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A Química e a Inovação em Saúde no Brasil

EDITORIAL

A Química e a Inovação em Saúde no Brasil

O Ano internacional da Química (AIQ) está sendo comemorado, em 2011, por muitos países em todo o mundo, dentre eles, o Brasil. No mês passado, conferências realizadas em Campinas e em São Paulo contaram com a presença de quatro ganhadores do Prêmio Nobel de Química, bem como de especialistas de renome internacional da comunidade química. Essas conferências, de nível internacional, atestam o crescimento científico do Brasil, que resultou da qualidade do ensino de química e da pesquisa e, também, do volume de investimento em futuros talentos de nível internacional. Uma iniciativa particularmente alvissareira é o programa Ciências sem Fronteiras,1 recentemente anunciado em Brasília e que está sendo implementado pela CAPES e CNPq. Milhares de bolsas de estudo estarão à disposição de jovens cientistas brasileiros para irem estudar no exterior. Além disso, há a intenção de atrair pesquisadores seniores estrangeiros para implantarem laboratórios no Brasil.

Embora as agências de financiamento tenham considerado cuidadosamente as condições futuras de emprego de cientistas qualificados, o AIQ 2011 oferece uma oportunidade para especular, em particular, sobre as perspectivas para as ciências químicas. A química oferece formação e treinamento excepcionais nos níveis de graduação e pós-graduação e muitos químicos desenvolvem carreiras de sucesso em campos tão diversos como o das finanças e o da política, por exemplo. Entretanto, quais são as perspectivas para os químicos que sonham em construir uma carreira como cientista? Os postos acadêmicos são limitados e a base industrial de P&D brasileira talvez não tenha capacidade para absorver os químicos na escala imaginada. Vou, então, me concentrar nas perspectivas para químicos no campo biomédico, no qual eles podem desempenhar papéis muito importantes, transformando as descobertas da biologia em fármacos inovadores que possam atender as necessidades médicas do Século XXI.

O Reino Unido tem um superávit de cerca de sete bilhões de dólares por ano na balança de pagamentos dos produtos farmacêuticos, enquanto o Brasil apresenta um significante déficit no setor, que vem crescendo nos últimos anos. A capacidade de produção de genéricos está um pouco abaixo da existente na China e na Índia, ao passo que a P&D de produtos básicos da indústria farmacêutica ainda não atingiu o nível de investimento de outros países. No entanto, o panorama externo está mudando rapidamente, com grandes indústrias farmacêuticas fechando centros de pesquisa e cortando drasticamente os orçamentos para P&D. Por exemplo, na época da fusão da Pfizer e Wyeth, o orçamento anual conjunto para pesquisa era superior a 11 bilhões de dólares, mas o investimento futuro será reduzido para seis a sete bilhões anuais. As consequências econômicas e pessoais do corte são óbvias. Por outro lado, poucos formadores de opinião parecem ter percebido que o fluxo de novos fármacos reduzir-se-á a tal ponto que não atenderá às necessidades médicas nas próximas décadas. Urge um novo e radical paradigma para a descoberta e desenvolvimento de fármacos que reconheça os riscos e as escalas de tempo envolvidas, mas também a necessidade do retorno sustentável para o investimento.

O Brasil tem uma oportunidade única para impulsionar essa iniciativa dado seu forte compromisso com a excelência química que transforma os novos conhecimentos da biologia em fármacos muito necessários. Moléculas pequenas e inovadoras serão essenciais para delinear a relevância de caminhos biológicos complexos até a doença humana, já que a validação apropriada dos alvos trará um benefício muito grande ao levar as pesquisas laboratoriais até o sucesso clínico. Num futuro próximo, as moléculas sintéticas ainda fornecerão os remédios orais, financeiramente viáveis, que são a base dos sistemas de saúde, apesar do sucesso clínico e comercial de algumas terapias biológicas. O espaço da química também deve ser significativamente expandido para atingir os inúmeros alvos de doenças que estão além dos padrões convencionais de fármacos. É bom lembrar que, dos 23.000 genes que compõem o genoma humano, apenas 266 foram modulados por fármacos existentes e uma extensa gama de alvos biológicos aguarda uma intervenção química inovadora.

