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As modificações do sistema internacional e o Brasil

RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O BRASIL

ARTIGOS

As modificações do sistema internacional e o Brasil

Tullo Vigevani

Docente de Ciência Política da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e colaborador do CEDEC

O fato de que "numa área incipiente do conhecimento em nosso país, como é o caso das Relações Internacionais"1 1 Moura, Gerson, Editorial, Contexto Internacional 6, IRI-PUC/RJ, Rio de Janeiro, 1987, pág. 9. , cresça o debate é certamente auspicioso. Entre os temas que se colocam vale realçar os seguintes: a) a formação de blocos econômico-políticos questiona o conceito que deu fundamento a toda teoria das relações internacionais, o de soberania nacional; b) a assimilação pela humanidade da globalização dos interesses e os caminhos tomados pelo desenvolvimento das forças produtivas suscita uma relativa supremacia dos fatores racionais, pelo que se abre a possibilidade do controle ao menos parcial dos armamentos; c) surgem como temas centrais das relações internacionais a tecnologia, os fluxos de capitais, a cooperação, o debate sobre o estado do desenvolvimento, a ecologia, as comunicações, as drogas, as emigrações, as formas políticas democráticas; d) para o Brasil põe-se a questão de seu enfraquecimento relativo, no interior de um processo de marginalização da América Latina, o que acentua o desafio de uma nova formulação de política exterior.

O próprio tratamento do tema na Constituição brasileira de 1988 reflete a evolução do quadro mundial desde 1945, quando ganharam prevalência temas como a autodeterminação, a cooperação, a integração dos países em vias de desenvolvimento frente aos desenvolvidos e a paz. Isso fica claro no enunciado dos princípios que doravante regerão a matéria, no artigo 4º da Constituição: "I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III -autodeterminação dos povos; IV - não intervenção; V -igualdades entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político; Parágrafo único: A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações"2 2 Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, Cadernos de Direito Constitucional e eleitoral 5, IMESP, São Paulo, 1988, pág. 9 e 10. .

Mas a agenda das relações internacionais está se modificando, num mundo que também se transforma rápidamente. Os temas econômicos sempre foram importantes nas relações internacionais. Bastaria lembrar a vasta literatura sobre o imperialismo, seja no que se refere às relações inter-imperialistas, seja no que tange às relações com os países na época chamados de coloniais ou semi-coloniais. Mas mesmo o campo das relações econômicas vem modificando significativamente sua forma de ser, numa situação totalmente nova, que vai sendo equacionada e parece que chegará a seu desenho pleno no início do século XXI.

É nesse contexto que faz sentido a afirmação de diplomata norte americano, de que "as relações Brasil-EUA estão saindo de uma fase de relações tradicionais para uma fase de relações contemporâneas. Até dez anos atrás os relacionamentos entre os países baseava-se em interesses políticos, afinidades culturais, alianças ideológicas. Hoje, a economia ficou bem mais importante. Os itens econômicos, comerciais, os investimentos, as dívidas estão substituindo os elementos tradicionais na condição de pontos mais importantes nas agendas binacionais. Então, todos os países estão tendo que se adaptar à nova realidade. Têm que desenvolver novas formas de conduzir, negociar e resolver esses problemas fundamentais. O que acontece, ao mesmo tempo, é que os ministérios de relações exteriores ficaram menos e menos relevantes na conduta da diplomacia"3 3 Dachi, Stephen, ex-cônsul-geral dos Estados Unidos em São Paulo, Folha de São Paulo, 28 de agosto de 1988. .

A literatura tem apresentado, a partir da segunda metade da década de oitenta, um razoável volume de análises sobre o declínio relativo das potências líderes dos dois grandes blocos, Estados Unidos e União Soviética. A conseqüência deste fenômeno, como indica Marques Moreira, seria "o surgimento, sobretudo na área econômica, de estrutura multipolar em substituição ao bipolarismo do pós-guerra"4 4 Moreira, Marcílio Marques, O Brasil no contexto internacional do final do século XX, Lua Nova 18, CEDEC, Marco Zero, São Paulo, 1989, pp. 6. . De fato, a passagem de sistemas multipolares a bipolares e vice-versa é tema tradicional no campo das relações internacionais. Aron, em capítulo específico, já tratou disto no fim dos anos cinqüenta, demonstrando que esta questão insere-se num processo de movimentação dos Estados de acordo com a força que cada um vai adquirindo no sistema internacional5 5 Aron, Raymond, Paz e guerra entre as Nações, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1979. Particularmente o capítulo Os Sistemas Pluripolares e os Sistemas Bipolares. . Os anos oitenta apontam certamente para uma questão nova, inédita no campo das relações internacionais. As relações econômicas, não apenas o mercado e o comércio e os fluxos financeiros, mas sobretudo as modernas formas de produção, a ciência e a tecnologia, a revolução no sistema produtivo e por fim a concorrência, acabaram determinando a necessidade de novos modos de agregação entre países. Tem-se apontado, conforme o ponto de vista, quatro ou cinco grande agregações. Uma primeira, a dos Estados Unidos, juntamente com o Canadá e o México. Uma segunda, a do Japão e os quatro chamados novos países industrializados, mas neste caso pode-se ter dúvidas quanto à delimitação, visto que poderiam-se incluir outros países asiáticos. A terceira agregação, aparentemente mais consolidada organicamente, é a Comunidade Econômica Européia (CEE). A quarta seriam os países socialistas europeus, sob a liderança da União Soviética. Finalmente cabe uma interrogação quanto à China, visto poder perspectivamente ser considerada ela própria uma agregação à parte ou poder ser vista como integrando-se no grupo asiático.

SOBERANIA NACIONAL

A capacidade de integração destes países é extremamente variável. Certo é que os fatores que poderão determinar o êxito da tendência são diferentes e devem ser estudados caso a caso. A integração implica uma nova noção de soberania nacional, e este é um ponto que estará no centro dos debates conceituais dos próximos anos. A noção de soberania nacional tem sido invocado de modo decisivo no interesse da autodeterminação dos povos. Nisso, tem tido um caráter nitidamente progressista, servindo de base para a consolidação dos Estados nacionais nos séculos passados e, a partir de 1945, para a luta contra o colonialismo. O que queremos aqui apontar é que no atual quadro internacional, apesar de um notável avanço na percepção da multilateralidade dos interesses e de que, portanto, algumas questões vitais de sobrevivência da humanidade não poderão ser resolvidas positivamente sem uma capacidade de integração de esforços de âmbito supranacional. E envolvendo até o planejamento internacional, no fundamental a consciência e o sentimento nacional não desapareceram. Poderíamos encontrá-los, por exemplo, nos federalistas europeus, como núcleo de um novo sentimento de nacionalidade.

