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Apresentação

Apresentação

Em cada ser humano ocorre uma vacilação entre um sexo e outro; e às vezes só as roupas conservam a aparência masculina ou feminina, quando, interiormente, o sexo está em completa oposição com o que se encontra à vista. Cada um sabe por experiência as confusões e complicações que disso resultam

[....] (Woolf, 2008, p. 124-5).

Este dossiê, intitulado Gênero, Sexualidade e Educação: novas cartografias, velhos problemas, publica-se em um momento de expansão dos temas originados nos estudos de gênero e da sexualidade nas investigações educacionais. Com um número maior de seminários e encontros científicos, além de coletâneas organizadas e outros dossiês em periódicos importantes sobre o assunto, talvez já não seja mais necessário justificar a presença deste dossiê na Educar em Revista. Entretanto, em se tratando de uma área de pesquisa e produção de conhecimento relativamente nova, pois os estudos de gênero e da sexualidade despontaram no cenário acadêmico nos anos 70, cada nova iniciativa de agregar pesquisadoras/es contribui para a consolidação definitiva desse campo de estudos na produção de conhecimento da pesquisa educacional. No Brasil, embora haja produção acadêmica importante ainda nos anos de 1970, a aparição de obras de referência é mais tardia, como o livro de Guacira lopes LOURO - Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista, de 1997. Assim, diferentemente de outros países como os Estados Unidos, Canadá e Inglaterra, que desde o final da década de 70 já organizavam departamentos e programas de pós-graduação intitulados Women, Feminism, Gender, Gay and Lesbian Studies, no Brasil, ainda hoje há pouquíssimas experiências dessa natureza. Por quê? Certamente não é por falta de iniciativa das/os pesquisadoras/es da área, que vêm se organizando no interior das insuficientes geografias epistemológicas das universidades brasileiras. São poucas as universidades que possuem linhas de pesquisas em programas de pós-graduação ou disciplinas específicas de graduação e pós-graduação sobre esse tema. Na maior parte das universidades brasileiras, as abordagens sobre gênero e sexualidade ainda permanecem nas mãos de pesquisadoras/es individuais ou de pequenos grupos de pesquisa que introduzem os temas em suas disciplinas regulares ou, na melhor das hipóteses, na oferta de disciplinas optativas e seminários especiais em programas de pós-graduação.

Entretanto, a grande demanda brasileira, oriunda das secretarias municipais e estaduais de educação, por cursos de extensão e formação continuada em gênero e sexualidade para a educação básica, revela a enorme lacuna dos currículos de formação de professoras/es. As secretarias de educação básica há muito já reconheceram a necessidade de formação de docentes no campo dos estudos de gênero e da sexualidade. Todavia, grande parte das universidades ainda faz "ouvidos moucos" a tal exigência, ao insistir na permanência de suas antigas e tradicionais grades curriculares, mesmo quando "novos currículos" são desenhados. Desse modo, a publicação de mais uma coletânea sobre gênero e sexualidade, em um periódico de grande envergadura, como a Educar em Revista, é muito importante, tanto do ponto de vista da apresentação dos temas para aquelas/es que ainda não os conhecem, como também para leitoras/es já familiarizadas/os com esses debates no cenário educacional brasileiro e internacional.

Nos países anglo-saxões, pesquisadoras/es ao longo dos anos de 1980 e 1990 realizaram a importante tarefa de delimitar as bases epistemológicas do campo das pesquisas de gênero e sexualidade. os esforços acadêmicos delimitaram os espaços entre as ações de intervenção social, importantíssimas na constituição dos problemas do campo, e as interrogações oriundas das teorizações dos estudos feministas, estudos de gênero, gays e lésbicos, os estudos das masculinidades e, mais recentemente, os estudos queer. Dentre estas/es autoras/es destacam-se Joan Scott, Sandra Harding, Teresa De lauretis, Joan Sedwick, Jefrey Weeks, Valery Walkerdine, Judith Butler e Deborah Britzman, esta última, presente neste dossiê. Estas/es autoras/es se implicaram nas teorizações filosófico-político contemporâneas, abordando questões relativas ao pós-colonialismo, identidade, relações de poder e produção de novas subjetividades e práticas sociais e sexuais.

A ideia deste dossiê nasceu de nossa atuação nos programas de Pós-Graduação e da demanda que nos chega proveniente das comunidades educacionais externas à universidade. Além disso, também tínhamos o objetivo de reunir um conjunto de pesquisadoras/es que atuam nesse campo, no Brasil e outros países como Chile, Cuba e Canadá. Assim, a diversidade de instituições nacionais e internacionais das/os autoras/es que compuseram esse dossiê demonstra uma nova configuração geopolítica do debate e o estabelecimento de nova cartografia conceitual para o campo de estudos do gênero e da sexualidade.

