Acessibilidade / Reportar erro

Rara e complexa: lições de uma coorte de pacientes com Síndrome Hemolítica Urêmica Atípica

Neste exemplar do Jornal Brasileiro de Nefrologia, Maximiano et al. (2021)11 Maximiano C, Silva A, Duro I, Branco T, Correia-Costa L, Teixeira A, et al. Genetic atypical hemolytic-uremic syndrome in children: a tertiary center 20 years' experience. Braz. J. Nephrol. 2021. [Epub ahead of print]. no artigo intitulado "Síndrome hemolítica urêmica atípica genética em crianças: uma experiência de 20 anos a partir de um centro terciário" descrevem cinco pacientes pediátricos com Síndrome Hemolítica Urêmica Atípica (SHUa) e achados genéticos positivos ao longo de um período de 20 anos na cidade do Porto, Portugal. Todos eles apresentaram a primeira manifestação antes dos dois anos de idade e tiveram remissão completa com plasmaférese (n=4) ou medidas de suporte (n=1). Dois pacientes tiveram recidivas frequentes, um dos quais progrediu para Doença Renal Crônica (DRC) e Hipertensão Arterial Sistêmica.

O pequeno número de pacientes é um achado comum em estudos de doenças raras e justifica a criação de registros regionais, nacionais e até mesmo globais. Embora o trabalho se concentre em casos pediátricos, é importante reconhecer que a SHUa também pode se iniciar na idade adulta22 Palma LMPE, George R, Dantas GC, Tino MKS, Holanda MI. Atypical hemolytic uremic syndrome in Brazil: clinical presentation, genetic findings and outcomes of a case series in adults and children treated with eculizumab. Clin Kidney J. 2020 Jun;14(4):1126-35..

A primeira associação entre a SHUa e o defeito da via alternativa do complemento foi descrita em 198133 Thompson RA, Winterborn MH. Hypocomplementaemia due to a genetic deficiency of beta 1H globulin. Clin Exp Immunol. 1981 Oct;46(1):110-9. em irmãos com SHUa, filhos de pais consanguíneos, que apresentavam níveis sanguíneos reduzidos do Fator H do Complemento (FHC). Duas décadas depois, a equipe liderada por Goodship et al. (1998)44 Goodship TH, Warwicker P, Donne RL, Pirson Y, Nicholls A, Ward RM, et al. Genetic studies into inherited and sporadic hemolytic uremic syndrome. Kidney Int. 1998 Apr;53(4):836-44., revelou a associação entre a SHUa e o cromossomo 1q32, que contém os genes para proteínas reguladoras. Nos anos seguintes, foram encontrados defeitos em outros componentes de reguladores da via alternativa do complemento, como mutações de perda de função em Fator I e Proteína Cofatora de Membrana e mutações de ganho de função em componente C3 e Fator B. Os auto anticorpos contra o fator H (AAFH) também estão associados à SHUa, tipicamente em crianças com deleção homozigota para o gene CFHR1, um membro da família da Proteína 1 relacionada ao Fator H. A presença da deleção deste alelo varia ao redor do mundo, desde uma frequência alta de mais de 50% na Nigéria até muito rara na América do Sul e Japão. O mecanismo pelo qual uma deleção em CFHR1 leva à formação dos autoanticorpos é complexo e ainda não totalmente compreendido55 Bhattacharjee A, Reuter S, Trojnar E, Kolodziejczyk R, Seeberger H, Hyvärinen S, et al. The major autoantibody epitope on factor H in atypical hemolytic uremic syndrome is structurally different from its homologous site in factor H-related protein 1, supporting a novel model for induction of autoimmunity in this disease. J Biol Chem. 2015 Apr;290(15):9500-10..

