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Desempenho, gestão, visibilidade e tecnologias como vetores estratégicos de regulação e controle de condutas na contemporaneidade

Performance, management, visibility and technologies as strategic vectors of regulation and control of conduct in contemporaneity

RESUMO

O artigo em tela trata, grosso modo, de questões que articulam a biopolítica à educação no contexto das sociedades de controle. Para fins de delimitação dessa ampla e complexa temática, restringe seu intuito à tentativa de identificar, descrever, articular e problematizar quatro vetores considerados estratégicos ao agenciamento entre biopolítica e educação, sobretudo, ao governo e à regulação das condutas na contemporaneidade. Para tanto, parte da premissa de que, desde o advento de uma governamentalidade neoliberal, tanto de caráter ordoliberal quanto de matiz estadunidense, colocou-se em marcha, particularmente nas sociedades ocidentais, um amplo e intensivo processo de empresariamento da sociedade. Este, dentre outras coisas, teve por efeito reorganizar e redefinir o que tradicionalmente se tem entendido por educação desde a Modernidade. Tais transformações remetem a um novo agenciamento, educativo-empresarial, que opera a partir da articulação simultânea entre o desempenho (performance), a gestão (management), a visibilidade e as novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs). De outra parte, em termos teórico-metodológicos, as argumentações são desenvolvidas e concatenadas em estreito diálogo com formulações de autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Richard Sennett, Alain Ehremberg, Vicent de Gaulejac, Christian Laval e Paula Sibilia, dentre outros.

Palavras-chave:
Biopolítica; Governamentalidade neoliberal; Educação; Controle; Gestão

ABSTRACT

This article deals with questions that articulate biopolitics to education in the context of societies of control. In order to delimit this broad and complex thematic, it restricts its intent to identifying, describing, articulating and problematizing four vectors considered strategic to the assemblage between biopolitics and education, above all, to the government and to the regulation of conduct in Contemporaneity. To this end, it starts from the premise that, since the advent of a neoliberal governmentality, both in its ordoliberal character and in its American nuance, a broad and intensive process of entrepreneurship of society was set in motion. Among other things, this process had the effect of reorganizing and redefining the meaning of education since Modernity. Such transformations refer to a new educational-entrepreneurial sort of mediation that operates through a simultaneous articulation between performance, management, visibility and new information and communication technologies (ICTs). On the other hand, in theoretical-methodological terms, the arguments are developed and linked in close dialogue with formulations of authors such as Michel Foucault, Gilles Deleuze, Richard Sennett, Alain Ehremberg, Vincent de Gaulejac, Christian Laval and Paula Sibilia, among others.

Keywords:
Biopolitics; Neoliberal governmentality; Education; Control; Management

Introdução

Uma das maiores contribuições de Michel Foucault ao pensamento contemporâneo talvez seja justamente a de nos ter fornecido ferramentas conceituais e problematizações histórico-filosóficas capazes de nos fazer compreender os processos de subjetivação sob outro prisma analítico, que não aquele consagrado nas e pelas ciências humanas. Este, a despeito de se apresentar com distintas e sutis diferenças, todas animadas de uma forma ou de outra pelo humanismo dos séculos XIX-XX e pelos ideais iluministas, terminou por “prometer o homem ao homem” e por conceber o sujeito sob a forma de um universal abstrato, como centro e fundamento transcendente do conhecimento e da ação. Trata-se, nesse caso, contudo, de um sujeito cuja substância, identidade, “Eu” e verdade (de si) vieram a assumir uma “textura”, ou “tonalidade” eminentemente “psi”; isto é, um sujeito concebido, sobretudo, mediante processos de “psicologização”, “psicopedagogização” e/ou “psicopatologização”, com o concurso providencial do agenciamento entre os saberes e práticas do campo “médico-psi”, de um lado, e, de outro, os saberes e práticas das ciências humanas.

Seria uma tarefa vã tentar dimensionar toda uma literatura artística, intelectual, filosófica, sociológica, educacional e psicológica, tanto progressista quanto vocacionada à crítica, produzida a partir das problematizações e da formidável caixa de ferramentas que nos foram legadas por Michel Foucault. No que respeita às possíveis conexões entre subjetivação e educação em nosso presente histórico, no entanto, creio que o curso Nascimento da biopolítica (2008bFOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1979-1980). São Paulo: Ed. Martins Fontes , 2008b.), em particular, nos abre novas e sugestivas direções e possibilidades de análise e problematização. É justamente disso, de certo modo, que se ocupa o presente artigo. Ele busca ilustrar tal intento, como dissemos logo ao início, posicionando e implicando tanto a educação quanto os processos de subjetivação contemporâneos em um amplo e intenso processo de empresariamento da sociedade. No intuito de mostrar o quanto e como essa relação tem se mostrado capital, tentaremos descrevê-la e caracterizá-la identificando o modo como quatro vetores, dentre outros possíveis - o desempenho (performance), a gestão, o imperativo de visibilidade-transparência e as novas tecnologias digitais da informação e da comunicação -, se constituem como estratégicos à regulação e ao controle das condutas na contemporaneidade.

Capitalismo de produção, governamentalidade liberal, economia política e biopolítica

Charles R. Morris, em seu livro Os magnatas (2010MORRIS, C. R. Os magnatas: como Andrew Carnegie, John D. Rockfeller, Jay Gould e J. P. Morgan inventaram a supereconomia americana. Porto Alegre: L&PM, 2010. (Col. L&PM Pocket)), nos brinda com uma narrativa vertiginosa e um rico retrato de como se inventou e se desenvolveu a pujante economia dos EUA. Abrangendo um período que se estende aproximadamente da década de 1860 até meados do século XX, sua abordagem tem início quando da Guerra de Secessão e da morte do presidente Abraham Lincoln, pondo em destaque quatro personagens ímpares, verdadeiros empire builders (criadores de impérios) implicados umbilicalmente a essa história, os quais amealharam grandes fortunas: Jay Gould, Andrew Carnegie, John D. Rockfeller e John Pierpont Morgan. Seguindo seus passos, temos a oportunidade de acompanhar, dentre outros processos, em primeiro lugar, o desenvolvimento das indústrias naval, do aço, das armas e do Petróleo; em segundo, o desenvolvimento de grandes companhias ferroviárias e de um imponente complexo ferroviário que terminou por cobrir praticamente toda a superfície do país1 1 Rigorosamente falando, o início do desenvolvimento de uma rede ferroviária nos EUA remonta à década de 1820, quando, segundo Risk e Tereso (2011, p. 35), as estradas de ferro constituíam os maiores empreendimentos empresariais privados, para os quais “os investimentos eram direcionados, o que propiciou o aparecimento de uma classe de investidores. A implantação dessas estradas produziu o fenômeno de interiorização do país, provocando a rápida urbanização nos Estados Unidos e gerando novas necessidades de habitação, alimentação, vestuário, luz e aquecimento, com a consequente expansão de empresas voltadas para o consumo direto”. ; em terceiro, a constituição do campo dos agronegócios; em quarto, a organização e o desenvolvimento das bolsas de valores e da especulação financeira, para não falar da contravenção e da corrupção.

Caso Morris tivesse ampliado o escopo de sua análise, detendo-se mais demoradamente em casos como os das companhias Westinghouse e General Eletric, que passaram a dominar o segmento de bens duráveis e foram precursoras na criação de uma estrutura organizacional departamentalizada, ou em nomes como Henry Ford, gigante da indústria automobilística, e Sam Walton, um dos fundadores da Wal-Mart, que veio a se tornar a maior rede varejista do mundo, para ficar só nesses dois exemplos dentre inúmeros outros possíveis, teríamos reunidos mais alguns dos principais elementos necessários à compreensão do que foi o capitalismo clássico, de produção. Além disso, teríamos também o entendimento de como veio a se constituir uma sociedade de massa, de consumo, e de como, gradativamente, a empresa, ou a corporação comercial e/ou financeira capitalista veio a conquistar um lugar privilegiado na vida sociocultural e político-econômica não só dos EUA, mas também de todos os países capitalistas ocidentais influenciados por esse país.

Optamos, aqui, por não tomar o capitalismo em termos estritos - como forma particular, ou espécie de subsistema, historicamente específico, de ação ou produção econômica, que faria parte de um sistema social e político mais amplo, determinando-o em última instância. Em vez disso, seguindo um sentido alternativo ao termo, sugerido por Rusconi (2010RUSCONI, G. E. Capitalismo. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINI, G. (Orgs.). Dicionário de Política. 13. ed., 4. reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010. p. 141-148., p. 141), preferimos concebê-lo como algo que envolve a sociedade como um todo, a despeito do capitalismo apresentar-se “como formação social, historicamente qualificada, de forma determinante, pelo seu modo de produção”. Nesse sentido, como assinala o autor, o capitalismo designa uma “relação social geral”.2 2 Assim entendido, ainda segundo Rusconi (2010, p. 141), suas principais características são as seguintes: “a) propriedade privada dos meios de produção, para cuja ativação é necessária a presença do trabalho assalariado formalmente livre; b) sistema de mercado, baseado na iniciativa e na empresa privada, não necessariamente pessoal; c) processos de racionalização dos meios e métodos diretos e indiretos para a valorização do capital e a exploração das oportunidades de mercado para efeito de lucro”. Poder-se-ia acrescentar a essas, uma quarta característica, qual seja, a de que a racionalização daí advinda vai além dos âmbitos técnico-produtivo e administrativo-científico, estendendo-se à vida social como um todo, fazendo-se presente, portanto, tanto ao nível das condutas pessoais, quanto das grupais e coletivas. Mason (2017MASON, P. Pós-Capitalismo: um guia para o nosso futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 15) parece seguir uma orientação similar a essa, ao defender que o capitalismo é mais do que uma estrutura econômica, constituindo na verdade “um sistema integral - social, econômico, demográfico, cultural e ideológico - necessário para fazer uma sociedade desenvolvida funcionar por meio dos mercados e da propriedade privada”.

