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Entre Adorno e Lukács: dois livros de Paulo Arantes

Between Adorno and Lukács

Resumos

Ênfase na análise imanente no seu sentido mais forte, ou remessa às condições históricas da produção dos textos? Neste artigo destinado ao exame crítico desses livros argumenta-se que, estando em jogo obras de um autor que se move no universo do marxismo (Ressentimento da dialética e O fio da meada, de Paulo Arantes) a disjuntiva remete a Adorno ou a Lukács, autores centrais para Arantes.


Where is the emphasis to be put, on the internal analysis in the strong sense of the word or on the historical conditions of the production of texts? Since what is in question are works by an author which is at home in the universe of Marxism (Ressentimento da dialética and O fio da meada, by the philosopher Paulo Arantes), it is argued in this article devoted to a critical examinations of these books that the opposition may be stated to be between two thinkers that play central roles in Arantes' works: Lukács and Adorno.


CONSTITUIÇÃO

Entre Adorno e Lukács (dois livros de Paulo Arantes)*

Between Adorno and Lukács

Ruy Fausto

Professor no Departamento de Filosofia da USP e da Universidade de Paris-8

RESUMO

Ênfase na análise imanente no seu sentido mais forte, ou remessa às condições históricas da produção dos textos? Neste artigo destinado ao exame crítico desses livros argumenta-se que, estando em jogo obras de um autor que se move no universo do marxismo (Ressentimento da dialética e O fio da meada, de Paulo Arantes) a disjuntiva remete a Adorno ou a Lukács, autores centrais para Arantes.

ABSTRACT

Where is the emphasis to be put, on the internal analysis in the strong sense of the word or on the historical conditions of the production of texts? Since what is in question are works by an author which is at home in the universe of Marxism (Ressentimento da dialética and O fio da meada, by the philosopher Paulo Arantes), it is argued in this article devoted to a critical examinations of these books that the opposition may be stated to be between two thinkers that play central roles in Arantes' works: Lukács and Adorno.

Ressentimento da dialética é uma espécie de história social da dialética "negativa", e do seu desfecho, a dialética hegeliana, dialética positiva, que opera uma "negação da negação". A "dialética negativa" - Arantes mostra, contra Adorno, que a noção se encontra em Hegel -corresponderia às experiências da sofistica, da dialética antiga, do ceticismo, da conversação ilustrada do século XVTII (principalmente na figura "cínica" do "sobrinho de Rameau" de Diderot), da ironia romântica e também ao radicalismo dos inícios do idealismo alemão. Ela é lida em conexão com a emergência da figura do letrado independente e "não orgânico" - em contraposição à do "clerc" medieval (o autor remete a Le Goff) sobredeterminada pela marginalidade sui-generis a que era condenado o intelectual em países atrasados como a Alemanha (as referências principais são agora, Norbert Elias, Lukács e Adorno). A dialética de Hegel vem "idealizar" a situação da Alemanha e dos seus intelectuais, convertendo o antigo gesto negativo, nihilista ou quasejacobino, do intelectual marginalizado, em legitimação da via alemã de desenvolvimento. Quando a Alemanha realiza o salto que a conduz à condição de grande nação capitalista moderna, a "idealização", que o prenunciava, já não serve.

Do século XIX a Heidegger, passando pelas Confissões de um Apolítico de Thomas Mann, o quadro se reverte de novo. Um dos capítulos finais do livro põe em cena Hegel e Heidegger: Heidegger decide "ficar na província", opção simetricamente oposta à de Hegel, ao aceitar uma cátedra em Berlim, mas que sob certo aspecto lhe é paralela, com a diferença essencial de que Heidegger decide em nome de uma ideologização da "terra" e, se poderia acrescentar, para aderir a um poder que em matéria de violência excedia de muito (e já nos anos 30) ao da Alemanha de Hegel.

