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Textualidade, oralidade e materialidade: reflexões sobre hermenêutica e arqueologia

Textuality, orality, and materiality: thoughts on hermeneutics and archaeology

RESUMO

Quais os limites da contribuição da hermenêutica de Hans-Georg Gadamer aos estudos arqueológicos? Tal questão, aparentemente marginal e de somenos, pois suscitada pela sua aplicabilidade em outra área de conhecimento, toca, segundo nos parece, as esferas fundamentais da realização da linguisticidade (textualidade, escrita, oralidade, corporeidade e arte) e conduz a uma reflexão sobre o estatuto do vestígio (ou rastro), tema que parece mostrar certos entraves em sua proposta filosófica. Uma análise sobre a abordagem gadameriana de vestígio mostra que tal conceito é submetido à ordem da textualidade, o que implica que a produtividade de sentido advinda da materialidade possua um caráter secundário. Em vista disso, o presente artigo aventa a hipótese de que a tese gadamariana sobre a linguisticidade não é imediatamente ajustável à arqueologia oriunda da cultura material e conclui sugerindo que o vestígio possui um caráter pré-reflexivo que ultrapassa os limites da textualidade.

Palavras-chave:
vestígio; linguisticidade; escrita

ABSTRACT

To what extent Hans-Georg Gadamer’s hermeneutics contributes to archaeology? Such a question, apparently marginal and of less relevance, as it results from its application in another field of knowledge, touches - in our view - the main spheres of the execution of linguisticality (textuality, writing, orality, embodiment, and art), as it leads to a reflection about the statute of vestige, a subject that suggests some limitations in his philosophy. An analysis of the Gadamerian approach of vestige (or trace) shows that such a concept depends on textuality, which implicates that the productivity of meaning that emerges from materiality has a secondary character. Considering this, the article proposes the hypothesis that the Gadamerian thesis about linguisticality does not immediately fit into the type of archaeology that adopts material culture principles e concludes suggesting that vestiges have a pre-reflexive character that surpasses the boundaries of textuality.

Keywords:
vestige; linguisticality; writing

1 Introdução

De que modo o passado nos alcança? De acordo com a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, o passado nos interpela enquanto tradição, através de uma relação considerada dialógica. Contudo, o lugar privilegiado desse diálogo se localiza na escrita, especialmente numa classe de escritos denominados de textos1 1 Diferentemente das concepções de escritura em Jacques Derrida, no âmbito de uma iterabilidade entre realidade e linguagem (cf. Schalkwyk 1997), e de estilo em Maurice Merleau-Ponty, que abarcam sempre mais do que o texto escrito (cf. Silverman, 2013, p. 183). . Por sua vez, o texto se torna dizente ao ser reconvertido à fala. Que o intérprete tenha que ser capaz de deixar a “voz” e o “tom” do texto se manifestar através de uma “escuta atenta” e, assim, ser apto a reconduzi-lo novamente ao sentido e à “fala”, é um fato que assinala inequivocamente a instauração gadameriana de um momento complementar à prioridade hermenêutica do escrito, uma etapa composta por figuras extraídas da oralidade; portanto, da base do que ele denomina de “diálogo vivo” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 475) 2 2 Todas as traduções das citações em língua estrangeira são de minha autoria, salvo obras traduzidas ao português que constam nas referências. Alerto ao leitor sobre algumas opções de tradução que diferem das mais usais, tais como Gebilde - conformação (e não configuração ou estrutura), que salienta a reunião (Ge-) do que se forma (bilden - formar), e Verständingung - entendimento mútuo (e não acordo), que ressalta o caráter histórico-ontológico da fusão de horizontes, ao invés de uma concordância negociada que o termo acordo pode sugerir. . A estrutura dual entre elementos de escrita e de oralidade (mesmo que em alguns casos em sentido metafórico) parece se mostrar, ainda assim, insuficiente para recepcionar o passado. Conforme se argumentará, nem tudo o que é legado se encaixa imediatamente na categoria gadameriana de texto, de modo que permanece obscura se a apreensão de tais fenômenos herdados podem operar pelo modelo da manifestação de uma voz.

Em vista desses tópicos, a estrutura da presente investigação inicia com uma exposição dos temas da escrita e do texto, a fim de reconstituir o domínio que lhes é circunscrito por Gadamer. Em seguida, o artigo apresenta os elementos constitutivos do “diálogo vivo”, que tomam forma a partir de conceitos derivados da oralidade, em vista do qual se discutirá hierarquias ontológicas na circunscrição entre a escritura e a oralidade, tal como o lugar da palavra poética, da obra de arte e dos vestígios3 3 Neste artigo, passamos ao largo das acepções específicas de vestígio/rastro (trace) propostas por Derrida e Emmanuel Levinas, em vista do escopo de nosso propósito. Ao invés, daremos enfoque às concepções de “resto” e “vestígio” em Gadamer para, na última seção, nos restringirmos ao aspecto material do vestígio. . Embora Gadamer empregue ocasionalmente o termo vestígio (Spur) e outros correlatos como resto (Überrest) ou remanescente (Überbleibsel) ao longo de sua produção filosófica, é especialmente por ocasião de seu debate com Jacques Derrida que o hermeneuta alemão discute mais detalhadamente a sua importância para a hermenêutica filosófica. Pelo fato de que, para Gadamer, os vestígios se subordinam à dinâmica textual, no sentido estrito atribuído pelo hermeneuta, sugerimos que a via da cultura material na hermenêutica ultrapassa os limites dessa subordinação, ao tomar a noção de texto em outro sentido, ou mesmo ao recusá-la. Embora não restrita à arqueologia, apresentamos o debate sobre a cultura material para destacar a forma com que os elementos materiais prefiguram a composição de sentido. Em contraste com certa mudez atribuída por Gadamer aos monumentos e aos vestígios do passado, os teóricos da cultura material exploram a eloquência da materialidade dos entes passados. O nosso primeiro contato com o mundo é corporal, significando, portanto, que lidamos com um espectro de sentido mais amplo do que aquele traduzido para a textualidade, o que não implica em uma rejeição desta, senão a proposta de que elementos articulados de linguagem como texto e discursos orais se entretecem com componentes pré-reflexivos que desempenham processos compreensivos igualmente relevantes. Por esse motivo, exploramos a forma como o vestígio aparece para a cultura material a fim de mostrar os limites da abordagem textual na recepção de camadas de sentido legadas. Embora o vestígio evoque discussões sobre a crítica à metafísica, a partir de considerações sobre alteridade e temporalidade, em vista do propósito de nosso artigo, restringiremos a sua análise ao aspecto material, sem com isso pretender esgotar a sua produtividade, que se estende a outros âmbitos. Por fim, vale ressaltar que opto por vestígio (e não rastro) para traduzir as palavras Spur (Gadamer) e trace (Derrida), por se mostrar menos afeito à ideia de restituição, diferentemente de rastro, que poderia ser subsumido ao ato de rastrear e assim ser tomado no âmbito de uma investigação reconstitutiva de uma presença. Nesse mesmo espírito, em vista da interlocução entre ambos os filósofos, opto por traduzir Zeichen (Gadamer) por signo (e não sinal), considerando a importância de signe na tradição de língua francesa (em especial em F. de Saussure, com quem Derrida debate).

