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Sem desperdícios na cozinha

Sem desperdícios na cozinha

Sílvio Lancellotti

Jornalista

Não desperdiçar. Eis um sinônimo possível para uma alimentação alternativa nos dias que correm.

Exatamente. Principiemos pelo começo. Ideal, seria se todos nós, humilde e gostosamente, nos dispuséssemos a semear as nossas próprias hortinhas de quintal. Basta um quadrilátero de uns 2m por 2m, ou dimensões correlatas, para acondicionar cenouras, cebolas, cebolinhas verdes, salsinha e até mesmo um belo e robusto tomateiro. A operação não requer nem prática nem habilidade. Terra comum, mesmo, serve, desde que vários dias antes de plantar o cidadão aceite a idéia de gastar uma meia hora diária no exercício de revolver o solo. Os fermentos necessários? Um bom punhado de minhocas, dessas mesmo de jardim. Então, fica faltando fazer uma visita ao mercado central de São Paulo, lá nas redondezas do Parque Dom Pedro, para comprar os saquinhos de sementes imprescindíveis. No papel que abriga os grãozinhos há informações precisas a respeito dos procedimentos a seguir. Mesmo nesse departamento, porém, a complexidade inexiste. Para as cenouras e cebolas, fura-se o chão, com o dedo, sim, por que não?, buraquinhos mais ou menos a dez centímetros um do outro, lançam-se as sementes e de novo a terra. Cebolinhas verdes e salsinha podem ser plantadas com intervalos bem menores. Quanto ao tomateiro, simplesmente se metem os grãos num único grupo, a seis ou sete centímetros de profundidade. Daí, rega-se a terra, que a natureza faz o resto.

Com o tempo, aprende-se a replantar as cenouras e as cebolas para que, mais distantes, tenham mais seiva a sugar do subsolo e assim consigam crescer mais fortes, maiores, bonitas. O homem primitivo, afinal, não dispunha de tecnologia japonesa para implantar as suas hortas. Provavelmente, até, suas cenouras fossem mais nutritivas e mais saborosas do que os insossos híbridos da atualidade.

Cumprido esse passo, o negócio é saber que, na cozinha, impera a venerada Lei de Lavoisier: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Aperfeiçoando: nada deve se perder, tudo deve se transformar.

Balançando o sabor e a nutrição

Pensemos, por exemplo, no arroz nosso (ainda) de cada dia. Deve estar sequíssimo antes de desabar na panela. E deve ser superfrito antes de receber a água que irá cozinhá-lo. Dessa maneira, ficará soltinho, aumentará de volume o suficiente. Prefiro, pessoalmente, por razões de sabor e nutrição, o arroz integral, com cascas — que ainda é mais barato que certos produtos químicamente tratados.

E sobrou arroz? Que tal misturá-lo com as rapas das cascas do queijo fresco que também sobrou e perpetrar um punhado de bolinhos deliciosos depois de fritos em gordura também recuperada do dia anterior?

Passemos para a carne que já não é mais nossa de todos os dias. Também da carne tudo é aproveitável. Cortados os bifes, pode-se utilizar a gordura para, sim, produzir gordura. Habitualmente, vou guardando na geladeira todas as aparas de gordura que me sobram de jornadas e jornadas de trabalho na pia e no fogão. Então, apenas unto urna caçarola com um tico de óleo, banha, ou mesmo manteiga, refogo levemente as aparas e cubro-as com um pouquinho de água. Deixo a caçarola em fogo baixo horas e horas, aqui e ali recobrindo as aparas com água fresca e fervente. No intervalo, as aparas quase que se derreterão completamente. Com um filtro de pano, côo a gordura derretida — que usarei para fritar bifes, por exemplo, no lugar de alguma outra coisa aparentemente mais sofisticada mas menos natural.

Em certas ocasiões, faço molhos com tomates sem peles e sem sementes. Aproveito as polpas mas não disponho das peles e das sementes. Batidas num liquidificador, elas dão base excelente para sucos e vitaminas, servem para colorir o arroz, sopas, caldos.

As cascas das batatas? São os mais perfeitos engrossadores de molhos em geral. Ou, bem lavadinhas e bem moídas, misturadas àquelas pontas de carne que aparentemente não servem para nada, também moídas, originam outros bolinhos espetaculares.