Na coorte descrita por Maximiano et al., duas crianças apresentaram-se com variantes do gene que codifica Fator H. Outros dois pacientes apresentaram deleções nos genes da Proteína 3 e Proteína 1 relacionadas ao Fator H (CFHR3/1) e geralmente são consideradas Variantes de Significado Incerto. Desde 2015, a determinação de patogenicidade de variantes identificadas segue as diretrizes do Colégio Americano de Genética Médica e Genômica (ACMG, do inglês American College of Medical Genetics and Genomics)66 Richards S, Aziz N, Bale S, Bick D, Das S, Gastier-Foster J, et al. Standards and guidelines for the interpretation of sequence variants: a joint consensus recommendation of the American College of Medical Genetics and Genomics and the Association for Molecular Pathology. Genet Med. 2015 May;17(5):405-24.. A classificação precisa é fundamental para o cuidado clínico e continua a ser um dos principais desafios atuais. Como tal, os testes são mais bem realizados em laboratórios com conhecimento especializado em genética do complemento. Como estas informações não estão disponíveis no artigo mencionado, podemos inferir a partir das variantes genéticas descritas na tabela 2 que apenas dois pacientes apresentaram variantes patogênicas no Fator H, embora em heterozigose. Dados do Registro Global de SHUa77 Schaefer F, Ardissino G, Ariceta G, Fakhouri F, Scully M, Isbel N, et al. Clinical and genetic predictors of atypical hemolytic uremic syndrome phenotype and outcome. Kidney Int. 2018 Aug;94(2):408-18., com mais de 800 pacientes, confirmaram que os adultos têm pior desfecho renal do que crianças, assim como pacientes portadores de variantes patogênicas do Fator H.

Genes que não pertencem ao sistema complemento como MMACHC (acidúria metilmalónica com homocistinúria tipo cblC), INF2 (formina invertida 2), e DGKE em homozigose (diacilglicerol epsilon) têm sido associados à SHUa. Um paciente desta coorte portuguesa apresentou uma mutação homozigótica no DGKe, além de uma variante no CFHR3, cuja patogenicidade não foi descrita.

À luz da penetrância genética incompleta (estimada em 50%), a hipótese atual é que o desenvolvimento de SHUa requer "dois golpes", que é uma combinação de antecedentes genéticos e um gatilho, mais comumente uma infecção (como observado no artigo supracitado), com potenciais implicações de manejo. Um dos principais desafios é diferenciar a SHUa desmascarada por um gatilho de causas secundárias de Microangiopatia Trombótica (MAT) - aquelas em que a causa subjacente tem um papel direto no dano endotelial. Em uma revisão recente88 Palma LMP, Sridharan M, Sethi S. Complement in secondary thrombotic microangiopathy. Kidney Int Rep. 2021 Jan;6(1):11-23., a gravidade e a extensão das anormalidades genéticas do complemento na MAT secundária mostraram ser variáveis. A hipertensão maligna e a MAT associada à gravidez têm maior probabilidade de estar associadas às anormalidades genéticas do complemento e parecem semelhantes àquelas na SHUa, enquanto as doenças autoimunes e a MAT associada a medicamentos têm menor probabilidade de apresentar anormalidades genéticas do complemento. Os defeitos genéticos do complemento na MAT associada à infecção são variáveis, e as infecções podem desencadear SHUa. O uso precoce de inibição do complemento em pacientes com MAT secundária refratária à terapia tradicional pode ser considerado desde que haja disfunção orgânica significativa.

Na coorte descrita por Maximiano et al., a remissão completa foi alcançada em todos os pacientes: em quatro pacientes após a plasmaférese e em um paciente após medidas de apoio. Apenas um paciente precisou de diálise transitória (que apresentava variante no gene C3). Recidivas ocorreram em dois pacientes: um paciente com variante no Fator H e um paciente com mutação no gene DGKe - este último evoluiu com Hipertensão Arterial Sistêmica e Doença Renal Crônica apesar da terapia com plasma crônica, revelando um desfecho inexorável devido a mecanismos fisiopatológicos ainda desconhecidos99 Holanda MI, Gomes CP, Araujo SA, Wanderley DC, Eick RG, Dantas GC, et al. Diacylglycerol kinase epsilon nephropathy: late diagnosis and therapeutic implications. Clin Kidney J. 2019 Oct;12(5):641-4.. Nenhum paciente recebeu um inibidor do complemento e o fato de que a remissão foi obtida com plasmaférese ou medidas de apoio pode ser atribuído tanto à pequena coorte quanto à falta de patogenicidade comprovada das variantes genéticas. É importante ressaltar que as diretrizes sugerem o eculizumabe como tratamento de primeira linha1010 Loirat C, Fakhouri F, Ariceta G, Besbas N, Bitzan M, Bjerre A, et al. An international consensus approach to the management of atypical hemolytic uremic syndrome in children. Pediatr Nephrol. 2016 Jan;31(1):15-39. em crianças com SHUa altamente suspeita. No entanto, uma vez que este medicamento não está disponível em todo o mundo, as medidas de apoio e a plasmaférese podem salvar vidas, embora menos eficazes para salvar os rins.