Alguns autores, particularmente os que partem de considerações históricas e políticas, entendem que as circunstâncias internacionais em curso não constituem elemento suficiente para indicar uma superação do conceito clássico de nação. Tomemos como exemplo a Europa dos doze. Sobretudo aqueles preocupados com um conceito de nação como o desenvolvido no período ascendente da Revolução Francesa, preocupados com um conceito universalista e não particularista, não consideram os elementos atuais suficientes para perceber nos processos em andamento a possibilidade de constituição de uma comunidade política com novas características e que abra as portas à superação dos anteriores estados nacionais. Gallo diz que "a nação, após as batalhas culturais, políticas e sociais, tornou-se - e permanece - o lugar onde o controle democrático é possível. Daí a 'mobilização' - relativa - das opiniões públicas nacionais ao redor dos eixos sobre os quais ela pode esperar pesar. Isto não existe no quadro da Comunidade dos Doze"6 6 Gallo, Max, Dissolution de l'histoire dans l'ideologie: l'Europe sans nations, cet artifice, ce mirage dangereux..., Le Monde Diplomatique, março 1989, Paris. . Esta colocação reativaria com toda sua força, sobretudo sua força democrática, a idéia de nação. E indicaria que - contrariamente ao que alguns profetizam - a integração econômica, no caso da CEE acelerada a partir da assinatura do Ato Único, em fevereiro de 1986, não abre necessariamente as portas à integração política e sobretudo à fundamentação de um novo conceito de Estado, assim como de sociedade.

A soberania é um fundamento básico das relações internacionais, um ponto de partida para a escola chamada realista, que assenta na idéia da desordem resultante de um generalizado estado de natureza prevalecente nas relações entre Estados nacionais. Ela acabou tendo a primazia em inúmeras formulações, e não apenas de índole conservadora, que buscam a explicação teórica para o expansionismo ou o imperialismo. As experiências de integração não colocam em crise a soberania nacional de per si e o realismo mantém suas razões. Não está de todo esquecida a velha idéia de De Gaulle, da Europa das pátrias. Mesmo quando em dezembro de 1992 as decisões do Ato Comum estiverem completadas, a CEE não terá ultrapassado o estágio de uma união de Estados nacionais. Ou seja, a legitimidade dos atos dos órgãos executivos centrais da Comunidade - a Comissão e o Conselho - deriva não da soberania popular, mas deriva apenas dos Estados soberanos que compõem o Conselho e constituem a Comissão. Coloca-se também a questão do Parlamento Europeu. A autoridade deste é limitada por diversas razões: entre elas destaca-se a inexistência daquilo que poderíamos chamar de um governo da Comunidade. Se não houver um órgão executivo capaz de absorver ao menos parcelas da soberania disseminada pelos Estados nacionais, a ação de um Parlamento poderá ser politicamente importante, mas com duvidosa eficácia, e certamente não será concentrador de poder.

A ECONOMIA COMO IMPULSIONADORA DA UNIDADE

Reconhecido o terreno sobre o qual se travam os debates sobre o significado das agregações plurinacionais em curso, é preciso compreender que o longo período que vai da constituição, em 1948, da Comunidade Européia do Carvão e do Aço, passando pelo Tratado de Roma, de 1953, fundador da CEE (então de seis países), até o Ato Único é um período no qual as resistências a novos passos rumo à unificação foram constantes. Coloca-se então a pergunta: em nome de que, apesar de percalços e persistentes resistências, a unificação européia surge como inelutável? O Ato Único de 1986 é a conclusão de longos debates e aparentemente surgia como um resultado menor, como a salvação in extremis de uma discussão desencadeada desde 1976 pelo relatório Tindemans sobre a modificação das regras de funcionamento da CEE. O acordo de Luxemburgo, de dezembro de 1985, que permitiu logo em seguida a assinatura do Ato, evitou o perigo de um naufrágio das negociações. O Parlamento Europeu havia votado em 1984 um projeto de um novo Tratado bem mais avançado, inspirado por Spinelli e mesmo o relatório dos representantes pessoais dos chefes de governo, conhecido como Comitê Dooge, ia mais longe. Mesmo assim, como estamos compreendendo também na América Latina e no Brasil, até pelas conseqüências reais produzidas ou em vias de serem produzidas, o Ato Único e o horizonte de curto prazo de dezembro de 1992 acabaram desencadeando um efeito dinâmico real, certamente mais importante que o impacto imaginado pelos próprios signatários. Lodge dizia que de qualquer ponto de vista e tendo-se em conta as dificuldades das sanções nacionais, o conteúdo do Ato parecia bastante pobre7 7 Lodge, J., The Single European Act: Towards a New Eurodynamism?, Journal of Common Market Studies, vol XXIV, número 3, março 1986, Bruxelas. . Foi com o tempo que seu significado acabou tomando uma dimensão superior ao que se supunha. A Comissão da CEE começou a desenvolver as negociações para as complementações necessárias antes de 1992. Elas são numerosas, mas todas foram colocadas sob o guarda-chuva comum do mercado único. E este guarda-chuva pôde ser criado porque institucionalmente produziu-se uma modificação substancial. Todos os acordos anteriores, de qualquer espécie e caráter, encontraram-se, pela primeira vez em mais de trinta anos, sob uma cobertura politicamente unificada. Justamente o objetivo do mercado comum, que apesar das resistências era aceito formal e politicamente por todos os Estados membros, permitiu que o Ato Único exercesse um papel, agora extremamente dinâmico, de polarizador dos interesses das forças políticas e sociais e dos setores empresariais, desencadeando um acúmulo de conquistas naquela direção antes dificilmente imaginável.

Ao contrário do que poderia parecer, a questão do mercado não é tranqüila. A CEE não elimina as fronteiras, nem outros tipos de obstáculos à circulação de mercadorias, sem falar em outras questões. Desta forma, o estabelecimento do mercado comum tem conseqüências extremamente profundas: para ser efetivo implica a homogeneização das regras, da legislação, das A normas de funcionamento de todo o sistema produtivo. Isto é, apesar de a nação e o estado-nação permanecerem como eixos de articulação política, social e cultural, exatamente a mesma razão que levou as burguesias européias dos séculos XV e XVI a se empenharem na constituição de um estado nacional - necessidade sine qua non para o desenvolvimento das forças produtivas e para a acumulação - impulsiona os atuais governos europeus a constituírem em forma plena um mercado plurinacional completo e homogêneo.

