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O tempo presente como provocação

The presente time as provocation

Resenha de:1 PEREIRA, Mateus Henrique Faria. . Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Coleção História & historiografia, coordenação Eliana de Freitas Dutra.

Como não sentir além disso que uma reflexão histórica sobre o presente pode ajudar as gerações que crescem a combater a atemporalidade contemporânea, a medir o pleno efeito destas fontes originais, sonoras e em imagens, que as mídias fabricam, a relativizar o hino à novidade tão comum entoado a se desfazer desse imediatismo vivido que aprisiona a consciência histórica como a folha de plástico “protege” no congelador um alimento que não se consome? (RIOUX, 1999RIOUX, Jean-Pierre. Pode-se fazer uma história do presente? In: CHAUVEAU, A.; TÉTART, P. (org.). Questões para a história do presente. Tradução Ilka Stern Cohen. Bauru: EDUSC, 1999. p. 39-50., p. 46).

O fantasma de um Alzheimer coletivo percorre o presente fim de século. Todos estão/estamos ou parecem/parecemos estar atemorizados por uma perda de memória. (ACHUGAR, 2006ACHUGAR, Hugo. O lugar da memória: a propósito de monumentos (motivos e parênteses). In: Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Tradução de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 167-184., p. 168).

Umberto Eco (2017ECO, Umberto. Pape Satàn Aleppe: Crônica de uma sociedade líquida. São Paulo: Editora Record, 2017.) narra, em curta crônica, sua cobrança ao neto para que memorizasse um poema tradicional, sublinhando, ao mesmo tempo, sua “preocupação” com a memória e com o desenvolvimento de um pensamento histórico por parte do menino. Essa “preocupação” era decorrente de um episódio televisivo assistido no qual alguns jovens responderam perguntas de caráter histórico, alusivas a datas e fatos muito conhecidos da História europeia. A total falta de orientação expressa pelos participantes quanto à periodização daqueles fatos foi alvo de risadas do neto e de seus amigos.

Embora lhes parecesse engraçado, Eco, na sua fina capacidade de análise, remeteu-nos à dispersão da memória nos tempos de uma consolidada e ampla informação veiculada na “era da internet”. Para a geração do seu neto, o acesso fácil às informações parece ter uma desproporcionalidade quanto ao processamento e gerenciamento das informações (poderíamos citar Funes, o memorioso), mais ainda da capacidade crítica para tais procedimentos. Tudo isso nos remete ao lugar da memória e da História e suas questões fundamentais, afinal, esquecer ou desconhecer alguns episódios históricos não são operações fortuitas. Essas e outras questões fazem parte do caráter epistemológico da própria História.

No episódio narrado, a questão de maior repercussão para Eco parece ter sido o fato de aqueles jovens do tal programa televisivo, na primeira década do século XXI, e (todos) abaixo dos 30 anos, não saberem, nem de longe, a data da eleição de Hitler como chanceler. Entre as opções estavam 1933, 1948, 1964 e 1979. As equivocadas respostas que deixaram 1933 como última opção, por exclusão, apontariam a um “passado genérico”, ou a uma espécie de “achatamento do passado”. No que toca à temática relacionada ao evento, a falta de referência histórica pode indicar-nos ainda e, de forma preocupante, ausência de perspectiva crítica e preventiva contra as ideias totalitárias. Similares a esse programa, alguns outros aparecem em plataformas digitais, inclusive no Brasil, com perguntas de caráter histórico, com resultados análogos àquele narrado por Eco na crônica. Num dado programa noturno muito popular no Brasil, numa brincadeira de perguntas e respostas, ao ser questionada sobre quem proclamou a República, a participante imediatamente dispara: Lampião!

Mateus Pereira (2022PEREIRA, Mateus Henrique Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Coleção História & historiografia, coordenação Eliana de Freitas Dutra. ), professor do Departamento de História da UFOP, pesquisador da área de teoria e metodologia da História e autor de obras relacionadas ao Tempo presente e à memória do Brasil contemporâneo, afirma na sua mais recente publicação que há um alto índice de desconhecimento ou esquecimento relativo ao período da Ditadura Militar no Brasil. A obra intitulada Lembrança do presente discute, entre diversos prismas, aspectos relacionados à consciência histórica num mundo globalizado e imerso em recursos digitais. Apesar do caráter quase anedótico das circunstâncias e dos casos citados, é preciso considerar que nenhum esquecimento é fortuito. São parte consciente ou inconsciente do que pressupomos como necessidade ou contingência. Ao historiador cabe considerá-los como objetos históricos.