2 Escrita e textualidade em Gadamer

A hermenêutica gadameriana defende que o escrito (Schriftliche) consiste em uma obra duradoura de linguagem, motivo pelo qual realiza uma função essencial para a hermenêutica, a saber, a transmissão do sentido. O âmbito da escrita (Schiftlichkeit), além de ser menos efêmero, é menos suscetível à arbitrariedade interpretativa do que o da oralidade, já que neste a imediaticidade dos efeitos produzidos pelo orador pode simplesmente deslumbrar a audiência e assim persuadi-la (cf. Gadamer, 1993GADAMER, H.-G. [GW9]. 1993c. Ästhetik und Poetik II: Hermeneutik im Vollzug. Gesammelte Werke 9. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 481 p.a, p. 236). O escrito subsidia o âmbito geral do que se chama literatura4 4 O conceito de literatura (Literatur) engloba, além das obras de arte literárias (literarische Kunstwerke), toda a tradição literária (literarische Überlieferung) (Gadamer, 1990, p. 168). Isso significa, portanto, que ela abarca “textos religiosos, jurídicos, econômicos, públicos e privados de todos os tipos”, bem como os escritos que os recepcionam, ou em uma expressão, “a totalidade das ciências do espírito” (Gadamer, 1990, p. 167). e permite a simultaneidade (Gleichzeitigkeit)5 5 Embora seja comum a tradução de Gleichzeitigkeit por contemporaneidade, o próprio Gadamer sugere a opção por simultaneidade. Confira a declaração de Richard E. Palmer (Gadamer, 2007, p. 193). de seu sentido aos futuros leitores (cf. Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 393). Escritos, denominados clássicos, revelam uma produtividade infinita, e assim perduram, enquanto outras manifestações da linguagem, mesmo escritas, não o fazem. Obras de arte literárias apresentam a palavra poética e por isso são denominadas de textos eminentes, já que se destacam pelo seu caráter alethéico.

Uma análise da exposição gadameriana revela, entretanto, que a distinção entre textualidade e escrita é algo tortuoso, já que o hermeneuta entende em geral o texto como algo escrito. Em decorrência dessa quase identificação entre ambos, traços distintivos da textualidade devem ser considerados. O texto é definido como uma unidade de textura, remetendo à ideia de tecido [Gewebe], cuja trama interna assegura que ele se apresente como um todo (cf. Gadamer, 1993GADAMER, H.-G. [GW9]. 1993c. Ästhetik und Poetik II: Hermeneutik im Vollzug. Gesammelte Werke 9. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 481 p.c, p. 337). Trata-se de uma composição escrita [schriftsatz] (cf. Gadamer, 1995GADAMER, H.-G. [GW10]. 1995. Hermeneutik im Rückblick. Gesammelte Werke 10. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 479 p., p. 163) em que o todo indissolúvel que o constitui se antecipa às partes. Tal ideia é apresentada no contexto de seu debate com Derrida, em que o filósofo alemão ressalta que signo e rastro/vestígio não apontam para o sentido significativo de uma palavra individual, mas antes, remetem a um texto, ou seja, a uma unidade composicional do escrito (cf. Gadamer, 1995GADAMER, H.-G. [GW10]. 1995. Hermeneutik im Rückblick. Gesammelte Werke 10. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 479 p., p. 163). Trata-se de uma postura hermenêutica que reflete o argumento da “antecipação do sentido” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 298), que se desdobra naquele da “concepção prévia da perfeição” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 299), em que o intérprete é desde o princípio guiado pela antecipação de uma totalidade de sentido. O texto é uma unidade composicional que permanece no tempo e que interpela a cada vez outros intérpretes. Por essas razões, nem uma mera anotação, que desempenha tão somente uma função de suporte mnemônico, nem um escrito limitado à comunicação científica especializada, se configuram como texto, na medida em que a primeira é impermanente e dependente de uma totalidade, enquanto a segunda é restrita a um círculo de especialistas (Cf. Gadamer, 1993aGADAMER, H.-G. [GW2]. 1993a. Hermeneutik II: Wahrheit und Methode. Gesammelte Werke 2. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 533 p., p. 343-344).

Desse modo, pode-se afirmar que Gadamer restringe a própria noção de texto ao campo escrito, e que outros usos desse termo são derivados dessa relação. Porém, como vimos, nem todo o escrito é um texto6 6 Além dos exemplos mencionados, cabe salientar as formas de linguagem que resistem à textualização: os antitextos, os pseudotextos e os pré-textos. (Cf. Gadamer, 1993a, p. 347). , considerando-se as exigências de unidade composicional e da remissão à alteridade. Ainda a respeito da escrita, pode-se dizer que: a) ela possui um caráter autônomo em relação às intenções de seu autor e permite, assim, a desvinculação de sua compreensão da ideia de transposição psíquica (cf. Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 398); b) ela “é a idealidade abstrata da linguagem” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 396); c) “não há nada que seja tão puro vestígio do espírito [Geistesspur]” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 169) quanto a escrita, já que é através dela que a “linguagem alcança sua verdadeira espiritualidade” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 394); d) a superação de sua autoalienação inicial por meio da leitura é considerada “a mais elevada tarefa da compreensão” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 394); e, e) em vista de sua idealidade, a escrita confere a possibilidade de simultaneidade em sua transmissão e recepção (cf. Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p 393).

Diante disso, não surpreende que Gadamer atribua um primado hermenêutico ao texto escrito: “o fato de a essência da tradição se caracterizar por sua linguisticidade evidencia-se em seu pleno significado hermenêutico lá onde a tradição se torna escrita” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 393). São justamente os traços distintivos acima elencados que tornam inteligível a sua justificativa: o texto escrito adquire uma autonomia frente à sua criação, pelo fato de se constituir como idealidade, motivo pelo qual ele não se limita a nenhum momento histórico e pode, assim, ser simultâneo em relação a todo e qualquer presente histórico. Imprime-se uma marca espiritual no escrito, que permite que ele (enquanto aquilo que ainda pertence a uma linguagem compreensível) possa ser interpretado, um processo espiritual que é descrito por Gadamer como “a transformação de algo estranho e morto em um ser totalmente simultâneo e familiar” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 169).

O leitor familiarizado com Verdade e Método imediatamente nota a semelhança dessa argumentação com a apresentação da temporalidade da obra de arte, cuja experiência é aquela da simultaneidade, em que a sua conformação (Gebilde) está aí plenamente. Percebe-se, em ambos os casos, tanto no texto escrito quanto na obra de arte, a idealidade como padrão hermenêutico da produtividade infinita de sentido. No entanto, na medida em que os portadores privilegiados da transmissão histórica são, em Verdade e Método, os textos, até mesmo as obras de arte são apreendidas, em seu papel transmissor, sob o modelo do texto. É no entrecruzamento das noções de texto e de obra de arte que encontramos um tipo peculiar de escrita, a saber, a poesia. De todas as possibilidades ideais expressas pela linguagem escrita, a poesia se destaca não apenas pelo seu caráter de arte, isto é, por apresentar o modo de ser de uma conformação que lhe permite ser contemporânea à toda interpretação, mas especialmente pela relação sui generis que possui com a verdade, a ponto de ser denominada de texto eminente. É no âmbito da poesia que ocorre plenamente o que Gadamer denomina de verdade da palavra, a manifestação mais consistente da espiritualidade e da idealidade da linguagem.

