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Uma proposta de sistemática para análise dos propósitos do currículo

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Uma proposta de sistemática para análise dos propósitos do currículo

Verner Artur Conrado Barthelmess

Professor Adjunto do Departamento de Métodos e Técnicas da Educação do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Coordenador do Curso de Mestrado de Educação do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná. Livre Docente pela Universidade Federal do Paraná

O currículo escolar é sempre sustentado por valores. Se não atribuo valores, já não sei por que educar. Quando, por outro lado a axiologia sucumbe na nebulosidade ideológica, todos os propósitos se desfiguram. A clarificação do universo de valores e sua estruturação mediante prioridades e preferências conscientemente escolhidas, deve proceder a formulação de qualquer propósito curricular.

Se abalisadas vozes podem afirmar que ainda inexiste uma teoria coerente de currículo, a falha pode debitar-se, em parte, à insuficiência da ênfase no axiológico, que é o primeiro termo da expressão que se procura. Uma vez explicitados os valores, os diversos propósitos aparecem hierarquizados. Os diferentes objetivos educacionais já se distinguem, não apenas pelo maior ou menor grau de sua complexidade ou abstração; passam a adquirir a conotação de valor, são agora mais valiosos uns que outros, são mais nobres uns que outros por que neles se realiza em mais alto grau o valor. Converte-se assim a taxinomia numa taxologia valorativa.

É intuito do presente artigo tentar uma proposta nessa direção. Montaremos inicialmente, para fixar idéias, um quadro de referência, disposto à moda de matriz, onde colocaremos, lado a lado, em três colunas, os diversos níveis das qualidades de cogitação, de desempenho e de atitude, graduando os valores em ordem crescente de baixo para cima.

C4 teleológico D4 virtuosidade A4 reverência

C3 epistemológico D3 perícia A3 estilo

C2 logístico D2 destreza A2 tolerância

C1 informativo D1 habilidade A1 auto-disciplina

O nível informativo é o menos graduado dos níveis de cogitação, consiste na acumulação de dados. Acima dele vem o nível logístico (processamento de dados) ; o epistemológico (avaliação das construções quanto ao conteúdo de verdade) e, finalmente, o nível teleológico onde o sujeito atua reflexamente sobre si mesmo modificando-se pela revisão de crenças e posições filosóficas básicas.

Os níveis de desempenho enriquecem-se a partir da habilidade que representa uma aptidão aliada a uma iniciação. Depois vem a destresa que é a habilidade qualificada pelo domínio pleno de uma técnica. A destreza converte-se em perícia quando já inclui discernimento crítico e capacidade de julgamento e culmina na virtuosidade onde a perícia supera a si própria por meio da criatividade.

Os níveis de atitude hierarquizam-se conforme a prioridade atribuída às respectivas esferas de valor. Na esfera biológica e econômica a atitude esperável é a auto-disciplina a começar pelo asseio corporal, e pela perseverança. Na esfera social cabe a tolerância que traz a aceitação do outro e a solidarização com ele. O estilo caracteriza a atitude madura e integrada do sujeito que se realiza como personalidade, e só se rende pela reverência, diante de um valor absoluto ou sagrado.

O quadro de referência assim traçado não é ainda o termo axiológico que se procura para ponto de partida de uma teoria do currículo, mas já é o canevas, o retículo de coordenadas dentro do qual inscreverei aquele termo, que intento definir desenhando-lhe o contorno e a extensão e prevendo suas direções de expansão e desenvolvimento. O termo aparecerá então como figura limitada, inscrita no quadro geral de referência de meu universo de valores. A escolha da configuração que lhe darei é minha primeira e importante tomada de decisão.

Nessa decisão levarei em conta as características do aprendiz: se é criança de sete anos ou se é um adolescente ou adulto que se profissionaliza e ainda aqui o termo será diferente para um aprendiz de guarda de trânsito, de físico nuclear ou de regente de orquestra, embora não deva esquecer que cada um deles pode realizar-se, também, como filho, como pai, como vizinho ou amigo. Levo também em conta as pressões do ambiente que preciso conhecer, equacionar e reinterpretar com muito realismo mas também com muita imaginação e audácia.

Estabelecida a opção quanto ao perfil dos valores desejados (e esperados), a axiologia encerra sua tarefa e começa a tarefa da metodologia, a quem cabe providenciar os meios de aquisição desse perfil. Um perfil de valores adquire-se na escola pelo manejo de conteúdos tão diversos como química e natação, mas a simples seleção do conteúdo não esclarece ainda o que espero de cada conteúdo ou de cada atividade, qual a contribuição que tenciono extrair de cada um deles para meu projeto de aquisição de calores. Assim 3 X 4=12 pode ser mera informação, mas pode também ser apresentado de um modo que dá o que pensar. No primeiro caso estou desenvolvendo apenas o elemento C 1, (primeiro nível de cogitação); se insistir no armazenamento mnenônico da informação (decorar a tabuada), desenvolvo também A 1 (primeiro nível de atitude, auto-disciplina). Mas posso também apresentar a novidade mostrando que 3 X 4 quer dizer 4+4+4. O elemenro desenvolvido passa a ser de outro nível.

Donde se conclui que importa indicar, além do conteúdo, o tratamento. Ou formulando doutro modo: conclui-se que o currículo que preciso desenhar há de exprimir-se numa linguagem de oportunidades de aprendizagem suficientemente explícitas para que o aplicador do currículo encontre indicação suficiente para poder operacioná-lo sem malentendido quanto aos valores visados.

E se já foi, assim, possível tirar do sistema proposta, uma primeira conclusão, impõe-se acusar que aqui e agora nasce a esperança de uma teoria para o currículo.