As idéias não são muito novas - como assinala no prefácio Bento Prado - e, ao resumi-las, perde-se alguma coisa da força do livro. Ela não está propriamente nas idéias, embora o autor as tenha levado muito longe (e nesse sentido são novas), mas na finura da análise, na prosa de uma justeza excepcional, e na incorporação, como objeto ou para a análise dele, de uma seqüência impressionante de figuras filosóficas e literárias (além de historiadores e sociólogos), na trama das histórias nacionais da Alemanha, da França e em menor medida da Itália (há um estudo em torno de Gramsci e do confronto Renascimento/ Reforma).

Mas o melhor do livro está, a meu ver, nos apêndices, quatro artigos sobre o radicalismo dos anos 40 (dos oitocentos), principalmente o de Max Stirner, sobre o destino da filosofia da história, e sobre a Intelligenzia, publicados na revista Almanaque de 1975 a 1978. Arantes já se distanciara suficientemente de um ponto de vista estritamente filosófico, de maneira a incorporar a seu modo a história e a sociologia das idéias, mas não se distanciara demais, o que lhe permitia explorar em detalhe, e tomando posição, a problemática interna dos textos, inclusive a de natureza lógica. É assim que ele analisa o discurso anti-especulativo de Stirner nas suas diferenças com a crítica feuerbachiana da especulação e na suas relações com a própria "especulação", no caso com o capítulo inicial da Fenomenología do Espírito de Hegel, sobre a certeza sensível. Seria difícil encontrar na literatura filosófica brasileira melhor exemplo de adequação entre forma e conteúdo. É visível em geral nos textos dos apêndices um recurso intencional a uma dupla linguagem (página 395, por exemplo) alternando-se um registro filosófico e um registro não-filosófico, um pouco à maneira da Ideologia Alemã mas para melhor, porque não reducionista. O corpo do livro não fica muito atrás, mas eu ousaria dizer que com as suas qualidades se anunciam, um pouco, algumas das dificuldades de O fio da meada. Entenda-se: não é que o texto derive em simples história das idéias. O trabalho é, sempre, também o de um historiador da filosofia, o que significa - em princípio - de um filósofo. Aliás o autor nos adverte (p. 175) "que incluir o "idealismo" - tanto o da cultura quanto em particular, o dos filósofos clássicos - no rol das ilusões compensadoras, forjadas pela consciência infeliz do atraso nacional, evidentemente não o explica"; mesmo se faltando essas origens "não o entendemos em sua justa medida". Mas o que parece ir desaparecendo no corpo do livro é a presença do filósofo em sentido forte, aquele que se pronuncia sobre o valor de verdade das teses em exame. Nesse sentido talvez se possa contrapor a perspectiva crítica do historiador da literatura que Arantes também é (o qual, por exemplo, na esteira da crítica literária dialética, desanca o Tasso de Goethe, ou registra o fracasso do realismo da Emilia Gallotti de Lessing) com o historiador da filosofia que - afinal como faz a ortodoxia universitária - com raras exceções analisa mas não julga a história dos sistemas e dos anti-sistemas. Na realidade - se não estou projetando o segundo livro sobre o primeiro - o autor se situa numa posição crítica em relação a todas as filosofias (o que alguns considerarão um progresso), mas essa perspectiva deixa entrar pela janela o que se expulsara pela porta: uma leitura sem julgamento - porque com julgamento demais agora - da história da filosofia.