Em suma, no universo da escrita, é preciso considerar que: a) nem todo escrito é texto; b) a realização última da escrita se dá através da unidade composicional e da remissão à alteridade, condições que o texto satisfaz; e, finalmente, c) no âmbito dos textos, a poesia é considerada o texto eminente, já que é nela que se dá plenamente a verdade da palavra.

3 Escrita e oralidade

Em vista do primado hermenêutico do texto escrito, espera-se que o domínio da oralidade desempenhe um papel secundário, já que a transmissão oral não opera através da cristalização espiritual em um portador, muito embora ela possua também a sua idealidade. Todavia, uma leitura mais atenta revela que o enlace entre escrita e oralidade é mais complexo do que se sugere inicialmente.

A linguisticidade remete à concepção dialógica de compreensão. Nesse sentido, qualquer relação de sentido se situa dentro de um diálogo que constitui um horizonte comum de compreensibilidade e, portanto, a caminho de um entendimento mútuo (Verständingung) possível, embora não necessário. Mas também nesse ponto, a questão da escrita se impõe. Apesar de reconhecer a importância da oralidade na constituição da tradição, desse “discurso vivo” (der lebendigen Rede), desse “relato direto (unmittelbaren Weitersagens) em que têm sua vida, o mito, a lenda, os usos e os costumes” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 393), Gadamer a distingue do texto escrito e da obra de arte, na medida em que a oralidade se encontra submetida à certa transitoriedade e se encontra indissociável de “todos os momentos emocionais da expressão e do anúncio” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 396), de que, por contraste, o texto escrito está livre. Mais ainda, enquanto a escrita conta apenas com a idealidade de sua composição, a oralidade pressupõe sempre o auxílio de elementos de fundo que propiciam certa compreensão. Mesmo no caso de um encontro com pessoas que falam línguas estrangeiras, “a linguagem dos gestos e do tom de voz já sempre implica um momento de compreensibilidade imediata” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 168), diferentemente do texto escrito que se sustenta pela sua própria comunicabilidade.

É certo que tanto a “configuração fônica do discurso e a configuração sígnica do escrito” possuem “uma idealidade constituinte” (Gadamer, 1993GADAMER, H.-G. [GW9]. 1993c. Ästhetik und Poetik II: Hermeneutik im Vollzug. Gesammelte Werke 9. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 481 p.b, p. 259), mas elas se diferem no fato de que, ao contrário da fala, a idealidade perdura na escritura. Por sua vez, a fala possui uma idealidade que a distingue de “outras formas de expressão vocal como o grito, o gemido, o riso, etc.” (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 259-260).

Apesar dessas balizas conceituais, a relação entre a escrita e a oralidade não se exime de imprecisões, em que termos característicos de um domínio são empregados para elucidar o outro. Como exemplo paradigmático dessa ambiguidade, sabe-se que o texto escrito é reconduzido a elementos tipicamente característicos da oralidade, posto que o texto é uma espécie de “discurso alienado” (entfremdete Rede) que precisa ser restituído dos signos (Zeichen) ao “discurso e ao sentido” (in Rede und in Sinn) (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 397). Há a ênfase atribuída à idealidade do escrito, mas trata-se de “escutar” o que o texto nos “fala”, bem como de estar atento à “pluralidade de vozes” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 289) que compõe a tradição. Se o tom é para o poeta a sua “segunda natureza” (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 285), cabe ao intérprete-tradutor não apenas encontrar a equivalência adequada para o significado das palavras, senão também para os sons (Klänge) (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 285). Há a referência à palavra grega tonos, como “a corda tensa que deve soar sob palavras e sons, se algo deve ser música” (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 285), para assinalar a unidade que se antecipa ao diverso e o reúne. No caso das palavras, o tom dá o sentido de totalidade e de entretecimento, tornando-o um texto.

Se, por um lado, o texto é animado pelo diálogo que o intérprete estabelece com ele, caracterizado principalmente pela audição do ouvido interior, por meio do qual se deixa o texto “falar”, por outro, esse processo recebe nuances distintas quando consideramos a atividade da leitura. Gadamer explica que “ler é deixar falar” (Lesen ist Sprechenlassen) (Gadamer, 1993GADAMER, H.-G. [GW9]. 1993c. Ästhetik und Poetik II: Hermeneutik im Vollzug. Gesammelte Werke 9. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 481 p.b, p. 271), o que implica tanto saber conduzir quanto se deixar conduzir num diálogo, ritmando adequadamente o texto, a partir de sua entonação adequada. De acordo com Gadamer, “todo uso da voz se subordina à leitura e se mede a partir da idealidade que somente o ouvido interior ouve, na qual o elemento contingente da própria voz e do próprio falar desaparece” (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 268). Trata-se de uma idealização hermenêutica (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 267-268), que abre um espaço de jogo através do ouvido interior e que é eloquente ao passo em que compreende. Na relação entre as duas formas de idealidade, a escrita (que ultrapassa os meros signos) e a oral (que ultrapassa os meros sons), é a segunda que deve recuperar o espaço e a visão de articulação de sentido, sem que estas se percam na “fixação escrita” (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 259).

Tal discussão pode ser considerada uma propedêutica à singularidade dos textos literários, cuja leitura exige elementos de oralidade, mesmo que metafóricos ou no âmbito interior. Considerando-se que “entre oralidade e escrita não há, pois, uma separação estrita” (Gadamer, 1991GADAMER, H.-G. [GW7]. 1991. Griechische Philosophie III: Plato im Dialog. Gesammelte Werke 7. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 445 p. , p. 261-262), Gadamer explica que textos literários são aqueles “que se deve ouvir ao serem lidos em voz alta, mesmo que unicamente por meio do ouvido interior, e que não apenas se ouve, quando recitados, mas se acompanha interiormente” (Gadamer, 1993aGADAMER, H.-G. [GW2]. 1993a. Hermeneutik II: Wahrheit und Methode. Gesammelte Werke 2. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 533 p., p. 351). Tais tipos de textos não existem apenas para uma “função comunicativa”, visto que sua relevância tem a ver com a própria “manifestação de linguagem” (Gadamer, 1993aGADAMER, H.-G. [GW2]. 1993a. Hermeneutik II: Wahrheit und Methode. Gesammelte Werke 2. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 533 p., p. 352). Como se depreende, a leitura do texto é indissociável de elementos da oralidade, seja ele a voz que ritma e dá entonação ao lido, seja ele o ouvido interior que compreende o lido na relação com a totalidade de significação. “O que seria a escrita sem o ler, o que seria o ler sem a escrita - e sem - mesmo que talvez silenciosas - a entonação e a articulação?” (Gadamer, 1995GADAMER, H.-G. [GW10]. 1995. Hermeneutik im Rückblick. Gesammelte Werke 10. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 479 p., p. 153), afirma Gadamer, que ainda acrescenta a esse entrelaçamento [Verflechtung], o ouvir [Hören] (cf. Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 258).