Parece que encontramos, ao menos em primeira aproximação, uma resposta à pergunta há pouco apresentada. O impulso pela unidade se faz em nome da economia, das forças do mercado. Já Marx dizia que o capital supera qualquer fronteira e o mercado se expande ao nível mundial. Tivemos no século XIX e ainda durante grande parte do século XX os nacionalismos agressivos, protecionistas ou livre-cambistas, de acordo com as circunstâncias de desenvolvimento do próprio capitalismo. Mas até recentemente não se havia atingido as formas que está tomando no fim deste século a possibilidade de unificação dos mercados, suscitada pelos níveis contemporâneos de desenvolvimento das forças produtivas. Certamente não se pode ainda dizer se esta unificação dos mercados, que parece certa por ser uma necessidade econômica e conseqüência das novas formas e níveis indicados, será relevante para o desenvolvimento de um novo conceito de nação ou para algo que o supere, adequado às dimensões que vão tomando as grandes agregações indicadas no início deste texto. Neste ponto, deve-se analisar caso a caso, antes de estabelecer regras gerais. E isto não seria novo na história. O Estado nacional inglês constitui-se séculos antes do alemão. Não há certamente uma direção unívoca neste campo. Se o problema, ao menos no plano teórico, se coloca na Europa8 8 Ramonet, Ignacio, A Europa e o mundo contemporâneo, Lua Nova 18, CEDEC, Marco Zero, São Paulo, 1989. , a situação é muito diferente, em outras grandes agregações. Na Europa está germinando um debate, que certamente se ampliará nos anos noventa, sobre a identidade européia.

No caso das outras grandes agregações, estamos ainda longe de um debate deste tipo. Certamente as dificuldades para a busca de uma unidade entre México e Estados Unidos são visíveis. Complexa e contraditória é a situação dos países socialistas europeus. Neste caso haveria um cimento ideológico e até mesmo econômico, uma visão de mundo socialista, a eliminação da burguesia, a prevalência da planificação, mas, ironia da história, justamente nesta macro-região conflitos nacionais de distintas matizes parecem frutificar.

Ainda no caso da CEE é preciso reconhecer que passos importantes estão sendo dados mesmo no sentido político da unificação. Ainda que não de forma irrestrita, com exceções e sobretudo com a substancial manutenção da possibilidade de recorrer-se à exceção determinada pelo chamado interesse nacional vital, o Ato Único introduzia pela primeira vez a figura do voto por maioria qualificada no Conselho da Comunidade, Isto é, abre-se a possibilidade de decisões por maioria que obrigam mesmo os países que se manifestam contrários. Mesmo assim é preciso entender realisticamente a natureza do novo quadro internacional que estamos enfrentando. "As decisões de Luxemburgo, no fundo, estão destinadas a recolocar em funcionamento o que existe. Não pretendem portanto enfrentar o problema de fundo da União européia, que permanece ainda um desafio longínquo no tempo. Não existe portanto uma verdadeira alternativa à atual limitada série de acordos; fazê-lo crer não seria honesto. O próprio Parlamento europeu o reconheceu pesarosamente"9 9 Bonvicini, Gianni, L'Europa verso il 1992, Polilica Internazionale, novembro 1988, IPALMO, Roma, 1988, p. 8. . Se esta opinião expressa o sentimento e a análise de quem está trabalhando na direção de maior integração, para quem busca uma perspectiva histórica fazem-se necessárias outras reflexões. Será que a história não se repete a não ser em forma de farsa, como diria Marx? A perspectiva de consolidação das grandes agregações está no centro dos debates de política internacional já e agora. A necessidade de um mercado nacional unificado, juntamente com os interesses das casas reais absolutistas dos século XV e XVI levaram à constituição de Estados nacionais. Às vésperas do século XXI, é também a economia que impulsiona a tendência à unificação supranacional de Estados, no entanto, mais do que do mercado, é dos novos processos produtivos que se trata: justamente os que estão na base da velocidade das profundas modificações técnicas em cursos. Se a vontade de europeístas como Delors é importante, deve-se reconhecer que o elemento dinâmico, aquele que fornece a base material do curso dos acontecimento é a empresa. O ministro para as políticas comunitárias da Itália, La Pergola, assinala claramente este contexto: "Às empresas, públicas e privadas, cabe um papel essencial nas iniciativas de cooperação, para as quais estão naturalmente interessadas as forças produtivas chamadas a traduzir em vantagens econômicas e sociais concretas os resultados da pesquisa. A indústria opera num contexto internacional e esta já é uma razão de seu europeísmo e de sua capacidade, também no plano das estruturas, para adaptar-se às exigências de um mercado em contínua evolução"10 10 La Pergola, Antonio, Come si prepara Vitalia, Politica Internazionale, novembro 1988, IPALMO, Roma, 1988, p. 7. . Vale a pena, neste ponto, lembrar Lenin. Para ele, a idéia dos Estados Unidos da Europa, na vigência do regime capitalista, ou seria utópica ou seria reacionária, algo assim como uma nova Santa Aliança. Frente aos acontecimentos, e até lembrando-nos do apelo de Gorbatchev à "casa comum" dos europeus, impõem-se constatar que a unidade européia, sem ser a dos trabalhadores e sem ser socialista, significa um passo à frente.

Pudemos perceber que mesmo a experiência institucionalmente mais desenvolvida de unificação supranacional, a da CEE, não coloca claramente a perspectiva do desenvolvimento de uma nova unidade nacional, de tipo continental, agregativa de Estados nacionais estabelecidos, nem mesmo sob a forma federativa, mantendo-se a soberania nacional como instância suprema do relacionamento interior à agregação. Este é um limite não superável a curto prazo. Mas, como vimos, os efeitos dinâmicos e a aceleração dos processos são inevitáveis. Em 1988 decidiu-se o reforço do Sistema monetario europeu e começa a se vislumbrar a possibilidade de um Banco Central europeu. A política científica e técnica é crescentemente estabelecida no plano comunitário e, como demonstra o relatório de 1988 da Comissão da CEE, apesar de se reconhecer identidade quanto aos princípios e objetivos de fundo com a política de pesquisa norte-americana e japonesa, procura-se estabelecer motivações que são indicadas como relativas a uma identidade propriamente européia, isto é, a "uma concepção humanista do papel da ciência e da tecnologia, e da globalização da economia, mais que uma visão 'triádica' concorrencial e utilitária do mundo e do futuro"11 11 CEE Commission, The FAST II Programme (1984-1987), Results and Recommendations, Bruxelas, 1988. . Certamente busca-se, de parte de alguns, segundo Cassen, o objetivo de não reduzir a Comunidade apenas a um grande mercado e o europeu apenas a um simples homo economicus12 12 Cassen, Bernard, Deux ressorts pour construire l'identité culturelle. En/in une politique volontariste de la recherche, Le Monde Diplomatique, março 1989, Paris. .

