Acessibilidade / Reportar erro

Ensino público gratuito: flexibilidades e desvios

Ensiñanza pública gratuita: flexibilidades y desvíos

Public schools: flexibility and misguidance

Resumos

O presente artigo discute o ensino público gratuito e os conceitos de princípio constitucional e de gratuidade. Esclarece como se aplica o Princípio da Gratuidade ao ensino público e enumera como este se apresenta no texto da LDB. Ao final, aponta uma grande contradição na Educação Superior, uma vez que as mesmas Instituições de Ensino Superior públicas e seus membros - gestores e docentes - que se manifestam publicamente contra a discussão de cobrança de mensalidades ou serviços para estudantes dos cursos superiores, em nome de um ensino público gratuito e de qualidade, cobram mensalidades nos cursos da Educação Superior por elas mantidas, utilizando-se de subterfúgios como as fundações de apoio.

Política educacional; Ensino público gratuito; Legislação educacional


Este artículo discute la enseñanza pública gratuita y los conceptos de principio constitucional y de gratuidad. Aclara como se aplica el Principio de la Gratuidad en la enseñanza pública y enumera como este se presenta en el texto da LDB. Por último, señala una gran contradicción en la Educación Superior, ya que estas mismas Instituciones de Enseñanza Superior pública y sus miembros - gestores y docentes - que se manifiestan públicamente contra la discusión de cobro de mensualidades o servicios para estudiantes de los cursos superiores, en nombre de una enseñanza pública gratuita y de calidad, cobran mensualidades en los cursos de Educación Superior por estas mantenidas, utilizando subterfugios como las fundaciones de apoyo.

Política educativa; Enseñanza pública gratuita; Legislación educacional


This paper discusses the concepts of "constitutional principle" and "public education" regarding public educational policies in Brazil. It clarifies the meaning of "public education" as stated in the basic regulation of Brazilian educational public policy - LDB - Lei de Diretrizes e Bases. The paper shows that there is a contradiction in the Brazilian public universities. Some of the courses provided in the area of Education are being paid for by the students. This has been made possible through institutional associations with the universities' foundations. This private policy has been implemented by the same officials and professors, who are, allegedly, defendants of the constitutional principle of public education. These servants had indeed manifested in the past their opinion against the charging of students enrolled in public universities.

Educational policy; Free public education; Legislation law


PÁGINA ABERTA

Ensino público gratuito: flexibilidades e desvios

Public schools; flexibility and misguidance

Ensiñanza pública gratuita: flexibilidades y desvíos

Alvaro Chrispino

Doutor em Educação,UFRJ, Professor do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de Ciências e Matemática do CEFET-RJ

RESUMO

O presente artigo discute o ensino público gratuito e os conceitos de princípio constitucional e de gratuidade. Esclarece como se aplica o Princípio da Gratuidade ao ensino público e enumera como este se apresenta no texto da LDB. Ao final, aponta uma grande contradição na Educação Superior, uma vez que as mesmas Instituições de Ensino Superior públicas e seus membros — gestores e docentes — que se manifestam publicamente contra a discussão de cobrança de mensalidades ou serviços para estudantes dos cursos superiores, em nome de um ensino público gratuito e de qualidade, cobram mensalidades nos cursos da Educação Superior por elas mantidas, utilizando-se de subterfúgios como as fundações de apoio.

Palavras-chave: Política educacional. Ensino público gratuito. Legislação educacional.

ABSTRACT

This paper discusses the concepts of "constitutional principle" and "public education" regarding public educational policies in Brazil. It clarifies the meaning of "public education" as stated in the basic regulation of Brazilian educational public policy - LDB - Lei de Diretrizes e Bases. The paper shows that there is a contradiction in the Brazilian public universities. Some of the courses provided in the area of Education are being paid for by the students. This has been made possible through institutional associations with the universities' foundations. This private policy has been implemented by the same officials and professors, who are, allegedly, defendants of the constitutional principle of public education. These servants had indeed manifested in the past their opinion against the charging of students enrolled in public universities.

Keywords: Educational policy. Free public education. Legislation law.