Em síntese, pode-se afirmar que a oralidade realiza certo grau de idealidade, que, entretanto, difere daquela da escrita, devido à sua transitoriedade. Por sua vez, em si mesma, a idealidade da escrita é insuficiente, visto que exige a recondução dos signos para a fala, portanto, para certo tipo de oralidade (agora ideal), através da idealização hermenêutica, por meio da qual se empresta uma voz interna correlativa ao ouvido interno.

Levando-se em consideração esses elementos, é possível afirmar que a leitura do texto (incluindo a sua recondução à oralidade e ao diálogo ideal) é o paradigma interpretativo privilegiado em Gadamer. É forçoso reconhecer a adequação da afirmação de Ricardo Dottori (2006GADAMER, H.-G. 2006. A century of philosophy: Hans-Georg Gadamer in conversation with Riccardo Dottori. Tradução para o inglês de Rod Coltman e Sigrid Koepke. New York; London, Continuum, 152 p., p. 12) de que para a hermenêutica filosófica de Gadamer, “ler um texto torna-se o modelo para ler o mundo”. É no interior desse modelo que Gadamer atribui, sem hesitação, o processo de leitura à experiência da arquitetura. Ao hermeneuta alemão, apesar de a obra arquitetônica não ser um texto literário, não resta dúvida de que realizamos uma operação de leitura, desde aprender a “soletrá-la”, percorrendo seus diversos espaços, revisitando pontos já explorados ou demorando-se em lugares que apresentam interesse, até que se possa lê-la como totalidade (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 334). Contudo, já o sabemos, poder lê-la significa metaforicamente que a obra começa a “falar” (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 333).

Não é demasiado salientar que o foco de sua hermenêutica não está nem na amplitude do universo das coisas escritas e nem no domínio geral dos sons, e sim nos escritos que possuem caráter de texto e no mundo audível articulado pela palavra. Por conseguinte, não causa espanto que Gadamer declare que os sons onomatopeicos emitidos por uma criança ainda não constituem um “falar”, mas um “exercitar-se-com-outros”, um “diálogo prelinguístico”. Trata-se, portanto, ainda de um diálogo incipiente, que tão somente “anuncia” o “autêntico jogo de pergunta e resposta” que se assentará na “plena capacidade linguística que o menino ainda não possui” (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 356-357). Diferenciações como essa atestam que a hermenêutica gadameriana inclina-se aos fenômenos elaborados pela palavra, muito embora Gadamer procure, em seus escritos posteriores, a apresentar uma versão mais abrangente de linguisticidade.

Numa entrevista a Jean Grondin em 1996, Gadamer explica que a linguisticidade abrange mais do que linguagem verbal, abarcando inclusive fenômenos que caem geralmente no caso da “compreensão não-linguística” (Gadamer, 2007GADAMER, H.-G. 2007. A Look Back over the Collected Works and Their Effective History. In: R. PALMER, The Gadamer Reader: A Bouquet of the Later Writings. Editado e traduzido para o inglês por Richard E. Palmer. Evanston, Northwestern University Press, 469 p., p. 420). Ele declara que “a linguagem em palavras é apenas uma concretização especial da linguisticidade. O mesmo se aplica a gestos” (Gadamer, 2007GADAMER, H.-G. 2007. A Look Back over the Collected Works and Their Effective History. In: R. PALMER, The Gadamer Reader: A Bouquet of the Later Writings. Editado e traduzido para o inglês por Richard E. Palmer. Evanston, Northwestern University Press, 469 p., p. 420). Em suas entrevistas a Ricardo Dottori, Gadamer define a linguisticidade como “tudo o que permite algo a ser compreendido”, incluindo, assim, todo tipo de manifestação de sentido. Isso é complementado na passagem seguinte, em que afirma: “que seres humanos possam se expressar em gestos, ruídos, palavras faladas e escritas é, contudo, algo externo”, pois o que importa é ser capaz de permitir que o outro lhe fale algo e que você possa compreender o que esse outro pretende dizer (Gadamer, 2005GADAMER, H.-G. 2006. A century of philosophy: Hans-Georg Gadamer in conversation with Riccardo Dottori. Tradução para o inglês de Rod Coltman e Sigrid Koepke. New York; London, Continuum, 152 p., p. 60). Essa concepção de linguisticidade mitiga, em parte, a separação entre a palavra e o pré-linguístico, a diferenciação entre a oralidade e a escrita, ou mesmo a distinção entre o verbal e o não verbal. Que a linguisticidade seja concebida de modo mais abrangente, não implica, contudo, que a centralidade da palavra tenha sido colocada em questão.

4 A subordinação do vestígio ao texto

Gadamer situa o vestígio numa esfera secundária, visto que este não participa inicialmente da idealidade da linguagem. O hermeneuta defende que o traço distintivo pelo qual o texto escrito se diferencia de outros remanescentes do passado é o fato de ter se elevado, por meio da idealidade da palavra, em relação ao mundo no qual surgiu. É essa idealidade que fundamenta e sustenta a simultaneidade do sentido, em que o “espírito puro” se mantém dizente para cada época; diferentemente, “os restos [Überreste] de uma vida passada, os restos de edificações, os instrumentos e o conteúdo dos sepulcros sofreram erosões devido às tormentas do tempo que sobre eles se abateram” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 169). O relevante aqui é a diferenciação do modo de ser da escrita em relação aos remanescentes passados, aos monumentos não escritos (nichtschriftliche Monumente) e aos vestígios de toda sorte. Estes últimos constituem um âmbito que abarca “monumentos mudos” (stumme Monumente) e “testemunhos do passado [Kunde vom Vergangenen]” que, contudo, ainda não podem ser denominados de história [Historie] (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 394).

Não resta dúvida em relação ao papel subsidiário atribuído por Gadamer aos vestígios, conforme se lê em passagens como a que se segue: “Apenas num sentido amplo os monumentos não escritos impõem uma tarefa hermenêutica, visto que eles não são compreendidos por si mesmos” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 394). De forma alargada, pois esses vestígios dependem da intermediação realizada pela linguagem, sem a qual, segundo Gadamer, permanecem mudos, ao contrário da transmissão pela linguagem, ela mesma eloquente. Em culturas sobre as quais a língua original não nos é acessível, naquelas, portanto, que não nos foram legadas através de uma “tradição de linguagem” [sprachliche Überlieferung], Gadamer entende que a nossa “compreensão permanece insegura e fragmentária” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 394).

É nesse ponto que a hermenêutica gadameriana estabelece uma distinção entre os modos de interpretação, quando afirma que esses monumentos não escritos são objetos de “interpretação” (Deutung) de sua significação, ao contrário da tarefa da “decifração e compreensão de uma literalidade” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 394), característica da escrita. Trata-se da diferenciação de produção de sentido entre monumento não escrito e texto. Cabe reforçar pela letra gadameriana esta disjunção: “desde o começo, a tradição de inscrições [die Überlieferung von Inschriften] não participa da forma livre de tradição que chamamos de literatura, pois depende sempre da existência de restos [des Überrestes], seja da pedra ou de qualquer outro material” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 395).

