casta ou instituição que também tem seu projeto. Está no poder e pretende se manter aí por muito tempo.

Ora, qualquer classe que quisesse se levantar como uma alternativa política nacional para o Chile, teria que saber reconhecer e conciliar os interesses das demais. Mas, no momento, ninguém é capaz de fazer isso. É, ao meu ver, o que cria essa situação de impasse político que se agrava, evidentemente, devido à conjuntura econômica, pois o Chile de agora é um país pobre, deprimido, com um nível de produção industrial mais baixo do que o de antes do golpe de Pinochet, com taxas de desemprego altíssimas, que beiram os 27%. Em algumas poblaciones, o desemprego parece atingir 80% da população.

Em 1890, a primeira greve nacional

MARI JANE — Qual a razão histórica dessa incapacidade das classes sociais chilenas em dialogarem entre si?

RAUL — Creio que isso pode ser atribuído a uma formação muito precoce das classes sociais chilenas. A origem da classe operária chilena foi a mineração, no século passado. Ela criou uma classe operária muito radicalizada, o que costuma acontecer com os mineiros de todo o mundo. Por quê? Porque os mineiros formam comunidades isoladas, onde os valores de classe se reforçam. E no Chile, à diferença de outros países, as minas se localizam em todo o território — no Norte, no Centro, e no Sul —, permitindo formar uma classe operária de contorno nacional.

Junto aos mineiros surgem outros dois setores operários, os ferroviários e portuários, que faziam o transporte e a exportação dos minérios. Assim, desde o século passado, formou-se um núcleo operário muito forte e espalhado por todo o país. Não podemos nos esquecer de que a primeira greve nacional foi já em 1890.

Ao mesmo tempo, a burguesia chilena se formou, e também desde cedo reivindicou os seus direitos, como, por exemplo, instituir impostos para as companhias estrangeiras que exportavam os minérios nacionais. Em 1900, o estado chileno já controlava 50% das exportações de salitre.

Os recursos vindos dos impostos sobre a exportação permitiram a formação de uma ampla classe média, empregada na burocracia, no ensino e nos serviços em geral. Assim, muito cedo, formaram-se as três classes principais do Chile, ainda mais que o latifúndio entrou rapidamente em decadência e se integrou à burguesia nacional.

Os impasses históricos, freqüentes na história política do Chile, ainda têm uma outra causa: nosso regime presidencialista. Ele permite que qualquer classe que tenha uma maioria relativa possa governar. Todos os governos, a partir de 1925, foram governos de minoria, com um terço da população impondo-se ao resto do país: o governo de Alessandri, representando os setores empresariais, o governo de Frei, um governo de classe média, ou o governo de Allende, representando o movimento popular.

MARIJANE — O que querem os militares, a classe média, as esquerdas chilenas?

RAUL — Os militares, antes de tudo, querem sobreviver como instituição e manter os privilégios de salários, status etc., que conquistaram com Pinochet. As classes médias, representadas principalmente pela Aliança Democrática, querem uma abertura, mas sem os comunistas. Os comunistas, por sua vez, junto com setores mais esquerdistas — que constituem o MDP: Movimento Democrático Popular —, alimentam um projeto de revolução socialista, de ditadura do proletariado, pelo qual, se for necessário, iriam à luta armada, o que evidentemente não agrada às classes médias, horroriza os militares e assusta a burguesia. Esta última, por mais que se oponha à política econômica de Pinochet, prefere Pinochet ao proletariado no poder.

MARIJANE — Assim, você não vê nenhuma saída para esse impasse?

RAUL — Poucas. No movimento popular, os únicos que tentam encontrar uma saída são os sindicatos. O Comando Nacional de Trabalhadores propôs, por exemplo, uma grande negociação nacional entre as forças políticas e sociais — a Igreja, os militares, os sindicatos e partidos — para se estudar uma forma de transição para a democracia. Mas a proposta não foi aceita. Agora, em fins de 1984, eles se reuniram com as organizações empresariais do Chile para discutir a situação econômica e política, pois, já que os políticos não fazem política, eles se sentem compelidos a fazê-lo.

No movimento político, o Bloco Socialista — formado por setores socialistas, esquerda cristã e outros grupos de esquerda, de origem crist㠗 é o único agrupamento político que me parece buscar uma solução para o impasse. Tentam estabelecer um diálogo entre a Aliança Democrática e o Movimento Democrático Popular, para formar uma grande aliança de civilidade contra a ditadura. O Bloco Socialista, além do mais, é responsável por uma mudança muito importante no panorama da esquerda chilena; eles se definem, hoje, claramente, por um socialismo democrático e rejeitam, por isso, qualquer projeto socialista para o Chile que queira se impor baseado apenas em uma minoria da população.

