Acessibilidade / Reportar erro

Resenha

PRESTES. Zoia. . Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2012

Zoia Prestes é filha de Luiz Carlos Prestes com Altamira Rodrigues Sobral. Passou a infância e início da vida adulta em Moscou, capital da então União Soviética, no período em que a família Prestes recebeu asilo político em função das perseguições e ameaças feitas pelo regime militar instalado no Brasil em 1964. Pela Universidade Estatal de Pedagogia de Moscou formou-se em pedagogia e psicologia pré-escolar, além de realizar o mestrado. No Brasil, realizou doutorado em educação pela Universidade de Brasília com orientação de Elizabeth Tunes. É atualmente professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.

O livro originou-se da pesquisa realizada no doutorado em que a autora realizou o desafiador trabalho de demonstrar como equívocos na tradução de alguns conceitos presentes na obra de Vigotski acabaram por deturpar a compreensão de suas ideias no Brasil. Os argumentos que apresenta para justificar as alterações encontradas estão fundamentados em extensa pesquisa biográfica e bibliográfica. Prestes foi à Rússia e entrevistou familiares de Vigotski e Leontiev, teve acesso aos materiais escritos na língua russa, comparou edições das obras publicadas em diferentes línguas e mergulhou no contexto em que Vigotski desenvolveu seu pensamento.

À tona são trazidos questionamentos sobre quais motivos levam a teoria de Vigotski ser denominada de sócio-histórica ou sociocultural, sendo que ele mesmo não deu nome algum para sua teoria. Apresenta argumentos para dizer que o rompimento entre Vigotski e Leontiev, de fato, não existiu e que as críticas empreendidas por Leontiev à Vigotski foram sempre éticas e estiveram no plano das discussões teóricas. Além disso, explicita, embora muitos afirmem o contrário, que a teoria da atividade proposta por Leontiev nascera em Vigotski, notadamente, quando discute a brincadeira como atividade guia.

Ao longo das páginas, Prestes apresenta dados que compuseram os bastidores da teoria histórico-cultural. Informa o que pode ter justificado a modificação na grafia do nome de Vigodski para Vigotski. Ele possuía um primo, David, que também publicara artigos na mesma época e, por vezes, na mesma revista. O motivo pode tê-lo levado a modificar sua assinatura com o objetivo de evitar ser confundido com o primo (p. 31). Outro dado interessante é o acesso a informações sobre cartas trocadas entre Vigotski, Luria e Leontiev, que eram dadas como desaparecidas até 2002. Prestes destaca também que nem sempre as obras do pensador tiveram um destino digno. Citando relato de Guita, filha de Vigotski, nos informa que:

Os principais trabalhos (de Vigotski) foram conservados em manuscritos. Permaneceram sem ser mexidos em dois armários de livros no nosso quarto. Assim foi até o início da Guerra (Guita refere-se à II Guerra Mundial). Durante a Guerra, nosso prédio sofreu com bombardeios (uma bomba caiu no prédio ao lado) e, com a explosão, quebrou os vidros das janelas do prédio e arrebentou a porta de entrada do nosso apartamento que se localizava no primeiro andar e ficou durante 10 dias sem janelas e portas (não estávamos em Moscou).

Quando retornamos com nossa mãe e entramos no apartamento, fomos obrigadas a parar na entrada, pois todo chão do corredor estava coberto por páginas de manuscritos. Esforçamo-nos ao máximo para não pisar nas folhas jogadas. Juntamos uma a uma... Muitos livros (e pode ser que até mesmo manuscritos) se perderam; podem ter sido levados ou usados como combustíveis para aquecimento. (p. 118).