Não se trata, ao contrário do que se poderia pensar, de um simples inventário das formas de interpretação de fontes, senão que a reafirmação do primado do escrito: “é só a tradição escrita [schriftliche Überlieferung] que pode se desligar da mera persistência de restos [Überresten] de uma vida passada” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 395), tendo se elevado acima do mundo do passado, não sendo, portanto, uma mera parte daquele mundo (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 394). No que Gadamer concebe como sendo literatura, “não se encontra apenas um acervo de monumentos e signos” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 395), mas a idealidade do espírito puro. Em vista disso, Gadamer considera somente a tradição da linguagem como sendo “tradição no sentido autêntico da palavra”, já que “não se trata aqui de algo que restou [etwas übriggeblieben], em relação ao qual cabe uma tarefa de investigação e interpretação como um remanescente do passado [ein Überbleibsel der Vergangenheit]” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 393).

O que está aqui em jogo é sobretudo a contraposição entre dois modos temporais em que o passado alcança o presente, isto é, entre “o que restou” (übriggeblieben), característico do vestígio, e o que é “transmitido” (übergeben) e “dito” (gesagt), que é o modo de ser da tradição da linguagem (Sprachliche Überlieferung) em sua dupla possibilidade, nas tradições oral e escrita (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 393). Embora Gadamer conceda que também pode haver “vontade de sobrevivência” ou “vontade de permanência” nos vestígios não escritos (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 395), estes “restos da vida vivida” permanecem “mudos” (stumm) (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 260), ao contrário do que se dá nas obras escritas que, mesmo que não ainda tenham sido decifradas, não são mudas, “nós é que somos surdos para elas” (Gadamer, 1993bGADAMER, H.-G. [GW8]. 1993b. Ästhetik und Poetik I: Kunst als Aussage. Gesammelte Werke 8. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 451 p., p. 260).

Por meio da idealidade da palavra, que torna possível a simultaneidade, eleva-se o linguístico “acima da determinação finita e efêmera própria do resto de uma existência passada [Resten gewesenen Daseins]” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 394). É no âmbito da simultaneidade que ocorre plenamente a fusão de horizontes por meio do qual a memória é preservada: “o portador da tradição não é este manuscrito como uma parte de outrora [ein Stück von damals], mas a continuidade da memória” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 394).

Diante do que foi exposto, não seria de se esperar que a hermenêutica gadameriana pudesse ter alguma relação especial com o termo vestígio/rastro (trace) tal como empregado na filosofia de Derrida. Entretanto, o “debate”7 7 Sobre as dificuldades do primeiro encontro entre Gadamer e Derrida, ver Michelfelder & Palmer (1989). com o filósofo franco-argelino levou Gadamer a abordar o tópico em alguns de seus escritos. Como o próprio Gadamer reconhece, a noção de texto é “algo que nos liga aos nossos colegas franceses ou, quem sabe, algo que nos separa deles” (Gadamer, 1993aGADAMER, H.-G. [GW2]. 1993a. Hermeneutik II: Wahrheit und Methode. Gesammelte Werke 2. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 533 p., p. 337). É durante a análise do significado de texto que Gadamer oferece uma abordagem hermenêutica do vestígio [Spur], o que implica, por um lado, que ele manifesta uma crítica ao modo como entende que Derrida o emprega e, por outro lado, que ele apresenta como tal termo se integraria no âmbito da compreensão. Não nos importa analisar se tal leitura sobre a desconstrução é adequada, mas apenas ressaltar o lugar de tal conceito na arquitetônica hermenêutica de Gadamer.

Muito embora Gadamer aceite a ideia de que “textos se relacionam com textos” (Gadamer, 1991GADAMER, H.-G. [GW7]. 1991. Griechische Philosophie III: Plato im Dialog. Gesammelte Werke 7. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 445 p. , p. 258) e reconheça a intertextualidade como um efeito do vestígio [Spur/trace], ele rejeita explicitamente a ideia de que a chave interpretativa para o texto advém da intertextualidade (cf. Gadamer, 1995GADAMER, H.-G. [GW10]. 1995. Hermeneutik im Rückblick. Gesammelte Werke 10. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 479 p., p. 165). Gadamer afirma que todo vestígio aponta para certa direção (cf. Gadamer, 1995GADAMER, H.-G. [GW10]. 1995. Hermeneutik im Rückblick. Gesammelte Werke 10. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 479 p., p. 160) e que possui assim uma “determinação prévia”, não sendo meramente aleatório (Gadamer, 1995GADAMER, H.-G. [GW10]. 1995. Hermeneutik im Rückblick. Gesammelte Werke 10. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 479 p., p. 171). Para Gadamer, é preciso já estar “em um contexto de busca e de investigação dos vestígios” (im Zusammenhang des Suchens und Spurens) para que [estes] façam sentido (Gadamer, 1995GADAMER, H.-G. [GW10]. 1995. Hermeneutik im Rückblick. Gesammelte Werke 10. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 479 p., p. 161). Desse modo, “vestígios podem se cruzar, vestígios podem se desvanecer e findar, eles podem apontar para longe, para onde se permanece sem direção” (Gadamer, 1995GADAMER, H.-G. [GW10]. 1995. Hermeneutik im Rückblick. Gesammelte Werke 10. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 479 p., p. 162). Tais características levam Gadamer a aproximar a relação com o vestígio com a própria dinâmica do diálogo. Tal como o diálogo é sempre interessado sobre algum tópico e assim orientado para uma direção que congrega seus interlocutores, também o vestígio é perspectivado a partir das antecipações de sentido a partir das quais ele se mostra. Assim como o diálogo necessita da pergunta que anima a sua continuidade, em se tratando de uma investigação genuína, também o vestígio implica uma dinâmica da pergunta. É em relação a esse aspecto que Gadamer reconduz a investigação sobre o vestígio a temas que mencionamos acima - à “antecipação do sentido” ou à “concepção prévia da perfeição” - agora pressupostos na prioridade da totalidade textual na orientação de sentido do vestígio.

5 Cultura material

Por mais que a hermenêutica gadameriana possua um espectro vasto e imediatamente aberto às diversas manifestações humanas, como atesta a noção de diálogo, é patente que ela apresenta graus distintos de concretização e, consequentemente, de peculiaridades na estratificação de nossa experiência. Mesmo acolhendo as últimas entrevistas de Gadamer, em que ele se mostra mais suscetível a acolher no âmbito da linguisticidade uma série de expressões humanas não centradas na palavra, resta a dificuldade de se compreender a arquitetônica dessas mesmas expressões. Esse caráter problemático se salienta ao passarmos para os debates típicos da hermenêutica material. Embora estejamos de acordo com o teor geral das propostas de Don Ihde e de outros teóricos da cultura material, acentuamos na hermenêutica material algo que muitas vezes é tomado apenas de modo incipiente ou mesmo de forma velada em suas abordagens, a saber, o caráter pré-reflexivo relativo à produtividade hermenêutica do vestígio.