Um advogado do diabo poderia dizer ainda outras coisas: por exemplo, que a análise sociológica da cultura é atenta às classes mas não propriamente às estruturas (mesmo se as primeiras pressupõem as últimas). Isto é, é atenta à consciência que os agentes têm (ou não têm) da sua situação e dos seus interesses, mais do que à emergência de objetos sociais que induzam o desenvolvimento de tal ou qual forma de pensamento. É verdade que o autor alude à correspondência entre certa forma de abstração teórica e a abstração do Estado moderno. E é verdade também que o caso limite dessa adequação, o discurso do "velho" Marx, fica fora do âmbito do texto. Mas resta a impressão de uma sondagem numa matéria sociológica "subjetiva", entenda-se a das classes, entendidas como constelações de práticas dos agentes. Outro ponto, não sem interesse também para a leitura crítica do segundo livro: não se teria superestimado o peso da situação nacional diante de outro alinhamento possível que, atravessando fronteiras, juntasse pensamentos afins de origem diferente? Finalmente, poder-se-ia perguntar que teoria pressupõe a análise da posição dos intelectuais. Das duas teses em presença, a que pensa a consciência dos intelectuais como refratando com maior ou menor lucidez a situação objetiva das grandes classes, tese que em geral contrapõe a coerência - de direito - das "massas" às hesitações da intelectualidade; e a tese de Alfred Weber e de Mannheim, a de uma intelectualidade que paira mais ou menos livremente por sobre os conflitos de classe (freischwebende Intelligenz), intelectualidade que na versão de Alfred Weber, ao que parece, seria capaz de uma visão das coisas superior à das grandes classes, conservadoras ou revolucionárias, - o autor parece optar pela primeira. Mas há aí um problema ao qual voltarei.

Os críticos que pretenderam separar O fio da meada de Ressentimento da dialética, contrariando a recomendação geral que faz Bento Prado no prefácio ao segundo, sem dúvida se equivocaram. E principalmente quando a sua crítica exclusiva de O fio da meada os levou a conclusões que num jogo ambíguo visam o autor em geral. Mas não separar O fio da meada de Ressentimento da dialética não significa supor que os dois livros têm o mesmo caráter nem o mesmo valor. O fio da meada se apresenta como uma conversa que reúne o autor e três interlocutoras, e que segue o curso do itinerário intelectual de Arantes; mas até onde as interlocutoras falam em seu próprio nome ou funcionam simplesmente como "heterônomos" do autor não fica bem claro

Lido sobre o fundo de O ressentimento da dialética, O fio da meada revela antes de mais nada uma tendência anti-filosófica, que radicaliza ao extremo uma disposição que talvez já se anunciasse. Assim, a filosofia aparece como "coisa do passado" (p. 28): o autor fala da "tecla desafinada da filosofia" (p. 99), do "atestado de óbito da filosofia" (p. 112), da " falência do gênero filosofia em geral" (p. 148), da "finada filosofia (como guardiã da integralidade do processo)" (p. 119), da "filosofia (...) coisa do passado, extinta" (p. 265) já não sei há quanto tempo etc. etc. Aqui o tom é de novo o da Ideologia Alemã de Marx, mas para pior. Se não, vejamos. No referido prefácio a Ressentimento da dialética, Bento Prado se recusa a ver no discurso de Paulo Arantes urna não-filosofia ou uma anti-filosofia (se os escritos de Arantes "não são filosóficos (...) a que gênero literário pertencem?" (RD, p. 15)); e ele caracteriza a filosofia de Arantes como uma dialética negativa que não converge entretanto com a de Adorno: "paradoxalmente", esta última teria dado um lugar ao "momento positivo-racional", a uma "cristalização positiva" da dialética, que Arantes recusa. (Bento Prado volta ao tema em prefácio a um livro recente). Na realidade, a temática da anti-filosofia em O fio da meada é inseparável da atitude de Arantes em relação ao marxismo. Porque se a sua dialética é negativa, no sentido de que se volta contra todas as filosofias. ela não é negativa em relação a essa "não"-filosofia que representa o pensamento de Marx. E nesse sentido a dialética de Arantes - refiro-me ao Fio da Meada - não tem nada de negativa. Porque se formos caracterizar como "dialética negativa" todas as formas de crítica que não deixam em pé o conjunto da tradição filosófica, ressalvando a obra de Marx (concebida ou não como "materialismo dialético", isso importa, mas não muito) vamos chegar a um curioso conceito de negatividade ( por exemplo a dialética do Lukács de A destruição da razão, dialética que sob muitos aspectos é dogmática, seria também "negativa", o que é no mínimo estranho).