Antes de prosseguirmos em sua abordagem, três observações se fazem necessárias. Em primeiro lugar, se em nossas considerações o capitalismo estadunidense recebe certo destaque, isso se dá tanto pela magnitude de seu desenvolvimento, que alavancou os EUA à condição de potência mundial, sobretudo, após o desfecho da II Grande Guerra, quanto pelo fato de nele podermos localizar elementos implicados não só à governamentalidade liberal, mas também à governamentalidade neoliberal, tal como problematizadas por Michel Foucault, esta última apresentando-se como dominante aproximadamente nos últimos 40 anos. Em segundo lugar, malgrado a importância de análises político-econômicas que tanto devem a Marx e a Braudel, a exemplo das desenvolvidas por Immanuel Wallerstein e por Giovanni Arrighi, optamos por conduzir nossa argumentação aludindo, embora de forma breve e sumária, a algumas formulações de Max Weber e de Werner Sombart, em virtude, por um lado, da também inegável importância das mesmas e, por outro, por encontrarmos ressonâncias de ambos nas análises empreendidas por Foucault em Nascimento da biopolítica, análises estas relativas tanto ao ordoliberalismo alemão quanto ao anarcocapitalismo norte-americano3 3 Poder-se-ia acrescentar aos nomes de Weber e Sombart, o de Joseph Schumpeter (questão da inovação e da destruição criativa), mas isso extrapolaria nossas modestas ambições. Em todo caso, no que tange às principais formulações desses dois primeiros autores e suas possíveis ressonâncias nas análises empreendidas por Foucault em Nascimento da biopolítica (2008b), vale a pena conferir Os executivos das transnacionais e o novo espírito do capitalismo, do sociólogo Osvaldo López-Ruiz (2007), inclusive, o prefácio a este ótimo livro, escrito por Laymert Garcia dos Santos. . Em terceiro lugar, por fim, em virtude de não pretendermos aqui nem uma caracterização profunda nem extensa do capitalismo clássico, de produção, mas tão somente dar uma descrição muito concisa e sumária dele, ao abordá-lo, pelo menos em parte. De início, limitamo-nos a seguir de perto algumas observações e comentários muito pertinentes de autoria de Rusconi (2010RUSCONI, G. E. Capitalismo. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINI, G. (Orgs.). Dicionário de Política. 13. ed., 4. reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010. p. 141-148.).

Iniciando propriamente nossa argumentação, no que respeita às contribuições analíticas fornecidas por Sombart e Weber, visto que concebemos o capitalismo em termos amplos; ou seja, como um fenômeno que não pode ser reduzido apenas a uma esfera ou dimensão puramente econômica. Para bem compreendê-lo há que se ter em conta mais do que apenas a relação capital-trabalho (tão bem teorizada por Marx e por toda uma literatura filosófica, sociológica e histórica de cunho marxista), ou seja, há que dedicar especial atenção, além disso, a configurações esquemáticas de comportamentos individuais e coletivos, passíveis de serem deduzidas do, ou articuladas ao irresistível processo histórico de racionalização de todas as esferas ou domínios das sociedades ocidentais, particularmente das mais desenvolvidas. Foi Sombart quem cunhou a expressão “espírito do capitalismo”, com ela aludindo, frisa Rusconi (2010RUSCONI, G. E. Capitalismo. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINI, G. (Orgs.). Dicionário de Política. 13. ed., 4. reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010. p. 141-148., p. 143), à “soma de atitudes psicológicas e culturais que estão na origem do capitalismo moderno - a Gulsinnung, a orientação ético-intelectual identificada no individualismo, no princípio aquisitivo e, portanto, no racionalismo econômico”.

Weber, por sua vez, em A ética protestante e o espírito do capitalismo, tomando por base a ética calvinista e levando em conta particularmente a ideia de beruf (profissão como vocação), argumenta que esta se mostra decisiva na propagação de uma conduta a um só tempo ascética e racional, a qual, por sua vez, veio a se constituir como uma espécie de pressuposto ao espírito do capitalismo moderno. Rusconi (2010RUSCONI, G. E. Capitalismo. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINI, G. (Orgs.). Dicionário de Política. 13. ed., 4. reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010. p. 141-148., p. 143) resume o essencial dessa conduta nos seguintes termos:

A ascese intramundana atua com energia contra qualquer forma de prazer, luxo, esbanjamento ou exibição dos consumos e poupança de dinheiro e de bens, disponíveis para uma acumulação e um reinvestimento de tipo capitalista. Uma riqueza considerada como prêmio para uma prudente administração dos bens recebidos de Deus é a mentalidade que, a longo prazo, dinamizará os mecanismos da economia capitalista.

Uma vez que a motivação religiosa que animava essa disciplina ascético-racional protestante foi relativamente esvaziada, sendo substituída, assimilada e/ou encampada por outro tipo de disciplina, que visava à produção de corpos dóceis (em termos políticos) e úteis (em termos produtivos), tal como magistralmente demonstrado por Foucault em obras como Vigiar e punir e A vontade de saber, resta-nos buscar compreender o capitalismo, ainda tomando Weber como intercessor privilegiado, como perfazendo, mais do que tudo, uma singular lógica, uma forma de racionalidade sui generis, decerto econômica, mas também simultaneamente social, burocrática, administrativa e jurídica. Nessa perspectiva, a essência do capitalismo, sem que se deixe de lado uma agonística do social, deve ser buscada, conforme assevera Rusconi (2010RUSCONI, G. E. Capitalismo. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINI, G. (Orgs.). Dicionário de Política. 13. ed., 4. reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010. p. 141-148., p. 144),

[...] na exploração racional das regras de troca em geral - de cujas regras a troca de força-trabalho contra salário é só um aspecto. Para Weber, a coerção inerente à venda da força-trabalho é um aspecto da “vontade de trabalho” que dá lugar à lógica da troca.

O mercado é a transposição econômica da incessante luta entre os homens. A economia racional é orientada pelos preços monetários, que por sua vez se formam no mercado pela luta entre os interesses. “Sem uma avaliação em preços monetários - isto é, sem aquela luta -, não é possível nenhum cálculo”. A lógica do cálculo formal capitalista é, portanto, ligada - através do livre mercado - à lógica da luta entre os interesses.

Como a questão da racionalidade e o mecanismo da troca sobressaem nas considerações feitas acima, aproveitemos o ensejo para articulá-los tanto ao liberalismo quanto à arte de governar que lhe corresponde e à biopolítica, tal como desenvolvidos por Foucault em cursos como Segurança, território, população (2008aFOUCAULT, M. Segurança, território, população. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008a.) e Nascimento da biopolítica (2008bFOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1979-1980). São Paulo: Ed. Martins Fontes , 2008b.)4 4 Rigorosamente falando, há que se ter em conta que a biopolítica, como se verá mais adiante, não é propriamente desenvolvida por Foucault no curso de 1979-1980. Felizmente, todavia, ele nos disponibiliza, nessa e em outras obras, importantes elementos para que a pensemos e a atualizemos, cartografando seus novos funcionamentos em nossa contemporaneidade. .

Em Segurança, território, população (2008aFOUCAULT, M. Segurança, território, população. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008a.), Foucault introduz a noção de governo em suas análises arqueogenealógicas, com ela ampliando e complementando sua leitura crítica das estrategizações e da agonística (relações de saber-poder, mecanismos de assujeitamento e de dominação) que atravessam as sociedades disciplinares de uma ponta a outra. Grosso modo, pode-se afirmar que o exercício do governo deve ser concebido como envolvendo uma articulação entre, de um lado, um regime de veridicção, e, de outro, um regime de jurisdição. Tendo isso em conta, antes dos séculos XVI e XVII, do que se tratava? Os problemas referentes ao exercício do governo remetiam à necessidade de se saber se as práticas governamentais eram exercidas de acordo com certas leis, que tanto poderiam ser morais como naturais ou divinas. Depois, nos séculos XVI e XVII, com o advento do que Foucault designou de razão de Estado, os problemas relativos ao exercício do governo passaram a girar em torno do seguinte ponto: será que o governo é exercido bastante bem, com bastante intensidade, ou com bastante profundidade e de forma atenta a detalhes, de tal modo que se eleve o Estado ao seu máximo de força (majoração das forças estatais)? Em terceiro lugar, por fim, a partir do ocaso do século XVIII, a questão do governo se colocou sob outros termos: doravante, tratava-se de saber se se conseguiria governar bem no limite de um “demais” e de um pouco “demais”, isto é, entre um máximo e um mínimo que a natureza das coisas fixava para aquele que exercia o governo, ou seja, para o poder soberano. Em outras palavras, tratava-se de saber se era possível exercer o governo atentando-se para, ou levando-se em conta, o que seriam necessidades intrínsecas às próprias ações ou práticas governamentais.

