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A justiça anda devagar

A justiça anda devagar

Hélio Bicudo

Jurista, ex-procurador da Justiça do Estado de São Paulo e membro da Executiva Nacional do PT

A questão carcerária não pode ser vista de maneira autônoma, desvinculada, de um lado, da questão político-social propriamente dita e, de outro, do funcionamento do aparelhamento policial e juduciário. A crise das prisões reflete a crise institucional em que se debate a sociedade brasileira, não bastando, para equacioná-la, reformas que tocam apenas na superfície, deixando de tocar o fundo do problema. A construção de presídios chamados modelos, regionalizando o sistema de cumprimento da pena – como se anuncia – é a proposta do atual governo paulista. Mas, na verdade, não passa de mais um paliativo, associado à mania de nossos homens públicos em "marcarem" a sua passagem pela administração com inaugurações suntuosas.

E, antes disso, a imposição de leis penais mais efetivas, com a cobertura de uma polícia de qualificações repressivas e de uma justiça mais "dinâmica", completa o quadro tradicional, de uma organização da sociedade que objetiva a preservação dos privilégios das minorias dominantes.

Essa situação vai ficando mais clara quando começamos a perceber que ela é, na verdade, imposta pelos "órgãos de informação" com o apoio do "sistema". As intenções aparecem, de forma direta, nos discursos dos líderes da "comunidade de informação" e, de forma indireta, através da divulgação pela imprensa e pela TV de uma violência que é apresentada como uma explosão em cadeia. Essas atitudes pretendem provocar uma reação capaz de justificar a expansão e a manutenção de um esquema repressivo que desaba, ainda uma vez, sobre as sempre desprotegidas camadas populares. E nisso não vai qualquer qualificativo de originalidade.

Efetivamente, essa reação – caracterizada por uma explosão das ocorrências violentas – não poderia deixar de acontecer num país como o nosso, onde o aborto é praticado abertamente, embora seja considerado crime pelo Código Penal, impedindo o nascimento anual de, pelo menos, três milhões de crianças; onde existem mais de trinta milhões de menores carentes, abandonados ou infratores; onde o número de desempregados, numa população ativa de quarenta milhões de pessoas, atinge a cifra impressionante de sete milhões; onde a capacidade de geração de empregos diminui a cada ano, como uma das conseqüências da política de recessão em que as autoridades federais mergulham a economia nacional.

Dentro desse quadro, a questão da violência passou, ultimamente, a ser tratada de maneira predominantemente emocional, requerendo, os mais variados setores da comunidade, uma intervenção mais efetiva da polícia e, por que não dizer, mais violenta, afastando, inclusive, pela morte, os delinqüentes ou marginais mais incômodos ao convívio das classes média e alta.

Não é a primeira vez que isso acontece e as decisões tomadas no calor dos fatos não são as mais coerentes com os princípios maiores de preservação da vida e dignidade humanas, que cumpre, em qualquer circunstância, defender.

Não fôssemos subscritores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde se lê, na sua introdução, "que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo" e tudo, nesse plano, seria justificável.

A criminalidade como que avança em ondas, a acompanhar o descompasso entre as necessidades básicas do ser humano e a impossibilidade de alcançá-las dentro de uma sociedade egoísta e injusta, que tudo nega às populações mais empobrecidas, desconhecendo o atendimento de suas carências, desde a educação, a saúde, a alimentação, até o trabalho como meio de desenvolvimento das potencialidades de cada um.

Há cerca de quinze anos, em meio a um surto de criminalidade – e nunca se sabe se o aumento é real ou não, porque os números comparativos não são, sequer, divulgados – a solução encontrada foi um estímulo à violência policial, que se exibia nas atividades dos "esquadrões da morte". A liquidação de marginais e delinqüentes, aprovada pelos altos escalões da Administração paulista, era mostrada com ênfase publicitária, para uma esperada intimidação geral.

Nascem os centros de defesa dos direitos

Esse estímulo à violência chegou a tal ponto, que começaram a surgir vozes autorizadas – recordem-se as contundentes manifestações do jurista-filósofo Miguel Reale e do Jornalista-teatrólogo Nelson Rodrigues – a combater semelhante atuação da polícia, desaguando-se, afinal, na atitude do próprio Tribunal de Justiça de São Paulo, a pôr, com o amparo do Ministério Público, um basta a essa exibição do poder policial.