Conviria estudar mais de perto a relação entre crítica da filosofia e marxismo em Paulo Eduardo Arantes, assim como a sua atitude para com a dialética negativa de Adorno. Como assinalei em outro lugar, se Arantes não deixa espaço para a filosofia, é porque também não deixa espaço para a crítica do marxismo. As duas coisas vão juntas. Essa ligação se revela, se refletirmos sobre o que ele escreve a respeito de Adorno. Diferentemente do que ocorre com Ressentimento da dialética, O Fio da meada incorpora Adorno ao rol dos objetos da crítica. Ele é visado tanto no plano político como no plano teórico. No plano político, a propósito dos incidentes envolvendo o filósofo e certos estudantes gauchistas em 68: Adorno não estaria '"resistindo' a nenhuma ditadura", escreve Arantes (ou sua interlocutora Iná Camargo Costa). De resto, a ex-"torre de marfim era agora um Instituto que precisava brigar por subvenções" (p. 259). No plano da teoria, Arantes - agora em pessoa - se pergunta afinal: "por que diabos um tipo como Adorno continuou a falar em filosofia"? (p. 52). Na realidade, se Adorno se indispôs com um certo "fascismo vermelho" que teve curso no interior do movimento de 68, era porque sabia que o inimigo não é simplesmente o capitalismo, e que, como a história do século XX mostrou à saciedade, também a partir do anti-capitalismo podem surgir formas brutais de exploração e de dominação. Mas para levar esses fenômenos a sério seria preciso tomar alguma distância em relação ao marxismo, encarando de forma crítica a história da esquerda neste século, o que, a despeito de algumas referências ao stalinismo, O Fio da Meada não faz. Inversamente, se Adorno "continua a falar em filosofia" é porque sabe que para pensar Auschwitz e mais ainda as sociedades burocráticas, o marxismo não basta. É preciso incorporar outras fontes. E a "história" (não estou citando) não as fornece - ver o início da Dialética Negativa — como Arantes parece pressupor sem inteiramente pressupor (esta ambigüidade está por trás da sua análise da intelectualidade). Assim a relação de Arantes para com Adorno ilumina o jogo de sombras entre a recusa de toda filosofia e uma crítica social que só tem o marxismo clássico como referência

Aliás, se Ressentimento da Dialética, principalmente nos seus apêndices, tem ainda muita coisa em comum com o estilo teórico de Adorno, O Fio da meada, apesar das aparências, já não tem muito a ver com ele. O que faz a força de Adorno é que o seu pensamento se situa nos dois planos: é um movimento constante do plano da imanência do texto ao da análise ideológica (de certo modo os dois são imanentes). E entenda-se, imanência ao texto não significa apenas análise interna (o que Arantes sempre faz) mas imanência do filósofo ao texto: o que quer dizer, tomada de posição filosófica diante de um texto filosófico, que a análise ideológica não liquida. Sob um aspecto, é verdade, para além (ou aquém) de Marx, Arantes depende muito de uma filosofia, e essa filosofia é o hegelianismo. Eu diria que por trás do Fio da Meada há uma espécie de hegelianismo marxista. Hegelianismo, porque não há real abertura para o futuro, e quanto ao passado, o capital e a luta de classes tomam a lugar da Idéia. A propósito do futuro, isto é, da política do Fio da Meada, eu diria que a ênfase na "crítica do fetichismo da mercadoria" (p. 326 e 327) que o autor (se optarmos pela formulação mais feliz) quer converter "em prática social tangível" poderia ter alguma justificação na medida em que hoje mais do que nunca se naturalizam as leis do sistema. Mas a fórmula é excessivamente geral. E há uma espécie de fixação na derrota das massas na revolução de 1848 (ver páginas 44, 149, 111, 98, 95, 51, 43, 37, 31 etc. etc.) que não ajuda muito. Mesmo se 48 foi um marco importante, de lá para cá muita água passou pela ponte. E não é um certo marxismo clássico que não vê nada de novo sob o sol que vai nos tirar da enrascada .