É preciso reconhecer que a unidade européia, semelhante neste ponto à reestruturação do sistema produtivo norte-americano que o período Reagan legou à administração Bush, produziram também resultados preocupantes no plano social. Estatisticamente o desemprego na CEE continua alto: no caso dos jovens chega a atingir 40% em algumas áreas. Nos Estados Unidos talvez se possa identificar uma tendência mais grave, no sentido da ampliação da faixa de pobreza. Aliás, o fator mais importante na explicação do declínio do desemprego formal, segundo a análise de Halimi13 13 Halimi, Serge, Comment la sociélé de spéculation penalise ses "perdants". Mais qui donc finance la création de millions d'emplois aux États-Unis? Le Monde Diplomatique, março 1989, Paris. . O crescimento do terciário, o grande setor criador de empregos, não se dá, mesmo nos países economicamente desenvolvidos, apenas nos setores de ponta, de serviços modernos: continua a dar-se com grande impacto numérico também nas faixas atrasadas da economia. Numa perspectiva histórica, é cedo para discernir diretrizes de longo prazo no campo social. É importante observar como apesar dos discursos e de alguns programas, os países nos quais se está dando o grande desenvolvimento apontado tenham extrema dificuldade em resolver questões como as sociais, que poderão futuramente incidir pesadamente no plano político. Ao mesmo tempo, conquistas do Estado do bem-estar vão sendo reduzidas e, no caso europeu, há uma relativa acomodação - inclusive com a criação de instrumentos assistenciais para reduzir-lhe o impacto - a uma situação de alto desemprego estrutural. Parece que este quadro, ao que se devem acrescentar outros fenômenos preocupantes, como o desinteresse pela política, particularmente acentuado entre os jovens e muitas vezes entre os trabalhadores, indica que algumas questões relativas às perspectivas políticas das grandes agregações não estão resolvidas. No caso asiático o problema é ainda mais evidente. Com exceção do Japão, todos os países que integram o grupo dos novos industrializados ou em fase de forte desenvolvimento apresentam estruturas políticas frágeis.

AS QUESTÕES DA CONFLITUALIDADE ESTRATÉGICA

Quais as perspectivas, então, para o tema central dos debates conceituais dos próximos anos, o da soberania nacional? Para a busca de uma resposta mais completa, deveríamos analisar melhor o contencioso internacional política e estrategicamente mais importante dos últimos quarenta e cinco anos, o da conflitualidade Leste-Oeste, tarefa que não nos propomos aqui. Mas, sabe-se bem, há também neste campo novidades da maior importância. Claro, desde o século XVIII a busca do equilíbrio entre potências foi um objeto central da política internacional. E esta busca foi o centro maior da preocupação de diplomatas durante séculos. O "Pacto de renúncia geral à guerra" de 1928, esboçado por Briand e Kellog e assinado pelos países independentes da época, com a quase solitária exceção do Brasil, dizia em seu artigo 1º: "As Altas Partes subscreventes declaram solenemente em nome dos respectivos povos condenar o recurso à guerra para a solução das controvérsias internacionais e a ela renunciam como instrumento de política nacional nas relações recíprocas"14 14 Duroselle, Jean Baptiste, Histoire Diplomatique de 1919 à nos jours, Jurisprudence Genérale Dalloz, Paris, 1970, p. 84. . Poderá isto ressoar, de alguma forma, nas negociações entre Estados Unidos e União Soviética, ou poderá ser discretamente lembrado quando os resultados do Acordo de Washington de 1987 sobre a limitação e destruição de mísseis de alcance médio está já em fase adiantada de implementação? À primeira vista parece que não. As circunstâncias são muito diferentes. Os acordos de Washington e o processo de distensão em curso resultam de quase quarenta e cinco anos de paz relativa. Ocorreram muitas guerras, mas não enfrentamentos globais. Se olharmos a curva das tensões internacionais sob o ângulo estratégico, é evidente que há um declínio. A Guerra Fria era intensa em 1948 (bloqueio de Berlim), em 1951 (Guerra da Coréia), mas já grandes conflitos como o de Suez (1956), mesmo o do Vietnã (até 1974) e os confrontos persistentes do Oriente Médio, ainda que subjacentes à conflitualidade Leste-Oeste, não apresentaram o risco iminente do confronto direto das duas grandes potências militares. Apenas a crise dos foguetes, de 1962, em Cuba, pareceu levar àquele enfrentamento.

O atual processo de distensão parte de pressupostos estratégicos e econômicos muito fortes. Pode-se dizer que o discurso da distensão, do desarmamento e da coexistência, reiterado desde 1945, ainda que em constante crise, acabou dando consistência qualitativa ao que parecia apenas acúmulo quantitativo. Isto deu-se sem eliminar o discurso já indicado, o do realismo, da prevalência das relações de força nas relações internacionais, do persistente equilíbrio do terror. Certamente esta prevalência continuará e manterá sua importância, mas em novas circunstâncias, numa situação internacional modificada. Fonseca Jr., referindo-se à ordem racionalista, grociana, contraposta à realista, hobbesiana, recorda que ela entende que "no sistema internacional, a articulação de instituições que superem o Estado de natureza hobbesiano é possível, a soberania admite que, sem que seja maculada ou diminuída, se instituam formas de controle, interno ou externo, para o comportamento dos Estados. Sem perder a condição de soberanos - até reforçando-a - os Estados têm, em determinadas circunstâncias, interesse em cooperar e estabelecer regras limitadoras do seu comportamento"15 15 Fonseca Jr., Gelson, Notas sobre a questão da ordem internacional, Contexto Internacional 6, IRI-PUC/RJ, Rio de Janeiro, 1987, p. 23. . Será isto possível?

