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A vez da coragem

PERFIL

A vez da coragem

Numa noite de domingo, no último mês de março, os telespectadores da Abril-Vídeo — produtora de TV que transmite apenas para a cidade de São Paulo e região — assistiram surpresos a uma reportagem inusitada.

Numa delegacia do DEIC (Departamento de Investigações Criminais de São Paulo), o repórter João de Barros promovia um reencontro entre a equipe do delegado Antonio Mestre Jr. e Messias dos Santos, de 21 anos, metalúrgico desempregado que havia sido preso sem culpa formada, sem mandado de prisão, e torturado por aqueles policiais.

Messias foi firme no reconhecimento: "Este me bateu. Aquele me deu choque. Naquele armário fica guardado uma lâmpada que serve para dar choque". Apanhado de surpresa, o delegado admitiu a tortura, acabou exibindo a tal lâmpada, não sem tentar, desajeitadamente, justificar a conduta da equipe.

Hoje, a fita com a reportagem — além do exame de lesões corporais — consta como prova de denúncia que Messias, representado pelo advogado Jairo Fonseca, apresentou ao juiz corregedor de São Paulo.

Aparentemente, a história de Messias é igual a muitas outras. Nordestino, migrou para São Paulo com a família em 1975. Conseguiu formar-se pelo SENAI, como meio-oficial ajustador.

Mas a crise já dava seus sinais. Trabalhou pouco tempo como metalúrgico; foi caseiro, trabalhador braçal na escavação de ruas e, finalmente, apanhador de sucata (garrafas, papel, ferro velho) com uma carroça. Quando foi preso e torturado para confessar — ou denunciar — um crime que não havia cometido, era morador da favela do Saioá, próxima à rodovia dos Imigrantes.

O que há de novo, na história de Messias, são a firmeza e a coragem de denunciar uma injustiça. O que há de novo na história de Messias, é a dignidade que ele luta para preservar a qualquer preço.

Neste número, LUA NOVA traz o perfil de Messias dos Santos, em entrevista a MARÍLIA Garcia.

MARÍLIA — Nós gostaríamos de contar a sua história, Messias. Mas queríamos contar não apenas esse episódio da denúncia da tortura. A sua coragem, de ter denunciado uma injustiça, ganha um significado maior, se outras pessoas puderem perceber que têm uma história parecida com a sua. Você nasceu aqui em São Paulo?

MESSIAS — Não. Eu sou de Aracaju, Sergipe. Os meus pais eram comerciantes, lá. Eles vendiam peixe na feira. Mas as coisas começaram a ficar difíceis e eles quiseram tentar a sorte aqui em São Paulo. A gente já tinha um tio que morava aqui. Então, viemos passar um tempo na casa dele, pra ver se a gente se adaptava. Mas São Paulo é um lugar onde a gente chega a dificilmente consegue voltar para o lugar de origem.

E foi isso. Quando nós chegamos, faltavam três dias para o Natal. Eu tinha doze anos e, me lembro, aquele foi o Natal mais difícil que eu passei. Na casa dos outros... humilhado...

No começo, a gente passou por dificuldades. Mas graças a Deus, depois de um tempo, meu pai arrumou um emprego e conseguiu alugar uma casinha que era encostada na do meu tio. E a gente pôde se deslocar pra ficar um pouco mais livre.

MARÍLIA — Você ainda não trabalhava?

MESSIAS — Não. Eu logo voltei para a escola, para concluir o 1º grau. Depois, quando eu tinha 14 anos, meu pai arrumou com um amigo dele para eu entrar no SENAI. Eu fiz o curso de ajustagem e tirei só o diploma de meio-oficial. Mas eu era menor, e foi só com 18 anos que eu consegui trabalhar como metalúrgico, caldeireiro.

MARÍLIA — Na época em que aconteceu esse caso com a polícia você estava para mudar da favela do Saioá. Por que você ia sair da casa dos seus pais?

MESSIAS — Foi porque aconteceu uma coisa comigo lá nessa favela. Eu tive uma discussão com um rapaz e ele queria entrar dentro da minha casa para me agredir. Minha mãe e meu pai procuraram intervir para acalmar, mas ele jogou uma pedra no meu pai. Meu pai é uma pessoa de idade, já doente; recebeu uma pedrada... caiu. Aquilo me revoltou. Entrei dentro de casa, peguei a faca e dei uma furada nele!