Se entendo por currículo uma seqüência de oportunidades de aprender planejada com determinada propósito, então cada uma de tais oportunidades há de estar orientada, qual vetor, rumo a esse propósito, embora, como sempre acontece aos vetores, estes possam compor-se entre si, valendo a resultante.

Interpretando os índices da matriz correspondente ao termo axiológico como sendo parâmetros de vetor, surge logo toda uma geometria, rica de possibilidades. Façâmo-la, por simplicidade, euclidiana e disciplinemos o tratamento do espaço abstrato em que a mesma se move, fazendo dele um espaço cartesiano cujas três dimensões ortogonais correspondam, respectivamente, à cogitação, ao desempenho e à atitude.

Cada oportunidade concreta de aprender localiza-se em tal espaço, dentro de uma figura sólida, cubo ou paralelepípedo, cujas arestas serão determinadas pelos módulos representados pelos índices da respectiva coluna na matriz. Já a afirmação de que se trata de um sólido, nunca plano ou linha, caracteriza uma tomada de posição. Se admito o sólido como forma universal estou professando minha fé na inseparabilidade operacional, no processo de aprender, de sua componente cogitacional, de desempenho e de atitude. Estou erigindo em princípio psico-pedagógico e constatação corriqueira de que ninguém pode aprender nada sem que no ato de aprender esteja implicado um nível, pelo menos, de cada uma das três colunas da matriz. Será admitir que o ato de aprender nunca prescinde de um mínimo de auto-disciplina, habilidade e informação.

A luz desse posicionamento parecem simplificações radicais as diferentes teorias ou procedimentos que cogitam, cada qual, de um só dos três aspectos implicados, seja só o da incrementar desempenho, só induzir cogitação ou só aprimorar atitude. Se formulo uma pedagogia que se reduz, por exemplo, ao planejamento do aspecto desempenho, estarei explorando uma aresta somente, da figura espacial, com omissão da outras duas que nem por isto deixarão de existir; serão empurradas para dentro da caixa-preta que contêm os aspectos que minha formulação não abrange. O sujeito continuará envolvido no processo, também do ponto de vista atitudinal e cogitacional; tais vairáveis ficarão, entretanto, sem apreciação nem controle.

Abordagens unilaterais do planejamento curricular têm, como toda simplicação radical, seu próprio atrativo e podem, por vezes, revelar-se produtivas, mas, decerto só naqueles casos especiais em que a figura sólida correspondente se apresenta muito alongada e de escassa base e desde que, é claro, a simplificação se faça mediante redução ao eixo que seja, no caso concreto, justamente o eixo maior da figura. Assim quando devo aprender a apertar com maestria determinado parafuso, na linha de montagem, a figura terá as medidas C 1 D 3 A 1 e será um paralelepípedo três vezes mais longo que largo, agigantando sobre o eixo do desempenho, onde devo alcançar o nível 3 (perícia) enquanto as outras dimensões estão reduzidas ao nível mínimo (auto-disciplina, informação). Neste caso é prático e não resulta em grande erro planejar todo o processo somente em função do desempenho. Mesmo assim não se pode garantir que as variáveis obscuras, ainda que minoritárias, não possam vir a interferir, pertubando o processo.

Figura 02


No exercício prático da arte de traçar currículo lida-se, em geral, com grandes blocos de aprendizagem: todo um curso, toda uma disciplina. Perder-se-ia nos meandros o arquiteto curricular que quisesse tratar ao mesmo tempo do particular e do geral. A opção usual é formular a configuração do grande bloco, era função dos propósitos finais visados, deixando a tradução em varejo para ser criada na sala de aula, sugerida no texto didático ou instrumentada pelo material de apoio. Entretanto, sempre que o executor do currículo seja outro que seu autor, faz-se mister que este legue àquele uma clara formulação de cada conteúdo ou atividade.

A primeira etapa é sempre o esclarecimento dos propósitos, quanto aos níveis de valor que se pretende atingir. Se quero produzir um primeiro-violino, tenho de estabelecer, primeiro, como o quero. Para isto preciso conhecer o metier de um primeiro-violino. Como apreciador de boa música posso aceitar-me como paradigma de consumidor refinado: exigirei que meu produto final acabado alcance nível D4 (virtuosidade) no manejo de seu próprio instrumento, espero dele nível A3 (estilo próprio, implicando personalidade), ao lado do nível 3 em matéria de cogitação, onde espero julgamento crítico quanto ao conteúdo de verdade, que aqui aparece com a capacidade de distinguir a obra autêntica do Kitch e da contrafação. Mas quando se trata, agora, de discriminar quais os estudos, os exercícios e as atividades que meu aprendiz deve executar para alcançar aqueles níveis, verifico que a mera condição de admirador e amante do belo não me basta para traçar formulação válida. Preciso conhecer realmente a profissão de músico de orquestra.

Não existe o curriculista tout court, o pan-curriculista. A pessoa é sempre curriculista de, como se é também professor de (primeiras letras, Química, judô, astrologia). Se não sei astrologia, nem nela acredito, não posso ensiná-la nem muito menos dar-lhe currículo.

Conviria, portanto, acolher de preferência pessoas que tragam a experiência de uma especialidade, para deles formar os curriculistas dessa especialidade. O ideal, é claro, seria o duplo-Mestre ou até duplo-Doutor.

A construção de uma teoria coerente a abrangente para os fatos do currículo constitui, entretanto, desafio universal para quantos participam da preocupação de fazer, com certa responsabilidade, algum trabalho idôneo e promissor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1981
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