Passaram-se os anos, mas a violência não deixou de prosperar, subindo a níveis considerados insustentáveis para uma sociedade medianamente civilizada. Só em São Paulo, mataram-se, no ano passado, mais de quatrocentas pessoas, muitas delas, sequer, sem antecedentes criminais.

Diante desse quadro, deu-se o surgimento, aqui e ali, dos chamados "centros de defesa dos direitos humanos", buscando afastar os policiais violentos e submetê-los a devido processo legal por abuso de poder. O sucesso nessa atuação que objetiva o bem comum, com uma polícia consciente de seus deveres, levou a reações por parte de grande número de policiais, os quais, ao invés de procurarem corrigir as distorções ocorrentes e poder oferecer real segurança à população, simplesmente, retiraram-se das ruas e proclamaram que iriam agir legalmente, como se agir legalmente quisesse dizer não agir. É óbvio que no quadro social existente, se a polícia se autoconfina, crescem a criminalidade e a violência de um modo geral. As pessoas se armam e passamos a viver a lei do jângal.

A violência policial, com o recru-descimento das atividades repressivas, em detrimento das preventivas, não vai solucionar o problema do aumento da criminalidade. Ainda que se não tome, como se acentuou, em consideração a questão econômica e social, com o abandono de nossas populações mais pobres, erigida no verdadeiro inimigo dessa sociedade de consumo, para que se fizesse, dentro desse panorama, o mínimo imprescindível ao restabelecimento da paz mundial, seria preciso que na questão fossem chamados a atuar o Judiciário e o Ministério Público, sem esquecer que tudo vai desembocar no sistema carcerário.

Ora, se a polícia não está capacitada ao cumprimento de suas atribuições por motivos estruturais, a organização da Justiça, como existe hoje, também, não corresponde àquilo a que a sociedade aspira. Nesse sentido, é preciso que haja um real entrosamento entre polícia, Justiça e sistema penitenciário, para que algo possa ser feito no combate à criminalidade, quando, aliás, pouco ou nada há a fazer nesse campo, porque se trata na visão oficial, não de prevenir, mas, de reprimir.

Juntando as peças da justiça

A Justiça precisa ser rápida. Mas isto não basta, porque ela precisa, sobretudo ser eficiente, julgando segundo a verdade. Distanciada da sociedade, indiferente às atividades policiais, com um Ministério Público apenas formal, os resultados alcançados consagram tão-somente a repressão. É preciso, nesse caso, juntar as peças e fazê-las funcionar.

São Paulo tem uma população de dez milhões de pessoas. A sua Justiça não sabe o que faz a polícia e julga sem conhecimento de causa. Não é dinâmica. Está burocrati-zada.

Por que não descentralizá-la, não apenas para os pequenos delitos, mas com ampla competência, passando a funcionar fisicamente, em todo o território da cidade, distri-buindo-se por quantos distritos necessários – trezentos ou quatrocentos – com a sede do juízo, o gabinete do promotor, a delegacia de polícia e locais adequados para trinta ou quarenta réus, onde o cumprimento da pena seria diretamente fiscalizado e a prisão provisória imposta com critério e dentro das atuais permissões legais?

Os procedimentos em juízo, na área criminal, não buscam a restauração da ordem social comprometida pelo delito, mas uma justiça formal que justifique a existência do sistema vigente, nos desfrutes de uma carreira que satisfaz as formalidades sociais e apenas isso. A estrutura biopsíquica daquele que infringe as regras formuladas pela minoria, no seu proveito, não interessa às medidas que, no final, se tomam para afastá-lo, mas apenas o fato delituoso, cuja gravidade depende, para sua qualificação, do maior ou menor alarma determinado em um dado local e em um dado momento.

Semelhante situação decorre, de um lado, de uma legislação que busca a sedimentação dos privilégios das classes mais altas e da sujeição das camadas populares. Os códigos penal, civil, comercial e tributário evidenciam esse estado de coisas. Mas, de outro lado, os defeitos de estrutura concorrem, por igual, para o agravamento da questão que, em última análise, deságua na falta de Justiça.