A própria experiência européia indica as dificuldades políticas para a superação da conceituação atual de soberania nacional. "Na realidade 1992 representará essencialmente uma grande negociação entre os países europeus, no decorrer da qual cada um deverá ao mesmo tempo defender as próprias razões nacionais e adaptá-las depois ao interesse comunitário. Mas será sobretudo uma ocasião em que a credibilidade de todo o sistema e não apenas das empresas será colocado em questão. Efetivamente a competitividade global, a competitividade estrutural de um sistema não pode melhorar sem a contribuição central do Estado. Ao Estado é preciso solicitar que assuma com maior decisão a tarefa de sustentação e estímulo do processo de desenvolvimento"16 16 Bonvicini, Gianni, op. tit., p. 10. . Se na Europa, mas também certamente no grupo norte-americano e no japonês, o fator dinâmico do processo de agregação foi o capitalismo, existe a necessidade, para que esse processo ganhe o significado de potencial modificação do sistema internacional, da intervenção do Estado não na sua qualidade de burocracia, mas na sua qualidade original de representante de coisa pública. Neste sentido, a questão da europeização ou da constituição de um novo conceito de soberania ou, melhor ainda, do surgimento de uma idéia de soberania macro-regional para além das pré-existentes soberanias nacionais, coloca-se apenas como possibilidade futura. Os pressupostos econômicos neste sentido avançam rapidamente, mas ainda há escasso amadurecimento nos outros campos da vida política e social. A questão da democracia tem parte substancial nesse processo. Vimos o ceticismo a esse respeito na colocação de Gallo. Talvez as grandes agregações possam estimular o debate sobre os significados, além do econômico, deste fenômeno que se vai consolidando neste fim de século, caso se coloque a questão do locus do controle democrático. Também para os que se colocam no campo do pensamento socialista o desafio teórico é real. O próprio debate sobre a soberania ganha maiores dimensões a curto prazo. A competição entre as grandes agregações, que parece dar-se sob novas formas, sem nacionalismos militaristas ainda que formas contemporâneas de protecionismo sejam' fortes em toda parte, significa que elas introduzirão formas de confronto nas suas relações de novo tipo que afetarão a todos, inclusive aos que delas não participarem.

BRASIL: O MODELO TERCEIRO-MUNDISTA E O NEOLIBERAL

Em diferentes enfoques tem se apresentado um quadro de perplexidades e de dificuldades profundas. Como diz Lafer, "em síntese, o quadro sul-americano, nesta década, apresenta mais sombras do que luz, pois ocorreu uma efetiva deterioração da posição dos países latino-americanos no cenário internacional. Esta deterioração - apesar da dimensão positiva representada pelo processo de democratização - afetou a identidade, reduziu as margens de ação externa e a capacidade interna da região para modernizar-se e desenvolver-se"17 17 Lafer, Celso, Papel dos EUA no mundo: América do Sul, Folha de São Paulo, 17 de dezembro de 1988, São Paulo. . Nessas circunstâncias, o low profile18 18 Conforme análise de Ferreira, Olivelros S., Palestra de Oliveiros S, Ferreira, Seminário Política Internacional e Cooperação, mirneo, FUNDAP, DCP/FFLCH/USP, CEDEC, São Paulo, 1989. na condução da política exterior brasileira desde 1979, desde o Governo Figueiredo, ainda que mantidas as linhas gerais do pragmatismo responsável formulado por Araújo Castro, Azeredo da Silveira e outros, parece não ser suficiente para apoiar o Estado brasileiro em seu esforço não só de sair das dificuldades acumuladas em toda a década de oitenta mas sobretudo para adequar-se ao novo quadro internacional em fase acelerada de implementação.

Este novo quadro produziu uma situação peculiar na América do Sul, visto que o México tende a uma maior aproximação com os Estados Unidos no que se refere a seu sistema econômico. Esta peculiaridade deriva de ser esta região a única no mundo a não ter nenhum tipo de vínculo preferencial com algumas das grandes agregações citadas na parte inicial. Este fenômeno é mais perceptível quando se olha a região a partir de fora do que sob a ótica sul-americana. Talvez os conservadores e os neoliberais tenham percebido isso antes dos outros. Recentemente o presidente do Peru assinalou a evidência que, mesmo o Brasil representando um potencial econômico dez vezes maior que o do Peru, quando visto a partir do Norte encontra-se num patamar de desempenho compatível com seus vizinhos do Sul19 19 Garcia, Alan, entrevista com Marília Gabriela, Televisão Bandeirantes, 19 de março de 1989. .

Este contexto geral coloca a urgencia de nova formulação de política internacional. Além de questões estruturais da máxima importancia, como a dívida externa e a reserva de mercado, que poderiam ser resolvidos a médio e longo prazo, colocam-se urgentemente alguns temas.

Um é o relativo à consistência de um projeto, chamemos, terceiro-mundista. Os exemplos que provêm de duas regiões que apresentam problemas de algum modo semelhantes aos do Brasil, os países da Ásia e os socialistas, indicam que a idéia de uma concertação dos países do sul, ainda que desejável sob muitos aspectos e possível portadora de alguns resultados vantajosos, não será suficiente. Quase todos os países asiáticos mais importantes e os socialistas enveredaram pelo caminho do reconhecimento de que, se no mundo moderno uma política de defesa do mercado sob alguns ângulos é necessária, a autonomia absoluta, entendida como possibilidade de desenvolvimento autárquico, não é possível e seria pressuposto de reprodução do subdesenvolvimento. Já no período stalinista soviético, a oposição de esquerda, ao criticar a ideologia do socialismo num só país, reconhecia que o mercado mundial e a lei do valor constituíam o termômetro efetivo do desenvolvimento das forças produtivas, ao menos enquanto subsistisse o sistema capitalista. O projeto terceiro-mundista teve um papel significativo para muitos países, como fator de arranque, de rompimento com o colonialismo e sobretudo como criador da consciência da necessidade de desenvolvimento autocentrado. A crise de suas experiências mais avançadas, por volta dos anos sessenta, indicava suas dificuldades. É certo que 1973 alimentou novas esperanças, mas é justamente a partir deste momento que a velocidade das mudanças em todos os planos se acelerou, questionando a fundo as bases sobre as quais se apoiava este projeto. No caso dos países asiáticos em vias de desenvolvimento a tendência tem sido a aceitação de regras conforme aos padrões neo-liberais. Os resultados quanto aos índices de crescimento têm sido auspiciosos a partir de 1960, conforme indica a tabela na página seguinte. Estes índices colocam, por outro lado, em evidência o grave retrocesso latino-americano na década de oitenta.

Não há porém condições para conclusões de longo prazo. O atraso dos países asiáticos foi tão grande durante boa parte do século XX que ainda não há como afirmar que o crescimento econômico havido, mesmo em grandes países como a Índia, possa ter estabelecido as bases de auto-sustentação do desenvolvimento em qualquer plano, social, político, tecnológico ou dos capitais. Confirmando esta indicação veja-se a tabela 2 mais abaixo.