Essa é a conclusão a que chegaram após analisar a experiência da Unidade Popular, ou seja, a derrota da via socialista de transição pacífica, tentada na época de Allende. Ou se tem um amplo consenso para caminhar para o socialismo, ou não se tem socialismo. Mas o Bloco Socialista é um grupo pequeno, deve contar com uns 10% do eleitorado chileno, e tem uma série de problemas políticos para expressar na prática um discurso tão bonito.

EDISON — Quais as semelhanças e diferenças que você vê entre as ditaduras do Chile e do Brasil?

RAUL — São totalmente diferentes, surgem em conjunturas totalmente distintas, tanto interna como externamente. A ditadura brasileira apareceu para frear um processo popular radicalizado, mas que, de qualquer forma, não ameaçava o sistema. Por isso o nível de repressão foi muito menor que o chileno: os partidos políticos permaneceram funcionando, apesar de terem sua atuação muito controlada, o Congresso continuou aberto com excessão de curtos períodos e a repressão em geral foi bem menor.

No Chile varreu-se tudo. No dia do golpe Pinochet declarou: "O Congresso Nacional está fechado até nova ordem". Para Pinochet, congressos, partidos políticos e instituições democráticas são coisas corruptas, que somente servem para abrir caminho ao comunismo internacional.

A segunda diferença entre as ditaduras do Chile e do Brasil é que a ditadura brasileira se implantou em um momento internacional em que havia grande afluência de capitais estrangeiros, e a essa conjuntura mundial favorável acrescia-se o fato de o Brasil ser um país mais rico, com um grande mercado interno potencial e com muitos recursos ainda não explorados.

O Chile, pelo contrário — um país pequeno, de mercado interno reduzido e com seus poucos recursos já bastante explorados —, encontra uma economia mundial em fase de depressão, onde todos querem empreender, especular, mas não investir.

Enquanto o Brasil, portanto, embarca em um modelo desenvolvimentista, permitindo a expansão do capital internacional e nacional, criando novos setores profissionais e ampliando a sua sociedade civil, o modelo econômico adotado pela ditadura chilena, foi o de tentar fazer com que o Chile voltasse ao passado, voltasse a ser um país exportador de matérias-primas e produtos agrícolas, e tomador de empréstimos externos. Isso significou tirar emprego de milhares de pessoas, reduzir o mercado interno — que já era pequeno — desindustrializar o país e cobri-lo de dívidas, que agora não sabem como pagar.

Assim, em resumo, enquanto os militares brasileiros, estimulando o desenvolvimento econômico, abriram espaços econômicos que resultaram inclusive em um fortalecimento da sociedade civil — o que explica bastante a abertura política brasileira atual — os militares chilenos se mostraram totalmente incapacitados para dirigir o país e hoje o ocupam militarmente, muito bem, mas não o governam.

O papel da solidariedade

MARIJANE — Na sua primeira entrevista coletiva, após a eleição do Colégio Eleitoral, Tancredo Neves declarou que se solidarizava com os democratas chilenos na sua luta. Em que medida a solidariedade internacional, hoje, poderia contribuir para a democratização do Chile?

RAUL — O Chile está numa posição muito delicada internacionalmente, porque tem que pagar este ano dois bilhões e meio de dólares, só de juros, e só tem 500 milhões de reserva. Terá que negociar, forçosamente. O governo Reagan, seu principal credor, que oficialmente se declara pró-democratização do Chile, diz que sua influência sobre esse país é pequena, e que a América Latina deveria tomar a iniciativa em relação ao Chile, como o fez no caso de Somoza, na Nicarágua. Minha impressão é que esse papel poderia ser desempenhado antes de tudo pelo Brasil, no governo de Tancredo Neves.

Se o Brasil assumir a liderança dos países latino-americanos e tentar deter a barbárie no Chile, removendo esse último obstáculo à democracia na América do Sul, encontraria o apoio imediato de governos como os da Colômbia, Venezuela, Uruguai, México e o da Argentina, além do apoio de todos os governos da Europa Ocidental. Seria necessário pressionar o governo americano e os demais credores chilenos, para que só auxiliassem o Chile financeiramente, caso este país ingressasse definitivamente numa transição para a democracia. Negociar com Pinochet é impossível, ele não aceita negociar. Só uma posição firme de todos os países latino-americanos e europeus contra a ditadura chilena, somada às mobilizações internas no Chile, lideradas pelos sindicatos e por forças políticas que saibam unir-se em torno desse objetivo, poderão evitar que a ditadura chilena se eternize, ao estilo de um Haiti ou Paraguai, e proporcionar uma saída democrática para nosso país.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
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