Evidentemente, esses casos não podem ser tomados como evidência por amostragem, mas nos provocam a pensar sobre o lugar da História e da memória, sobre o caráter do tempo e do tempo presente na construção das narrativas na atualidade, como definiu Mateus Pereira em seu livro sobre a “condição histórica na era da internet”. A obra desse historiador confirma a pertinência das modulações da memória e a operacionalização das lembranças e esquecimentos como questões prementes do nosso tempo e como provocações ao historiador. Ao analisar circunstâncias e contextos, o autor retoma duplo caráter de referência da nossa disciplina: o epistemológico e o metodológico (de ofício). Em primeiro lugar, é preciso salientar o valor dessa discussão proposta no Lembrança do presente quanto ao papel conceitual da História e quanto ao papel do historiador, que se defronta e ao mesmo tempo vivencia episódios, fatos, eventos, num tempo e num espaço. Logo na introdução, o autor sinaliza para tal perspectiva e pondera sobre os objetivos de sua proposição: “compreender melhor” imagens de um tempo vivido e observado no presente (e, portanto, atual?), analisar a “construção de imagens” e as “possibilidades de temporalização experimentadas em nosso tempo presente”, “(re)articular memória, ética, escrita da história e experiência do tempo, tomando a sério um dos principais acontecimentos da nossa época: a internet”, “compreender, explicar, descrever e interpretar deslocamentos de nossa compreensão do fenômeno e do enigma da memória, da história e do tempo”.

Robert Frank (1999FRANK, Robert. Questões para as fontes do presente. In: CHAUVEAU, A.; TÉTART, P. (org.). Questões para a história do presente. Tradução Ilka Stern Cohen. Bauru: EDUSC, 1999, p.103-117. ) aponta a importância dos esquecimentos como objeto de atenção:

os lapsos, esquecimentos, não-ditos, silêncios, esforços de ocultação são também objeto de história e devem ser analisados. [...] o silêncio não é esquecimento [...] O esquecimento não se reduz à ocultação. Na ocultação, encontramos uma vontade de esconder, de cobrir a fonte de luz para deixar na sombra um objeto que nem por isso é esquecido: pode haver essa vontade, mas pode haver também simplesmente recalcamento no inconsciente. Cabe ao historiador reconstituir esse trabalho da memória da testemunha. (FRANK, 1999FRANK, Robert. Questões para as fontes do presente. In: CHAUVEAU, A.; TÉTART, P. (org.). Questões para a história do presente. Tradução Ilka Stern Cohen. Bauru: EDUSC, 1999, p.103-117. , p. 113).

Tanto esquecimentos quanto ocultações são atividades de seleção e, portanto, constituem-se como parte de uma operação que se conforma a partir de um sistema de referências e que redundam em expressões de valorização, o que difere de considerar que, num processo de esquecimento, houve atribuição de desimportância ou de desvalorização. O ato de lembrar e esquecer pode sugerir, algumas vezes, sintomas de uma atribuição de valor que se precisou ocultar, deliberada ou inconscientemente. O mais significativo e problemático é que as memórias constituídas no processo de seleção conduzem, por vezes, ao negligenciamento de fontes ou de alguns temas. Portanto, considerar o esquecimento ou mesmo a ocultação como parte de um processo sintomaticamente mais amplo e complexo é imperativo ao historiador.

George Duby (1993DUBY, George. O Domingo de Bouvines. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1993.), ao eleger a construção da memória da batalha de Bouvines como objeto histórico, contribuiu para o entendimento de que nossos usos do passado constroem uma história “à parte”, a qual é a própria história da memória de um acontecimento, evento ou tema qualquer ao longo do tempo. Sua proposição abriu nossos olhos para compreender, num exercício de método, a importância do exame das fontes em seu contexto, quando contribuiu para percebermos as alterações correlativas aos interesses que configuram um verdadeiro “jogo de memória”.

Ao avaliar aquele domingo em que as “bases da monarquia francesa foram consolidadas” (DUBY, 1993DUBY, George. O Domingo de Bouvines. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1993., p. 9), Duby nos indica a importância da narrativa sobre um evento na construção de sua própria memória. Da análise do imediato à posteridade dos relatos e vestígios daquele domingo, surgem, para nós, a evocação de quanto é importante percebermos que a história como narrativa é sempre uma seleção e uma aspiração. Mesmo que moldada e reconfigurada, ela é sempre uma atribuição de sentidos. As deformações no tempo, seu apagamento e sua refundação são frutos dessas aspirações. O medievalista recuperou esses sentidos ao longo de um percurso, examinando fontes desde que ocorreu até centenas de anos posteriores, sem procurar as evidências do que “ocorreu de fato”, porque, para ele, o acontecimento só ressurge, na posteridade, porque é “fabricado” por parte daqueles que se interessaram por recontar-lhe. Nessa expressividade das lembranças, a sua tarefa era refazer não a história do acontecimento, mas a história de sua lembrança e de seu esquecimento ou até sutilmente de seu esgotamento como tal. Nesse sentido, a memória tornava-se objeto da história. Tal como o queira, mudam-se os contextos, alteram-se as aspirações, alteram-se as representações sobre um determinado evento.

