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Tragédias industriais, uma questão política

Tragédias industriais, uma questão política

Oswaldo Sevá

Engenheiro, doutor em geografia e professor da Universidade Federal da Paraíba

Bhopal, na índia, Cidade do México, Vila Socó em São Paulo, Enchova, no Rio de Janeiro. Cada vez mais freqüentes, cada vez mais graves, os acidentes industriais com vítimas demonstram, em cada ocasião, uma espécie de lei fundamental: — os materiais e as máquinas se desgastam e falham; o ser humano, que é um elo frágil da tecnologia pesada, se mutila, é eliminado em vida...

Urna mudança de rota na história da violência se delineou nos últimos anos: aos ingredientes conhecidos das guerras e dos atentados políticos, das revoluções armadas e guerras civis, devemos agora adicionar as tragédias e catástrofes de origem industrial. Da mesma maneira que as demais violências, chegou a hora de considerarmos os riscos e os prejuízos industriais como uma questão de sobrevivência e, portanto, como uma questão política.

As razões que explicam a freqüência e a gravidade desses acidentes devem ser buscadas nos incidentes, nos impasses e nas rupturas existentes na organização da produção moderna. São verdadeiras panes sociais que propiciam estes acontecimentos e, uma vez desencadeados os incidentes técnicos, um grande dilema social e ético se instaura.

O pânico e a impunidade

Os acidentes não se repetem, embora muitos deles tenham se desenrolado em circunstâncias comparáveis; a maioria deles emite, com antecedência, sinais de alerta... A experiência singular vivida pelos trabalhadores e pelas populações afetadas começa muitas vezes pelo "ataque da surpresa". Se há explosões ou incêndios, a gravidade e as chances são evidentes: para quem está presente, trata-se de escapar do genocídio. Se ocorrerem emissões de nuvens tóxicas ou de materiais radioativos, elas são raramente identificadas e reconhecidas em tempo hábil, e, quando a contaminação e mesmo o assassinato chegam são traiçoeiros. Já nos casos de vazamento, nem mesmo a advertência transmitida às empresas é levada a sério, como aconteceu em Cubatão. Nos casos de manipulações errôneas das barragens fluviais, as populações ribeirinhas não são mobilizadas com a antecedência necessária.

Se dissemos antes que se trata de um dilema social e ético, é também pelo aspecto jurídico e mesmo cívico destas tragédias: de quem é a responsabilidade? como organizar os socorros? quem paga os prejuízos? que outros riscos haveria? Uma das interrogações mais profundas é, sem dúvida, sobre o saber, que neste caso é o conhecimento chamado técnico e científico, o conhecimento do funcionamento, das possibilidades e das limitações dos materiais e das instalações. E aí, o ponto mais delicado é saber justamente: como se produziu o acidente, e como seus efeitos atingiram a dimensão que atingiram?

Um acúmulo de irresponsabilidades

O edifício e a carapaça da tecno-burocracia começam a desabar sob o impacto dos seus próprios erros e da sua impunidade. Não é que os acidentes sejam todos atribuídos aos mesmos fatores, mas há um acúmulo de irregularidades e de irresponsabilidades que é comum a todos eles. A seqüência começa nas decisões de investimento, passa pelos calculistas e projetistas, pelos organismos de governo e de financiamento, continua pela negligência da manutenção industrial e pelos regimes forçados de produção (horas extras, metas difíceis de alcançar, calendários apertados, desgaste acelerado dos homens e do material). E não basta argumentar que "é a busca do lucro que acaba provocando" os acidentes e o desgaste da força de trabalho... A questão, hoje e cada vez mais, é da ordem do conhecimento, do controle social, da expressão política, das relações de força, ou seja, é uma questão de poder.

O pânico é sobretudo "não saber o que fazer", não poder fazer quase nada, ser levado de roldão; é o fruto do despreparo e da impotência das vítimas reais e das vítimas potenciais. A impunidade é sobretudo "o saber demais", é a consciência do erro que vitimou tantos outros e a disposição de não pagar por esse erro, a impunidade é o poder de as direções das firmas, privadas ou estatais, de não serem punidas. Quem sabe não resolve. Quem não sabe, não acredita.

Em Bhopal, na índia, quem sabia o que era o isocianato de metila? Em Vila Socó, onde todos sabiam que a gasolina vinha dos canos rachados, e que pegava fogo, ninguém sabia como consertar o vazamento nem como evitar um grande incêndio. Em Seveso, na Itália, quem sabia o que era a dioxina e o que ela podia provocar? Nas cercanias de Itaorna, em Angra dos Reis, quem sabe dizer quando a água de refrigeração da usina nuclear que é devolvida à praia está ou não está contaminada?

Mais uma vez, as conversas e as opiniões assumem ares de engenharia, de medicina, de geografia. Os argumentos se vestem com o linguajar científico e jurídico. Porém, nada será como antes. As explicações genéricas e harmoniosas que sempre nos fizeram acerca do progresso e da tecnologia estão tendo que ceder a vez a outras explicações, mais precisas e menos ufanis-tas. Trata-se agora de explicar os erros, detalhar as circunstâncias, evitar novos riscos. Mas, como?, se os "progressos" e os prejuízos são atualmente frutos das mesmas concepções de indústria, de regime salarial, de cidadania e de sociedade? Como essa brecha importantíssima está sendo aberta na própria dominação daqueles "que sabem", daqueles que detêm o poder industrial e seus aliados?