Mas esta é apenas a metade da história. Porque O fio da meada se ocupa também do Brasil. Através da conversa sobre o itinerário intelectual do autor, o livro retoma - num plano mais geral (porque não trata só dos filósofos) e mais amplo no tempo - a história e o destino de uma certa geração de universitários de São Paulo, lida como a dos participantes do primeiro seminário de leitura de O Capital, tema de que Arantes já se ocupara em livro anterior. Essa história seria a do ascenso e declínio de um grupo de intelectuais brasileiros que, começando com uma brilhante reelaboração dos temas do marxismo ocidental, teriam acabado assumindo um certo ideal industrialista rejeitado no passado. Mas a perspectiva de Arantes é um pouco ambígua, porque em parte se trata antes de mostrar que essa maneira de ver é ilusória. Como teria provado Roberto Schwarz num texto de 1995, a mudança fora na realidade aparente: o "industrialismo" dos membros mais em vista do seminário já estaria no cerne dos seus trabalhos e projetos desde os anos 50/60, como iriam mostrando análises históricas recentes. A meu ver há aí uma discussão importante, que envolve questões políticas, de método e outras. Depois de saudar a "ressalva" de Schwarz (ver pp. 182, 189, 192, 261, 227, 244...), Arantes (Iná Camargo Costa) se pergunta: "por que só agora (...) Roberto Schwarz, (...) pôs essas restrições na roda?" Eu faria a pergunta também ao próprio Arantes. Porque não é verdade que Roberto Schwarz "foi o primeiro a remover o véu da ilusão" (sic) (p. 189). Nem que, antes, ele teria convencido a "todos nós" (p. 263); isto é, que "todos nós" teríamos acreditado na maneira tradicional de ver o seminário. (Nesse ponto, eu diria que Arantes confunde os limites da mesa com os limites do mundo. O último conviva com a última Thule). Porque, para alguns, a descoberta de Roberto Schwarz feita em 1995 já era uma evidência desde mais ou menos o final dos anos cinqüenta. E não se trata do problema sem interesse de saber quem viu primeiro. Trata-se em primeiro lugar de uma questão de método. Desde Um departamento francês de ultramar, Paulo Eduardo Arantes tenta uma história da filosofia e das ciências sociais em São Paulo, a partir da idéia de "formação", história cujo grande modelo seria a Formação da Literatura Brasileira de Antonio Candido. Mas - não por culpa de Antonio Candido - a transposição, para a filosofia, as ciências sociais e a política e para um objeto contemporâneo, pelo menos para o caso do seminário, funcionou mal. A idéia de "formação" foi a meu ver indevidamente hipostasiada. E o resultado foi um discurso que às vezes converge - é curioso -com a barulheira da mídia em torno dos grandes homens e dos grandes professores do país.

Para a análise de um fenômeno como o do seminário - depois de bem deliminar o objeto, que, é bom não esquecer, fazia parte de um campo mais vasto - importava estudar: 1) o conteúdo e o valor teórico, em termos universais, das obras produzidas 2) o seu significado político e macro-social em geral (para além do fato de que se lia ou não se lia Marx); 3) o significado do grupo ou dos seus representantes mais poderosos no plano micro-social da universidade. Se isto não se fez suficientemente - estou convencido - foi porque o peso da idéia de " formação" (nacional) obscureceu tanto o lado da universalidade (a "história" obliterou o momento acrônico e atópico que a teoria comporta), como o da singularidade (o universal "nação" engoliu as determinações micro-sociológicas). Em filosofia, era preciso se perguntar (como alguns o fizeram) o que representava um marxismo, sem dúvida anti-althusseriano, mas com um verdadeiro horror ao vivido e a todo pensamento crítico que sem trair o "conceito" se abrisse (pelo próprio conceito) ao vivido. Na realidade, a "filosofia" dominante no seminário não era apenas uma filosofia de crítica ao humanismo: apesar de sucessivos ajustes, tratava-se de um verdadeiro anti-humanismo embora de matriz hegeliana. O lado acrítico dessa filosofia saltava aos olhos, para quem quisesse ver, a começar pela recusa in limine do pensamento de Frankfurt. Partindo de um momento inicial de certo rigor e criatividade, a "filosofia do seminário" muito cedo descambou num discurso opaco, em que uma aparente complexidade ocultava dificuldades e imprecisões Em sociologia e política, teria sido essencial observar, para efeito do diagnóstico político do seminário, que a crítica do desenvolvimentismo não conduzia a nenhuma opção política unívoca. A sociologia "do seminário" concluía com razão que a burguesia nacional "progressista" de que falava o PCB era na realidade aliada do resto do "empresariado", mas isto não prejulgava da atitude política que tomaria aquela "sociologia" em relação ao bloco dos "empresários".