A História, como se sabe, é, além de uma disciplina científica, também uma prática social (PROUST, 2009PROUST, Antoine. Doze lições sobre História. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2009. Coleção História e historiografia.); esferas que interagem e dialogam com o mundo na qual estão localizadas. Isso torna crucial as análises que provocam a produção histórica em todas as dimensões (produção acadêmica, pesquisa e sua dimensão pedagógica, sua divulgação).

A expressividade da obra e das reflexões de Mateus Pereira (2021PEREIRA, Mateus Henrique Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Coleção História & historiografia, coordenação Eliana de Freitas Dutra. ) expressam-se tanto na abordagem do tema quanto na relevância do papel e da atuação do autor/historiador. O autor não se eximiu, nesse exercício, de uma autoavaliação sobre seu papel e lugar, na interpretação dos objetos de suas “meditações”, asseverando:

Busco, desse modo, estabelecer relações entre a história vivida e a narrada, mediadas pelo meu olhar individual (homem branco, classe média, 43 anos, professor universitário) e também como membro de certas comunidades: profissional (historiador), regional (sudestino), e nacional (brasileiro), dentre outras. (PEREIRA, 2021PEREIRA, Mateus Henrique Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Coleção História & historiografia, coordenação Eliana de Freitas Dutra. , p. 15).

A obra de Mateus Pereira nos faz retomar uma reflexão de fundo. Embora sua atenção recaia sobre um tempo que é conceitualmente definido como “do imediato”, como da experiência do presente, sua análise nos conduz novamente às proposições do método histórico e às perspectivas propostas por Duby quanto à ideia da narrativa e da construção da memória.

Em que pesem as cenas, as imagens que dão ensejo aos ensaios ou como sublinhou, às suas meditações, Mateus Pereira (2021PEREIRA, Mateus Henrique Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Coleção História & historiografia, coordenação Eliana de Freitas Dutra. ) exercita aspectos do fazer historiográfico ao analisar de forma contundente a proposição de uma história da historiografia, apresentando o tempo presente como uma espécie de provocação. Utiliza, como parte de sua metodologia a análise teórica, sobretudo conceitual e a análise de imagens, cenas que representam sinais de um contexto (tempo e espaço).

No tempo presente, face ao atualismo e à urgência do tempo sob a qual vivemos, oscila-se entre a esperança da memória, como ordenadora de nossas identidades, a sua hiperinflação e, paradoxalmente, a negligência do passado. Contextualmente, o passado é disputado por representações que, claramente, tendem a moldá-lo, muitas vezes por interesses políticos e econômicos.

Andreas Huyssen (2000HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.), num trabalho muito conhecido, aponta para a hiperinflação da memória na cultura contemporânea, tentando compreendê-la em suas causas e em seus desdobramentos. Ao lado das “obsessões com a memória e com o passado”, estariam uma perspectiva traumática e o projeto de cunho político de culturas que, apesar de se manifestarem num mundo global, têm núcleos nacional e “não pós-nacional ou global”. Além desses aspectos analisados, estão outros elementos significativos, tais como as políticas midiáticas e as memórias comercializadas. Mas é sobretudo quando se reporta à relação da fabricação das memórias em sua relação com os esquecimentos que Huyssen (2000)HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. evoca um dos pontos mais elucidativos ao objeto de nossa análise que se coaduna com a obra de Mateus Pereira. Huyssen reafirma as considerações freudianas, para quem a memória e o esquecimento estão relacionados, ou melhor, para quem “a memória é também uma forma de esquecimento e que o esquecimento é uma forma de memória escondida” (HUYSSEN, 2000HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000., p. 18). Operacionalizando a perspectiva freudiana, há outro componente significativo: a necessidade de se avaliarem os elementos psíquicos (recordação, recalque e esquecimento) no interior das sociedades de consumo contemporâneas (HUYSSEN, 2000HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.). O consumo de memória, sua articulação no interior dessas, como fenômeno, não se restringiria, segundo essas análises, à sua importância, mas por colocarem em pauta o próprio esquecimento como medida de operação com o passado. Num paradoxo complexo, a necessidade de lembrar, de restituir o passado, de rememorar, constituiria parte de um processo intrínseco que poderia redundar no próprio apagamento das memórias. Um dos termos utilizados por Huyssen é o de “rememoração ativa”, sob o intrigante questionamento de que devemos refletir não só sobre a necessidade relativamente recente de dar visibilidade ao passado e instituir memórias, mas prestarmos atenção “aos nossos elos com o passado”, bem como “às formas de rememorar”. De toda forma, Huyssen (2000)HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. acaba por desvelar que um perigo ronda no ar, apesar da intensa atividade de recuperação do passado: o perigo de banalizá-lo, de potenciá-lo sob a pujança do apagamento de outros.