Ainda sobre o destino que as obras de Vigotski tiveram, a autora demonstra que importantes livros que servem ao pesquisador brasileiro não foram traduzidos respeitando o original. Por exemplo, Psicologia pedagógica acrescenta dois capítulos que não pertencem ao original russo, além de um capítulo não ter sido publicado na íntegra, sofrendo grande corte de texto (p. 133-134). Em Psicologia da artedestacam-se as distorções realizadas em relação ao conceito de vivência, que erroneamente foi traduzido ora como emoção, ora como sentimento (p. 125). Pensamento e linguagem, traduzido para o português pelo viés de uma versão americana, foi o livro "que mais sofreu com adulterações e cortes" (p. 139). A versão mais recente, traduzida diretamente do russo sob o título A construção do pensamento e da linguagem, também apresenta erros. Segundo a autora, traduziu-se fala por linguagem, erro que compromete seriamente o conceito abordado por Vigotski.

Na própria linguística está presente a diferença entre linguagem e fala. A fala é uma categoria da linguagem e, portanto, língua e fala não são a mesma coisa. Tudo o que diz respeito à fala diz também respeito à linguagem, mas nem tudo o que diz respeito à linguagem pode ser entendido como fala. Para Vigotski, a fala está relacionada à principal neoformação da primeira infância e graças a ela a criança muda a sua relação com o ambiente social do qual é parte integrante. É importante destacar que a certeza de que Vigotski, em seus estudos, está referindo-se à fala e não à linguagem encontra fundamentos em seus próprios trabalhos, quando conhecemos suas ideias sobre o sentido da palavra que se realiza na fala viva, contextualizada. Inicialmente, diz Vigotski, a fala é um meio de comunicação, surge como uma função social. Aos poucos, a criança aprende a utilizá-la para seus processos internos e a transforma em um instrumento do próprio pensamento; o domínio da fala leva à reestruturação da consciência. (p. 217).

Os livros Pensamento e linguagem e A formação social da mente, que introduziram Vigotski no Brasil, receberam alterações tão significativas e deliberadas, afirma a autora, que é possível dizer que não foram escritos por ele (p. 174 e 231).

Ao selecionar conceitos da teoria histórico-cultural presentes no vocabulário educacional brasileiro, Prestes identifica o que considera traduções pouco cuidadosas ou cuja intenção era apresentar um Vigotski menos marxista e menos comprometido com o regime socialista. O conceito de zona de desenvolvimento iminente é traduzido por zona de desenvolvimento proximal ou zona de desenvolvimento imediato.

Tanto a palavra proximal como a imediato não transmitem o que é considerado o mais importante quando se trata desse conceito, que está intimamente ligado à relação existente entre desenvolvimento e instrução e à ação colaborativa de outra pessoa. Quando se usa zona de desenvolvimento proximal ou imediato não está se atentando para a importância da instrução como uma atividade que pode ou não possibilitar o desenvolvimento. Vigotski não diz que a instrução é garantia de desenvolvimento, mas que ela, ao ser realizada em uma ação colaborativa, seja do adulto ou entre pares, cria possibilidades para o desenvolvimento. (p. 190).

Instrução é outro conceito que, segundo a autora, foi adulterado e virou aprendizagem.

Para Vigotski, obutchenie (instrução) é uma atividade, atividade essa que gera desenvolvimento e, por isso, deve estar à frente do desenvolvimento, não seguindo o desenvolvimento como uma sombra [...]. Toda atividade é um processo na perspectiva de Vigotski. Mas quando se fala de aprendizagem, importa o resultado a que se chega. Por sua vez, obutchenie é uma atividade e seu sentido encontra-se nela mesma; daí porque se pode afirmar que a atividade contém nela própria os elementos que promovem o desenvolvimento. (p. 219).

Mas qual seria a diferença entre aprendizagem e atividade? A diferença está em que, no âmbito das concepções idealistas, atividade é interpretada como uma resposta do sujeito passivo a uma influência externa, de modo que suas vivências são desconsideradas, enquanto que, para Vigotski, atividade leva em conta, necessariamente, o conteúdo e as relações concretas da pessoa com o mundo. A autora acredita que a substituição do termo instrução por aprendizagem esteja vinculada ao significado negativo que a palavra instrução possui no vocabulário educacional brasileiro, sendo comumente associada à transmissão e aquisição de conhecimento em que está implícito o papel passivo da pessoa.

