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A crise dos intelectuais

PERFIL

A crise dos intelectuais

Ronald H. Chilcote

Professor de Ciência Política na Universidade da Califórnia e editor da revista Latin American Perspectives

A problemática central da vida intelectual é sempre a de como conciliar um caminho autônomo, crítico, com o exercício de papéis nas instituições educacionais, no governo e na vida pública, onde se exerce o poder. Esta problemática coloca questões importantes relacionadas ao Brasil: em que grau seus intelectuais ligam-se à burguesia ou ao proletariado? Que posição e consciência de classe eles assumem? Como produzem cultura: de forma abstraía ou concreta? Seu pensamento é estagnado ou crítico e criativo? O conteúdo das suas idéias e do seu conhecimento se enquadra na mentalidade burguesa ou se opõe a ela? Sofrem influências liberais ou marxistas? Favorecem ou não mudanças reformistas ou radicais? Defendem a acumulação capitalista ou preferem a alternativa socialista?

Entrevistas realizadas com vários intelectuais revelam que, embora alguns atuem de maneira crítica e politicamente revolucionária, a maioria encontra-se comprometida com o sistema e ligada às universidades e outras instituições estatais. A maioria dos intelectuais se identifica com a burguesia dominante, e sua produção de idéias e conhecimento tende a ser formada pelos ideais burgueses de uma sociedade capitalista. Em suma, inclinam-se atualmente por mudanças dentro da acumulação capitalista emergente. Liberais ou marxistas, tendem a preferir o reformismo, ou seja, mudanças graduais.

Uma conseqüência desta situação é a fraca qualidade da produção cultural no país, fraca particularmente no que tange a análises profundas e pesquisas sérias, embora a quantidade de livros e publicações seja bastante grande. Como se explica essa situação? A resposta se encontra na crise atual.

Em primeiro lugar, há a crise econômica, o crescimento do capitalismo no Brasil, a dívida externa e interna, a indexação dos salários que prejudica particularmente os acadêmicos, as sanções do FMI, os acordos com o Banco Mundial e finalmente a recessão internacional, cujo impacto já se sente no país. Além disso, junto com a expansão capitalista ocorreu uma expansão universitária, o surgimento de centros de pesquisa e a especialização seguindo linhas tecnológicas. Hoje, contudo, a falta de recursos nesses setores força os intelectuais acadêmicos a buscarem outros empregos, reduzindo, assim, seu tempo de trabalho e impedindo-os de estudar, pesquisar e escrever devidamente.

êm segundo lugar, há uma crise oriunda da atuação do intelectual no processo político, como é o caso de Fernando Henrique Cardoso, atualmente senador, Darcy Ribeiro, vice-governador do Rio de Janeiro e Francisco Weffort, secretário geral do PT, enquanto o sociólogo Florestan Fernandes os critica por tal intervenção. Suas atividades intelectuais estariam comprometidas pelas suas posições no governo ou nos partidos e, ademais, essa participação política revelaria concepções românticas, ilusões sobre o poder ou ambições demagógicas. A atuação política do intelectual em relação aos problemas da realidade brasileira é, no entanto, importante. Foi por falta de um grande partido burguês, nos anos quarenta e cinqüenta, que muitos intelectuais ingressaram no Partido Comunista Brasileiro.

Finalmente vive-se também uma crise cultural, conseqüência de vinte anos de autoritarismo e repressão. Fala-se da "geração perdida" dos intelectuais, e alguns crêem que os intelectuais sempre estiveram divididos entre a assimilação de cultura europeia e a brasileira, fixando-se porém, a partir de 1964, em uma base cultural dependente do exterior. Alguns chegam a atribuir o baixo nível da vida intelectual brasileira à origem importante das duas grandes idéias: a adoção de métodos de análise estranhos à realidade brasileira, como os da escola "funcionalista" da sociologia americana, ou o modelo marxista-leninista, soviético, ou a abordagem do teórico italiano Gramsci, pode ter dirigido o intelectual para uma perspectiva pluralista, mas o deixou disperso, sem crítica sobre a sua própria realidade.

O professor de ciência política Décio Saes escreveu sobre a tendência em se manter a universidade como aparelho ideológico, seus cursos aparecendo como modo de transmissão incessante de rotinas de trabalho intelectual e formas hierárquicas de comportamento. Esta crítica não está tão longe da noção do paradigma elaborado pelo filósofo norte-americano Thomas Kuhn, no livro Estruturas das Revoluções Científicas. Kuhn argumentou que os conceitos e teorias da ciência estão baseados na experiência profissional e servem como paradigma (modelo) para os demais aprenderem. Por outro lado, a descrição de ideologia empreendida por Marilena Chaui se assemelha a essa visão, na medida que a ideologia predetermina o pensamento e atuação na sociedade, ligando-se estreitamente com a perspectiva da classe dominante e suas relações em geral.