É deste terceiro e último regime de verdade, cujo instrumento intelectual ou forma de cálculo era a economia política clássica, tal como articulada ao princípio de autolimitação do governo e ao exercício de biopoderes, que, em princípio, pensamos que Foucault trataria no curso Nascimento da biopolítica. Ocorre, contudo, que no fim das contas Foucault terminou, na verdade, se ocupando do exame e da problematização da governamentalidade neoliberal, tanto em sua versão alemã (ordoliberalismo) quanto em sua versão estadunidense (Escola de Chicago), sugerindo que a compreensão do liberalismo e do neoliberalismo constituía um pré-requisito crucial para uma boa compreensão do que vem a ser a biopolítica. De todo modo, retomemos essa governamentalidade moderna, característica do liberalismo clássico, bem como seu instrumento intelectual, a forma de cálculo por ela privilegiada para perscrutar o exercício do governo, a economia política. Quanto à primeira, afirma Foucault (2008aFOUCAULT, M. Segurança, território, população. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2008a., p. 17-18):

Digamos que entramos aqui, como vocês veem, numa era que é a da razão governamental crítica. Essa razão governamental crítica ou essa crítica interna da razão governamental, vocês veem que ela não vai mais girar em torno da questão do direito, que ele não vai mais girar em torno da questão da usurpação e da legitimidade do soberano. Não vai ter mais essa espécie de aparência penal que o direito público ainda tinha nos séculos XVI e XVII, quando dizia: se o soberano desconsidera essa lei, deve ser punido com uma sanção de ilegitimidade. Toda a questão da razão governamental crítica vai girar em torno de como não governar demais. Não é ao abuso da soberania que se vai objetar, é ao excesso de governo. E é comparativamente ao excesso de governo, ou em todo caso à delimitação do que seria excessivo para um governo, que se vai medir a racionalidade da prática governamental.

A Economia política clássica, como dissemos acima, constituía o instrumento intelectual ou a forma de cálculo da razão governamental moderna e liberal, cuja lógica e ação primavam por uma autolimitação de fato, geral e intrínseca às próprias práticas de governo, além de serem passíveis de constituírem-se como objetos de transações indefinidas entre os que governavam e os que eram governados. Em sentido restrito, o termo economia política designava a análise especificamente focada na produção e circulação de riquezas, mas num sentido mais amplo e mais prático, remetia a um método de governo capaz de assegurar a prosperidade de uma nação. É justamente essa acepção do termo a utilizada por Jean-Jacques Rousseau no verbete que redigiu para a Enciclopédia, em que, por exemplo, a economia política comparece referindo-se a uma espécie de reflexão geral sobre a organização, a distribuição e a limitação dos poderes numa sociedade. Para Foucault (2008bFOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1979-1980). São Paulo: Ed. Martins Fontes , 2008b.), entretanto, o que se destaca como mais importante na compreensão da economia política é o fato dela ter possibilitado ou assegurado a autolimitação da razão governamental.

Por outro lado, como assinala Foucault (1990FOUCAULT, M. A Governamentalidade. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Organização, Introdução, Revisão e Notas de Roberto Machado. 9. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1990., p. 290), não se deve perder de vista que o nascimento da economia política, entendida como forma de cálculo, como instrumento intelectual, mas também como perfazendo um conjunto de novas técnicas de intervenção governamental, é inseparável da constituição da população como um novo campo das ações de governo:

A economia política pôde se constituir a partir do momento em que, entre os diversos elementos da riqueza, apareceu um novo objeto, a população. Apreendendo a rede de relações contínuas e múltiplas entre a população, o território, a riqueza etc., se constituirá uma ciência, que se chamará economia política, e ao mesmo tempo uma intervenção característica do governo: intervenção no campo da economia e da população. Em suma, a passagem de uma arte de governo para uma ciência política, de um regime dominado pela estrutura da soberania para um regime dominado pelas técnicas de governo, ocorre no século XVIII em torno da população e, por conseguinte, em torno do nascimento da economia política.

Essa observação é relevante pelo fato de a biopolítica e a governamentalidade liberal, no transcurso da modernidade e em estreita sintonia ao capitalismo de produção, fazerem um uso estratégico da educação, sobretudo por intermédio do amplo processo de escolarização da infância e da adolescência, com vistas ao controle das condutas dos indivíduos e à regulamentação e controle dos modos de vida das populações pobres e operárias.

O mecanismo da troca, o homo oeconomicus liberal e a formação de uma cultura empresarial

A economia, no sistema capitalista clássico de produção, é animada por relações de troca, ou transações comerciais entre agentes econômicos, vendedores e compradores de bens e/ou serviços. Por outro lado, no mercado, essas trocas ou transações são moduladas pelo jogo de forças que não só envolve como determina a relação entre a oferta e a demanda; os preços, por seu turno, constituem o nexo entre a primeira e a segunda. Eles são os indícios que nos sinalizam se a oferta, ou a demanda de um determinado produto e/ou serviço está aumentando, ou diminuindo. Além disso, os preços raramente estão em equilíbrio - condição que os qualificaria como “justos”, haja vista serem suscetíveis aos efeitos da sazonalidade e de “ruído”. Para o que nos importa, devemos ter em mente os atributos que caracterizam esses agentes econômicos, ou melhor, esse homo oeconomicus do liberalismo clássico e do capitalismo industrial. Sua principal característica, tal como se depreende de A riqueza das nações, publicado em 1766 por Adam Smith (1723-1790), é a de que ele age em interesse próprio, isto é, na direção de uma maximização dos seus lucros e de seu bem-estar (“sujeito de interesse”), de forma racional, ponderada, acrescentando-se a isso que sua conduta, desde que agraciada com a liberdade, terminaria por reverter-se positivamente em prol da felicidade (aumento do bem-estar) da coletividade5 5 Neste momento, talvez seja oportuno abrir um pequeno parêntesis acerca da relação entre governo, entendido como condução da conduta de alguém, e liberdade, atributo de que gozaria o indivíduo liberal. Para tanto, permitam-me citar um breve trecho de autoria de Viviane Klaus (2011, p. 66), pesquisadora que problematiza a relação entre gestão e educação, a partir das formulações de Michel Foucault. Diz ela: “A doutrina liberal precisa de liberdade para poder agir: liberdade de expressão, liberdade de discussão, liberdade de mercado etc. A elaboração e a intervenção do poder público estão diretamente relacionadas com o princípio da utilidade, que indica no que o Governo pode mexer e no que o Governo não deve mexer. O Governo estará preocupado continuamente com o jogo entre interesses coletivos e interesses individuais, entre liberdade e segurança, ou seja, ao mesmo tempo em que a liberdade é produzida – pois o liberalismo é definido no livre jogo dos interesses individuais –, é preciso estabelecer limites e controles às liberdades. [...] No liberalismo, a liberdade é entendida muito mais como espontaneidade do que como liberdade jurídica reconhecida como tal para os indivíduos [...], de forma que é preciso deixar as pessoas agirem, falarem, participarem. [...], liberdade aqui tem relação direta com o sujeito de interesse, com o homem empresário de si mesmo.” .

De outra parte, em decorrência das inovações e transformações introduzidas pela segunda Revolução Industrial, além das organizações propriamente fabris, organizações financeiras e de crédito passam a compor o cenário capitalista, dando-lhe uma nova dimensão, eminentemente financeira. Isto, segundo Risk e Tereso (2011RISK, E. N. V. de M.; TERESO, M. J. de A. A administração na linha do tempo. Campinas (SP): Alínea, 2011.), dá lugar a três fenômenos: a) acumulações de capital provenientes de trustes e fusões de empresas; b) separação entre a propriedade particular e a direção das empresas; c) aparecimento das holding companies (empresas controladoras) para coordenar e integrar negócios. Em paralelo, dá-se um movimento de transmutação na estrutura e no funcionamento das organizações capitalistas, as quais, até então, ainda operavam sob a influência de modelos herdados dos séculos anteriores, oriundos de organizações militares e eclesiásticas. Esse movimento de transmutação já antecipava a importância e a centralidade que as empresas e/ou corporações passariam a ter nos EUA e nas demais nações desenvolvidas do mundo ocidental.