RESUMEN

Este artículo discute la enseñanza pública gratuita y los conceptos de principio constitucional y de gratuidad. Aclara como se aplica el Principio de la Gratuidad en la enseñanza pública y enumera como este se presenta en el texto da LDB. Por último, señala una gran contradicción en la Educación Superior, ya que estas mismas Instituciones de Enseñanza Superior pública y sus miembros — gestores y docentes — que se manifiestan públicamente contra la discusión de cobro de mensualidades o servicios para estudiantes de los cursos superiores, en nombre de una enseñanza pública gratuita y de calidad, cobran mensualidades en los cursos de Educación Superior por estas mantenidas, utilizando subterfugios como las fundaciones de apoyo.

Palabras-clave: Política educativa. Enseñanza pública gratuita. Legislación educacional.

Introdução

É permanente a discussão em torno do tema financiamento da educação e/ou do ensino. Comumente, vemos, na literatura especializada e em veículos de comunicação de massa, os debates que se estabelecem, invariavelmente, na solicitação de maior volume de recursos públicos para a educação. As propostas são sempre no sentido de ampliar recursos vinculados aos orçamentos públicos ou no aumento do percentual do PIB para este setor e se esvaziam, na intensidade e no número, quando se propõe discutir a qualidade dos gastos, a gestão dos processos, a avaliação do resultado educacional, o custo-efetividade das políticas e/ou propostas etc.

Como bem salienta Tedesco (2002), se, por um lado, é legítima e necessária a discussão sobre o investimento em educação (o quanto e o como se alocam recursos em educação), é indispensável a reflexão sobre o contexto em que se dá tal pedido: a restrição causada por uma crise fiscal iniciada nos anos oitenta e uma massificação da cobertura educacional nos anos noventa. O movimento de tensão entre a demanda por recursos e a restrição de gastos afeta a todos — sociedade, instituições e pessoas.

Os ângulos de discussão sobre financiamento da educação são variados e atendem a diferentes interesses políticos, ideológicos e/ou corporativos, a partir dos quais é possível encontrar literatura variada. Há a discussão sobre a equidade e financiamento (SOUZA et al., 2002); o debate sobre a aplicação de recursos públicos em sistemas privados ou públicos não-estatal (WOLFF; GONZALEZ; NAVARRO, 2002); os custos e gastos em educação (PROGRAMA DE PROMOÇÃO DA REFORMA EDUCATIVA NA AMÉRICA LATINA, 1998; OLIVEIRA, 2002; SOUZA, 2002) e o debate sobre o nexo de causalidade direta entre globalização e educação (CARNOY, 2002) ou não (BRUNNER, 2002), só para citar os textos mais amplos e recentes.

Na atualidade, vivemos o retorno ao cenário educacional do insepulcro debate sobre a cobrança para estudantes do ensino superior na forma de mensalidades, de pagamento posterior à sua formação ou mesmo de "serviço civil obrigatório", para usar expressão de Schwartzman (1991).

O foco de maior atenção neste tema e nessas espécies de cobrança subtrai espaços para análise mais ampla sobre ensino público gratuito e estudo mais atento para algumas ações que, na prática, são desvios do Princípio da Gratuidade e, se talvez não alcancem as fronteiras da irregularidade, são eticamente questionáveis.

A gratuidade como Princípio Constitucional

O Ensino Público Gratuito está explícito no artigo 206, inciso IV, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1998), da seguinte forma:

Art. 206: O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

IV — gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais

A discussão sobre o significado do texto constitucional deve indicar alguns pontos importantes, a saber: a definição de princípio e o entendimento do que seja gratuito.

É desnecessária a discussão sobre o que seja a expressão "em estabelecimentos oficiais", uma vez que, na educação, há apenas a classificação de ensino privado e ensino público, tomando-se o público por oficial, deixando de tratar do que seja o privado, o público e o estatal, como ocorre na radiodifusão (art. 223, da Constituição Federal) (CASTRO, 1998).

Sobre o conceito de Princípio Constitucional e suas conseqüências

Ensina o Dicionário Houaiss (HOUAISS; VILLAR; FRANCO, 2001) que princípio é o primeiro momento da existência (de algo), ou de uma ação ou processo; o aquilo que serve de base para alguma coisa, causa primeira; proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de conhecimento.

