Acessibilidade / Reportar erro

A história como janela para o futuro: os 21 anos do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde

A história das ciências e a história da saúde e das doenças não são senão janelas distintas para aprofundar numa única e mesma história que é a história da cultura, da sociedade em que é possível ingressar por diferentes caminhos, mas sempre vai se chegar a um território que é o território das relações sociais, da história dessas relações e dos protagonistas dessa história de relações sociais, de sociedade ou, se quisermos, de cultura no seu sentido mais amplo (Margarida de Souza Neves).

A cena ficou gravada na memória, e, ao relembrá-la, transporto-me à Tenda da Ciência Virgínia Schall, espaço de realização de encontros e eventos que associam ciência, arte e divulgação científica. Revejo toda a audiência da aula inaugural do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS), de mãos dadas, sob a regência da professora Margarida de Souza Neves. Iniciava-se um novo curso na Fiocruz, de caráter disciplinar, mas, ao mesmo tempo, propondo, desde sua origem, o diálogo interdisciplinar e a capacidade de enfrentar os desafios contemporâneos. Sob o impacto do ataque ao World Trade Center, afirmávamos a urgência da paz, da equidade, do respeito às diferenças e de uma nova ordem global que pudesse garantir a saúde, a educação, a cultura e uma vida digna para todos os povos.

Ao celebrar os 21 anos do PPGHCS, da Casa de Oswaldo Cruz, constatamos que os desafios da origem se mantêm atuais e ainda mais necessários. Não se trata de entender a história como mestre da vida e procurar as lições do passado. Trata-se, sim, de afirmar a imprescindibilidade do ofício do historiador para que a sociedade amplie sua perspectiva de análise dos processos sociais. No caso do campo da história das ciências e da saúde são ainda insuficientemente avaliadas todas as ricas contribuições e convergências a partir de diferentes percursos intelectuais: caminhos cruzados entre as novas abordagens da história das ciências, especialmente a partir da década de 1980 (Kropf, Hochman, 2011), com ênfase nos processos, nos contextos de construção do conhecimento científico e na dimensão política desses processos, e as abordagens históricas com origem na medicina social, em diálogo, por sua vez, com diferentes vertentes, especialmente com as obras de George Rosen e Michel Foucault. Foram esses, ao lado das contribuições do campo das ciências sociais, que também se renovava, e no qual também se formaram pesquisadores docentes do novo programa, o ponto de encontro e o alicerce para a formação do PPGHCS.

No que se refere ao contexto brasileiro, o incentivo à pesquisa e à pós-graduação na primeira década do século XXI consistiu em elemento decisivo a que se somou o ambiente institucional favorável. Desde a criação da Casa de Oswaldo Cruz, em 1985, durante a gestão de Sergio Arouca na presidência da Fiocruz, verificou-se, sob a liderança de Paulo Gadelha, diretor por 11 anos dessa unidade dedicada à pesquisa histórica, à memória e documentação histórica e à divulgação científica, um processo de criação e fortalecimento permanente do campo da história das ciências e da saúde, sempre em interação com outras instituições e redes nacionais e internacionais de pesquisa. Um dos marcos desse processo foi a criação do periódico História, Ciências, Saúde – Manguinhos , em 1994, tendo Sergio Goes de Paula como primeiro editor. O papel dos periódicos na construção do campo da história das ciências e de sua institucionalização tem sido objeto de estudos de pesquisadores da Casa ( Ferreira, 1996FERREIRA, Luiz Otávio. O nascimento de uma instituição científica: o periódico médico brasileiro da primeira metade do século XIX. 1996. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. ), e, com o passar do tempo, a revista também se tornou tema e fonte de estudos acadêmicos (Benchimol, Cerqueira, Papi, 2014). Com toda certeza, a análise histórica do PPGHCS é um bom desafio que temos pela frente ao celebrar os 21 anos de criação e o alcance da nota 6 na última avaliação da Capes, denotando o reconhecimento da excelência do trabalho que vimos realizando. Nesta celebração agradeço a todos os coordenadores, mencionando Luiz Otávio Ferreira, primeiro coordenador do programa, que aceitou o desafio em tempos de grande incerteza dada a novidade do curso então proposto. Ao lado da inauguração do Museu da Vida, em 1999, a criação do PPGHCS foi uma das realizações de maior alcance durante meu período (1998-2005) como diretora da Casa de Oswaldo Cruz.

Muitas mãos, corações e mentes se uniram naquele início desafiador e novos professores se somaram ao esforço de construção coletiva. Uma das maiores conquistas é termos hoje discentes daqueles anos heroicos como professores e pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz. No processo de criação contamos também com o acolhimento e o apoio imprescindíveis de Renato Balão Cordeiro, vice-presidente de Pesquisa e Pós-graduação da Fiocruz de 1997 a 2001, de Tânia Celeste Nunes, vice-presidente de Ensino e Recursos Humanos de 2000 a 2004, e da professora Margarida de Souza Neves, que nos brinda com a excelente entrevista publicada neste número de Manguinhos , como afetivamente gosto de me referir a este periódico.

Após discorrer sobre sua trajetória como historiadora – notável pelas pesquisas no campo da história da cultura, com estudos recentes sobre o pensamento médico em epilepsia –, e como docente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde formou gerações de pesquisadores, muitos deles docentes hoje no PPGHCS, Guida, permito-me a referência pessoal e afetiva, convida-nos a uma reflexão densa sobre o ofício do historiador, especialmente em um país com as características históricas do nosso. Ao evocar a pergunta de Affonso Romano de Sant’anna “Que país é este?”, transformado pela arte de Legião Urbana em potente brado, a historiadora nos convida a refletir sobre como a história das ciências e da saúde pode se configurar um caminho consistente para respostas reveladoras, ainda que necessariamente plurais e inconclusas.

Ao finalizar seu belo depoimento com referências fortes aos tempos difíceis da pandemia de covid-19, ela também me fez pensar na metáfora da história das ciências e da saúde como um caminho, ou mesmo uma janela, para a melhor compreensão da história das sociedades. Em minha perspectiva, estamos frente a uma janela que se abre para o passado e o presente, mas que também permite pensar o futuro como produto da imaginação histórica, uma imaginação ancorada na pesquisa e nas referências programáticas que sustentaram a criação de nosso programa. Resultados da aventura humana, a pesquisa e o ensino da história nos permitem alterar pontos de vista, defender de forma crítica as ciências em tempo de negacionismos e afirmar o valor do conhecimento histórico para a construção de uma sociedade mais democrática e inclusiva.

REFERÊNCIAS

  • BENCHIMOL, Jaime L.; CERQUEIRA, Roberta C.; PAPI, Camilo. Desafios aos editores da área de humanidades no periodismo científico e nas redes sociais: reflexões e experiências. Educação e Pesquisa , v.40, n.2, p.347-364, 2014.
  • FERREIRA, Luiz Otávio. O nascimento de uma instituição científica: o periódico médico brasileiro da primeira metade do século XIX. 1996. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.
  • KROPF, Simone P.; HOCHMAN, Gilberto. From the begginings: debates on the history of science in Brazil. The Hispanic American Historical Review , v.91, p.391-408, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br