É por isso que eu tinha que mudar dali. Esse incidente começou a pesar, passaram a me ameaçar. E a gente tem que se prevenir. Não que eu seja medroso. é que eu sou um pouco precavido...

(Mesmo sendo firme em caracterizar esse incidente como legítima defesa, Messias parece um pouco constrangido ao relatá-lo. Como se tivesse dois lados em conflito: um que acha justo ter defendido o pai e outro que se envergonha da atitude que tomou.)

MARÍLIA — Você ainda estava no Saioá, quando foi apanhado pelo pessoal do DEIC. Como é que foi a sua prisão?

MESSIAS — Foi num sábado, entre 10 e 11 horas da manhã. Eu estava no portão, atendendo duas moças que tinham vindo comprar suco, que a minha mãe vende. Vinham vindo pela avenida um jovem e um senhor de uns quarenta anos. Quando eles me viram, eles se voltaram na minha direção e vieram perguntar se eu era o Messias.

Eu confirmei e eles já foram me agarrando, foram dizendo que era a polícia... Eu estava apavorado. Comecei a gritar, chamei pela minha mãe. Ela logo chegou e foi perguntando: "O que está acontecendo com o meu filho, pelo amor de Deus!". Um outro rapaz que estava ali, um moreno, empurrou ela e acabou rasgando a roupa dela, naquele entrevero. Meu pai, que veio em seguida, também foi agredido.

Quando, enfim, apareceu o meu irmão, perguntaram: "O que você é dele?". "Sou irmão." "Então entra. Vai você também." Colocaram a gente dentro da viatura e levaram até perto do drive-in da Av. Vergueiro. Lá, fizeram a gente ficar pelado e mandaram subir de novo no carro.

Nessa hora, um dos caras da viatura falou: "A gente vai bagunçar a sua casa inteirinha!". Eu respondi: "Vocês podem olhar à vontade que, graças a Deus, lá não tem nada que me comprometa". Aí foram direto para o DEIC, onde nós ficamos os dois sentados no chão, algemados.

MARÍLIA — Eles não diziam por que vocês estavam presos?

MESSIAS — A gente não sabia do que se tratava. Perguntava o que estava acontecendo e ninguém respondia. Já eram umas três horas, quando chegou outra viatura.

O policial já veio agredindo. Tirou a arma pra fora, bateu na minha cabeça e deu chute. O outro, o moreno, desalgemou o meu irmão, e foi levando, batendo, jogando ele no chão, xingando a mãe da gente... Tudo quanto eles puderam fazer para humilhar a gente eles fizeram!

(Ele pára um pouco. Os olhos estão úmidos. Ele hesita, toma fôlego e continua.)

Um dos policiais, que agora eu sei que se chama Eduardo, disse pra mim coisas que um homem jamais deve dizer para outro: disse que eu era um molestador de mulheres, que ele devia fazer uma porção de coisas comigo pra eu aprender...

Ele me deu soco no olho. Fez eu colocar o negócio na tomada e segurar os ferros para levar choque. Fez eu andar. Bateu de palmatória. Queria que eu dissesse que era bandido, que eu tinha matado o homem. Nessa hora eles já estavam me acusando de ter matado um homem lá perto da favela. Então, aquilo foi me revoltando. A gente ficou nesse drama até mais ou menos 6 horas.

MARÍLIA — Apanhando o tempo todo?

MESSIAS — A cada dez, quinze minutos, a gente tomava uma bela sova. No fim, eles perguntaram de novo o nome da gente completo. Vieram com uns papéis e disseram: "Vocês vão ter um boi". Foi o termo que ele usou. "Tudo o que vocês estão falando está batendo. Eu vou soltar vocês, mas na terça-feira vocês vão comparecer aqui. E o cara que matou está lá. Não esqueçam de trazer ele pra mim!"

MARÍLIA — Eles estavam querendo que você acusasse alguém da favela.

MESSIAS — Isso é para resolver a vida deles com facilidade. A polícia é paga para trabalhar. Mas não. Eles pegam um na rua e "Você vai dizer quem foi que fez, que eu não quero mais trabalhar nisso". Foi assim no meu caso. Alguém morreu na Vergueiro. Como eu moro ali perto, eu sou obrigado a saber quem matou, por que matou... é impossível!

Raiva, não Era medo

MARÍLIA — O que você pensa desses policiais?