Seria importante comparar esses desfechos com uma população mais ampla de pacientes com SHUa e ficou claro que os registros locais e regionais são fundamentais para lançar luz sobre o histórico genético e os desfechos desta doença. Este artigo traz uma grande contribuição para questões ainda não resolvidas na SHUa: como um diagnóstico preciso pode ser feito e como melhor adaptar a abordagem terapêutica.

References

  • 1
    Maximiano C, Silva A, Duro I, Branco T, Correia-Costa L, Teixeira A, et al. Genetic atypical hemolytic-uremic syndrome in children: a tertiary center 20 years' experience. Braz. J. Nephrol. 2021. [Epub ahead of print].
  • 2
    Palma LMPE, George R, Dantas GC, Tino MKS, Holanda MI. Atypical hemolytic uremic syndrome in Brazil: clinical presentation, genetic findings and outcomes of a case series in adults and children treated with eculizumab. Clin Kidney J. 2020 Jun;14(4):1126-35.
  • 3
    Thompson RA, Winterborn MH. Hypocomplementaemia due to a genetic deficiency of beta 1H globulin. Clin Exp Immunol. 1981 Oct;46(1):110-9.
  • 4
    Goodship TH, Warwicker P, Donne RL, Pirson Y, Nicholls A, Ward RM, et al. Genetic studies into inherited and sporadic hemolytic uremic syndrome. Kidney Int. 1998 Apr;53(4):836-44.
  • 5
    Bhattacharjee A, Reuter S, Trojnar E, Kolodziejczyk R, Seeberger H, Hyvärinen S, et al. The major autoantibody epitope on factor H in atypical hemolytic uremic syndrome is structurally different from its homologous site in factor H-related protein 1, supporting a novel model for induction of autoimmunity in this disease. J Biol Chem. 2015 Apr;290(15):9500-10.
  • 6
    Richards S, Aziz N, Bale S, Bick D, Das S, Gastier-Foster J, et al. Standards and guidelines for the interpretation of sequence variants: a joint consensus recommendation of the American College of Medical Genetics and Genomics and the Association for Molecular Pathology. Genet Med. 2015 May;17(5):405-24.
  • 7
    Schaefer F, Ardissino G, Ariceta G, Fakhouri F, Scully M, Isbel N, et al. Clinical and genetic predictors of atypical hemolytic uremic syndrome phenotype and outcome. Kidney Int. 2018 Aug;94(2):408-18.
  • 8
    Palma LMP, Sridharan M, Sethi S. Complement in secondary thrombotic microangiopathy. Kidney Int Rep. 2021 Jan;6(1):11-23.
  • 9
    Holanda MI, Gomes CP, Araujo SA, Wanderley DC, Eick RG, Dantas GC, et al. Diacylglycerol kinase epsilon nephropathy: late diagnosis and therapeutic implications. Clin Kidney J. 2019 Oct;12(5):641-4.
  • 10
    Loirat C, Fakhouri F, Ariceta G, Besbas N, Bitzan M, Bjerre A, et al. An international consensus approach to the management of atypical hemolytic uremic syndrome in children. Pediatr Nephrol. 2016 Jan;31(1):15-39.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Mar 2021
  • Aceito
    16 Mar 2021
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com