No caso dos países socialistas, as políticas chinesa e soviética, esta mais recentemente, assim como numerosos outros países de economia planificada, indicam que não apenas nos grupos dirigentes mas em boa parte destas sociedades coloca-se em profundidade a questão da modernização. Para quem se situa numa perspectiva socialista, é clara a existência de uma contradição implícita por não ter sido o planejamento centralizado o impulsionador maior do progresso. Mas é historicamente necessário reconhecer as profundas dificuldades que a burocratização da economia planificada teve, e tem, para promover a modernização do aparato produtivo. Isto acabou produzindo um hiato, acentuando os atrasos e recolocando na ordem do dia modelos ideologicamente inspirados à NEP.

Outro tema refere-se à possibilidade de imitar-se com sucesso no Brasil o modelo dos tigres asiáticos, isto é, atribuir-se às regras de mercado, à total liberalização dos fluxos a tarefa do desenvolvimento. Certamente o desejo prevalecente nos países de economia de mercado desenvolvidos vai nesta direção. Não nos referimos tanto aos governos e às forças políticas. O Plano Brady ou as iniciativas de Mitterrand indicariam algo diferente. É preciso aqui lembrar fatores que já indicamos na primeira parte deste texto. Emmerij específica a questão: "Se compararmos a economia internacional dos anos 60 e 70 com as perspectivas para a década de 90, torna-se evidente que os fatores globais serão muito importantes. Por exemplo, dois dos ingredientes críticos do poder econômico: a capacidade tecnológica e a disponibilidade de capital são cada vez menos sujeitos a controles governamentais. A tomada de decisões em nível nacional, mesmo nos países economicamente poderosos, corre riscos de perder a sua importância e ficar relegada a segundo plano, em decorrência dos agentes e forças econômicas internacionais não apresentarem condições de serem facilmente controlados e estarem freqüentemente nas mãos do setor privado"20 20 Emmerij, Louis, Terceiro Mundo: conceito e realidade, Seminário Politica Internacional e Cooperação, mimeo, FUNDAP, DCP/FFLCH/USP, CEDEC, São Paulo, 1989. . Isto é, para países como o Brasil, não se poderá desconhecer o peso dos interesses multinacionais, que passaram a ter um significado cada vez maior, sendo uma das razões do questionamento do conceito de soberania nacional tal como prevalece até hoje.

Alguns autores chegam até mesmo a falar de reabilitação, depois de sua condenação, das multinacionais. Michalet entende que há uma inversão de tendência nos anos oitenta, caracterizando-se pela passagem da política do controle ao da liberalização e, "simultaneamente, ao invés de recusar os investimentos estrangeiros ou de tolerar sua presença com uma sensação de vergonha, os Estados procuram abertamente atraí-los, inclusive os países que nas últimas décadas defendiam as posições mais intransigentes"21 21 Michalet, Charles-Albert, Inversione di tendenza nei rapporti con le multinazionali, Politica Internazionale, agosto-outubro 1988, IPALMO, Roma, 1988, p. 130. . O imenso fluxo de tecnologia e capitais permitiu que os países desenvolvidos mantivessem um ritmo de crescimento per capita na década de oitenta, sendo de 1,1% ao ano nos primeiros cinco anos do período, contra o crescimento zero dos países em vias de desenvolvimento em geral e de uma taxa negativa de 2,6% para a América Latina. Mas a situação dos países pobres é específica. Em sua maioria, inclusive no Brasil, combinou-se historicamente um Estado burocrática e administrativamente pesado com uma burguesia limitada em sua capacidade de promoção de um grande projeto nacional. A expansão do poder do Estado com freqüência deu-se paralelamente à expansão da ineficácia. O nível de renda dos países que na última etapa aderiram ao modelo neoliberal, particularmente os da Ásia, parte de um patamar tão baixo que nada pode fazer supor que este modelo seja eficaz em economias médias como a brasileira. Bastaria lembrar que a renda per capita média dos países latino-americanos é de 2.276 dólares, contra 571 da Ásia e 10.220 dos países desenvolvidos de economia de mercado. Relativamente ao caso dos tigres asiáticos, há um elemento importante que não deve ser subestimado, os quatro países encontram-se desde a II Guerra Mundial numa situação política excepcional. Apesar disto, nada indica que tenham eles adquirido a capacidade de sustentação endógena do desenvolvimento, única forma de oferecer a perspectiva de um quadro político e social de progresso. Na América Latina, países que em escalas diferentes buscaram a solução liberista, Chile e Argentina, como sabemos, de forma alguma puderam superar os estrangulamentos estruturais para seu desenvolvimento. Apenas para completar este ponto, recorde-se que o Brasil com seu enorme esforço exportador (26 bilhões de dólares em 1987, com superávit de 11 bilhões) não figura nem mesmo entre os 20 maiores exportadores. Taiwan, Hong Kong e Coréia do Sul, com respectivamente 54, 48 e 47 bilhões de dólares exportados, representam, cada um, quase o dobro do esforço brasileiro. A Alemanha exportando 294 bilhões de dólares, em 1987, representa, sozinha, dez vezes mais do que o Brasil. O que certamente se deve ter em conta é a necessidade "de permanecer competitivo num comércio cada vez mais exigente em matéria de sofisticação tecnológica"22 22 Ricupero, Rubens, O Brasil e o futuro do comércio internacional, Seminário Internacional A Nova Era da Economia Mundial, mirneo, Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, São Paulo, 1988. , mas este não é um ensinamento necessariamente neoliberal.

Finalmente cabe discutir se as iniciativas diplomáticas do governo brasileiro nos últimos anos oferecem possibilidade de abertura de caminhos inovadores e de progresso. Os economistas têm assinalado, sobretudo no grande debate sobre o Estado do desenvolvimento, que estaria dando seqüência às formulações das décadas do desenvolvimento das Nações Unidas dos anos sessenta e setenta, que a tendência do capital hoje é o de fluir cada vez menos para o Terceiro Mundo. E interessante por isto observar como os policy-makers da política norte-americana para a América Latina têm dificuldade em formular os possíveis pontos fundamentais da política dos Estados Unidos para a região. Parece faltar uma estratégia substantiva. Em geral há apenas indicações gerais de princípios, com a exceção do México e de situações pontuais como a panamenha. Linowitz, concluindo sua análise, limita-se a indicar a necessidade de que "entendamos que as soluções para os problemas hemisféricos não podem ser fabricadas em Washington e impostas à América Latina. Elas devem ser forjadas como entendimento entre os Estados Unidos e a América Latina. As iniciativas unilaterais são raramente eficazes e compreensivelmente criam antagonismos com nossos vizinhos latino-americanos. Nós necessitamos da cooperação dos países da América Latina assim como eles necessitam da nossa - e nós devemos trabalhar arduamente para obtê-la. Os problemas comuns devem ser discutidos conjuntamente. Nosso objetivo fundamental deve ser a retomada de um sentido de confiança e co-participação nas relações Estados Unidos - América Latina"23 23 Linowitz, Sol M., Latin America: the president's agenda, Foreign Affairs, inverno 1988/89, Council on Foreign Relations, New York, 1988, p. 62. .