MESSIAS — Eu acho que eles deviam agir com um pouco mais de seriedade, com um pouco mais de dignidade. Assim como eu agüentei o que eles fizeram comigo, pode ter pessoas que não agüentam apanhar tanto. Tem gente que, por um susto, cai e morre. E a gente não podia fazer nada. Quanto mais a gente falava, mais apanhava; quanto mais implorava, mais apanhava; quanto mais dizia que era inocente, mais apanhava. Acho que se deveria fazer alguma coisa para evitar esse tipo de violência.

Uma pessoa mais fraca não agüenta. Até mesmo eu, que me considero um pouquinho forte, naquela hora, algemado mesmo, eu fiquei olhando para o vidro da janela e tive vontade de pular.

MARÍLIA — Você já saiu de lá pensando em denunciar? A decisão de denunciar veio junto com a raiva que vocês estava sentindo?

MESSIAS — Raiva não. Era medo. Eu queria que entendessem que não foi por raiva. Eu tinha medo porque sabia que poderia passar por outra igual aquela, até mesmo no dia seguinte, sem poder fazer nada. E, do mesmo jeito, eles podem fazer isso com outras pessoas. E fica tudo bem. Eles não são polícia?...

A gente é humilde, não tem como fugir deles e eles têm como chegar até a gente. Mas a gente tem que ir à luta e fazer tudo o que for possível. Eu não acho bonito ter apanhado; não foi bom ter que contar isso. Mas eu quis fazer essa denúncia só para evitar que alguém passasse pelo que eu passei.

Não foi por vingança. Foi só porque eu achei que aquilo não estava certo. Então procurei orientação.

MARÍLIA — Quem foi que você procurou? Você já conhecia o Dr. Jairo?

MESSIAS — Não. Eu cheguei em casa todo dolorido, com o meu olho roxo. Quando eu precisava me mover, a minha mulher tinha que me ajudar. Fiquei deitado.

No domingo à noite, um rapaz da Comunidade de Base, que freqüenta aquela favela e dá assistência ao pessoal, chegou ao barraco pra falar com a minha mãe. Ela contou o que tinha acontecido e ele veio conversar comigo. Eu fiquei naquela dúvida: fazia ou não fazia a denúncia? Mas, no domingo mesmo, resolvi fazer e a Comunidade me mandou para o Dr. Jairo.

MARÍLIA — O que você sentiu na hora que voltou à delegacia, junto com a reportagem da televisão?

MESSIAS — Ao mesmo tempo que eu senti medo, eu senti pena deles. Apesar de eu não ser ninguém para dizer isso, eu acho que, na hora, o Dr. Mestre Jr. também sentiu medo e viu que tinha feito uma coisa errada. E aí, eu senti pena.

Cidadania: um documento carimbado

MARÍLIA — Valeu a pena denunciar?

MESSIAS — Valeu. Porque não adianta varrer sujeira e colocar debaixo do tapete. Eu não entendo de polícia, mas sei que o DEIC é um dos mais importantes departamentos de polícia de São Paulo. E com gente como essa equipe trabalhando lá, a polícia de São Paulo só fica desacreditada. Valeu a pena porque, eu acho, agora eles vão pensar duas vezes antes de fazer com alguém o que eles fizeram comigo.

MARÍLIA — E agora, quais são os projetos para continuar a vida?

MESSIAS — Bom, já fazia uns oito meses que eu estava trabalhando com a carroça, mas eu resolvi entregar o animal e arrumar uma coisa fixa e...

(Ele pára. Baixa a cabeça. Fica se remexendo na cadeira, em silêncio. Quando olha para mim de novo, os olhos estão úmidos.)

Eu vou contar pra senhora. Lá na Homicídios, aquele policial que se chama Eduardo... Eu imagino que ele é uma pessoa que deve ter lutado para chegar onde chegou. Mas ele não sabe entender os outros. Quando ele perguntou qual era a minha ocupação, eu respondi que trabalhava com o animal. Foi aí que ele gritou comigo e disse que aquilo era emprego de vagabundo, porque só o animal trabalha! Foi por isso que eu entreguei o animal e agora estou arrumando uma ocupação fixa.

MARÍLIA — Você levou em conta o que disse aquele policial?!

MESSIAS — Eu fiquei muito sentido. Eu sei que aquele era um trabalho honrado. Eu não estava roubando ninguém, só estava levando embora coisas que ninguém queria mais. E com aquilo eu ia comer, com aquilo eu ia vestir.

Mas chega alguém e diz que aquilo é ocupação de vagabundo... a gente não se sente bem. Por isso, agora, eu quero uma coisa fixa, que, pelo menos, carimbe o documento para eu registrar a minha carteira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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