Em vez de seguir esses caminhos, o que se teve foi uma leitura do seminário que, sem dúvida, não deixou de ser analítica - e nem quero dizer com isso que ele não teve os seus méritos - mas em que todos os lados difíceis foram mitificados pelo tema do grupo-brilhante-de-intelectuais-brasileiros-que-se-puseram-a-ler-O Capital. Eu diria mesmo que apesar do seu conteúdo crítico O fio da meada tem ainda um tom apologético; ver o tema ambíguo do "pensador número 1", do "pensador número 3" etc. etc.

A insuficiência da análise global do que representou o primeiro seminário aparece também na maneira pela qual Arantes critica a "guinada final". A propósito de um dos membros mais conhecidos do grupo, um filósofo, ele insiste sobre a virada regressiva que teria constituído a passagem do interesse que este tinha por Marx à fascinação por um grande lógico e filósofo do século XX. A crítica é quase banalmente política. Se esse fosse o problema, bastaria ao filósofo em questão "voltar a Marx", como se diz, para que tudo se resolvesse. O que ele pode fazer. Paris vale uma missa. (Arantes dirá que uma nova guinada só confirmaria o seu argumento, que visa antes o estilo "ventoinha" da tradição nacional. Mas é fácil ver que o seu argumento politiza demais - ou mal - e perde de vista aspectos importantes. Afinal, se o filósofo tivesse escrito um bom livro sobre Wittgenstein, por que não? Arantes responderia talvez que por razões sociais ele não poderia ter escrito esse livro. Mas não convém abusar da idéia de necessidade histórica).

Quanto aos que fizeram uma outra leitura do seminário, sua crítica, é verdade, ficou muitas vezes comprometida por um radicalismo revolucionário cujo lado desastroso se comprovou. Nesse sentido, seria preciso dizer que a tendência de alguns a valorizar a experiência do segundo seminário e da revista Teoria e Prática, que dele resultou, é igualmente ilusória. Também a história do segundo seminário foi mistificada. A oposição militantismo/intelectualismo é falsa; além do que, seria preciso mostrar por exemplo que não foi a direita mas foram os próprios grupos de extrema esquerda (é necessário contar estas coisas: houve até desvio de dinheiro em nome do que se considerava interesses revolucionários) que liquidaram a revista Teoria e Prática. A direita só deu o tiro de misericórdia.

Da experiência dos dois seminários pode-se de resto tirar certas conclusões que interessam ao exame do destino da esquerda brasileira e da, política brasileira em geral. A desconfiança da cúpula do primeiro seminário em relação às soluções revolucionárias (em particular revolucionárias armadas) tinha um lado positivo. O inconveniente é que ela vinha ligada com a prática das alianças que começavam com a "burguesia nacional" e terminavam não se sabe onde. Inversamente, se o revolucionarismo do segundo grupo era ilusório, não era ilusória a sua exigência de respeito pelos princípios, nem a recusa do oportunismo das alianças com qualquer um. Na superação dessa alternativa está a meu ver a saída para o impasse atual da esquerda brasileira: importa denunciar a política de alianças que levou aonde levou, sem que isso implique fidelidade a qualquer uma das ideologias para-marxistas ou marxistas do século: maoismo, stalinismo, castrismo, mas também leninismo e trotsquismo.