A ciência política, entre as demais ciências sociais, é bem representativa disso. Desde a abertura política e a partir do Congresso da Associação Internacional de Ciência Política, no Rio, em julho de 1982, a ciência política tem crescido em prestígio. Tradicionalmente a disciplina estava relegada a estudos formais e legais, embora Alberto Torres, Oliveira Vianna e outros estivessem estudado a questão da nação e do Estado durante a época de Vargas, e depois Victor Nunes Leal e Raymundo Faoro desenvolvessem a questão do poder local e nacional. Durante os anos 50 e início dos 60, houve também as contribuições do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e, mais tarde, as do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Além disso, abriram-se programas de mestrado em Minas, em 1965, e depois no Rio Grande do Sul, São Paulo, Campinas, Brasília e Recife, destacando-se particularmente os programas de doutoramento do IUPERJ e da Universidade de Campinas (UNICAMP) em 1984.

Assim, o desenvolvimento da ciência política foi estimulado com a ajuda da Fundação Ford e com o retorno da França, Inglaterra e Estados Unidos de jovens professores treinados no estrangeiro. A partir de 1980, Bolivar Lamounier e outros intelectuais começariam a estudar os partidos políticos, publicando-se muitos estudos a respeito. Mas, embora tenham ocorrido muitos avanços na disciplina, ela permanece subjugada no fundamental a influências externas, carecendo de uma criatividade própria.

Estas deficiências podem ser explicadas de várias maneiras. Primeiro há a influência norteamericana, responsável pela formação de muitos brasileiros, assim como aquelas exercidas por partidos políticos, por grupos de pressão e pela democracia representativa ou burguesa, cujo pensamento observa-se nas publicações da Editora da Universidade de Brasília.

E segundo lugar, embora muitos cientistas políticos identifiquem-se com a teoria marxista, essa influência não se apresenta de modo significante na maioria dos livros e artigos publicados. Além disso, nos programas de pós-graduação, os alunos tendem a ser orientados para temas de menor relevância, concentrando-se em aspectos da vida institucional e em eventos históricos. Ao meu ver, a melhor análise política conjuntural encontra-se, atualmente, nas páginas editoriais da Folha de S. Paulo e nas suas reportagens de Brasília. O terceiro aspecto é que a maioria dos academicos vive no Rio de Janeiro e em São Paulo, o que tende a dar uma orientação regional às suas pesquisas. Uma quarta razão é ser o ensino universitário baseado em teorias elaboradas fora do país. Neste contexto, os estatutos contemporâneos nasceram de atuação de uma oposição cuja meta era chegar a uma transição democrática, deixando-se em um segundo plano, entretanto, os problemas reais da economia política. Finalmente, a emergência do capitalismo e tica. Finalmente, a emergência do capitalismo e da sociedade burguesa, especialmente nos centros urbanos, sendo acompanhada da aplicação de tecnologia, permite ao autoritarismo um ordenamento mais racional de muitas atividades intelectuais. Por isso ocorreu um aumento quantitativo da produção intelectual, porém seu baixo nível de qualidade continua refletindo à falta de pesquisas sérias. Todos esses aspectos são conseqüências da crise econômica, política e cultural que a intelectualidade atravessa, assim como das limitações da universidade.

Esse dilema da ciência política explicita os problemas próprios da ciência social e da vida intelectual em geral. Assim é que enquanto intelectuais que atuem criticamente são freqüentemente afastados do sistema, a maioria deles compromete-se com o Estado por meio das universidades e de outras instituições. A maioria dos intelectuais brasileiros se identifica com a burguesia dominante, e sua contribuição em idéias e conhecimentos tende a ligar-se aos ideais burgueses de uma sociedade capitalista. Nesta sociedade, eles preferem perseguir uma mudança gradual e reformista na busca de uma transição democrática, desejando eliminar os restos do regime autoritário, alimentando ao mesmo tempo a esperança de ter uma vida intelectual criticamente consciente e independente.

A natureza dos compromissos políticos e profissionais dos nossos intelectuais permite que eles sejam de fato independentes?

O intelectual brasileiro é pluralista e sofisticado teoricamente, mas não consegue dar conta da realidade brasileira.

O capitalismo emergente reorganiza as atividades intelectuais em seu proveito, gerando uma grande produção, de baixa qualidade.

O grande dilema: atuar à margem do sistema ou comprometer-se com o Estado. é sempre uma escolha difícil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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