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Encontrando significado na bioimpedância para pessoas em tratamento com hemodiálise

Em sua forma mais básica, a bioimpedância é uma tecnologia muito simples. Quando uma corrente alternada é aplicada em um tecido biológico, a impedância à corrente depende fortemente das características do tecido. Isso nos permite usar a impedância medida para obter informações sobre a composição corporal. No entanto, traduzir esse princípio fundamental em informações clinicamente significativas é menos simples. Uma falta de compreensão das suposições e incertezas associadas aos parâmetros medidos e pouca consideração sobre como incorporar os resultados na tomada de decisões clínicas fizeram com que, apesar de seu enorme potencial, a bioimpedância ainda não seja amplamente aceita como uma ferramenta de diagnóstico baseada em evidências na hemodiálise.

Então, o que um serviço de diálise precisa entender sobre bioimpedância? Para aqueles que interpretam os resultados, provavelmente é suficiente garantir que o teste seja aplicado dentro das rotinas de medição recomendadas para o dispositivo e uma via de decisão clínica adequada que reconheça a incerteza da medição. No entanto, para os envolvidos na obtenção e no desenvolvimento dessas vias, é necessário um entendimento maior.

Possivelmente, o mais importante seja a capacidade de navegar pelo número de dispositivos disponíveis e pelas variáveis geradas durante uma medição. Alguns dispositivos fornecem dados “brutos”, como o ângulo de fase (PhA, por sua sigla em inglês), que vêm diretamente da medição da impedância. A maioria dos dispositivos também informa parâmetros mais intuitivos do ponto de vista clínico, como a água extracelular (AEC), que são calculados a partir da impedância medida usando uma ou mais equações de predição. Essas equações empíricas são baseadas em medições de uma população de referência e sua validade depende de quão bem um indivíduo reflete as características da população de referência. Portanto, é importante que o usuário conheça as características da população de referência e tenha mais cuidado se ela for menos representativa dos indivíduos que estão sendo avaliados.

Também é essencial entender a importância dos modelos de composição corporal usados para gerar informações clinicamente significativas a partir de variáveis básicas, como a AEC. Na hemodiálise, a bioimpedância é mais comumente utilizada para monitorar o estado nutricional e o estado hídrico. Infelizmente, o modelo de dois compartimentos (massa gorda (MG) e massa livre de gordura (MLG)), que sustenta a maioria dos dispositivos de bioimpedância, não consegue distinguir a sobrecarga de fluidos da MLG. Isso dificulta a diferenciação entre perda de massa muscular e acúmulo de fluidos, ambos altamente prevalentes nessa população.

Nesta edição, Zeni et al.11 Zeni C, Meinerz G, Kist R, Gottschall CBA, Jorge BB, Goldani JC, et al. Bioimpedanciometry in nutritional and hydration assessments in a single dialysis center. Braz J Nephrol. 2022. Ahead of print. doi: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2022-0037en
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relatam um estudo observacional prospectivo que avalia a bioimpedância para avaliação do estado nutricional e volêmico em uma coorte de centro único no Brasil. O estudo demonstra claramente as questões levantadas acima. Primeiro, é relatada uma ampla gama de variáveis, incluindo dados bioelétricos “brutos” (PhA) e parâmetros derivados, como volumes de água extra e intracelular (AEC e AIC). As preocupações sobre a população utilizada para gerar as equações de predição são corretamente destacadas, embora preocupações análogas se apliquem às populações utilizadas para gerar valores “normais” para parâmetros brutos, como o PhA. Os autores abordam preocupações sobre as faixas normais, sugerindo um foco em alterações longitudinais nas medições como a melhor maneira de obter informações clinicamente relevantes para apoiar o atendimento clínico.

O impacto do uso de modelos de composição corporal que pressupõem euvolemia é claramente demonstrado pela medição das alterações no estado hídrico e nos parâmetros nutricionais entre pré e pós-HD. A AIC permanece estável após a ultrafiltração, enquanto a AEC e a água corporal total (ACT) são reduzidas e o ângulo de fase (PhA) aumenta, destacando a dependência do PhA em relação ao estado hídrico e nutricional. As análises estratificadas por idade demonstram o impacto da perda de tecido magro relacionada à idade nos parâmetros derivados da bioimpedância, como AEC/ACT. Os autores demonstram claramente que AEC/ACT e PhA estão associados à mortalidade, mas, para que seja possível intervir, o efeito da idade, tecido de massa magra, desnutrição e obesidade devem ser desvendados.

