Vitamina D e doença renal crônica: uma relação complicada

Nos últimos anos, a vitamina D ganhou o status de um multi-hormônio com funções muito além de suas ações calciotrópicas. Vários estudos experimentais e clínicos têm relatado que a vitamina D pode desempenhar um papel na função endotelial e no sistema imunológico. Além disso, a deficiência de vitamina D tem sido associada a uma ampla variedade de doenças agudas e crônicas, como doenças infecciosas, autoimunes e cardiovasculares, acidente vascular cerebral, diabetes tipo 2 e outras¹. No contexto da doença renal crônica (DRC), é reconhecido que a deficiência de vitamina D é altamente prevalente e tem sido associada à hipertrofia ventricular esquerda e aumento da mortalidade, independentemente da calcificação vascular e rigidez^2,3. Além disso, a hipovitaminose D em pacientes em hemodiálise tem sido associada a um aumento do número de monócitos intermediários circulantes e diminuição dos monócitos clássicos, sugerindo que os baixos níveis de vitamina D podem contribuir para o perfil inflamatório encontrado nesses pacientes, modulando o subtipo da população de monócitos⁴.

No estudo publicado nesta edição da JBN, Matsumoto et al. investigaram a associação entre deficiência de 25-hidroxivitamina D e estresse inflamatório e oxidativo em uma coorte de pacientes com DRC pré-diálise⁵. O estudo incluiu 206 pacientes com DRC pré-diálise que não estavam usando suplementação de vitamina D. Foram medidos um grande número de biomarcadores de estresse inflamatório e oxidativo, como interleucina (IL)-6, adiponectina, F2-isoprostano, produtos da oxidação avançada de proteínas (AOPP), proteína C reativa ultra sensível (hs-PCR). A prevalência de deficiência de vitamina D, definida como níveis séricos de 25(OH)-vitamina D abaixo de 20 ng/mL, na população do estudo foi de 27% (55/204) e foi inversamente correlacionada com a função renal. As análises multivariadas não puderam demonstrar qualquer efeito significativo da vitamina D sobre os níveis de biomarcadores de estresse oxidativo e inflamatório⁵. Ao contrário, os estágios da DRC foram correlacionados com o estresse oxidativo. Os autores concluíram que a deficiência de vitamina D pode não desempenhar um papel no aumento do estado de estresse oxidativo, comumente visto em pacientes com DRC pré-diálise⁵.

O achado de Matsumoto et al. adiciona novo combustível ao debate sobre o papel da vitamina D em contribuir para o ambiente inflamatório relacionado à DRC. Na verdade, a uremia é caracterizada pelo acúmulo de uma miríade de toxinas urêmicas e desarranjos metabólicos que podem induzir inflamação e estresse oxidativo. Portanto, seria de se esperar que (i) a superioridade de um marcador, neste caso os níveis séricos de vitamina D, sobre os outros não pudesse ser demonstrada, e que (ii) a função renal, como um marcador global de uremia, explicaria os maiores níveis de biomarcadores de estresse oxidativo e inflamatório observados nesses pacientes. Porém, o pequeno tamanho da amostra, apontado como limitação do estudo pelos autores⁵, pode ter impedido uma análise estatística mais robusta.

Além disso, apesar das evidências crescentes baseadas em estudos experimentais e observacionais das ações pleiotrópicas da vitamina D, não tem sido uma tarefa fácil provar que a suplementação de vitamina D pode ter efeitos benéficos per se. Em um grande estudo randomizado controlado por placebo, a suplementação com vitamina D em uma dose diária de 2.000 UI junto com ácidos graxos ômega-3 não foi capaz de reduzir o risco de eventos cardiovasculares entre homens com 50 anos de idade ou mais e mulheres com 55 anos de idade ou mais⁶. Nosso grupo investigou o papel da suplementação de vitamina D (colecalciferol) no perfil inflamatório de pacientes com DRC com hipovitaminose D em hemodiálise. Apesar de o colecalciferol apresentar efeitos anti-inflamatórios in vitro, a suplementação por 6 meses restaurou os níveis de vitamina D, mas não foi eficaz na melhora do perfil inflamatório, medido por IL-1β e hs-PCR, no ambiente clínico (dados pessoais). Por outro lado, outros autores relataram um papel benéfico da vitamina D na inflamação e hipertrofia ventricular esquerda em pacientes com DRC⁷.

As ações da vitamina D além do metabolismo mineral são inegáveis. No entanto, a uremia afeta negativamente as funções do organismo por meio de uma infinidade de fatores, como anemia, acúmulo de toxinas urêmicas, hipervolemia, entre outros. Portanto, não encontrar uma associação entre os níveis de vitamina D e biomarcadores de inflamação e estresse oxidativo não é necessariamente uma prova de que a vitamina D não desempenhe um papel nessas vias. Acima de tudo, o estudo de Matsumoto et al. nos alerta para a complexidade da doença renal crônica e, de uma forma mais ampla, para a importância da preservação da função renal.

References

• ¹
  Souberbielle JC, Body JJ, Lappe JM, Plebani M, Shoenfeld Y, Wang TJ, et al. Vitamin D and musculoskeletal health, cardiovascular disease, autoimmunity and cancer: recommendations for clinical practice. Autoimmun Rev. 2010 Sep;9(11):709-15.
• ²
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• ³
  Bucharles S, Barberato SH, Stinghen AE, Gruber B, Meister H, Mehl A, et al. Hypovitaminosis D is associated with systemic inflammation and concentric myocardial geometric pattern in hemodialysis patients with low iPTH levels. Nephron Clin Pract. 2011;118(4):c384-91.
• ⁴
  Almeida ACSF, Siqueira MC, Bonan NB, Dambiski A, Bertuzzo G, Moreno-Amaral AN, et al. Vitamin D levels reverberate in monocytes modulation in hemodialysis patients. J Cell Physiol. 2019 Feb;234(9):16275-80.
• ⁵
  Matsumoto AK, Maes M, Michelin AP, Soares AE, Semeão LO, Godeny P, et al. Vitamin D deficiency is not associated with increased oxidative stress in chronic kidney disease pre-dialysis patients. Braz J Nephrol. 2020 May 11; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0156
  » https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0156
• ⁶
  Manson JAE, Cook NR, Lee IM, Christen W, Bassuk SS, Mora S, et al. Vitamin D supplements and prevention of cancer and cardiovascular disease. N Engl J Med. 2019 Jan;380(1):33-44.
• ⁷
  Bucharles S, Barberato SH, Stinghen AEM, Gruber B, Piekala L, Dambiski AC, et al. Impact of cholecalciferol treatment on biomarkers of inflammation and myocardial structure in hemodialysis patients without hyperparathyroidism. J Ren Nutr. 2012 Mar;22(2):284-91.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  30 Nov 2020
• Data do Fascículo
  Oct-Dec 2020

Histórico

• Recebido
  22 Set 2020
• Aceito
  28 Set 2020