Tal movimento foi possibilitado, em termos amplos, como bem o mostrou a obra de Weber, por um processo de racionalização generalizada da sociedade, e, em termos específicos, pelo advento da abordagem clássica da administração. De certa forma, esta tanto pensou criticamente quanto buscou responder, com o concurso dos conhecimentos e técnicas das ciências modernas, a dilemas relacionados a algo que já havia sido sugerido anteriormente por Adam Smith, a saber, a ideia de que a riqueza das nações provém da divisão do trabalho e da especialização de tarefas. Essa necessidade de racionalização da produção, bem como da estrutura, do funcionamento e da administração das organizações capitalistas é bem abordada por Risk e Tereso (2011RISK, E. N. V. de M.; TERESO, M. J. de A. A administração na linha do tempo. Campinas (SP): Alínea, 2011., p. 37-38) nos seguintes termos:

Pelo inchaço das estruturas organizacionais, criadas para atender a expansão de seus mercados, os custos das várias unidades passaram a pesar na lucratividade das empresas, fazendo minguar os dividendos dos acionistas. Tornou-se necessário pensar a estrutura funcional para ser capaz de coordenar a fabricação, a engenharia, as vendas e as finanças de maneira que se reduzissem os riscos de flutuação do mercado. Acreditava-se que os lucros só seriam maximizados com base na organização e racionalização da estrutura funcional das empresas.

No período compreendido entre 1880 e 1890, as indústrias objetivaram o planejamento racional de custos. Procuraram, também, controlar as matérias-primas pelos seus departamentos de compras, adquirindo empresas fornecedoras, controlando a distribuição para a venda dos seus produtos sem intermediação e operando diretamente com os varejistas ou consumidores finais. Entretanto, embora persistisse a preocupação com a eficiência na produção, nas compras, vendas e distribuição, os meios de que dispunham naquele tempo foram insuficientes para diminuir o custo das operações. Os lucros minguaram e as empresas viram-se obrigadas a procurar novos mercados para suprir o nível de saturação vigente. Buscou-se substituir o modelo da estrutura funcional, que já não mais satisfazia, pela criação da empresa integrada e multidepartamental.

Constituída no início do século XX, uma das faces da abordagem clássica da administração remete, principalmente, ao nome de Frederick Winslow Taylor (1856-1913), nos EUA, seu fundador, ao passo que a outra, na França, ao nome de seu principal teórico, Henry Fayol (1814-1925). A face tayloriana punha em evidência o que seria uma administração científica das organizações, preocupada sumamente com o aumento da eficiência operacional das organizações, inclusive, no âmbito das atividades realizadas pelos trabalhadores operários. A face fayoliana, por sua vez, dizia respeito a correntes preocupadas tanto com a estrutura (anatomistas) quanto com o funcionamento (fisiologistas) das organizações, também preocupada que estava com o aumento da eficiência da empresa; salientando, para tanto, diversamente, a necessidade de promover não só uma divisão da empresa em departamentos diferenciados (de produção, de vendas, de engenharia, financeiro, por exemplo), mas também a necessidade de promover entre eles inter-relações estruturais.

Nesse contexto de redefinição, reestruturação e reorganização das empresas industriais e comerciais capitalistas, sobretudo, a partir da teoria clássica da administração, outros traços definidores vêm a ser acrescidos ao conceito do homo oeconomicus liberal-capitalista. Com efeito, conforme atestam Risk e Tereso (2011RISK, E. N. V. de M.; TERESO, M. J. de A. A administração na linha do tempo. Campinas (SP): Alínea, 2011., p. 54-55), passa a subjazer a esse conceito a ideia de que o ser humano

[...] é movido exclusivamente por recompensas salariais, econômicas e materiais, isto é, trabalha apenas para suprir suas necessidades de sobrevivência. Dois elementos são para ele fundamentais: o medo da fome e a necessidade do dinheiro para sobreviver. Dessa maneira, as recompensas salariais e os prêmios por produtividade estimulam o trabalhador a superar seus esforços físicos visando obter o máximo de remuneração possível.

Risk e Tereso acrescentam, ainda, que essa visão, além de “reducionista”, agregava elementos que negativavam essa figura do homo oeconomicus, concebendo os operários ou trabalhadores, por exemplo, como indivíduos cognitivamente limitados, mesquinhos, preguiçosos, além de, amiúde, responsáveis não só pela vadiagem como também pelo desperdício de recursos nas empresas, razão pela qual, asseveram os autores (RISK; TERESO, 2011RISK, E. N. V. de M.; TERESO, M. J. de A. A administração na linha do tempo. Campinas (SP): Alínea, 2011., p. 56), deveriam ser controlados “por meio do trabalho racionalizado e do tempo padrão”.

Se articularmos, ao taylorismo e ao fayolismo, a tríade composta pelo fordismo, o desenvolvimentismo e o keynesianismo, teremos reunidos os componentes cruciais ao que considero ser uma primeira fase de um complexo processo de empresariamento da sociedade, fase esta que se estende desde o início do século XX até aproximadamente a passagem dos anos 1960 aos anos 1970. Para finalizar a primeira parte do presente trabalho, gostaríamos de tecer alguns breves comentários sobre essa primeira fase desse processo de empresariamento, destacando a ideia de que uma série de valores, princípios, normas, procedimentos, tecnologias, mecanismos, normas e condutas, cuja proveniência remete ao mundo corporativo-empresarial capitalista, não só migrou para além desses limites organizacionais, espraiando-se para outras esferas da sociedade e por entre a vida cotidiana dos indivíduos e das populações nas grandes metrópoles e cidades dos países desenvolvidos, mas chegou mesmo a redefinir e a transformar as relações que mantinham com o tempo e o espaço, bem como a relação com o consumo, os modos e estilos de vida, redesenhando inteiramente, portanto, essas sociedades. Nessa perspectiva, em diálogo com David Harvey, Klaus (2011KLAUS, V. Desenvolvimento e governamentalidade (Neo)Liberal: da administração à gestão educacional. 2011. Tese (doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2011.) sustenta a ideia de que a administração científica, seja como encontrada no bojo do sistema produtivo, seja aplicada às esferas outras da vida social, como, por exemplo, no campo das relações de sociabilidade, terminou por converter-se como marco da racionalidade corporativa burocrática, ensejando, assim, não só um sistema de produção em massa de bens e serviços, mas o que seria uma ampla e intensiva constituição de modos e/ou estilos de vida massificados, padronizados, homogeneizados, em suma, engendrando uma espécie de homem unidimensional, na expressão do filósofo frankfurtiano Herbert Marcuse.

O novo espírito do capitalismo, a governamentalidade neoliberal e uma nova forma de empresariamento da sociedade

Nos EUA, nas décadas de 1930 e 1940, emergiu uma nova classe média, a qual foi estudada pelo grande sociólogo Charles Wright Mills (1969MILLS, C. W. A nova classe média. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.), que terminou por designar aqueles a ela pertencentes como os White Collars (“os de colarinhos brancos”). Costa e Mota (2016COSTA, S. G.; MOTA, T. A avaliação educacional como tecnologia de controle no capitalismo neoliberal. Perspectiva, Florianópolis, v. 34, n. 3, p. 814-839, set./dez. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-795X.2016v34n3p814 >. Acesso em: 10 jul. 2017.
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, p. 824-825) assim a descrevem:

Composta eminentemente por uma massa de funcionários, ou trabalhadores de escritório que compunham os quadros das grandes corporações privadas, comerciais e/ou industriais, tal classe possuía como duas de suas principais características, de um lado, o acesso ao consumo e o gozo obtido através deste, e, de outro a tendência em se identificar ao “espírito” daquelas, isto é, ao estilo de vida, aos valores e princípios defendidos por essas grandes empresas, e delas emanados. Em decorrência, essa nova classe passou a cultivar, como desejável e como algo que poderia lhe conferir status e segurança, o ideal de integrar-se profissionalmente às mesmas, mantendo com elas uma relação duradoura, expressa, por exemplo, pelo sonho de nelas realizar toda uma carreira ascendente, garantidora, em princípio, de estabilidade financeira, conforto material, sucesso, prestígio, reconhecimento etc.

Após a II Grande Guerra Mundial, por sua vez, desenvolveu-se uma verdadeira indústria cultural, uma massificação do consumo e de estilos de vida, bem como a constituição de uma cultura juvenil, como questão e/ou problema psicossocial e educacional. Isso implicava também mudanças na mentalidade e nos costumes, ainda mais com a entrada em cena do Rock and Roll e de uma indústria cinematográfica que consagrava nas telas os jovens “rebeldes sem causa” e seus ícones, como Natalie Wood, James Dean, Sal Mineo, Marlon Brando e Paul Newman, dentre outros. Já a década seguinte, a de 1950, foi marcada, sobretudo, por agitações relacionadas às lutas empreendidas pelos movimentos das minorias negras contra o racismo, o preconceito, bem como no sentido de conquista de igualdade e afirmação de direitos civis. Em ritmo crescente, sobretudo a partir da Guerra do Vietnã, com o concurso de fenômenos como o da contracultura, o das rebeliões estudantis e o da revolução sexual, a ordem social constituída ao longo da primeira metade do século XX, o establishment, o status quo, em boa medida associados ao consumismo exacerbado, à burocratização e à uniformização das formas de vida (tornando-as programadas e estereotipadas) e ao imperativo de um ajustamento e/ou submissão às regras e aos costumes estabelecidos pela tradição, foram duramente questionados e contestados, dando ensejo ao que Luc Boltanski e Ève Chiapello (2009BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.) designaram de “crítica estética” ao capitalismo.