A descoberta de fármacos se torna mais efetiva quando cientistas de alto nível, de disciplinas-chave como a biologia, a química e o metabolismo, se integram em equipes multidisciplinares com objetivos comuns na procura por novos fármacos. Obviamente, algumas atividades podem ser contratadas externamente, mas não há substituição para a nucleação de equipes, nas quais a disputa e o debate científico informais sejam parte da rotina de pesquisa diária. A falta de integração entre a biologia e a química está bem ilustrada na pesquisa pioneira de Silva e Ferreira sobre venenos de cobra em Ribeirão Preto, que levou à identificação da enzima de conversão da angiotensina (ACE), mas foram os químicos medicinais americanos que transformaram a descoberta deles nos inibidores de ACE e antagonistas do A2, que alcançaram um sucesso clínico e comercial fantástico.2

Uma estratégia para o desenvolvimento da indústria farmacêutica brasileira seria trazer cientistas industriais experientes para centros biomédicos, criando novas cadeiras de química medicinal, com boa infraestrutura, para facilitar a transformação da biologia básica em novos fármacos. Isso poderia servir de patamar para a criação de uma rede de Centros de Excelência Terapêutica, na qual as equipes multidisciplinares trabalhariam em conjunto com doenças de alta demanda médica e na qual a formação e treinamento de futuros descobridores de fármacos poderiam se efetivar. O valor de cientistas farmacêuticos experientes não deve ser subestimado e a recente redução da indústria farmacêutica britânica pode se constituir em uma oportunidade única para que químicos medicinais com histórico comprovado possam contribuir com o desenvolvimento da capacidade de descoberta de fármacos de nível internacional no Brasil. O programa Ciências sem Fronteiras também é um caminho para que estudantes se especializem no exterior e para que cientistas estrangeiros venham implantar projetos de pesquisa relevantes no Brasil. O bem-sucedido programa CNPq-NAS, dos anos 70, poderia abarcar um modelo adicional envolvendo cientistas experientes do Reino Unido e de outros países. Além de um recorde fantástico de inovação farmacêutica, a comunidade científica britânica inclui centros de nível internacional, como o Consórcio de Genômica Estrutural, a Base de Dados Cristalográficos Cambridge e o Laboratório Europeu de Bioinformática, assim como inúmeras equipes acadêmicas altamente especializadas na síntese e descoberta de fármacos.

A definição das áreas terapêuticas a serem estudadas é um assunto complexo, mas as doenças negligenciadas sempre vêm à mente. Entretanto, flagelos tradicionais como a doença de Chagas e a esquistossomose, com certeza, diminuirão, à medida que a higiene e as condições sociais continuarem a melhorar; a malária está relativamente bem servida com o investimento significativo da Fundação Gates na ONG Medicamentos contra Malária.3 A tuberculose também está recebendo a atenção devida, embora o progresso tenha sido limitado pela insuficiência de alvos e pela dificuldade de as moléculas dos fármacos penetrarem a micobactéria. Por outro lado, as três causas principais de morte no mundo ainda são as doenças cardiovasculares, cerebrovasculares e as de obstrução pulmonar crônicas; a obesidade e a diabetes estão atingindo proporções epidêmicas. No entanto, a indústria farmacêutica está dando as costas para algumas dessas sérias condições, mesmo que novos fármacos, financeiramente viáveis, sejam urgentemente necessários, à medida que a população vai envelhecendo e traz novas demandas para tratamentos adequados para as doenças de Alzheimer e Parkinson e outros distúrbios neurológicos. Fármacos inovadores, que respondam a essas demandas médicas de alta prioridade, trarão benefícios pessoais, econômicos e sociais significativos.

O desenvolvimento e a descoberta de fármacos são grandes desafios, mas o fim da indústria farmacêutica tradicional exige um paradigma novo e radical, se quisermos aumentar a expectativa de vida das comunidades mais vulneráveis e melhorar a qualidade de vida de um modo global. Este editorial oferece uma perspectiva pessoal da situação atual e das possibilidades futuras, sugerindo que a sinergia entre as ambições do Brasil e a experiência acadêmico-industrial do Reino Unido pode oferecer um caminho excepcional e mutuamente benéfico.

Simon F. Campbell, Kingsdown, UK

Químico Chefe aposentado do Laboratório WW Discovery, Pfizer

Presidente da RSC - Royal Society of Chemistry 2004-2006

<campbellsimon@btopenworld.com>

Referências

  • 1
    The "Ciência sem Fronteiras" program is an initiative of the Brazilian government sponsored by the National Council for Scientific and Technological Development (CNPq). It is an agency linked to the Ministry of Science and Tecnology (MCT), dedicated to the promotion of scientific and technological research and to the formation of human resources for research in the country. Available at: http://www.cienciasemfronteiras.cnpq.br/web/guest/oprograma
  • 2. Ferreira, S. H.; Rocha e Silva, M.; Experientia 1965, 21, 347. DOI: 10.1007/BF02144709. http://ukpmc.ac.uk/abstract/MED/5870517 With the permission of author Ferreira, S. H., the original article "Potentiation of bradykinin and eledoisin by BPF (bradykinin potentiating factor) from Bothrops jararaca venom (PMID:5870517)" is available under request.
  • 3
    The Medicines for Malaria Venture - MMV, a not-for-profit public-private partnership, was established as a foundation in Switzerland in 1999. Available at: http://www.mmv.org/
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2011
  • Data do Fascículo
    Out 2011
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