A expressão “cultura material” abrange produções de áreas distintas que levam em consideração a materialidade constitutiva dos entes, seja ela relativa à tecnologia ou à determinada configuração sociocultural. De acordo com Ann Smart Martin (1996MARTIN, A. M. 1996. Material Things and Cultural Meanings: Notes on the Study of Early American Material Culture. The William and Mary Quarterly, 53(1): 5-12., p. 5), “o estudo da cultura material é sobre o modo em que as pessoas vivem suas vidas através do, junto ao, em torno do, a despeito do, na busca do, na negação do, e por causa do mundo material”. Em vista da omnipresença de elementos materiais em nosso empenho mundano, considera-se que a investigação de tais elementos repercute em uma camada fundamental de significação do nosso ser histórico. A materialidade do ente é considerada, ela mesma, reveladora, pois nos conta algo sobre si e a sua ambiência, mesmo que esse ente não seja um texto escrito. Além disso, acrescentamos, a configuração material direciona as nossas práticas, ao compor pré-reflexivamente os nossos horizontes de significação.

Tal concepção de cultura material parece suscitar dificuldades para hermenêuticas de teor gadameriano, na medida em que desloca a interpretação do domínio da textualidade (em sentido estrito) para o campo da materialidade. Embora a noção de textualidade gadameriana possa ser lida com certa flexibilidade, incorporando inclusive alguns traços da oralidade e funcionando como horizonte integrador de elementos materiais (tais como, conforme visto, a dos monumentos mudos), entendemos que ela não acolhe a contento a produção de sentido que advém da materialidade. Em Gadamer, a materialidade só adquire um estatuto espiritual ao ser reconduzida pela escrita e pela oralidade ao sentido, ou seja, quando os reintegra numa trama narrativa. Não há motivos para crer que a materialidade desempenhe qualquer papel relevante mesmo no âmbito da importantíssima noção gadameriana de pré-juízo (Vorurteil). No entanto, a partir de nosso entendimento da hermenêutica material, percebe-se que a significatividade dos entes materiais se impõe e estrutura pré-reflexivamente a própria compreensão de mundo. Se o texto escrito se mostra simultâneo a qualquer momento histórico, também o monumento institui uma ponte entre épocas, embora sob outro aspecto. Embora Gadamer concorde com a tese de que todo monumento surge a partir de uma interpretação de um mundo, o privilégio textual que defende tende a desconsiderar o âmbito de sentido pré-reflexivo que se dá na recepção corporal das manifestações materiais dos mundos passados.

Em vista disso, ao invés de atribuir e circunscrever a idealidade ao texto escrito, sugerimos que a idealidade constituinte da abertura dialógica do intérprete é suficiente para descerrar qualquer ente e que também os vestígios podem se mostrar em sua simultaneidade. Não consideramos os vestígios como entes “mudos”; afinal, ao providenciarem uma doação de sentido material, eles formam pré-reflexivamente o nosso ser-no-mundo. Esse sentido pré-reflexivo é apreendido através de nossa corporeidade e historicidade. A cultura material defende que existe uma estruturação material de nossa compreensibilidade, a partir dos diversos entes de nosso entorno, sejam eles utensílios, obras de arte, construções, ou elementos da natureza, como água, madeira, pedras, roupas e outros entes, e que esses materiais são hermeneuticamente relevantes, seja do ponto de vista da estruturação prévia de nossa existência, seja do ponto de vista temporal, já que permitem a abertura de contextos mundanos e históricos que não nos são acessíveis imediatamente. Em outras palavras, não encontramos apenas nos textos escritos as bases para a constituição da transmissibilidade de uma tradição, mas também nos elementos materiais não-escritos que originam a seu modo aberturas de mundos.

Uma perspectiva que congrega hermenêutica e cultura material é aquela defendida por Don Ihde, que recoloca a questão da hermenêutica material em um âmbito de operação que precede a divisão entre os tipos de ciências, cuja retroação pode ser retraçada aos primórdios da humanidade. Segundo Ihde,

as tecnologias materiais são mais antigas que os humanos modernos (homo sapiens sapiens)! E enquanto tudo da nossa espécie predecessora desapareceu, nós podemos reconhecer a antiguidade das tecnologias, culturas materiais, que remontam aos primeiríssimos hominídeos ( 2009 IHDE, D. 2009. Postphenomenology and technoscience: the Peking University lectures. Albany, SUNY, 92 p. , p. 38).

Sob a perspectiva da cultura material, a articulação de sentido dos seres humanos possui sempre uma contrapartida material, a qual é tecnologicamente incorporada, isto é, pré-determinada em sua amplitude de possibilidade por certa compreensão dos saberes aplicados à materialidade. A tecnologia não se coloca, assim, como mero reflexo aplicativo da ciência, tal como muitas vezes ela é contemporaneamente concebida. Ao contrário, “as tecnologias são certamente cronologicamente anteriores à ‘ciência’ - ao menos no sentido moderno”, pois elas dizem respeito às próprias práticas dos existentes humanos desde os seus primórdios, já que os nossos mais antigos ancestrais as empregavam ao se “relacionar com o seu entorno” (Ihde, 2009IHDE, D. 2009. Postphenomenology and technoscience: the Peking University lectures. Albany, SUNY, 92 p., p. 38). Desde tempos imemoriais, portanto, as tecnologias fazem parte do “nosso mundo da vida” (Ihde, 2009IHDE, D. 2009. Postphenomenology and technoscience: the Peking University lectures. Albany, SUNY, 92 p., p. 38).

O tipo de relação que estabelecemos com esses primeiros predecessores não se dá primariamente no campo da escrita, e muito menos no âmbito de formas ainda mais efêmeras de sentido, como oralidade e gestualidade, e sim no campo interpretativo dos vestígios materiais de suas práticas no mundo. Isso sugere que as relações com o passado ultrapassam o âmbito circunscrito pela escrita.

Vestígios possuem diferentes tipos de capacidade expressiva e durabilidade. Ihde salienta que embora as ferramentas da era da pedra datem de milhões de anos atrás, não convém restringir o campo cultural desses ancestrais apenas a isso, já que havia elementos tecnológicos de composição cultural que não perduraram: “tecnologias como redes de pesca, confecção de cestos, e outros similares, que não sobreviveram simplesmente em razão do material de que eram feitos, mas que deveriam ter sido parte do mundo ‘prático’ [praxical] dos primeiros humanos” (2009IHDE, D. 2009. Postphenomenology and technoscience: the Peking University lectures. Albany, SUNY, 92 p., p. 38). Os materiais utilizados desde os primeiros hominídeos até os humanos modernos sofrem modificações características de certa aquisição tecnológica, de determinado domínio tecnológico correspondente à sua ambiência cultural. O estudo sobre a materialidade desses vestígios implica também a elaboração conceitual sobre as tecnologias que as produziram e da cultura que sustentava os seus usos.

Em contraste com o que vínhamos desenvolvendo a partir da hermenêutica gadameriana, em que a transmissão cultural se localiza primariamente na escrita, a hermenêutica material entende que a transmissão promovida por esses vestígios se inscreve materialmente na própria modificação tecnológica do ente, abrangendo camadas de significação de nossas práticas mundanas que não se apresentam nos escritos. Na hermenêutica gadameriana, “o que restou” é considerado inferior à escrita, na medida em que é incapaz de se exprimir por si mesmo, sendo, desse modo, impotente em veicular a transmissão durável de um sentido que se apresenta simultâneo a todas as épocas. Ademais, conforme vimos no contexto do debate com Derrida, o vestígio é tomado por Gadamer, de modo geral, como subordinado à noção de texto escrito, circunscrevendo-se a esse domínio. Em contraste com a concepção restrita de vestígio de teor gadameriano, entendemos que a hermenêutica material permite elaborar tal conceito de modo mais amplo.

