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Educação e direitos humanos

PONTO DE VISTA

Educação e direitos humanos

Maliene Rodrigues

Especialista em Psicologia Social e da Educação. Técnico Superior em Planejamento de Ensino da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Escrever ou falar de direitos humanos é reconhecer que o homem única e simplesmente por ser humano tem um direito inerente e inalienável: o de ser integralmente humano e, decorrente desse direito essencial, o direito de ter desenvolvida e preservada a sua íntima humanidade.

Ser humano constitui a mais profunda aspiração de dignidade que o homem pode sonhar. Significa ter direitos fundamentais: o direito à vida e à liberdade, ao trabalho e à segurança, ao amor e à razão, ao conhecimento e à tranqüilidade, à paz, enfim.

Ter direito à vida não significa apenas viver, fato irreversível para quem nasceu e ainda não experimentou a morte.

Ter direito à vida significa viver com qualidade, ter possibilidade de desenvolver a própria personalidade, ter seus potenciais físicos e de inteligência e afetividade em permanente crescimento; ter condições intelectuais e afetivas para discernir e fazer escolhas; ter, enfim, possibilidades de construir o proprio destino e governar a própria vida.

Viver com essa dignidade significa existir e "existir é lançar-se no mundo",1 é fazer-se pessoa, é ser livre, a despeito dos conhecimentos, das tradições, da historia, da morte e de todas as limitações humanas.

O homem existe justamente porque se transcende, porque se dá sentido, persegue objetivos, cria e desenvolve valores.

"O que se chama vitalidade, sensibilidade, interligência não são qualidades realizadas simplesmente, mas uma maneira do homem lançar-se no mundo e de desvendar-se como ser." 1

O Que Significa Ser Humano?

Cada um de nos é dotado de uma natureza interna, limitada em certo sentido e, em certo sentido, invariável. É esta natureza que nos torna todos semelhantes.

Também é esta natureza sempre em evolução que nos torna diferentes uns dos outros.

Temos necessidades fundamentais, não sõ de sobrevivência pura e simples, como o atendimento ás nossas carências fisiológicas, mas de integridade mental e afetiva.

Para atender essas necessidades de natureza essencialmente psíquica, precisamos de segurança, de afeição, de oportunidades de desempenho e singularização, de autonomia e de interação com as outras pessoas.

Mais do que isso, temos necessidade de crescer em todas as dimensões não sõ o corpo, a inteligência e a qualidade das emoções mas também a nossa amplitude dentro do mundo e o nosso poder de transformá-lo para melhor.

Como esta natureza humana parece ser neutra em relação à questão do Bem e do Mal, é prê-moral e tem necessidade de crescimento, torna-se necessário que se incentive a sua expressão.

A carência humana, se negada, cerceada, reprimida ou eliminada, torna-se doente, por vezes de maneira óbvia, outras de modo sútil e camuflado. As vezes, percebe-se a tempo. Outras, tarde demais.

Estar vivo e ser pessoa significa estar sendo atendido em suas necessidades mais fundamentais e ter em crescente e contínuo desenvolvimento a dimensão humana.

Isto, em outras palavras, significa um sentido para a existência. Significa saúde e integridade.

As pessoas sadias satisfazem suficientemente suas necessidades de segurança, amor e filiação. Nem mais nem menos. Não são obsecadas por estabilidade de qualquer natureza, nem perseguem o amor com desespero, nem desejam se ver continuamente acarinhadas, nem precisam manter-se dependente de nenhum grupo, pessoa, sentimento ou idéia.

As pessoas sadias são profunda e naturalmente livres. Percebem a realidade exterior com grande alcance, rapidez e fidelidade. Estão mais próximas da Verdade e da Justiça, porque respeitam a própria humanidade como seu único e máximo valor.

Estas pessoas, raras no mundo de hoje, vivem em permanente processo de realização das próprias potencialidades, o que lhes permite uma crescente autonomia e resistência a qualquer processo de condicionamento social e cultural.

Por causa desta liberdade interior, as pessoas em processo de individuação manifestam uma aceitação sempre maior de si, dos outros e da natureza. Reverenciam a vida em todas as suas manifestações e apresentam-se mais originais não sõ nas criações, mas inclusive no modo de viver.

A felicidade, para elas, constitui-se num processo dinâmico em que a dor não está necessariamente eliminada, mas no qual a consciência tem um poder decisivo no que diz respeito à fruição da vida em geral.