Os juizes de direito e os promotores públicos são recrutados mediante concursos de títulos e provas e são enviados para comarcas com as quais não têm qualquer vínculo. Acresce que não chegam a radicar-se a elas, passando das de menor significação para as mais importantes, no afã, tão-somente, de subirem, o mais rapidamente possível, aos postos mais altos na Procuradoria da Justiça e nos Tribunais de Alçada ou de Justiça.

Ora, a distribuição da Justiça não pode ser considerada uma atividade desligada da vida, resumindo-se na formalidade dos julgamentos em que, no Juízo Penal, o réu é o grande desconhecido, limitando-se os magistrados a confirmar em sentença o que a polícia, no seu despreparo e corrupção, concluiu a respeito do fato delituoso e de seu agente.

Descentralizar a organização judiciária

Desgarrada da realidade, desconhecendo a pessoa do réu na imposição da pena, a Justiça concorre, sem dúvida, e de maneira bastante eficaz, para o descalabro que é o nosso regime carcerário. Este não tem, na verdade, outro compromisso que não seja o de confinar os julgados indesejáveis, sem propostas válidas de recuperação, transformados os presídios em meros depósitos de pessoas, onde a tônica é a violência e a corrupção. Como se vê, o quadro existente não pode ser mantido numa sociedade que pretende transformar-se e encontrar seus próprios caminhos.

Os juizes de direito e promotores públicos não podem desconhecer as peculiaridades dos locais onde exercem suas atividades. Se não é possível regionalizar os concursos, o que é discutível, é imprescindível que se ponha termo ao sistema vigente de promoções de comarca a comarca e de instância a instância, mantendo-se os administradores da Justiça nas suas comarcas e na mesma região, organizando-se as carreiras, segundo critérios de aperfeiçoamento que aproveitem o servidor sem deslocamentos físicos, como agora acontece.

Na verdade, a organização judiciária para ser mais estável precisa, ademais, ser descentralizada nos grandes centros. Fala-se, a propósito, em juízos rápidos para os pequenos delitos e causas de pequeno valor. Mas essa é uma maneira desajeitada de se enfrentar o problema. A distinção entre pequenas e grandes causas, em qualquer campo que se considere, é meramente arbitrária e tem em vista, tão-somente, os valores de uma sociedade que se pretende elitista.

A descentralização da Justiça deve abranger todas as causas, dis-tribuindo-se por todo o território dos grandes centros, em quantos distritos necessários, que reuniriam, num mesmo edifício, como se salientou, a sede do juízo, o gabinete do promotor, a delegacia de polícia e locais adequados para a detenção e o cumprimento da pena até certo limite de tempo.

Dessa maneira, estabelecer-se-ia um eficiente sistema de fiscalização das atividades policiais e o cumprimento da pena passaria a ter o acompanhamento daquele que a impôs, buscando compromissar a comunidade na ressocialização do delinqüente.

Com isso, esvaziar-se-iam as grandes prisões, e o tratamento penal, com a assistência próxima da família e da comunidade, não seria apenas um ideal nunca alcançado, mas algo de concreto, tornando possível uma política mais adequada na imposição da chamada pena sem prisão.

Em remate, não é com medidas como aquelas que se anunciam e que têm na instituição da "prisão cautelar" uma de suas expressões práticas de maior alcance, que iremos vencer a guerra do crime dos pequenos e da corrupção – que não se chama crime – dos grandes.

O que é preciso é conscientizar o povo, para que ele se organize e passe a fazer parte da sociedade brasileira, impondo uma nova dimensão à luta contra a violência, para a construção de uma nação onde a paz seja o fruto de uma justiça que se alicerce nesse mesmo povo, a quem ela deve servir.

Se tivermos um policiamento ostensivo e permanente, organizado racionalmente; se tivermos uma polícia hábil nas atividades de investigação; se tivermos um Ministério Público presente e um Poder Judiciário atuante, durante o processo e depois na execução penal, não tenhamos dúvida, não iremos apelar para a violência e teremos assegurado aquilo que o povo quer, antes de segurança, o seu direito à vida, que quer dizer vida digna.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1984
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