Examinaremos agora duas maneiras de se pensar a relação entre texto e materialidade na arqueologia. A primeira emprega a noção de texto para descrever os sítios arqueológicos em sua relação temporal, na forma de um palimpsesto, em que várias camadas de sentido se sobrepõem umas às outras (cf. Kalogeras et al., 2021KALOGERAS, Y. et al. 2021. Introduction. In: Y. KALOGERAS et al (Eds.). Palimpsests in Ethnic and Postcolonial Literature and Culture: Surfacing Histories. Cham, Palgrave Macmillan, p. 1-17.). Doravante, o texto é uma metáfora de articulação do sentido histórico, porém dotado de um alcance mais abrangente do que aquele defendido por Gadamer. Para a arqueologia centrada na cultura material, a noção de texto pressupõe que os vestígios podem comunicar algo por si mesmos, já que estão sempre integrados em um contexto de significação. Curiosamente, tal poderia muito bem ser uma tese gadameriana, se aos vestígios fosse concedida uma compreensibilidade imediata e se a corporeidade e o campo pré-reflexivo desempenhassem um papel mais premente.

Outra forma em que a arqueologia baseada na cultura material aborda a noção de texto é através de sua crítica, ao tomá-la como uma metáfora inadequada. Bjornar Olsen (2000OLSEN, B. 2010. In defense of things: Archaeology and the ontology of objects. Lanham, AltaMira Press, 203 p., p. 26) chama a atenção para o fato de que noções como texto emprestam um caráter acadêmico à pura materialidade, motivo pelo qual são empregadas por muitos arqueólogos: “a concepção de coisas se tornou mais e mais afastada de suas próprias qualidades materiais intrínsecas - em outras palavras, [...] conceber coisas qua coisas se tornou menos atrativa que concebê-las como texto, símbolo e narrativa”. Relacionado a esse argumento, dá-se o perigo de uma submaterialização (Olsen, 2000OLSEN, B. 2010. In defense of things: Archaeology and the ontology of objects. Lanham, AltaMira Press, 203 p., p. 26), já que a materialidade dos entes é apenas uma etapa de acesso a processos sociais e culturais dos quais eles são fragmentos, dotados de sentido apenas enquanto o que conduz a algo outro.

A metáfora do texto não representa apenas uma espécie de estrutura hermenêutica que organiza a compreensão a partir do todo que se anuncia, mas também, em Gadamer, como um elemento de experiência de unidade encadeada, dotada de fixidez, e que se oferece a diversos movimentos interpretativos. No entanto, cabe indagar se o tipo de organização que se dá mediante a metáfora da escrita e da leitura se mostra suficiente para os diversos tipos de relações com os entes em sua pluralidade material (cf. Wylie & Chapman, 2015WYLIE, A.; CHAPMAN, R. 2015. Material evidence: learning from archaeological practice. In: A. Wylie; R. Chapman (Eds.). Material evidence: learning from archaeological practice. Oxon, Routledge, p. 1-20.).

Em relação a esse ponto, Andrew Jones é assertivo. Após chamar a atenção sobre a necessidade de se estar alerta “sobre os problemas com a metáfora da leitura” (2007JONES, A. 2007. Memory and Material Culture. Cambridge, Cambridge University Press, 258 p. , p. 13), ele afirma que “embora precisemos ser conscientes de que ideias não são simplesmente inseridos em objetos para serem armazenados para o futuro, nós também precisamos discutir criticamente a pressuposição de que o mundo material pode ser tratado como um sistema de signos a ser lido” (2007JONES, A. 2007. Memory and Material Culture. Cambridge, Cambridge University Press, 258 p. , p. 13). É certo que a hermenêutica gadameriana não toma a linguagem como um mero sistema de signos, já que a palavra possui uma idealidade que rompe com a mera função de suporte de um significado, ao passo em que é dizente enquanto apresenta um horizonte de mundo. Contudo, tal descerramento de mundo é exclusivo da palavra, sendo o vestígio incapaz de realizar esse tipo de atividade, a não ser que se subordine à palavra e ao domínio textual. Do ponto de vista da arqueologia, entretanto, o vestígio é irredutível à dinâmica da compreensão textual, conforme alerta Jones (2007JONES, A. 2007. Memory and Material Culture. Cambridge, Cambridge University Press, 258 p. , p. 194): “interpretar [...] vestígios envolve descobrir um significado em vez de ler um significado numa paisagem”. A despeito de que seus efeitos também possam ser traduzidos como texto, o vestígio irrompe em níveis variados relativos ao horizonte de compreensão, que não são completamente subsumíveis às atividades (mesmo que metaforicamente concebidas) de escrita, leitura, audição e fala. Jones critica os teóricos que “relegam a cultura material a um papel passivo e não consideram a materialidade dos objetos ou de seu papel mnemônico nas práticas sociais” (2007JONES, A. 2007. Memory and Material Culture. Cambridge, Cambridge University Press, 258 p. , p. 16). Embora não seja correto atribuir uma desconsideração absoluta de tais elementos por parte de Gadamer, ainda assim é plausível afirmar que há certo desprestígio da materialidade em sua proposta hermenêutica, na medida em que ela se subordina aos elementos discursivos.

Yannis Hamilakis, por sua vez, repreende no campo da arqueologia o predomínio de abordagens que privilegiam a visão e a audição nas relações de corporeidade. De acordo com ele, nas recentes discussões da arqueologia sobre a fenomenologia da corporeidade, “parece que se privilegia o que no discurso ocidental são chamados de sentidos elevados ou distantes tais como a visão (e em menor medida, a audição) (...) em detrimento dos sentidos próximos ou assim chamados inferiores, tais como olfato, gustação e tato” (Hamilakis 2002HAMILAKIS, Y. 2002. The past as oral history: towards an archaeology of the senses. In: Y. Hamilakis; M. Pluciennik; S. Tarlow (Eds.), Thinking through the Body: Archaeologies of Corporeality. New York, Springer Science+Business Media, p. 121-136., p. 122). Considerando que Gadamer se concentra nas atividades de escrever, ler, falar e ouvir, cabe ponderar se as camadas de sentido produzidas além da visão e da audição, seja de forma literal ou metafórica, são ainda fenomenologicamente acessíveis ou se elas simplesmente se tornam distorcidas por essa ‘tradução sensorial’, ou ainda se elas são impedidas de se revelar. Não resta dúvidas de que a hermenêutica gadameriana é capaz de exprimir vestígios ao nível da linguagem escrita ou oral; o que se discute é se ela é receptiva aos elementos pré-predicativos que tais entes evocam.