Mais vitais e mais amantes da vida, tais pessoas manifestam maior espírito de democracia e fruem a beleza e a simplicidade, a sabedoria e a humanidade com mais intensa emoção.

Sentindo-se Pessoa, tais pessoas sentem as outras da mesma maneira e, portanto, desejam para toda a humanida de o mesmo extraordinário destino.

Quanto mais me encontro e quanto mais eu sou, as pessoas adquirem para mim uma dimensão única. Se eu sou, quero-as livres. Se eu sou, quero-as conscientes, amorosas e criativas. Se eu sou, quero-as humanas, autodiretivas, transformadoras e em transformação" 3

Ser pessoa significa, portanto, ser apaixonado.

A paixão e a necessidade de expressar. nossas faculdades em relação ao mundo. Isto quer dizer que

porque tenho olhos, tenho necessidade de ver;

porque tenho ouvidos, tenho necessidade de ouvir;

porque tenho uma mente, tenho necessidade de pensar e de sentir.

Em suma, porque sou uma pessoa humana, tenho necessidade do homem e do mundo.

Todos os homens têm o direito fundamental de crescerem não só fisicamente, mas também quanto aos seus potenciais intelectuais e a sua expressão afetiva. Isto quer dizer que todos os homens têm direito a satisfação de suas necessidades vitais básicas: alimentação, saúde, moradia, educação, lazer, amor, segurança, incentivo, justiça, verdade e paz.

O homem é um ser que vive com totalidade. Ele precisa alimentar-se para ter seu corpo sadio, mas precisa alimentar-se também para ter sua mente sadia.

Em todas as partes do mundo, os cientistas têm anunciado farta e dramaticamente a íntima correlação existente entre o atraso mental e a desnutrição.

BALDWIN demonstrou que os escolares bem nutridos não só apresentam melhor desempenho intelectual, mas também maior nível de inteligência e WHIPPLE, depois de inúmeros estudos, concluiu que o precocidade intelectual é mais freqüente entre crianças bem nutridas.3

Entre os maiores prejuizos que a desnutrição e/ou nutrição inadeqíiada podem acarretar para o desenvolvimento mental, BLANTON relaciona a falta de energia física e nervosa, a falta de atenção, a memória prejudicada e compreensão deficiente e vagarosa.

Ja é popular, ainda, que também para crescer e para ter sua inteligência desenvolvida, o homem precisa de amor.

Os médicos do Hospital John Hopkins, nos Estados Unidos, acompanharam treze casos de jovens que apresentavam estatura muito abaixo do normal e eram profundamento imaturas quanto à fala e ao comportamento. Eram tidos como deficientes mentais. Em algum ponto de suas vidas o desenvolvimento global - tanto físico quanto emocional e intelectual - havia sofrido uma atrofia.

Uma desses meninos tinha 4 anos e o médico sem nada suspeitar lhe dera aproximadamente um ano. Outro menino, de quase 12 anos, era de estatura menor do que a maioria das crianças com metade da sua idade.

Qual seria a explicação?

Os médicos comprovaram a inexistência de problemas alimentares e as crianças não tinham herdado qualquer perturbação física. Entretanto, eram crianças emocionalmente perturbadas e que haviam sido negligenciadas pelos pais.

Ao serem colocadas em ambiente acolhedor e protetor, as crianças imediatamente passaram a desenvolver-se. Em menos de um ano, o garoto de 12 anos cresceu mais de 15 centímentros e engordou quase 20 quilos. Cada uma dessas crianças, ao ser colocada num orfanato, continuou a progredir. Mas as que retornaram ao convívio dos pais rejeitadores pararam de crescer e perderam peso.

A rejeição da criança por parte dos pais, sobretudo da mãe, é considerada como uma das mais prováveis causas dos comportamentps esquizoides e da esquizofrenia propriamente dita. Sentindo-se abandonada, a criança

fecha-se em si mesma, corta relações com o mundo e contra ele se revolta. Com esse mundo se desentende e o atravessa cautelosa ou agressivamente, com a alma vazia de amor.

Viver livre é um direito fundamental.

A liberdade é a fonte de todas as significações, de todos os motivos, de todas as paixões da humanidade.