Tendo-se em conta que as iniciativas européias na região são limitadas, mesmo havendo algumas de maior significado, como na América Central, parece, em primeira aproximação, que a América do Sul tenderá no próximo período a permanecer uma região fora das grandes agregações em formação, apesar de persistir um relativo interesse geopolítico norte-americano. Evidentemente este cenário pode ser interpretado diferentemente, de acordo com posturas ideológicas ou mesmo de acordo com o privilegiamento de alguns parâmetros. Particularmente no caso do Brasil, mas o mesmo vale para outros países, Argentina, Uruguai, Chile, Venezuela, há, como já vimos na primeira parte da Tabela 2, um fator importante. Trata-se de um mercado interno de dimensões razoáveis. Há uma notável desproporção entre o fato de o Brasil, como lembra Ricupero, estar entre as dez maiores economias de mercado e não figurar entre os primeiros vinte exportadores. Na ótica liberal isto é negativo, mas numa ótica voltada para a busca da atenuação e tendencialmente da eliminação das desigualdades econômicas e sociais isso pode ser positivo, mesmo sem desprezar-se a potencialidade oferecida pelo comércio internacional para a otimização de recursos. Concordamos com Lafer neste ponto: "Na ótica sul-americana, uma parte da resposta passa pela intensificação da concertação inter-latino-americana, em novos moldes, à maneira do acordo de Buenos Aires em 1986, que vem adensando as relações, econômicas e políticas do Brasil e da Argentina e que incorpora em seu bojo o Uruguai. Este encaminhamento, no entanto, por si só não basta, pois, se mantém e busca aprofundar a identidade da região, não é operacionalmente suficiente para lidar com a crise, dado o peso das transformações mundiais"24 24 Lafer, Celso, op. cit. . Parece portanto necessário um aprofundamento do interesse sul-americano, mas é ao mesmo tempo imprescindível estudar-se por que até agora pouco foi alcançado, além dos acordos assinados. Lembrando-nos do que vimos na primeira parte, é preciso considerar que também nas economias de mercado pobres, como as nossas, a ação do Estado tem limites e a implementação de decisões políticas depende, como vimos para as grandes agregações, da vontade das empresas, públicas ou privadas. As indicações existentes mostram que este interesse não é ainda efetivo nem de parte das empresas nacionais nem nas multinacionais. Por ora, de real pouco se fez, além da diminuição de tarifas alfandegárias de alguns produtos. A experiência do Acordo de Cartagena, no início dos anos setenta, mostra que as dificuldades politicas e econômicas são profundas e dificilmente removíveis.

Ainda que o esforço possível de ser produzido por uma vontade nacional forte fizesse avançar algo nas relações com a América Latina, isto não seria suficiente. A velocidade das mudanças em todos os campos indica ser necessário buscar também outros caminhos. Aqui nem discutimos a questão hoje fundamental, da dívida externa, pois a capacidade de decisões neste campo, deriva do equacionamento geral de nossa economia e de nossa política exterior. Não será possível a autarquia, mesmo em escala sul-americana. Onde então se coloca o foco das decisões na relação do Brasil com o mundo? Parece que se coloca na capacidade da internalização das decisões, na capacidade de vincular a colaboração com grandes aglomerados supranacionais, com Estados estrangeiros, empresas multinacionais ou organizações multilaterais à nossa capacitação para absorver tecnologia, à nossa capacidade de gerenciamento e de geração de um excedente capaz de aumentar rapidamente os investimentos. É evidente que a burguesia tem sido, até agora, fraca para isto. Em suma, tudo indica que as iniciativas diplomáticas do governo brasileiro nos últimos anos, na tática do low profile, parecem ter sido insuficientes.

Há indícios, ainda tênues, de que algo se move. Parece possível fazer com que posições de defesa firme de nossos interesses sejam senão aplaudidas ao menos aceitas. Veja-se o que diz Michalet da lei da informática e de outras medidas nacionalistas: "A sensação de que a página da recusa, ditada pelo medo de um domínio unilateral, esteja definitivamente virada, encontra uma confirmação ao inverso nas escolhas recentes do Brasil. Este 'benjamim' das multinacionais não hesitou em proibir o acesso destas últimas em setores de alta tecnologia nos quais as empresas brasileiras estão procurando criar para si um espaço no mercado mundial (computadores e aeronáutica, por exemplo). Estas decisões não tiveram a mesma acolhida reservada a decisões análogas vinte anos atrás. Sua finalidade parece agora como puramente econômica e não ideológica. É aceito pela comunidade internacional que os brasileiros utilizem os meios à própria disposição, mesmo se seu emprego é discutível em nome dos princípios da 'concorrência são, para defender seus business, para acrescer sua presença no mercado mundial. O que importa é que o sistema em si mesmo não seja contestado"25 25 Michalet, Charles-Albert, op. cit., p. 131. .

Concluindo: o crescimento do debate sobre as relações internacionais, além de auspicioso é necessário. Á necessidade de se adaptar à nova realidade é urgente. O problema central é a capacidade de internalização das decisões, questão essencial da política brasileira.