Com outros referenciais, a partir de outros objetos e numa análise aguçada sobre o tempo presente e a memória, o texto de Mateus abre inúmeros caminhos, sem a presunção de um viés conclusivo, mas propondo revisões conceituais, cruzando referenciais teóricos significativos, mas ainda de forma pungente, criativa e original, elaborando caminhos de reflexão madura sobre os acontecimentos do nosso tempo, sobre a historiografia atual e sobre o ofício do historiador e seu lugar no mundo como agente social.

A obra é dividida em quatro ensaios, distribuídos em análises realizadas sob o ensejo de uma imagem emblemática do tempo presente.

No primeiro capítulo, o autor elabora uma discussão historiográfica, convertendo e contextualizando conceitos tais como o tempo presente, a História, a historiografia e seus desdobramentos relativos a um mundo que utiliza a internet. Nesse capítulo, Mateus empreende um intenso diálogo com a História, seja no que toca aos seus referenciais conceituais, seja acerca do seu método como ciência e disciplina, seja acerca de seu lugar no mundo contemporâneo. A questão de cerne para o autor é compreender o “lugar da disciplina História em um tempo que flerta com uma história online” (PEREIRA, 2021PEREIRA, Mateus Henrique Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Coleção História & historiografia, coordenação Eliana de Freitas Dutra. , p. 20).

Dessa questão fundamental, outras questões pertinentes foram analisadas, como, por exemplo: “a escrita digital” e sua relação com a memória e o esquecimento; o conceito de passado (“o passado não passa”?), o conceito de futuro (como “fechamento e ameaça”) e o conceito moderno de História.

Conclamando a uma operacionalização conceitual menos dogmática, Mateus problematiza o uso do termo/conceito Tempo presente, tanto a ideia do que se tem entendido e difundido como tal, quanto suas alocações na historiografia recente sublinhando a necessidade de abordá-lo numa perspectiva mais plural e diversa, assim como a partir de um “engajamento mais ético e político”. O autor desdobra a análise conceitual para o ofício do historiador, correlacionando-o à sua dimensão “cívica, ética, política e social”, mas ainda direcionando-o à sua relação com o próprio presente, sugerindo, de forma contumaz, que é preciso alargar-se as noções de presente e passado, desnaturalizando-as, porque ambas precisam ser concebidas na sua polissemia inerente.

No segundo capítulo, a partir de um cartaz que evoca as manifestações de junho de 2013 no Brasil, correlacionadas à memória de eventos como a Ditadura Militar e os revisionismos atuais, o autor procura refletir sobre esquecimento e memória. Esses revisionismos, marcados por uma espécie de hiperinflação distorcida de eventos específicos, mobilizados por pouco ou nenhum método científico e muita projeção política, são analisados pelo autor que descortina aspectos necessários de uma história contemporânea marcada por uma “guerra de memória”. Esses movimentos, motivados por objetivos obscuros, de “matizes autoritárias”, redundam, segundo Mateus, em ressentimentos, ódios, extremismos, distorções do conhecimento histórico, e continuam impunes. Ao analisar as ideias de reparação e de perdão a partir de exemplos e tentativas políticas no presente, o autor alerta: “certamente, o melhor caminho para o Brasil, no atual momento, é transformarmos alguns tipos de negacionismo em crime, assim como a apologia ao autoritarismo, a violência e a tortura. Semelhante ao que fizemos com a criminalização da homofobia e do racismo” (PEREIRA, 2021PEREIRA, Mateus Henrique Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Coleção História & historiografia, coordenação Eliana de Freitas Dutra. , p. 52).