No campo do Direito, ele terá função similar de acordo com os especialistas.

Para Mello (1991, p. 230), em definição clássica,

princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Para Silva (1996, p.94, grifo nosso), "os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são núcleos de condensações nos quais confluem valores e bens constitucionais".

Para Barroso (2001, p.149), "os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui".

Parece claro que, como Princípio Constitucional, a gratuidade do ensino público deve perpassar todas as instâncias de ensino e deve ser considerada mesmo quando não está explícita no texto legal.

O Princípio da Gratuidade está presente de forma especial na Carta Política de 1988 e se manifesta diferentemente dos textos constitucionais antecedentes. Segundo Castro (1998), em todas elas apenas o antigo primário realizado em escolas públicas era gratuito. A Constituição de 1937 (BRASIL, 1937) permitia uma "contribuição módica e mensal para a caixa escolar" (art. 130), ressalvada a impossibilidade de contribuição. As Constituições de 1824, 1891 e 1934 se omitiram sobre os níveis posteriores, o que permitiu a cobrança. A Carta de 1934 (BRASIL, 1934) instituiu a "tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao primário, a fim de o tornar mais acessível" (art. 150, parágrafo único). As Constituições de 1946 e de 1967, determinavam a gratuidade em estudos posteriores ao primário para quem provasse falta ou insuficiência de recursos, exigindo, entretanto, o "efetivo aproveitamento".

Percebe-se, pois, que a tendência à gratuidade não é idéia nova e, mesmo assim, ainda suscita discussões acaloradas até os nossos dias. Aliás, essa não é uma tendência brasileira. A Declaração Universal dos Direito Humanos (NAÇÕES UNIDAS, 1978), de 10 de dezembro de 1948, da qual o Brasil é signatário, já indicava esta tendência em seu artigo 26:

1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

Talvez por isso, a Constituição tenha elevado a Educação às categorias de (1) direito de todos, (2) serviço público essencial e (3) dever do Estado. Conforme explicitado nos arts. 205 e 227 (educação é direito de todos e dever Estado e da família), devendo ser oferecida de acordo com os princípios apresentados no artigo 206.

Cabe, neste ponto, uma observação importante sobre a interpretação que se pode dar ao Princípio Constitucional e suas conseqüências. Parece claro que a legislação derivada deve submissão ao Principio Constitucional da Gratuidade, estando este explícito ou não no texto. É certo que, por desconhecer esta hierarquia legislativa, a comunidade educacional solicita que o princípio esteja explícito em todos os espaços, o que é um despropósito. É o que ocorre com Brandão (2003, p. 24) quando escreve:

A opção por colocar a 'gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais' como princípio, e não como uma obrigatoriedade, mesmo sendo um princípio constitucional, pode denotar uma intenção velada de, no futuro, privatizar todos os níveis de ensino que forem possíveis.

Gostaríamos de deixar claro que, atualmente, nada garante direitos. Tudo pode e está sendo mudado no mundo dos direitos, conforme constatamos no Governo Lula. Não é, pois, a definição como obrigatoriedade que irá superar a tendência de política de Estado enunciada num Princípio Constitucional. Este equívoco é semelhante àquele dos educadores de entendem que as Disposições Transitórias da LDB são menores do que "o corpo da lei", quando avaliam a formação superior dos professores após a Década da Educação (CHRISPINO, 2000). Deixamos aqui, pois, mais uma discordância com alguns grupos na interpretação de texto legal, o que, ao contrário do que podem pensar alguns, é rico para o debate e amadurecimento do entendimento sobre temas controversos.

Apresentadas as análises sobre o conceito de Princípio Constitucional e sua conseqüência para o conjunto de normas legais da Educação, vamos tentar explicitar o que venha a ser gratuito.

Sobre a definição de gratuito

Reza que "não existe almoço de graça... alguém está pagando". Na verdade, quando se defende o ensino público gratuito está se dizendo que o coletivo da sociedade vai pagar a conta da Educação e do Ensino com o dinheiro recolhido na forma de tributos pelos governos. Quer, na verdade, se dizer que não haverá contraprestação financeira pelos serviços educacionais prestados por uma escola chamada pública para os alunos.