Com efeito, as diversas convulsões político-econômicas, socioculturais e todo esse clima insurrecional característicos dos anos 1960 terminaram por demandar, segundo esses autores, que o capitalismo construísse para si e para a sociedade em geral uma nova legitimação à sua existência. Legitimação esta que, se por um lado empenhou-se em absorver estrategicamente elementos e reivindicações constituintes da referida crítica estética dirigida ao sistema (valorização da singularidade, da criatividade, da diferença, da aventura, do alternativo, da invenção, da experimentação, da improvisação e da participação horizontal e democrática na tomada de decisões); por outro lado, rechaçou ou mostrou-se cinicamente indiferente a outra crítica que também lhe foi endereçada no mesmo período, uma “crítica social”. Diferentemente da primeira, esta deslocava seu foco e seus questionamentos para as desigualdades político-econômicas e sociais, para a produção da miséria e para a exploração e opressão das classes pobres e operárias pelas classes ricas e/ou privilegiadas.

Parece evidente que, a partir de meados dos anos 1970, sem que se possa esquecer da revolução operada no campo da informática e da crise na antiga União Soviética (URSS), com o advento tanto da globalização quanto do neoliberalismo, sobretudo mediante as gestões de Margareth Thatcher, à frente da Inglaterra, e de Ronald Reagan, à frente dos EUA, temos não só o funcionamento, de fato, de um novo tipo de capitalismo, mas também a construção de um novo espírito ou representação social deste. Embora o que Foucault designe por governamentalidade neoliberal tenha suas primeiras formulações e debates localizados temporalmente imediatamente antes da II Grande Guerra Mundial (no Colóquio Walter Lippmann, realizado em 1938, que contou com a presença dos ordoliberais da Escola Austríaca, ou Escola de Viena) e imediatamente após a mesma guerra (na Criação da Sociedade Mont-Pèlerin, em 1947), no presente trabalho preferimos situar o que seria uma segunda fase do processo de empresariamento da sociedade, a que aludimos anteriormente, como se dando, principalmente a partir de meados da década de 1970, impulsionada, sobretudo, pelos efeitos das análises, formulações e políticas econômicas realizadas e/ou inspiradas pelos economistas da Escola de Chicago (Friedrich Hayek, Milton Friedman, Theodore Schultz, Gary Becker, George Stigler, Robert Lucas Jr., dentre outros).

Essa nova fase do empresariamento da sociedade não se reduz apenas à privatização, ao enxugamento e à diminuição do Estado e à despadronização do mundo do trabalho (desregulamentação, terceirização, flexibilização, leasing, precarização etc.), como vem destacando toda uma literatura crítica e progressista, que busca compreender, inspirada no marxismo, o que se passa na transição entre as sociedades modernas e as sociedades contemporâneas. Se nossa problematização pretende focar-se, em termos amplos, no modo como os indivíduos passam a ser formados, educados, subjetivados e governados em meio ao e pelo neoliberalismo - essa “nova razão do mundo”, como dizem Laval e Dardot (2016LAVAL, C.; DARDOT, P. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.) -, convém apontar e tornar inteligíveis ao menos alguns dos fatores estratégicos aí implicados. Com base nos fatores originalmente apontados por Costa e Mota (2016COSTA, S. G.; MOTA, T. A avaliação educacional como tecnologia de controle no capitalismo neoliberal. Perspectiva, Florianópolis, v. 34, n. 3, p. 814-839, set./dez. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/view/2175-795X.2016v34n3p814 >. Acesso em: 10 jul. 2017.
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), atualizando-os e estabelecendo algumas precisões, destacamos os seguintes:

  1. a disseminação da “forma-empresa” (sua lógica, seu modus operandi, valores, princípios, normas, padrões de conduta e procedimentos comuns) por todo o tecido social; mais do que isso, tal movimento interfere diretamente na produção de subjetividades na contemporaneidade, haja vista que não só os indivíduos são produzidos mediante sua conversão à forma de uma microempresa, tornando-se empresários de si mesmos, empreendedores, mas também as famílias passam a ser redefinidas em seu sentido e funcionamento, a partir de valores, princípios e condutas oriundas do ethos corporativo-empresarial;

  2. a disseminação da concorrência como o mais importante princípio formalizador das relações de trabalho e de sociabilidade (o que induz à competitividade e dá ensejo a que a desconfiança e certa agonística se instalem nas relações profissionais e de sociabilidade, gerando insegurança, comprometendo a saúde física e psíquica, bem como a sinergia, e a colaboração mútua, além de induzir os indivíduos a tomarem seus pares como adversários e/ou obstáculos a serem contornados, superados senão batidos);

  3. a generalização de práticas de ranking (“ranqueamento”), tanto no consumo de bens e serviços quanto nas mais diversas esferas da vida cotidiana, mas, sobretudo, em situações de avaliação de desempenho escolar e/ou profissional, concursos e/ou processos de seleção e triagem, em que o objetivo de todos é o mesmo, ou seja, obter a melhor posição ou colocação possível e, assim, um lugar ao sol (crescimento e aperfeiçoamento de capital humano, inclusão, melhores salários e cargos, conforto material, estabilidade e segurança, acesso a bens e serviços, reconhecimento etc.);

  4. a invenção da teoria do capital humano (capital intelectual), mediante a qual custos/despesas relacionados à educação e à formação, em sentido amplo, são convertidos em investimentos, bem como determinadas capacidades, habilidades e destrezas valorizadas pelo mercado, por conta de sua relativa raridade, apresentam-se imperativamente como devendo ser produzidas, acumuladas e aperfeiçoadas pelos indivíduos, principalmente através da educação, de modo que, posteriormente, esses possam participar com melhores chances na acirrada competição por empregos e oportunidades e, caso bem sucedidos, possam trocá-las por uma boa remuneração (salários, fluxos de renda);

  5. a disseminação de uma cultura do empreendedorismo e, correlativamente, de pedagogias empreendedoras, enaltecidos como a panaceia para todos os males que assolam a civilização, que atribuem especial centralidade ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de competências, que são instituídas com base nos princípios de eficácia, eficiência, inovação e flexibilidade, e cuja metodologia e instrumentos, se não deixam de todo de estarem ainda ancorados no campo das práticas e saberes “médico-psi”, já não se restringem ou se limitam, contudo, a ele, doravante anexando, adaptando e privilegiando cada vez mais valores, princípios, tecnologias, práticas e procedimentos oriundos do mundo corporativo e do mercado, ou seja, toda uma nova expertise característica do campo do management;

  6. a disseminação de uma cultura da “prestação de contas”, contabilística, “de aferição”, na qual procedimentos, tais como os de verificação, exame e avaliação tornam-se recorrentes, generalizados e, em princípio, cujos resultados devem tornar-se transparentes, estendendo-se desde as condutas e os desempenhos escolares e profissionais dos indivíduos, até os desempenhos de empresas privadas e de políticas governamentais, em todos os níveis (municipal, estadual e federal), em suma, trata-se do que os políticos e homens de negócios estadunidenses, bem como os profissionais do management designam por accountability;

  7. a desterritorialização do par educação-formação, que sai dos muros da escola para se reterritorializar em qualquer outra organização social, doravante convertida à forma-empresa, senão efetivamente nas corporações comerciais e financeiras, a exemplo das universidades corporativas;

  8. o processo, através do qual as empresas e corporações privadas pretendem transmutar seu estatuto social, deixando de serem apenas organizações sociais e acalentando o objetivo pretencioso de virem a se converter em verdadeiras instituições sociais, assumindo, portanto, um significativo poder normatizador e normalizador (a título de ilustração, é mediante esse processo que as grandes empresas, ou corporações, passam a ter um misto de alma e de identidade, ou um “gás”, como disse Deleuze (1992DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.), encarnando estilos de vida, valores, princípios, enfim, formas de ser e de estar no mundo, com os quais as pessoas tendem, ou melhor, são induzidas a se identificar);

  9. o processo de esvaziamento, esquecimento, ou desinvestimento da política, que tende a sair imperceptível ou discretamente de cena, dando lugar, por um lado, à espetacularização midiática e à gestão empresarial, e, por outro lado, à banalização da violência, da intolerância, da exclusão, das desigualdades e da miséria, assim como à passionalidade, superficialidade e estupidificação da vida social e dos laços de sociabilidade;

  10. por fim, uma nova lógica estratégica de governo, controle e modulação das condutas dos indivíduos e das formas de vida das populações pobres e operárias, que não se restringe apenas à precarização das condições de vida e à disseminação do medo e da insegurança, mas que se mostra também capaz de exercer tais funções operando com a otimização e gestão das diferenças e das multiplicidades (não mais a toupeira de Marx, mas a serpente de que fala Deleuze (1992DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.), a propósito desse novo capitalismo, transnacional, financeiro e conexionista).