O terceiro capítulo analisa a internet como meio de escrita, difusão e discussão acerca do conhecimento histórico, sobretudo a partir da Wikipédia. Nessa plataforma de escrita, questões da era digital que nos remetem à História são amplamente problematizadas. Ideias de interpretação, opinião, inscrição e contínua sobrescrita são colocadas em xeque diante da necessidade de assentarmos de vez por todas a relevância indiscutível dos testemunhos e provas, das fontes e de um método capaz de driblar as distorções das opiniões em detrimento do estudo, da análise e de um fazer historiográfico. Nesse sentido, o autor evoca, ainda, os conceitos de diálogo e diagnóstico, tendo como princípio a ideia de uma escrita digital e de um meio irrevogável de conhecimento e difusão de pensamentos no presente. Diante desse fato, o autor coloca em perspectiva o “próprio conceito moderno de História, do historicismo e da forma como a historiografia foi produzida profissionalmente desde o século XIX” (PEREIRA, 2021PEREIRA, Mateus Henrique Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Coleção História & historiografia, coordenação Eliana de Freitas Dutra. , p. 22). A internet e o exemplo da escrita na Wikipédia e seus procedimentos de construção de base de dados são emblemáticos, segundo o autor, do contexto de um tempo em que a escrita da História e a memória são realocadas na construção e na reconstrução contínua que se perfazem no imediatismo e com vistas à produção constante de uma novidade. Coloca-se a autoridade do historiador em perigo? Segundo ele, a Wikipédia e a internet podem contribuir para a ampliação das maneiras de se construírem as narrativas, congregando curiosidade, informação, mas desde que comprometidas com “verdade factual, com a pluralidade, com a equidade, com a felicidade e com um mundo mais justo” (PEREIRA, 2021PEREIRA, Mateus Henrique Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Coleção História & historiografia, coordenação Eliana de Freitas Dutra. , p. 94).

O quarto capítulo analisa o conceito de atualismo, a ideia de transparência e a guerra de informações, tendo como mote a análise da “operação Lava Jato”. Partindo da hiperexposição ou da construção de uma narrativa política com vistas à exposição pública de um suposto caso de corrupção a ser “revelado”, o autor evoca a ideia de visibilidade em diálogo com a ideia da transparência na era da internet e sublinha a corrupção como “ideia mestra”, cujos efeitos produziram no Brasil uma crise política sem precedentes na história contemporânea. Problematizando, assim, a ideia de uma exposição pública, que se desdobraria e retroalimenta mecanismos de vigilância, o autor coloca proposições para a História e para a constituição de um espaço público, nesse momento pressionado pelo tempo da urgência, da exposição e da regulação. O conceito de “lembrança do presente”, de Bergson, conceito esse título da obra, é analisado no epílogo da obra com o objetivo, segundo afirma, de “construir possibilidades de quebra da atual desatenção à vida”.

O pedido de Humberto Eco ao neto para que memorizasse um poema tradicional, remete-nos aos objetivos de Mateus. Como todos nós historiadores diante de uma era digital, somos observadores imersos em um mundo social, atolados de informações, ansiosos por uma suposta urgência de novidades contínuas, buscando compreender e orientar-nos, sabedores da importância do presente na relação com o passado e na construção das memórias.

REFERÊNCIAS

  • ACHUGAR, Hugo. O lugar da memória: a propósito de monumentos (motivos e parênteses). In: Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Tradução de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 167-184.
  • DUBY, George. O Domingo de Bouvines São Paulo: Editora Paz e Terra, 1993.
  • ECO, Umberto. Pape Satàn Aleppe: Crônica de uma sociedade líquida. São Paulo: Editora Record, 2017.
  • FRANK, Robert. Questões para as fontes do presente. In: CHAUVEAU, A.; TÉTART, P. (org.). Questões para a história do presente Tradução Ilka Stern Cohen. Bauru: EDUSC, 1999, p.103-117.
  • HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
  • PEREIRA, Mateus Henrique Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. Coleção História & historiografia, coordenação Eliana de Freitas Dutra.
  • PROUST, Antoine. Doze lições sobre História Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2009. Coleção História e historiografia.
  • RIOUX, Jean-Pierre. Pode-se fazer uma história do presente? In: CHAUVEAU, A.; TÉTART, P. (org.). Questões para a história do presente Tradução Ilka Stern Cohen. Bauru: EDUSC, 1999. p. 39-50.
  • SALIBA, Elias Tomé. Na guinada subjetiva a memória tem futuro? In: ROCHA, Helenice; MAGALHAES, M.; GONTIJO, R. (org.). A escrita da história escolar Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2009. p. 51-63.
  • 1
    Agradeço a leitura e revisão do professor Luiz Antônio Prazeres.

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2022
  • Aceito
    07 Jul 2022
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