Por fim, há que se salientar que o texto pressupõe uma articulação de sentido marcadamente temporal, conforme a famosa distinção operada por Lessing (2000LESSING, G. E. 2000. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia. Tradução de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo, Iluminuras, 320 p.) entre as artes temporais e as espaciais, ou, como diria mais contemporaneamente Vilém Flusser (2007FLUSSER, V. 2007. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Tradução de Raquel Abi-Samara. São Paulo, Cosac Naify, 224 p.), entre a mídia linear e a mídia em superfície. Não nos interessa aqui expor os detalhes dessas perspectivas e sua longa história de recepções, mas apenas destacar que a escolha pela operacionalidade textual não é sem consequências e que outras materialidades pressupõem formas distintas de realização de sentido. Ou, conforme argumenta Gosewijn van Beek (cf. 1991BEEK, G. van. 1991. Words and things: A comment on Bouquet’s “Images of artefacts.” Critique of Anthropology, 11(4): 357-360., p. 359), que a linguagem verbal se ocupe de aspectos materiais, não significa que estes sejam esgotados por ela ou que não tenham lugar em outros meios de experiência. Em consonância com esse argumento, Olsen aponta os limites da linearidade textual: “algumas das críticas iniciais à analogia textual nos estudos de cultura material eram baseadas na tradicional assunção de textos escritos como estruturas lineares (e irreversíveis) e, portanto, incompatíveis com o mundo material, com o seu palimpsesto caótico de coisas” (2000, p. 59). Em vista disso, a defesa inconteste do privilégio da abordagem textual parece ser injustificada, já que a extensão metafórica de seu modo de operação a outros domínios sensoriais e mnemônicos não ocorre sem a perda de camadas de sentido relevantes.

6 Considerações finais

O percurso aqui desenvolvido permite inferir algumas conclusões. Em primeiro lugar, a noção de textualidade em Gadamer se circunscreve a certo grupo de escritos que envolvem operações, metafóricas ou não, de leitura, fala e audição. De modo algum, rejeitamos as suas contribuições no âmbito da hermenêutica da palavra. O que salientamos é que, em vista de sua centralidade na palavra, a hermenêutica gadameriana se mostra inadequada para explorar vestígios que não se transmitem imediatamente pela palavra, como na atividade arqueológica. Relacionado a esse ponto, podemos afirmar que a hermenêutica gadameriana, embora sensível ao passado, não acolhe suficientemente a significatividade oriunda da materialidade e nem as formas de corporeidade que a correspondem. Além disso, é possível dizer que do ponto de vista da arqueologia, a metáfora do texto não deixa de ter os seus defensores, embora eles a empreguem de forma mais alargada do que Gadamer, ao traduzir camadas materiais em narrativas que se sobrepõem. Por outro lado, existem teóricos da arqueologia que abandonam o texto como metáfora metodológica, já que ela pressupõe um tipo de compreensão linear condizente com a leitura, sendo que a significatividade do entorno material não é construída como um texto. A materialidade do passado nos atinge em níveis pré-reflexivos, numa elaboração corporal distinta daquela da organização textual. Ademais, tanto o texto quanto a obra de arte são exemplares de entes produzidos a partir de certa intencionalidade, o que lhes confere uma unidade de sentido que se antecipa a cada intérprete e permite a este experimentar a sua idealidade. Caso diverso se dá com tudo aquilo que não possui tal suposta unidade, portanto, com as sobras e os remanescentes, cujos contextos de transmissão se perderam na história. Para abarcar tal universo investigativo, a hermenêutica gadameriana precisaria ter sido sistematicamente expandida para domínios materiais.

Por fim, há que se salientar que a integração ao todo a que Gadamer submete o vestígio sob o paradigma textual não apreende o seu caráter desviante. O vestígio não é algo à espera de uma síntese numa trama; ao contrário, ele oferece um tipo de abertura que coloca em disputa a possibilidade de uma integração apropriadora. Os vestígios de outrora não são elementos meramente disponíveis para enriquecer e complementar certa trama significativa, mas aberturas que conflitam com os horizontes atuais. Nesse sentido, as perspectivas arqueológicas sensíveis ao vestígio propiciam um campo de sentido, que, na hermenêutica gadameriana, permanece secundário.

Referências

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  • 1
    Diferentemente das concepções de escritura em Jacques Derrida, no âmbito de uma iterabilidade entre realidade e linguagem (cf. Schalkwyk 1997SCHALKWYK, D. 1997. What Derrida means by “the text”? Language Sciences, 19(4): 381-390.), e de estilo em Maurice Merleau-Ponty, que abarcam sempre mais do que o texto escrito (cf. Silverman, 2013SILVERMAN, H. J. 2013. Textualities: between Hermeneutics and Desconstruction. New York, Routledge, 269 p. , p. 183).
  • 2
    Todas as traduções das citações em língua estrangeira são de minha autoria, salvo obras traduzidas ao português que constam nas referências. Alerto ao leitor sobre algumas opções de tradução que diferem das mais usais, tais como Gebilde - conformação (e não configuração ou estrutura), que salienta a reunião (Ge-) do que se forma (bilden - formar), e Verständingung - entendimento mútuo (e não acordo), que ressalta o caráter histórico-ontológico da fusão de horizontes, ao invés de uma concordância negociada que o termo acordo pode sugerir.
  • 3
    Neste artigo, passamos ao largo das acepções específicas de vestígio/rastro (trace) propostas por Derrida e Emmanuel Levinas, em vista do escopo de nosso propósito. Ao invés, daremos enfoque às concepções de “resto” e “vestígio” em Gadamer para, na última seção, nos restringirmos ao aspecto material do vestígio.
  • 4
    O conceito de literatura (Literatur) engloba, além das obras de arte literárias (literarische Kunstwerke), toda a tradição literária (literarische Überlieferung) (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 168). Isso significa, portanto, que ela abarca “textos religiosos, jurídicos, econômicos, públicos e privados de todos os tipos”, bem como os escritos que os recepcionam, ou em uma expressão, “a totalidade das ciências do espírito” (Gadamer, 1990GADAMER, H.-G. [GW1]. 1990. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Gesammelte Werke 1. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck ), 494 p., p. 167).
  • 5
    Embora seja comum a tradução de Gleichzeitigkeit por contemporaneidade, o próprio Gadamer sugere a opção por simultaneidade. Confira a declaração de Richard E. Palmer (Gadamer, 2007GADAMER, H.-G. 2007. A Look Back over the Collected Works and Their Effective History. In: R. PALMER, The Gadamer Reader: A Bouquet of the Later Writings. Editado e traduzido para o inglês por Richard E. Palmer. Evanston, Northwestern University Press, 469 p., p. 193).
  • 6
    Além dos exemplos mencionados, cabe salientar as formas de linguagem que resistem à textualização: os antitextos, os pseudotextos e os pré-textos. (Cf. Gadamer, 1993aGADAMER, H.-G. [GW2]. 1993a. Hermeneutik II: Wahrheit und Methode. Gesammelte Werke 2. Tübingen, J.C.B Mohr (Paul Siebeck), 533 p., p. 347).
  • 7
    Sobre as dificuldades do primeiro encontro entre Gadamer e Derrida, ver Michelfelder & Palmer (1989MICHELFELDER, D. P.; PALMER, R. E. (Eds). 1989. Dialogue and Deconstruction: the Gadamer-Derrida Encounter. Albany, SUNY, 352 p.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2022
  • Aceito
    17 Mar 2023
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