Os erros são acobertados

Um fato é muito claro: as falhas acontecem dentro de recintos ou em torno de instalações pertencentes às empresas. Sejam elas privadas ou estatais, controladas por capitais brasileiros ou externos, todas monopolizam a informação técnica relativa aos produtos que utilizam e que fabricam; algumas delas escamoteiam ou subestimam os riscos das instalações e dos equipamentos que põem a funcionar.

Este caráter empresarial dos locais e dos conhecimentos técnicos termina por acobertar os erros de concepção industrial. Permite também a negligência nas operações produtivas e na manutenção dos sistemas técnicos. As direções das empresas e seus assessores demonstram em geral uma grande imprevisão diante dos riscos humanos, sociais e ambientais de seus projetos "geniais", e, pior ainda, demonstram uma freqüente improvisação nas ocasiões em que os eventos mais graves se produzem e em que um número mais significativo de vítimas sucumbe.

Na raiz dessas incongruências e desses focos de conflitos está provavelmente a expropriação do conhecimento, velha conhecida daqueles que trabalham na indústria e em outros setores capitalistas. Não somente dentro das fábricas, mas também nos canteiros de obras e de mineração, nas empresas aéreas, nas firmas petrolíferas, nas centrais elétricas e em tantas outras que detêm uma tecnologia valiosa ou uma forma organizacional mais apurada; essa expropriação é a pedra de toque da continuidade da produção... e dos lucros.

Quem opera as instalações dia após dia sabe onde e quando elas falham, sabe distinguir entre uma pequena pane e um grande risco para a máquina e para os que estão próximos. Quem observa a perda do rendimento, o envelhecimento dos sistemas de energia, de transporte, de refrigeração etc., é que sabe quando e onde seria mais seguro paralisar a produção, substituir uma peça, e assim por diante. Não são esses assalariados, entretanto, que detêm, que acumulam e que socializam o conhecimento relativo às tragédias e aos acidentes industriais... esta memória, esta consciência dos limites e dos efeitos não pertencem a eles. Acabam sendo também expropriados pelas direções das firmas.

Muito mais cruel do que este segredo industrial é a situação de isolamento e de despreparo em que são mantidas as populações vizinhas a essas usinas, a esses canteiros ou similares. Isso só faz aumentar o risco de acidente e agravar as dificuldades inerentes à prevenção e ao socorro nos casos das tragédias como essas que temos lido nos jornais e visto nas telas de TV.

É compreensível que a revolta e a emoção diante dos acontecimentos e das ameaças sejam canalizados para o ceticismo, num primeiro momento e, em seguida, por conta da repetição e do agravamento dos fatos, sejam canalizados para a recusa da própria concepção capitalista. Percebe-se cada vez mais que o saber não pode ser privatizado, os prejuízos devem ser evitados; os cidadãos devem ser mantidos a par do que se passa nesses focos de problemas; e os assalariados dessas firmas podem e devem assumir uma parte crescente no controle dessas instalações, e, enfim, que essa talvez seja para eles a única alternativa para garantir a sua própria sobrevivência, a sua saúde, o seu direito de expressão no próprio trabalho e sobre sua própria vida.

Questão de sobrevivência, questão política

Se a questão é de sobrevivência, e assim compreendida, uma questão política não merece ser adiada ou transferida a terceiros ou a intermediários. Não bastará apenas ser ouvido, cobrar e obter explicações; será também necessário conseguir as reformas técnicas e legais que melhorem a segurança da indústria, e, em muitos casos, obter a interdição do funcionamento de fontes poluidoras e ameaçadoras.

Como os tempos atuais são de transição rumo à democracia, nós, cidadãos que repudiamos os riscos e os prejuízos dessas atividades econômicas, estaremos em condições de exigir a abertura dos dossiês, a realização e o cumprimento do resultado de consultas, bem como devemos solicitar e confrontar os diversos pareceres de especialistas independentes e os depoimentos de sobreviventes ou representantes de situações críticas já ocorridas. E, em tudo isto, se revelará um dos grandes desafios do período que se inicia: como serão encaminhadas as relações entre as empresas, o aparelho de Estado e a população?

Sabemos que há certas zonas e setores industriais onde o risco é alto e onde incidentes ou até mesmo tragédias podem acontecer. Nestes casos, caberá, agora mais do que nunca, ir ao Parlamento, ir à Justiça, desencadear os vários tipos de ações políticas, parlamentares e jurídicas que possam evitar e superar os problemas que já existem.

Seria então o controle social mais do que uma mera utopia? Poderemos ou não conquistar os meios necessários, e em curto prazo, para o controle — mesmo que seja parcial — da produção industrial, dos programas de investimento, dos patrimônios natural e cultural?

Esta é uma tarefa para já: evitar as tragédias e a impunidade; diminuir os riscos existentes; pagar os prejuízos passados ou presentes e — mais que tudo — extirpar as razões mais profundas destes dramas. Exercendo uma parcela do poder sobre as nossas próprias vidas e sobre os lugares onde moramos e trabalhamos poderemos, de forma livre e responsável, tomar nas mãos os nossos destinos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
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