Retomando "o fio da meada". Se a análise global se ressente de uma espécie de hegelianismo marxista, a discussão sobre a intelectualidade paulista vai da hipóstase da idéia de formação (que privilegia a distinção finalmente problemática entre o "sistema" e "as manifestações avulsas" — p. 271 -, pista perigosa que só alguém como Antonio Candido e falando de literatura e de literatura dos séculos XVIII e XIX pode manter nos seus devidos limites

Há certos paralelismos e interferências entre os dois planos, que poderiam ser desenvolvidos se considerarmos também os trabalhos de uma das interlocutoras de Arantes, à qual já fiz alusão, Iná Camargo Costa. As críticas a Adorno em O fio da meada (feitas em parte em nome dela) correspondem às que, nos seus trabalhos sobre o teatro de Brecht, ela fez ao pensador de Frankfurt. E nesses trabalhos essa crítica se reflete, por sua vez, na discussão brasileira. Entre outras coisas, não posso deixar de me referir nesse contexto ao questionamento, por parte da autora, do pretenso anti-marxismo de um grande crítico teatral da geração da revista Clima. Embora a minha competência em matéria de teatro seja pouco mais do que nula (mas os trabalhos de Iná Camargo Costa são também políticos), eu diria - é a minha impressão - que aquilo que, através de uma discussão sobre Brecht, ela não perdoa ao crítico e à atitude dele em relação a Brecht, "parece" com o que ela não tolera em Adorno (em oposição a Brecht): a meu ver, a postura crítica pós-marxista, em particular diante da sociedade burocrática. Como tenta mostrar a própria Iná Camargo Costa -ela o faz para ressaltar os méritos de Brecht - a posição do Brecht dos anos quarenta em relação à burocracia "soviética" - para não falar de outro Brecht, o dos "mil olhos do partido", por exemplo, diante dos quais o dissidente só tem dois... - se aproximava (eu diria: não ia além ) da crítica, digamos, marxista clássica, ou trotsquista à burocracia. De fato, a posição de Brecht (ver textos aduzidos pela autora em seus artigos) coincidia então, mais ou menos, com a daquele tipo de crítica à burocracia: o governo da URSS seria sem dúvida uma ditadura sobre o proletariado, mas, ao mesmo tempo, encarnaria de algum modo os interesses do proletariado. E assim, voltando à discussão brasileira, se a minha hipótese é correta, lná Costa criticou um membro do grupo Clima naquilo que foi um dos pontos fortes do grupo - a meu ver, o que ele teve de melhor - : a recusa não só do stalinismo mas também da postura trotsquista e marxista clássica - postura crítica mas atenuada e ambígua - diante das sociedades burocráticas. Ver a esse propósito o notável documento político redigido por Antonio Candido, um projeto de plataforma para o antigo Partido Socialista publicado no número 1 da revista Praga, texto que abre fogo tanto contra o capitalismo como contra o que ele chamava de "capitalismo de Estado". Em compensação, valeria a pena estudar os efeitos, positivos ou negativos, que teve sobre o grupo Clima a idéia de formação e, e em geral, a de desenvolvimento nacional. Porque esses efeitos podem não ter sido só positivos. Segundo alguns (e contra as aparências imediatas) se não o privilégio da idéia de formação pelo menos a ênfase posta no "desenvolvimento nacional", explicaria até mesmo, em anos mais recentes, uma certa indulgência do grande crítico literário do grupo em relação a determinados governos burocráticos do terceiro mundo, indulgência que desconcerta um pouco alguns dos seus amigos e discípulos (entre os quais me incluo), que estavam habituados com uma outra lição. Enfim, os problemas que levanta a leitura de O fio da meada mostram que uma história crítica do grupo Clima, se ainda não existe, tem de ser feita.