Este dossiê se compõe de oito artigos que, de múltiplas formas, abordam as questões fundamentais que configuram o debate atual sobre gênero e sexualidade, ora de forma mais explicitamente relacionada à educação e ao ensino, ora tomando a educação como lugar ampliado e não apenas circunscrito à escola. Assim, gênero e sexualidade se entrelaçam, estabelecendo um conjunto de elementos que, sobretudo, nos faz pensar sobre aquilo que nos define, nos separa, nos inclui ou exclui, instaurando modos de vida e identidades. o gênero como categoria analítica (SCOTT, 1995) e a sexualidade como forma de exercício das relações de poder (FOUCAULT, 1984) são os elementos centrais a partir dos quais os temas são abordados, definindo-se assim um campo analítico próximo àquilo que se chamou de teorizações pós-críticas ou pós-identitárias. As distintas formas de sermos homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, e o estabelecimento das fronteiras entre o certo e o errado, o normal e o anormal, são analisados do ponto de vista de sua (des)constituição histórica, demonstrado os mecanismos de controle engendrados nessas construções. os desejos, Eros e os aprendizados do corpo são compreendidos como configurações subjetivas que extrapolam as políticas de normatização dos corpos e dos sexos. A diversidade sexual em sua abordagem pelas teorizações queer aparece em vários dos textos como uma forma libertária de vida, ou mesmo como possibilidade de pensar para além dos limites estabelecidos pelo nosso "macambúzio" pensamento moderno.

Iniciamos o dossiê com o texto de Tânia Navarro Swain (UNB), que pergunta sobre a normalidade das práticas e dos sujeitos, questionando um mundo que só sabe pensar por meio dos binômios - homem/mulher, masculino/feminino, heterossexual/homossexual, perdendo a possibilidade do pensar múltiplo. Seu olhar voltado para o novo, o criativo, o contraditório, o paradoxal, ofereceu-nos o conceito de heterogênero. A seguir, Maria Rita de Assis César (UFPR) nos remete para uma reflexão sobre a escola e as práticas escolares acerca da sexualidade e o gênero, na tentativa de reconstruir os caminhos "epistemológicos" percorridos pelas falas "verdadeiras" sobre sexualidade e gênero no universo da educação brasileira. Ao abordar a contemporaneidade, a diversidade sexual se destaca como tema fundamental que necessita de novos olhares e de uma perspectiva de análise que questione os limites binários de nossa capacidade de compreender o mundo.

O texto de Deborah Britzman (University of York - Canadá), escrito especialmente para compor essa coletânea, traz Eros como o grande organizador do desejo, da sexualidade e da própria educação. Partindo de pressupostos psicanalíticos e da teoria queer, a autora dá boas vindas à homossexualidade e a heterossexualidade como expressões humanas do amor. A educação sexual no texto de Helena Altman (UNICAMP) e Carlos Martins (UNESP) é proposta a partir de uma reflexão sobre a ética. Para os autores, a ética deverá ser tomada como prática refletida de liberdade, contrariamente à moral prescritiva, sempre presente nos trabalhos analisados pelos autores quando a gravidez e a paternidade na adolescência foram abordadas. Suyan Maria ferreira Pires (UFRGS) contribuiu com um texto em que analisa o amor romântico na literatura infantil. A pesquisa realizada em livros infantis demonstra a persistência da valorização do chamado "amor romântico" a partir do qual as desigualdades de gênero são naturalizadas e os papéis tradicionais são reiterados, como a responsabilidade feminina da criação dos filhos e a perspectiva dolorosa do verdadeiro amor.

Graciela Ezzatti (UMCE - Chile) trouxe o resultado de uma pesquisa realizada nas escolas secundárias de Santiago/Chile, na qual as representações sociais de masculinidade e feminilidade se enunciam por meio do discurso de jovens de diferentes extratos sociais. As águas e o aprendizado do corpo são os temas desenvolvidos por Cláudia Maria Ribeiro (UFLA). Em uma análise histórica, a autora traz aspectos da história do banho e dos encontros do corpo com a água como situação de aprendizado erótico do corpo e da sexualidade. Por último, Júlio Gonzáles Pagés e Daniel Alejandro fernández Gonzáles, professores da Universidad de Habana - Cuba, apresentam um tema que vem recebendo destaque importante nas investigações do campo dos estudos de gênero e da sexualidade: as masculinidades. Neste texto, esporte, violência e masculinidades são abordados a partir da perspectiva de gênero, analisando a aprendizagem da violência nas práticas sociais, como o esporte. A educação em seu sentido ampliado é assinalada com lugar fundamental de novos aprendizados sobre o masculino, em nome de uma sociedade mais justa e menos violenta.

Maria Rita de Assis César e Helena Altmann

  • WOOLF, Virginia. Orlando. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2008.
  • SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez., 1995.
  • FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    2009
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