O terceiro capítulo do livro é destinado a discutir o processo de tradução. Prestes, que além de ser estudiosa das obras de Vigotski também trabalha como tradutora de obras do idioma russo para o português, debate o quanto o trabalho de tradução deve ser realizado do ponto de vista técnico, e, antes de tudo, ético. Este último fator, aparentemente, não foi a tônica das traduções dos textos de Vigotski que chegaram ao leitor brasileiro.

De nada adianta a técnica, se o tradutor não assumir o compromisso ético diante do autor da obra original. E esse compromisso não deve anular a tarefa do tradutor, que também cria com base em suas experiências, mas ele deve primordialmente exercer o papel de suporte da alteridade do autor, para que a sua ausência se presentifique no texto traduzido. Não se trata de negar a técnica, mas ela de nada vale se aquele que se propõe a traduzir não se recolher, não se submeter ao autor, respeitando totalmente seu texto sem se impor a ele, para que o pensamento do autor surja com a maior intensidade possível na tradução. (p. 229).

Assim, a fidelidade ao texto deve ser o foco principal do tradutor, para que o pensamento do autor chegue ao leitor em sua autenticidade. "Se, no original, o texto é repetitivo, está mal redigido e exige inúmeras leituras para ser compreendido, assim ele deve emergir na tradução". (p. 113).

Que os escritos de Vigotski foram censurados e filtrados na União Soviética, sobretudo por sua aproximação com a pedologia, não é surpresa para ninguém. O que permanece um mistério que a autora não conseguiu desvelar, mesmo com toda a pesquisa empreendida, é por que os trabalhos continuaram abreviados mesmo quando começaram a ser novamente publicados nas edições soviéticas.

Sua filha relata que, ao elaborar a bibliografia dos trabalhos de Vigotski no início dos anos 1970, encontrou diversos números de revistas que haviam publicado artigos dele e em que haviam sido retiradas as páginas correspondentes ao seu texto. No lugar, havia carimbos com os dizeres "Retiradas de acordo com a Resolução sobre as deturpações pedológicas no sistema do Comissariado do Povo para Instrução" [...]. A filha de Vigotski contou que textos de seu pai não foram arrancados somente das revistas que encontrou, mas também de um livro de Freud, cuja introdução à edição soviética havia sido escrita por ele [...] esse livro permaneceu intocável, mas as páginas da introdução foram arrancadas. (p. 5).

Prestes pergunta: o que fazia Freud ser menos perigoso do que Vigotski ao leitor russo daquela época? Talvez esta indagação coloque os estudiosos desse pensador diante de fértil terreno para futuras pesquisas.

A autora encerra seu livro refletindo sobre as influências que o pensador russo acarretou na escola brasileira:

O pensamento de Vigotski, até os dias de hoje, não foi levado a sério no Brasil, no sentido de que suas ideias são empregadas apenas como maquiagem e não como eixo orientador para profundas transformações na escola, transformações essas que devem inverter a organização das atividades, não em função do professor, mas em função dos estudantes. Sem dúvida, isso não se pode atribuir apenas ao fato de as traduções de suas obras serem mal feitas. As traduções são na verdade, apenas cúmplices, assim como a censura e os cortes sofridos por suas obras também o são. Porém, o que é preciso evidenciar é que o nome de Vigotski e suas ideias servem meramente para legitimar o mesmo trabalho que sempre foi e continua sendo realizado na escola. Isso contraria o próprio Vigotski, que, por exemplo, jamais utilizou Marx para remendar ideias do seu pensamento; ele usa o método de Marx para estruturar a sua teorização e não para legitimar o que pensa. (p. 236).

Por fim, o livro de Zoia Prestes é leitura importante para profissionais da área de educação, de tradução, estudantes e pesquisadores da obra vigotskiana. No mínimo, nos induz à reflexão sobre quem é, de fato, esse pensador que passou a ser idolatrado e tem suas ideias tão difundidas no interior das escolas brasileiras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2014
  • Aceito
    26 Fev 2015
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br