A liberdade não é minha nem tua. Ela não nos pertence. Pelo contrário, é a liberdade que nos tem e nos protege. A liberdade é uma ambiente em que se vive; por isso não é possivel haver um só homem livre numa sociedade sem liberdade. A liberdade invoca-se, propicia-se, mas nunca se a recebe de graça; pelo contrário, ela é que nos recebe e domina. É possivel fugir à liberdade, como quem foge de casa; é possível fugir à liberdade, como quem foge de casa; é possível impedir que outros vivam livremente, mas não é possível nem ter nem impor a liberdade."7

Querer-se livre é querer-se humano, pois o direito à liberdade abrange outros direitos: o direito de ser criador, o direito de participar, o direito de expressão, o direito de pensar e sentir de maneira própria e singular, o direito de agir e reivindicar, o direito de amar sem constrangimentos nem tabus, o direito de viver livre do medo e da opressão.

Para gozar deste direito tão legítimo quanto essencial à sua integridade como Pessoa Humana, o homem precisa de uma sociedade humanizada e de viver num Estado livre.

Entendo por sociedade humana e humanizada aquela em que o homem prevalece como o centro de todos os valores.

Entendo por Estado livre aquele que se autodetermina face ao universo, desenvolvendo-se política, social e economicamente autônomo, jamais deixando desvanecer-se, na corrente das trocas internacionais, a sua cultura e os seus valores originais.

Em suma, os direitos podem ser dados aos homens por um governo, o qual é estabelecido com essa finalidade, recebendo do povo o poder de assim agir. Porém, ninguém tem o poder de dar a liberdade. Ela existe ou não existe. Os governos podem e devem estabelecer as condições propicias à liberdade ou remover as condições que impeçam a sua vigência, mas nenhuma lei, por si só, pode estabelecer a liberdade, sem que sejam removidas as condições que a impeçam. Enfim, a democracia não será nunca bem sucedida se o povo que a estabelece já não vive em plenas condições de liberdade e não seja capaz de mantê-las."7

Lamentavelmente, os sistemas sociais e suas bases institucionais estão distanciados da experiência humana, dos anelos e das necessidades humanas. Perderam, na realidade, todo o contacto com a natureza humana.

A escola, a família e os sistemas de crenças de que as antigas ordens e organizações conceituais de outros tempos receberam apoio integral, não têm em nosso mundo a mesma realidade e, no entanto, ainda pesam sobre nos, massacrando a identidade pessoal e sufocando, quando não destruindo irreversivelmente, as forças criativas e o poder humano de transformação.

Gradualmente, sem sentir, caimos na armadilha e nos tornamos "massa", absolutamente previsíveis, absolutamente moldáveis, destituídos de toda a liberdade e condenados à desumanidade.

A escola, a família e as religiões e, agora mais recentemente, os meios de comunicação às massas, funcionam como agências condicionadoras e mantenedoras de padrões de comportamento distantes da natureza humana. Ainda predomina nesses grupos o ideal da moral e da fôrma, a supremacia da autoridade, a idéia de formação do homem não pela consciência e pela sensibilidade, mas pela intimidação, o medo, as ameaças e punições.

Não se pretende educar, porque a tarefa mais legítima da Educação é justamente intensificar a consciência e a sensibilidade. O que se pretende é a alienação, a nobotlzação do homem às regras, o desvio e o sufoco as forças criativas, o desestímulo a capacidade real de pensar, de agir e de participar com autenticidade. O que se faz, na escola, inclusive com a cumplicidade da figura trágica do mestre, angustiado e conivente, é negar à criança, ao adolescente, ao jovem, ao homem em geral, a oportunidade simples, o direito elementar de ser integralmente humano.

Uma sociedade que agrilhoa a consciência social, que nega ás pessoas direitos tão fundamentais, não sabe, ainda, reverenciar a vida. Não sabe sequer que a vida tem um sentido que, não obstante as poderosas forças do condicionamento e da alienação do homem, permanece intacto e acessível a todos os homens.

Só resta buscá-lo.

O Ensino dos Direitos Humanos

Cabe à Educação ocupar-se em todos os níveis e graus do ensino dos direitos humanos, afim de que a profunda aspiração dos homens a dignidade humana seja definitivamente preservada.

O estudo dos direitos humanos deve ser exigido por todos como parte do currículo de todos os cursos.

Nas escolas de nível médio e nas universidades, estudantes e professores precisam reunir-se para a discussão dos direitos e liberdades fundamentais sem o que não haverá jamais plenas garantias de que estejam em desenvolvimento e de que realmente estejam sendo preservados.