É em meio a uma ambiência, uma atmosfera ou um contexto atravessados por esses fatores que pretendemos discutir, daqui por diante a relação entre governamentalidade neoliberal, educação e subjetivação, explorando quatro variáveis em jogo nessa relação, todas elas estreitamente relacionadas aos dez pontos acima elencados: o imperativo do desempenho (performance), a centralidade assumida pela gestão (management), o imperativo da visibilidade-transparência e o papel desempenhado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs).

Educação, Governamentalidade Neoliberal e Subjetivação: novos vetores de regulação, modulação e controle das condutas

Em nosso presente histórico, os processos pelos quais nos tornamos o que somos tornaram-se múltiplos, diversificados e muito mais complexos e entrelaçados do que aqueles típicos das sociedades disciplinares modernas, preponderantes até aproximadamente o final da década de 1960. Nossas identidades, nossos “Eus”, ou nossos selfs, enfim, nossas formas de ser e estar no mundo, nossas maneiras de nos situarmos em relação a nós mesmos, à alteridade e à vertiginosa realidade contemporânea que tanto se transmuta espacialmente (com as novas territorializações, desterritorializações e reterritorializações, para falar com Gilles Deleuze e Félix Guattari) quanto temporalmente, na duração, tal como no caso da dromologia, tematizada por Paul Virilio em Velocidade e política (1996VIRILIO, P. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. ); pois bem, nossas subjetividades já não são produzidas e governadas como dantes. Correlativamente, o mesmo sucede com a educação, que já não se mostra capaz, como dantes, de sustentar com convicção, e sem melindres, os ideais característicos das Luzes e sua missão a um só tempo crítica, civilizadora e emancipadora dos homens. Com efeito, as críticas mais inteligentes e substanciais que lhe são dirigidas de certo tempo para cá a acusam de ter-se deixado reduzir a algo de caráter meramente instrumental e, nessa condição, de ter-se convertido numa espécie de grande dispositivo psicopedagógico e técnico-científico de adestramento e sujeição dos corpos-subjetividades infantojuvenis, munindo o sistema de produção capitalista das forças vitais necessárias ao seu bom funcionamento e garantindo a docilidade política dos indivíduos e coletividades, de modo a facilitar a adaptação passiva destes aos novos mecanismos de governo e regulação das condutas, induzindo-os, inclusive, a reivindicarem mais vigilância e controle sobre suas vidas.

Uma das expressões mais surpreendentes desse adestramento contemporâneo dos corpos-subjetividades, de que a educação faz parte, diz respeito ao culto ao desempenho; ou seja, a centralidade e a importância atribuídos à performance dos indivíduos e grupos, particularmente nas esferas educacional e profissional. Permitam-nos transcrever um trecho de autoria de Coelho Júnior (2015COELHO JÚNIOR, F. A. Verbete Desempenho. In: BENDASSOLLI, P. F.; BORGES-ANDRADE, J. E. (Orgs.). Dicionário de Psicologia do Trabalho e das Organizações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2015. , p. 271-272), que, não obstante longo, tem o mérito de nos fornecer um sucinto apanhado histórico de como a questão do desempenho foi tratada desde o início do século passado até os nossos dias. Além disso, assinala como ela veio a se revestir de uma crescente e estratégica importância para administradores e gestores:

Na década de 1910, especialmente com a aplicação de princípios da escola científica de administração, houve um aumento do interesse na padronização dos processos de trabalho com vistas à maximização dos resultados. Os recursos eram mais bem alocados, e os trabalhadores capacitados em torno de suas deficiências no trabalho. Antes da Segunda Guerra Mundial, poucas organizações, de fato, utilizaram, efetivamente, sistemas formais de avaliação de desempenho. Poucas empresas estatais, além das forças armadas, utilizavam com maior sistematicidade tal prática. Os resultados da avaliação ou serviam para comunicar aos gestores afirmações referentes ao status do trabalho executado por seus subordinados, ou serviria de apoio à tomada de decisão a partir do levantamento de informações relativas ao trabalho.

O uso de medidas de aferição do desempenho nas organizações objetivava fornecer insumos consistentes ao redesenho de práticas e políticas organizacionais. Essa é a justificativa para que, desde os primórdios, o foco no gerenciamento de desempenho consistisse principalmente na etapa de avaliação.

Mais recentemente, a partir da segunda fase da Revolução Industrial (meados de 1945), a avaliação de desempenho passou a ser concebida como tática às ações de capacitação. Descrições de cargo fundamentavam as políticas de recrutamento, seleção e eram a base para a formulação de indicadores de desempenho.

A partir de 1990, com a gênese e consolidação dos programas de gestão por competências nas organizações, a gestão do desempenho emergiu como tática e passou a figurar como elemento-chave no planejamento de trabalho. A aquisição de competências seria facilitada por ações de gestão focadas na maximização da performance. Assim, mais do que simplesmente avaliar, interessava se desenvolver outras etapas de gestão em todos os níveis (individual, grupal e contextual) com foco no planejamento, monitoramento, avaliação e revisão. Essa é a perspectiva atual.

Coelho Júnior (2015COELHO JÚNIOR, F. A. Verbete Desempenho. In: BENDASSOLLI, P. F.; BORGES-ANDRADE, J. E. (Orgs.). Dicionário de Psicologia do Trabalho e das Organizações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2015. ), compreensivelmente, circunscreve seus comentários sobre a noção de desempenho ao campo em que opera a Psicologia do Trabalho e das Organizações (PT&O), bem como a campos afins, como os da gestão e dos negócios, o que explica o motivo pelo qual não trata do impressionante transbordamento das preocupações com a questão do desempenho, nesse novo milênio, para além dos domínios corporativo-empresariais e do mercado. De fato, a bem da verdade, não se constata tão somente esse transbordamento, mas, mais do que isso, uma verdadeira e desmedida obsessão tanto com a maximização quanto com a avaliação do desempenho, e isso de forma generalizada. No caso das crianças, o destaque recai particularmente sobre as notas escolares tiradas (mais do que propriamente sobre o efetivo processo de aprendizagem experimentado). No caso dos jovens, várias esferas de sua vida entram em jogo: performance escolar, esportiva, sexual e interpessoal-virtual (em se tratando da popularidade ou da visibilidade de que desfruta), quantas vezes é acessado e avaliado positivamente por outros, de quantos acessos é capaz, com que velocidade e frequência, em que circunstâncias etc.). No caso dos adultos, várias também são as esferas que passam a ser simultaneamente consideradas, embora amiúde gravitem entre a da vida familiar, a das relações de sociabilidade e, sobretudo, a do âmbito da vida profissional. Antes de prosseguirmos, entretanto, detenhamo-nos rapidamente no que consiste a definição (ou definições) de desempenho, para o que recorremos novamente a Coelho Júnior (2015, p. 273):

Desempenho remete ao empreendimento de esforços por parte do indivíduo que são voltados à execução de certos tipos de comportamentos previamente planejados e esperados. Refere-se à execução ou modo de executar um trabalho, atividade ou empreendimento, algo que exige competência prévia e/ou eficiência na execução.

Desempenho vincula-se ao empenho em alguma atividade ou trabalho, que se relaciona à apresentação de resultados específicos ou algum rendimento manifestado em torno de algo esperado. O produto de uma ação (ato ou efeito de realizar algo) ou manifestação de algum comportamento resulta em desempenho. Refere-se à consecução de tarefas, responsabilidades e deveres que são atribuídos ao indivíduo e que este manifesta explicitamente. Diz respeito, também, às competências aplicadas ao contexto do cargo, à execução de uma obrigação ou tarefa, ou à maneira como atua ou age em termos de efetividade (eficácia e eficiência) e rendimento em relação a algo. Remete ao empreendimento intencional em ações orientadas pelo seu resultado esperado, que tem um propósito consciente ou motivação prévia.

Note-se que o desempenho põe em cena, em primeiro lugar, um esforço, um empenho investido numa ação, ou num produto/efeito dessa ação; em segundo, uma conduta, uma ação, um comportamento, propriamente dito; em terceiro, metas ou fins demandados, desejados e/ou esperados; em quarto, competências, habilidades e/ou destrezas que serão mobilizadas tendo em vista a consecução das metas ou resultados esperados; em quinto, meios, instrumentos ou técnicas, os quais, assim como as supracitadas competências, deverão servir ao mesmo tempo como suportes e como móveis que viabilizem e garantam a consecução do objetivo ou produto/efeito almejado; em sexto, por fim, o desempenho demanda um exame, uma avaliação, que tanto deve atestar o grau de seu sucesso ou fracasso do empreendimento, como deve servir de fator retroalimentador e otimizador do circuito no qual o sujeito se encontra inserido.