A quantas estamos? Ressentimento da dialética é um grande livro. O Fio da meada, um passo em falso que deve ser levado a sério - ele tem alguns bons momentos - mas não excessivamente. Fazendo um balanço dos trabalhos de Paulo Eduardo Arantes, incluindo também Um departamento francês de ultramar e Sentimento da Dialética, seria preciso dizer o seguinte. Se uma ruptura com a leitura universitária tradicional dos textos filosóficos, sem cair na história das idéias em sentido vulgar, já estava mais ou menos no ar em nosso meio, Paulo Eduardo Arantes foi quem teve a coragem de levar esse trabalho até as suas conseqüências (o problema é o de saber se ele não ultrapassou os limites de validade dessa operação). Em segundo lugar, se a crítica de certa filosofia francesa sempre esteve em pauta no departamento "francês" da Universidade de São Paulo, a nossa crítica dos franceses poupou a melhor historiografia filosófica com a qual nos havíamos formado. Sem deixar de fazer as distinções necessárias, Arantes teve o mérito de haver considerado o conjunto da produção filosófica francesa de um modo não escolar: ele descobriu filosofia também nos melhores historiadores-filósofos, nossas "vacas sagradas", e a criticou sem temor reverencial. Tarefa considerável que foi recebida com reticências por alguns, brasileiros e franceses. Em terceiro lugar, se a reflexão sobre a experiência filosófica universitária em São Paulo já tinha dado alguns passos, ele certamente a levou mais longe do que ninguém (também aqui, resta saber quais são os limites desse tipo de reflexão). De qualquer forma, Arantes modificou substancialmente a paisagem. Da sua geração (incluindo também a geração anterior) Paulo Eduardo Arantes está, certamente, entre os que melhor pensam e escrevem. E, provavelmente, é o que mais sabe "coisas". Isso é muito para um indivíduo só. Entretanto, há riscos. Disse que o projeto do autor é a crítica dos filósofos contemporâneos, na sua tríplice expressão: a "ideologia francesa" (incluindo Lyotard e os "désirants"), a teoria alemã da ação comunicativa, e o néo-pragmatismo americano (ver p. 204, por exemplo). A julgar pelo que se lê nos dois livros comentados, Arantes parece estar metido numa alternativa objetiva: sua crítica poderá seguir os caminhos de Adorno (crítica externa e interna, no sentido mais enfático, tal como defini anteriormente), mas também pode seguir, digamos, os da Destruição da Razão de Lukács, obra que o Ressentimento da Dialética (mas o que pensa dela O fio da meada?) considera como "reconhecidamente disparatada" (RD, p. 56, n. 28) ou, menos duramente, como um "importante livro malogrado" (RD, p. 207, nota 26). A alternativa é assim, um pouco: Adorno ou Lukács? De qualquer forma, ao contrário do que pensaram alguns, o fenômeno Arantes tem menos ar de cataplasma do que de terremoto.

  • * Trata-se de Ressentimento da Dialética e O fio da meada Uma versão reduzida deste texto (um terço da presente) foi publicada no Jornal de Resenhas da Folha de S. Paulo (11 -4-1997),
  • 1
    . A conversa tem dois níveis que se alternam ou se intercomunicam: o da discussão sobre a filosofia, a literatura e a política dos séculos XIX e XX, e o da história das vicissitudes da filosofia e da sociologia universitárias em São Paulo. Começo separando os dois aspectos.
  • 2
    .
  • 3
    ), a uma espécie de crítica política unilateral. Se sob o primeiro aspecto (a hipóstase da formação) os defeitos da leitura que o livro faz da história da intelectualidade em São Paulo são de uma natureza diferentes das dificuldades do livro no plano da problemática geral (elas vão em parte em direção oposta: perde-se por exemplo a análise de classe), sob o segundo aspecto elas vão no mesmo sentido.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Out 2010
    • Data do Fascículo
      1997
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