Quais são as implicações dessas observações na prática? Clinicamente, parece prudente integrar o uso da bioimpedância à avaliação clínica, permitindo uma avaliação holística do estado nutricional e hídrico, em vez de fornecer uma meta simples aplicável a todos os pacientes22 Scotland G, Cruickshank M, Jacobsen E, Cooper D, Fraser C, Shimonovich M, et al. Multiple-frequency bioimpedance devices for fluid management in people with chronic kidney disease receiving dialysis: a systematic review and economic evaluation. Health Technol Assess. 2018;22(1):1–138. doi: http://dx.doi.org/10.3310/hta22010. PubMed PMID: 29298736.
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,33 Tabinor M, Davies SJ. The use of bioimpedance spectroscopy to guide fluid management in patients receiving dialysis. Curr Opin Nephrol Hypertens. 2018;27(6):406–12. doi: http://dx.doi.org/10.1097/MNH.0000000000000445. PubMed PMID: 30063488.
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(Figura 1). Interpretar uma redução de PhA ou um aumento da relação AEC/ACT como resultado de excesso de fluido sem considerar possíveis alterações nutricionais pode levar a uma ultrafiltração excessiva, perda de função renal residual e outras sequelas de hipoperfusão de orgãos-alvo44 Ravi KS. High ultrafiltration rates and mortality in hemodialysis patients: current evidence and future steps. Kidney360. 2022 Aug 25;3(8):1293–1295. doi: http://dx.doi.org/10.34067/KID.0003402022. PubMed PMID: 36176654.
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. O uso de ferramentas de apoio à decisão clínica, como a ferramenta Recova® 55 Stenberg J, Lindberg M, Furuland H. Implementation of a decision aid for recognition and correction of volume alterations (Recova®) in haemodialysis patients. Ups J Med Sci. 2020;125(4):281–92. doi: http://dx.doi.org/10.1080/03009734.2020.1804495. PubMed PMID: 32852250.
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, pode facilitar a interpretação da bioimpedância em conjunto com variáveis clínicas importantes, como idade, estado nutricional, baixo peso ou sobrepeso e inflamação.

Figura 1
Resumo dos principais fatores que afetam a medição e a interpretação da bioimpedância no ambiente clínico. LTM: tecido de massa magra; MLG: massa livre de gordura; 2C: dois compartimentos.

Do ponto de vista da pesquisa, a bioimpedância tem enfrentado grandes dificuldades para melhorar desfechos graves em estudos intervencionais22 Scotland G, Cruickshank M, Jacobsen E, Cooper D, Fraser C, Shimonovich M, et al. Multiple-frequency bioimpedance devices for fluid management in people with chronic kidney disease receiving dialysis: a systematic review and economic evaluation. Health Technol Assess. 2018;22(1):1–138. doi: http://dx.doi.org/10.3310/hta22010. PubMed PMID: 29298736.
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, embora seja importante observar que a maneira como a bioimpedância é usada para apoiar a tomada de decisões clínicas varia muito entre os estudos. Seria prudente considerar cuidadosamente como avaliar o uso da bioimpedância como parte das vias de decisão clínica, uma aplicação que se enquadra na definição de uma intervenção complexa66 Davies SJ. The elusive promise of bioimpedance in fluid management of patients undergoing dialysis. Clin J Am Soc Nephrol. 2020;15(5):597–9. doi: http://dx.doi.org/10.2215/CJN.01770220. PubMed PMID: 32381550.
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. Apesar da falta de evidências, a bioimpedância está sendo amplamente utilizada na prática. Em determinados países, onde o uso da bioimpedância é especialmente prevalente, os pesquisadores devem considerar em que medida seria aceitável para os médicos e pacientes retirar o uso da tecnologia no braço controle de um estudo intervencionista.

Considerando as diferenças em dispositivos, parâmetros, modelos e aplicações, há desafios na geração de uma base de evidências coerente para apoiar a inclusão da bioimpedância nas diretrizes de prática clínica. Isso só deve reforçar a necessidade de compreender as limitações da tecnologia, a padronização de protocolos para a população em hemodiálise e os valores de referência relevantes para essa população, a fim de apoiar a tradução baseada em evidências para a prática77 Ward LC. Bioelectrical impedance analysis for body composition assessment: reflections on accuracy, clinical utility, and standardisation. Eur J Clin Nutr. 2019;73(2):194–9. doi: http://dx.doi.org/10.1038/s41430-018-0335-3. PubMed PMID: 30297760.
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.

REFERENCES

  • 1
    Zeni C, Meinerz G, Kist R, Gottschall CBA, Jorge BB, Goldani JC, et al. Bioimpedanciometry in nutritional and hydration assessments in a single dialysis center. Braz J Nephrol. 2022. Ahead of print. doi: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2022-0037en
    » https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2022-0037en
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2023
  • Aceito
    29 Jun 2023
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