Não obstante sua pertinência, essa perspectivação da centralidade de que se reveste o culto ao desempenho em nossa contemporaneidade deixa na sombra outras dimensões tão ou mais importantes desse fenômeno, as quais são evidenciadas, desde um outro olhar, por exemplo, pelo sociólogo Alain EhrembergEHREMBERG, A. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. Aparecida (SP): Ed. Ideias & Letras, 2010., no livro O culto da performance (publicado originalmente em 1995, na França, e em 2010, no Brasil). Para o autor, o culto à performance constitui um fenômeno que extrapola consideravelmente os estritos limites do mundo corporativo-empresarial e que se mostra indissociável de outras tendências e/ou fatores que expressam, das mais variadas formas, a segunda fase do empresariamento generalizado da sociedade a que nos referimos anteriormente. Assim, por exemplo, o culto da performance se encarrega de subsumir dos processos de aprendizado e de trabalho seus aspectos graves, rotineiros, monótonos, previsíveis e assépticos para investi-los de novas potências e associá-los a outras experiências, valores e sensações.

Nesses termos o aprendizado e o trabalho têm de encerrar uma dimensão lúdica, como se fossem semelhantes a um misto de jogo, desafio e aventura, a algo, em suma, que não só pode como deve ser experimentado com intensidade e passionalidade, além de requerer certa disposição a correr riscos. Para Ehremberg, num movimento que se mostra de mão dupla, tanto os executivos tratam de fazer com que seus afazeres sejam atravessados por atividades esportivas e aventureiras, quanto os esportistas e aventureiros passam a conduzir cada vez mais seus hobbies e projetos (viagens, aventuras, expedições e/ou treinamentos em modalidades esportivas), evitando relativamente a pura, gratuita e despretensiosa fruição de suas ocupações. Contudo, em vez disso, apelam a toda uma grade de valores, a um conjunto de técnicas, procedimentos e padrões de conduta característicos daqueles profissionais que, em princípio, são reconhecidos como gestores competentes de suas próprias vidas, vencedores que sabem fazer bons negócios, lucrando com os mesmos. Se antes, como dizia Richard Sennett (2006SENNETT, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.), a identificação do indivíduo com a cultura da empresa em que trabalhava já permitia, bem ou mal, a construção de uma identidade e de uma narrativa que dava sentido à existência, a partir do advento do neoliberalismo e da governamentalidade neoliberal estadunidense. Por sua vez, a empresa já não é apenas uma referência, dentre outras, para uma referenciação identitária, mas torna-se o lugar por excelência de realização pessoal. Ora, se essa referência absoluta se desterritorializa da fábrica ou do escritório financeiro e comercial, para se reterritorializar em todos os pontos da sociedade, inclusive, nas organizações educacionais, em praticamente tudo detectaremos a presença do management, da publicidade, do marketing e do branding, nos sugerindo agressivamente maneiras de ser, ver, estar e viver no mundo. De todo modo, o novo homo oeconomicus do anarcocapitalismo norte-americano, dos neoliberais da Escola de Chicago, encarna algo de heroico, de uma atitude heroica, nos termos de Baudelaire. Para Ehremberg (2010, p. 13), o empreendedor incensado pelo neoliberalismo é o herói pós-moderno, um herói solitário, despolitizado e que carrega em seus ombros um difícil fardo:

Mas é na figura do empreendedor e no desenvolvimento, ao mesmo tempo recente e rápido dos modos de ação empreendedores, que o heroísmo encontra sua forma dominante. O empreendedor foi erigido como modelo da vida heroica porque ele resume um estilo de vida que põe no comando a tomada de riscos numa sociedade que faz da concorrência interindividual uma justa competição. Quando a salvação coletiva, que é a transformação política da sociedade, está em crise, a verborreia de challenges, desafios, performances, de dinamismo e outras atitudes conquistadoras constitui um conjunto de disciplinas de salvação pessoal. Quando não temos mais nada senão a nós mesmos para nos servir de referência; quando somos a questão e a resposta; o mito prometeico do homem sozinho no barco de seu destino e confrontado com a tarefa de ter de se construir; encontrar para si próprio, e por si mesmo, um lugar e uma identidade sociais torna-se um lugar comum. Numa relação com o futuro caracterizada pela incerteza, que vê recuar, em nome da mudança permanente, a crença no progresso linear que simbolizava o Estado-providência, a ação de empreender é eleita como o instrumento de um heroísmo generalizado. É por isso que o sucesso empreendedor é considerado como a via real de sucesso.

Uma segunda variável crucial que envolve a governamentalidade neoliberal e suas relações com a educação e os processos de subjetivação, diz respeito a um segundo tipo de culto, o da gestão, ao qual nos reportaremos de forma brevíssima; uma vez que, de uma maneira ou de outra, parte significativa deste trabalho tem se reportado, direta, ou indiretamente, a ele. O fundamental a reter desse culto à gestão é o fato dela ter se transformado numa verdadeira visão de mundo e num efetivo dispositivo de normatividade social, fazendo com que questões e/ou problemas de natureza política, psicossocial e/ou cultural se convertam em questões eminentemente empresariais. Ou seja, questões cujo enfrentamento e o bom encaminhamento demandam a utilização de todo um conjunto de princípios e valores, de um lado, e de todo um arsenal de técnicas, mecanismos e procedimentos, de outro. Esses, uma vez agenciados entre si e disseminados ao extremo, terminam por compor um meio, uma ambiência, ou atmosfera social com a qual os indivíduos e coletividades devem se familiarizar, se adaptar, e na qual devem se inserir como sendo seu espaço social vital. Para regular e modular as condutas e as subjetividades dos indivíduos, a governamentalidade neoliberal atua indiretamente, através da manipulação de algumas variáveis ambientais, fazendo desses indivíduos seres responsivos e previsíveis. Nesse contexto, a educação se vê, em primeiro lugar, reduzida a uma gestão tecnicista de competências e desempenhos, com vistas a uma triagem dos indivíduos que deverão ter suas vidas qualificadas, tornando-se passíveis de inclusão no sistema, cujas vidas serão desqualificadas, engrossando as fileiras dos excluídos sociais. Em segundo lugar, ela se vê alijada da possibilidade de operar com uma tábua de valores que não seja aquela emanada do mercado; por isso, precisamente, não tem como problematizar uma série de significações vitais, como, por exemplo, os sentidos de sucesso e o fracasso, felicidade e infelicidade, justiça e injustiça etc.

Uma terceira variável implicada às relações entre governamentalidade neoliberal, educação e subjetivação alude a uma espécie de imperativo de visibilidade/transparência. Por um lado, há como que um chamado a que os indivíduos se exponham, ganhem visibilidade, exibam-se, tornem-se transparentes, inclusive, como bem mostrou Paula Sibilia (2008SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.), à custa do escancaramento de sua intimidade. Essa exortação à exibição tem lá sua conexão com alguns valores e práticas que fazem parte do campo do management, em particular a ideia de que não basta ao indivíduo realizar bem o seu trabalho ou dar conta, de forma correta e pontual, de suas responsabilidades para ser reconhecido, valorizado e, com isso, promovido. Há que se ir mais adiante, atentando-se ao fato de que, para aumentar a probabilidade de vir a obter uma almejada aprovação e de vir a ser premiado por seu desempenho, ele deve espetacularizá-lo, de modo a dar ampla repercussão (visibilidade e dizibilidade) à sua performance, encontrando maneiras diversas de se fazer notar, seja, principalmente, por seus superiores, seja pelos que estão em posições hierárquicas semelhantes a sua, seja, enfim, pelos que se encontram abaixo dele na hierarquia organizacional.

É nessa direção que devemos apreender os apelos sedutores em torno do marketing pessoal e de sua principal ferramenta, o networking. Este consiste basicamente em saber constituir uma rede estratégica de contatos, que, a despeito de servir meio de partilha de informações, conhecimentos e experiências, deve seu apelo muito mais à possibilidade de - se bem gerida e cultivada - aumentar a probabilidade de alavancar a carreira profissional do indivíduo empreendedor, abrindo as portas para boas oportunidades, promoções, alianças, ocupação de cargos estratégicos e assim por diante. De resto, o imperativo de investir na imagem e no desempenho também constitui um imperativo para as grandes empresas e corporações, as quais acionam, para tanto, serviços de comunicação e de marketing institucional que devem trabalhar no sentido de elevar o conceito da organização junto à sociedade e de construir uma interface amigável entre ambas (empresa politicamente correta, sustentável, com sensibilidade, compromisso social etc.).

Por outro lado, o imperativo de visibilidade/transparência também se conecta ao policiamento, à vigilância e ao controle das condutas dos indivíduos e das ações das organizações, sejam elas estatais, sejam privadas. Nesse sentido, a questão da visibilidade não só remete àquela cultura de prestação de contas a que nos referimos há pouco (accountability), como também levanta questões políticas nada desprezíveis, a exemplo de algumas assinaladas por Daniel Innerarity (2017INNERARITY, D. A política em tempos de indignação: a frustração popular e os riscos para a democracia. Rio de Janeiro: Ed. LeYa, 2017.). Antes de conferi-las, todavia, detenhamo-nos no que quer dizer o termo accountability. Segundo Freitas, Siqueira e De Paulo (2008FREITAS, N.; SIQUEIRA, C. A.; DE PAULO, A. Dicionário Negócio & Empreendedorismo. Petrópolis (RJ): Ensinart, 2008. , p. 20), o conceito anglo-saxão de accountability refere-se à

[...] obrigação dos gestores públicos e técnicos responsáveis pela formulação e implementação de políticas públicas ampliarem a visibilidade das ações desempenhadas, em seus múltiplos aspectos, disponibilizando informação qualificada sobre procedimentos adotados, custos, benefícios e resultados para o conjunto dos atores sociais envolvidos.