As cascas das cenouras? Bolinhos, bolinhos com arroz, carne, até com os restos do macarrão que ficou no fundo da travessa.

Pão duro? Quinze minutos de forno. Algum esforço na máquina de moer. E pronto, tenho farinha de rosca fabricada em casa.

Sobrou cerveja na garrafa? Geladeira. E nasce um ótimo fermento para massa de pão, pizza, bolos em geral.

As grossas e verdes cascas de melancia? Experimentemos cozinhá-las em fogo brando, com igual quantidade de açúcar. Depois de uma hora ou pouco mais, teremos um doce estupendo e macio. Idem, idem, faço doces com cascas de laranjas, limão, goiabas etcétera e tal.

A fome é a praga do Brasil

Num resumo, a melhor lição para a cozinha da crise é esta: procurar o desperdício zero. Sinto dizer que, historicamente, sociologicamente, ideologicamente, mesmo em seus estratos mais depauperados, o povo brasileiro não apreendeu essa singela filosofia.

Somos mais de 130 milhões de caboclos, e 60% de nós não fazem mais do que um quarto de refeição por dia. Pois é. Isso mesmo. A fome é a praga/peste do Brasil, um desígnio que envergonha e machuca diretamente a quem desembarcou neste ofício aparentemente tão alegre e saudável — ocupar num jornal e numa emissora de TV um espaço dedicado aos prazeres da gastronomia, essa arte tão distante da realidade do país.

Sobrevivo, todavia. E procuro fazê-lo com altaneira e competência e, às vezes, com a indulgente auto-ironia que consola através do espinho. Uso os meus textos e meus teipes, também, para enviar recados. Um compromisso ideológico. Escrever sobre bons pratos pode-se transformar numa forma de praticar a política. Ao menos. Quem sabe...

Por isso, digo: não existe alternativa para comer, a não ser comer. A frase ostenta, sim, os seus efeitos literários. Escorre com ritmo e até uma certa dose de poesia no arranjo de suas palavras escolhidas pelo som e com esmero. Acontece que habitualmente me constrange escrever sobre restaurantes e comidinhas num país em que se morre de fome ou no mínimo de desnutrição ou de doenças. Não existe alternativa de alimentação, a não ser o entendimento essencial de que o Brasil e os brasileiros, um pouco por impotência, e bastante pela irresponsabilidade de seus dirigentes e de suas elites culturais e econômicas, desde o descobrimento, vêm naufragando numa sucessão estúpida de equívocos de vocação.

"Aqui, em se plantando, tudo dá." Acho que foi assim que o nosso primeiro jornalista, Pero Vaz de Caminha, descreveu o paraíso que os portugueses encontraram quase quinhentos anos atrás. Um paraíso que eles próprios, com sua ambição, sua inconseqüência, ajudaram a dilapidar na Colônia, entronizando uma tradição grotesca de abusos e desperdícios que, desafortunadamente, se transformaram no mais irremovível dos maus hábitos desta pobre terra tropical.

O português, imperialista, ao invés de fundar cidades, aprisionou silvícolas e arrancou-lhes à força as suas primitivas riquezas. Em vez de semear e plantar, queimou e saqueou. Só não esgotou completamente o piso brasileiro de nutrientes e de metais e de árvores seculares e de pedras preciosas porque a Vera Cruz que encontraram era imensa demais, no tamanho, para a sua própria voracidade.

É preciso começar de novo

Conseqüência: até hoje o Brasil padece das seqüelas de centenas de anos de opressão e inconsciência. No Sul, arroz, milho e trigo desapareceram, pastagens de milênios se afogaram a fim de que a soja importada dominasse, sobremaneira, visto que da soja advêm lucros mais rápidos e polpudos. Em São Paulo, sumiram matas antológicas e laranjais e cafezais para que abundassem os canaviais idealizados em função de um projeto lindo no papel mas inacreditável na burrice com que se desenvolveu, o proálcool que tantas falências já perpetrou.

Precisamos começar de novo. Tomara que este período de crise nos ensine, ao menos, a aprender a não desperdiçar. E não apenas porque estejamos atravessando um período tragicômico de nosso ciclo como gente. Mas porque se trata de um conceito digno e justo, um método e um princípio.

Chegou a hora de o povo brasileiro se acostumar com princípios.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1985
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