  • 1 Moura, Gerson, Editorial, Contexto Internacional 6, IRI-PUC/RJ, Rio de Janeiro, 1987, pág. 9.
  • 2Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, Cadernos de Direito Constitucional e eleitoral 5, IMESP, São Paulo, 1988, pág. 9 e 10.
  • 4 Moreira, Marcílio Marques, O Brasil no contexto internacional do final do século XX, Lua Nova 18, CEDEC, Marco Zero, São Paulo, 1989, pp. 6.
  • 5 Aron, Raymond, Paz e guerra entre as Nações, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1979.
  • 6 Gallo, Max, Dissolution de l'histoire dans l'ideologie: l'Europe sans nations, cet artifice, ce mirage dangereux..., Le Monde Diplomatique, março 1989, Paris.
  • 7 Lodge, J., The Single European Act: Towards a New Eurodynamism?, Journal of Common Market Studies, vol XXIV, número 3, março 1986, Bruxelas.
  • 8 Ramonet, Ignacio, A Europa e o mundo contemporâneo, Lua Nova 18, CEDEC, Marco Zero, São Paulo, 1989.
  • 9 Bonvicini, Gianni, L'Europa verso il 1992, Polilica Internazionale, novembro 1988, IPALMO, Roma, 1988, p. 8.
  • 10 La Pergola, Antonio, Come si prepara Vitalia, Politica Internazionale, novembro 1988, IPALMO, Roma, 1988, p. 7.
  • 11 CEE Commission, The FAST II Programme (1984-1987), Results and Recommendations, Bruxelas, 1988.
  • 12 Cassen, Bernard, Deux ressorts pour construire l'identité culturelle. En/in une politique volontariste de la recherche, Le Monde Diplomatique, março 1989, Paris.
  • 13 Halimi, Serge, Comment la sociélé de spéculation penalise ses "perdants". Mais qui donc finance la création de millions d'emplois aux États-Unis? Le Monde Diplomatique, março 1989, Paris.
  • 14 Duroselle, Jean Baptiste, Histoire Diplomatique de 1919 à nos jours, Jurisprudence Genérale Dalloz, Paris, 1970, p. 84.
  • 15 Fonseca Jr., Gelson, Notas sobre a questão da ordem internacional, Contexto Internacional 6, IRI-PUC/RJ, Rio de Janeiro, 1987, p. 23.
  • 17 Lafer, Celso, Papel dos EUA no mundo: América do Sul, Folha de São Paulo, 17 de dezembro de 1988, São Paulo.
  • 18 Conforme análise de Ferreira, Olivelros S., Palestra de Oliveiros S, Ferreira, Seminário Política Internacional e Cooperação, mirneo, FUNDAP, DCP/FFLCH/USP, CEDEC, São Paulo, 1989.
  • 19 Garcia, Alan, entrevista com Marília Gabriela, Televisão Bandeirantes, 19 de março de 1989.
  • 20 Emmerij, Louis, Terceiro Mundo: conceito e realidade, Seminário Politica Internacional e Cooperação, mimeo, FUNDAP, DCP/FFLCH/USP, CEDEC, São Paulo, 1989.
  • 21 Michalet, Charles-Albert, Inversione di tendenza nei rapporti con le multinazionali, Politica Internazionale, agosto-outubro 1988, IPALMO, Roma, 1988, p. 130.
  • 22 Ricupero, Rubens, O Brasil e o futuro do comércio internacional, Seminário Internacional A Nova Era da Economia Mundial, mirneo, Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, São Paulo, 1988.
  • 23 Linowitz, Sol M., Latin America: the president's agenda, Foreign Affairs, inverno 1988/89, Council on Foreign Relations, New York, 1988, p. 62.
  • 1
    Moura, Gerson,
    Editorial, Contexto Internacional 6, IRI-PUC/RJ, Rio de Janeiro, 1987, pág. 9.
  • 2
    Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, Cadernos de Direito Constitucional e eleitoral 5, IMESP, São Paulo, 1988, pág. 9 e 10.
  • 3
    Dachi, Stephen, ex-cônsul-geral dos Estados Unidos em São Paulo,
    Folha de São Paulo, 28 de agosto de 1988.
  • 4
    Moreira, Marcílio Marques, O
    Brasil no contexto internacional do final do século XX, Lua Nova 18, CEDEC, Marco Zero, São Paulo, 1989, pp. 6.
  • 5
    Aron, Raymond,
    Paz e guerra entre as Nações, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1979. Particularmente o capítulo Os
    Sistemas Pluripolares e os Sistemas Bipolares.
  • 6
    Gallo, Max,
    Dissolution de l'histoire dans l'ideologie: l'Europe sans nations, cet artifice, ce mirage dangereux..., Le Monde Diplomatique, março 1989, Paris.
  • 7
    Lodge, J.,
    The Single European Act: Towards a New Eurodynamism?, Journal of Common Market Studies, vol XXIV, número 3, março 1986, Bruxelas.
  • 8
    Ramonet, Ignacio,
    A Europa e o mundo contemporâneo, Lua Nova 18, CEDEC, Marco Zero, São Paulo, 1989.
  • 9
    Bonvicini, Gianni,
    L'Europa verso il 1992, Polilica Internazionale, novembro 1988, IPALMO, Roma, 1988, p. 8.
  • 10
    La Pergola, Antonio,
    Come si prepara Vitalia, Politica Internazionale, novembro 1988, IPALMO, Roma, 1988, p. 7.
  • 11
    CEE Commission,
    The FAST II Programme (1984-1987), Results and Recommendations, Bruxelas, 1988.
  • 12
    Cassen, Bernard,
    Deux ressorts pour construire l'identité culturelle. En/in une politique volontariste de la recherche, Le Monde Diplomatique, março 1989, Paris.
  • 13
    Halimi, Serge,
    Comment la sociélé de spéculation penalise ses "perdants". Mais qui donc finance la création de millions d'emplois aux États-Unis? Le Monde Diplomatique, março 1989, Paris.
  • 14
    Duroselle, Jean Baptiste,
    Histoire Diplomatique de 1919 à nos jours, Jurisprudence Genérale Dalloz, Paris, 1970, p. 84.
  • 15
    Fonseca Jr., Gelson,
    Notas sobre a questão da ordem internacional, Contexto Internacional 6, IRI-PUC/RJ, Rio de Janeiro, 1987, p. 23.
  • 16
    Bonvicini, Gianni, op. tit., p. 10.
  • 17
    Lafer, Celso,
    Papel dos EUA no mundo: América do Sul, Folha de São Paulo, 17 de dezembro de 1988, São Paulo.
  • 18
    Conforme análise de Ferreira, Olivelros S.,
    Palestra de Oliveiros S, Ferreira, Seminário Política Internacional e Cooperação, mirneo, FUNDAP, DCP/FFLCH/USP, CEDEC, São Paulo, 1989.
  • 19
    Garcia, Alan, entrevista com Marília Gabriela, Televisão Bandeirantes, 19 de março de 1989.
  • 20
    Emmerij, Louis,
    Terceiro Mundo: conceito e realidade, Seminário Politica Internacional e Cooperação, mimeo, FUNDAP, DCP/FFLCH/USP, CEDEC, São Paulo, 1989.
  • 21
    Michalet, Charles-Albert,
    Inversione di tendenza nei rapporti con le multinazionali, Politica Internazionale, agosto-outubro 1988, IPALMO, Roma, 1988, p. 130.
  • 22
    Ricupero, Rubens, O
    Brasil e o futuro do comércio internacional, Seminário Internacional A Nova Era da Economia Mundial, mirneo, Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, São Paulo, 1988.
  • 23
    Linowitz, Sol M.,
    Latin America: the president's agenda, Foreign Affairs, inverno 1988/89, Council on Foreign Relations, New York, 1988, p. 62.
  • 24
    Lafer, Celso, op. cit.
  • 25
    Michalet, Charles-Albert, op. cit., p. 131.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 1989
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