Cordeiro (2013CORDEIRO, J. Accountability: a evolução da responsabilidade pessoal. São Paulo: Ed. Évora, 2013.), por sua vez, num discurso típico de literatura de autoajuda empresarial, distingue três modalidades de accountability, das quais a primeira, dita governamental, é justamente a que acabamos de definir acima; a segunda, a contábil, refere-se à prestação de contas em assuntos atinentes à contabilidade (tesouraria, tributação, balanço patrimonial, dentre outros). A terceira modalidade de accountability, por seu turno, designada por Cordeiro como pessoal, caracteriza-se por ser uma atitude ética, de caráter ativo, que um indivíduo não só pode como deve manter para com os outros. Por outro lado, essa postura é equiparada, por Cordeiro (2013CORDEIRO, J. Accountability: a evolução da responsabilidade pessoal. São Paulo: Ed. Évora, 2013., p. 6), a uma habilidade capaz de levar o indivíduo a “crescer acima e além das circunstâncias, fazendo tudo o que está ao seu alcance para atingir os melhores resultados, principalmente no que se refere às responsabilidades do dia a dia, tanto no ambiente familiar quanto no profissional”. É nítido como esse imperativo ético se encontra agenciado às novas tecnologias de gestão do “Eu”, à maximização da performance e ao aumento da visibilidade.

Voltemos agora àquelas questões políticas levantadas por Innerarity (2017INNERARITY, D. A política em tempos de indignação: a frustração popular e os riscos para a democracia. Rio de Janeiro: Ed. LeYa, 2017.). Elas dizem respeito tanto à necessidade de que os indivíduos sejam relativamente vigiados (por mecanismos que os submetam a certa visibilidade), quanto aos perigos de vivermos em sociedades em que a transparência seja alçada à condição de um valor absoluto. Assim, pondera Innerarity (2017INNERARITY, D. A política em tempos de indignação: a frustração popular e os riscos para a democracia. Rio de Janeiro: Ed. LeYa, 2017., p. 215):

Durante os últimos anos, o conceito de transparência teve uma carreira meteórica nas sociedades democráticas. A observação do poder se apresenta como o grande instrumento de controle cidadão e de regeneração democrática. Ora, como qualquer outro princípio político, a transparência tem de ser promovida e equilibrada com outros instrumentos. Convém que o entusiasmo por ela não esconda as dificuldades inerentes ao seu verdadeiro exercício, bem como seus inconvenientes e possíveis efeitos secundários, como o jogo de ocultações que pode promover.

Além de observar, os cidadãos devem dispor de outras capacidades igualmente essenciais para a democracia. Se atendermos a todas as variáveis que intervêm na sociedade democrática, podermos afirmar que a transparência é um valor que deve ser promovido na medida certa. Tão necessária quanto limitada, a democracia requer transparência, mas não a suporta em excesso nem pode instituí-la como princípio único. As democracias oculares se articulam em torno da observação do combate que suas elites travam, e na observação desse espetáculo radica tanto a força do seu controle quanto as limitações da transparência.

Por fim, a última variável crucial que perpassa a relação entre governo, subjetivação e educação é constituída pelas novas tecnologias da informação e da comunicação (TICs). As TICs ganharam especial impulso a partir de meados dos anos 1970, quando foram desenvolvidas interfaces cada vez mais amigáveis entre computadores e usuários, e quando se assistiu a um avanço vertiginoso em relação à capacidade de armazenamento e processamento de informações. Não bastasse isso, seu alcance assumiu uma dimensão planetária com o advento da internet, redefinindo nossas relações com o tempo, o espaço e nossas relações de sociabilidade. Gradativamente, tudo passou a girar em torno de uma lógica das redes, da complexidade e das convergências tecnológicas. Entretanto, para Paula Sibilia (2008SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.), a escola, essa instituição disciplinar de encerramento, tal como a concebia Michel Foucault em diversas ocasiões, parece ter ficado teimosamente aprisionada, do final do século XVIII até os nossos dias - nos quais impera uma “lógica das redes” -, a uma lógica de encerramento, isto é, a uma “lógica das paredes”. Em decorrência, a educação escolarizada se viu lançada numa crise de grande envergadura, haja vista manter para com a contemporaneidade uma relação, senão de estranheza, de franco desencaixe.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Rigorosamente falando, o início do desenvolvimento de uma rede ferroviária nos EUA remonta à década de 1820, quando, segundo Risk e Tereso (2011RISK, E. N. V. de M.; TERESO, M. J. de A. A administração na linha do tempo. Campinas (SP): Alínea, 2011., p. 35), as estradas de ferro constituíam os maiores empreendimentos empresariais privados, para os quais “os investimentos eram direcionados, o que propiciou o aparecimento de uma classe de investidores. A implantação dessas estradas produziu o fenômeno de interiorização do país, provocando a rápida urbanização nos Estados Unidos e gerando novas necessidades de habitação, alimentação, vestuário, luz e aquecimento, com a consequente expansão de empresas voltadas para o consumo direto”.
  • 2
    Assim entendido, ainda segundo Rusconi (2010RUSCONI, G. E. Capitalismo. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINI, G. (Orgs.). Dicionário de Política. 13. ed., 4. reimpressão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2010. p. 141-148., p. 141), suas principais características são as seguintes: “a) propriedade privada dos meios de produção, para cuja ativação é necessária a presença do trabalho assalariado formalmente livre; b) sistema de mercado, baseado na iniciativa e na empresa privada, não necessariamente pessoal; c) processos de racionalização dos meios e métodos diretos e indiretos para a valorização do capital e a exploração das oportunidades de mercado para efeito de lucro”. Poder-se-ia acrescentar a essas, uma quarta característica, qual seja, a de que a racionalização daí advinda vai além dos âmbitos técnico-produtivo e administrativo-científico, estendendo-se à vida social como um todo, fazendo-se presente, portanto, tanto ao nível das condutas pessoais, quanto das grupais e coletivas.
  • 3
    Poder-se-ia acrescentar aos nomes de Weber e Sombart, o de Joseph Schumpeter (questão da inovação e da destruição criativa), mas isso extrapolaria nossas modestas ambições. Em todo caso, no que tange às principais formulações desses dois primeiros autores e suas possíveis ressonâncias nas análises empreendidas por Foucault em Nascimento da biopolítica (2008bFOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1979-1980). São Paulo: Ed. Martins Fontes , 2008b.), vale a pena conferir Os executivos das transnacionais e o novo espírito do capitalismo, do sociólogo Osvaldo López-Ruiz (2007LÓPEZ-RUIZ, O. Os executivos das transnacionais e o novo espírito do capitalismo: empreendedorismo e capital humano como valores sociais. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007.), inclusive, o prefácio a este ótimo livro, escrito por Laymert Garcia dos Santos.
  • 4
    Rigorosamente falando, há que se ter em conta que a biopolítica, como se verá mais adiante, não é propriamente desenvolvida por Foucault no curso de 1979-1980. Felizmente, todavia, ele nos disponibiliza, nessa e em outras obras, importantes elementos para que a pensemos e a atualizemos, cartografando seus novos funcionamentos em nossa contemporaneidade.
  • 5
    Neste momento, talvez seja oportuno abrir um pequeno parêntesis acerca da relação entre governo, entendido como condução da conduta de alguém, e liberdade, atributo de que gozaria o indivíduo liberal. Para tanto, permitam-me citar um breve trecho de autoria de Viviane Klaus (2011KLAUS, V. Desenvolvimento e governamentalidade (Neo)Liberal: da administração à gestão educacional. 2011. Tese (doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2011., p. 66), pesquisadora que problematiza a relação entre gestão e educação, a partir das formulações de Michel Foucault. Diz ela: “A doutrina liberal precisa de liberdade para poder agir: liberdade de expressão, liberdade de discussão, liberdade de mercado etc. A elaboração e a intervenção do poder público estão diretamente relacionadas com o princípio da utilidade, que indica no que o Governo pode mexer e no que o Governo não deve mexer. O Governo estará preocupado continuamente com o jogo entre interesses coletivos e interesses individuais, entre liberdade e segurança, ou seja, ao mesmo tempo em que a liberdade é produzida – pois o liberalismo é definido no livre jogo dos interesses individuais –, é preciso estabelecer limites e controles às liberdades. [...] No liberalismo, a liberdade é entendida muito mais como espontaneidade do que como liberdade jurídica reconhecida como tal para os indivíduos [...], de forma que é preciso deixar as pessoas agirem, falarem, participarem. [...], liberdade aqui tem relação direta com o sujeito de interesse, com o homem empresário de si mesmo.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2017
  • Aceito
    09 Set 2017
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