O estudo dos direitos humanos é fundamental para que se atinja, em todo o mundo, alto grau de consciência social. Para tanto, é preciso que sejam estudados em todas as faculdades, não so para que sejam conhecidos, o que por si so já é um direito, mas também para que o ensino se aprofunde e a pesquisa se amplie em benefício não sõ das liberdades, mas também da melhoria imediata da qualidade de vida humana.

Os efeitos dos progressos tecnológicos sobre o desenvolvimento e o exercício integral dos direitos humanos precisa ser objeto sistemático de cientistas e educadores. E nas faculdades de medicina que se deve ensinar os direitos humanos em relação aos cuidados básicos da saúde, a preservação e manutenção da saúde, à prestação e custo do atendimento médico, às experiência farmacológicas e genéticas, aos transplantes de órgãos, à utilização da psiquiatria e de outros ramos da medicina para fins não-médicos. 8

Nosso conhecimento das circunstâncias e causas que originam a fome, a pobreza, a doença, a tortura, o genocidio e a discriminação racial e religiosa ainda não são suficientes para prevenir ou eliminar esses males. Historiadores, socíologos, economistas, engenheiros, psicólogos, juristas e especialistas em ciências políticas precisam encontrar as soluções para estes problemas.

Filósofos e teólogos, poetas e artistas precisam e podem oferecer boas pespectivas sobre o apoio universal que seria concedido a certos conceitos dos direitos humanos fundamentais, tema que poderia ser estimulado se ensinado nas Universidades.8

Também é de vital importância o ensino dos direitos do homem em faculdades de educação, cursos de pedagogia, escolas normais, centros de educação especial, serviço social e biblioteconomia.

Se os futuros professores não conhecem os principios básicos, os problemas e as soluções em matéria de direitos humanos, como poderão fazer cumprir nas escolas primarias o que determina a Declaração Universal, ou seja, contribuir por meio da educação para o fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais? As inúmeras violações dos direitos humanos que continuam ocorrendo em todo o mundo são uma triste e permanente lembrança da necessidade de se reforçar e consolidar a educação do respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais.8

A defesa internacional dos direitos do homem, dada a sua importância, transcende divergências ideológicas, políticas e culturais.

Ensinar o respeito aos direitos humanos - tantos os próprias como os alheios - e ter coragem de afirmá-los mesmo nas circunstâncias mais dificies é o maior imperativo de nossa época.

NOTAS

  • 1 - BEAUVOIR,. S. Moral da ambigüidade. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1970.
  • 2 - MASLOW, A. H. Introdução à psicologia do ser. Rio de Janeiro, Eldorado, 1973
  • 3 - RODRIGUES, M. Psicologia Educacional : uma crônica do desenvolvimento humano, 2 . ed., São Paulo, McGraw-Hill do Brasil, 1978.
  • 4 - FROMM, E. A revolução da esperança, Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
  • 5 - LEWIS, H. R. e LEWIS, M.E. Fenômenos psicossomáticos, Rio de Janeiro, José Olympio, 1974.
  • 6 - DOURADO, L. A. Ensaio de psicologia criminal, Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
  • 7 - BUERGENTHAL, T. Desafio à Universidade., Correio da UNESCO, Rio de Janeiro, (12):dez. 1978.
  • 9 - M'BOW, AM. A Cortina da Pobreza, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1979.
  • 2
    E quando isto acontece, e para a maioria das pessoas desgraçadamente tem acontecido, a busca de sentido torna-se impossível e a pessoa humana desaparece para dar lugar a uma máscara, que não sabe de si, não sabe fazer escolhas, não se reserva um lugar no mundo, não sabe dos outros, se angustia ou é indiferente ou torna-se má.
  • 4
    Pão e Amor
  • 3
    Além disso, os desnutridos apresentam baixa reatividade emocional. Isto significa, em linguagem objetiva, que para ser mais humano, o homem precisa de comida, boa comida, comida adequada.
  • 5
    As principais características das crianças criadas em ambientes emocionalmente frios e desestimuladores ou carentes de incentivos são a falta de atenção, a palidez, o desânimo, a relativa imobilidade, o emagrecimento, o mutismo, a falta de apetite, evacuação freqüente, aparência de infelicidade, sono insuficiente, ausência de reação aos estímulos afetivos, propensão para a febre e ausência de sucção.
  • 6
    "Liberdade, Abre As Asas Sobre Nós!"
  • 9
    Portanto, o estudo da Declaração Universal dos Direitos do Homem e o consequente ensino das liberdades fundamentais são indispensáveis a todo Pais que professe a fé incondicional na dignidade humana.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1982
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