Ao comentar o artigo 3º, VI, da LDB, que reproduz o texto constitucional, Carneiro (1998, p. 35) é taxativo e explícito:

A gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais é uma questão de grandíssimo alcance social. O contribuinte paga a escola, quando paga seus impostos. O princípio da gratuidade do ensino decorre, assim, das responsabilidades públicas deste ente dinossáurico que se chama estado. Cada vez que ele cobra por um serviço que é essencial e universal, como é o caso da educação básica, está praticando bitributação, o que é constitucionalmente vedado.

Quando se diz que o ensino é gratuito quer se dizer, na verdade, que todos pagam pelo sistema educacional. Daí decorre, com naturalidade, que não pode a escola pública, em qualquer um de seus níveis, resistir a idéia de prestar conta à sociedade de sua eficácia, de sua eficiência e de sua efetividade.

É importante ressaltar que a gratuidade está indicada em sete pontos da LDB (BRASIL, 1996, grifo nosso), sendo que todos estão inseridos no contexto da Educação Básica. Não há esta previsão explícita no corpo da lei quando esta trata de Educação Superior. São eles:

Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

[...]

VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

Art. 4º. O dever do Estado com a educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de:

I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria1 1 Redação da EC 14, ao art. 208 da CF: I. Ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria. ;

II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio2 2 Redação da EC 14, ao art. 208 da CF: II. Progressiva universalização do ensino médio gratuito.

III - atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino;

IV - atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade;

Art. 32. O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública, terá por objetivo a formação básica do cidadão, [...]:

Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria.

§ 1º. Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames.

(grifamos)

Como se pode depreender, está explícita a gratuidade na Educação Básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e nas modalidades de Educação de Jovens e Adultos e Educação Especial, sendo omissa no que se refere a Educação Superior. Pela hierarquia legislativa isto não é um problema, considerando que "a norma da gratuidade do texto constitucional de 1988 veda qualquer tipo de cobrança pelos cursos oferecidos pelas instituições públicas de ensino, seja em pecúnia ou trabalho, durante ou após os estudos realizados" (CASTRO, 1998, p. 25).

Se não há dúvida quanto a ilegalidade de cobrança pelas escolas públicas na sua atividade, há controvérsia quanto a possibilidade de cobrança de taxas para outras atividades do universo escolar, tais como taxa de inscrição em vestibular ou taxa de expedição de diplomas, devendo sempre haver a previsão de isenção para aqueles que declararem a impossibilidade de pagamento.

Uma outra análise importante decorre da idéia de obrigatoriedade de ensino e as condições ofertadas pela Estado para que este direito-dever se concretize de forma geral. O ensino fundamental é obrigatório (art. 4º, I, LDB) e, para que tal se processe, o Estado terá o dever de oferecer aos estudantes do ensino fundamental as condições mínimas indispensáveis por meio de programas suplementares de material didático-escolar, alimentação, transporte e saúde escolar (art. 4, VIII, LDB). Algumas análises são possíveis a partir disso:

1. As escolas públicas de ensino fundamental estão impedidas de cobrarem qualquer tipo de pecúnia ou trabalho em contrapartida — direta ou indiretamente — sobre estes assuntos, considerando ser dever do Estado. Por exemplo, obrigatoriedade de livro didático como condição para assistir às aulas é ilegal, por ser o livro um acessório e a presença em sala de aula uma obrigação; ou taxa para merenda escolar etc.

2. O ensino médio gratuito, quando universalizado, poderá passar a ensino obrigatório o que, pela tendência definida, deverá receber dos governos a mesma rede de proteção social a fim de que a obrigação possa ser cumprida por todos em condições iguais. A análise de tendência atingirá, a nosso ver, as instituições de educação infantil caso a obrigatoriedade também lhes atinja.

Nestes itens — taxas e outras despesas — , a jurisprudência é controvertida como se pode perceber pelas decisões judiciais a seguir:

A causa da gratuidade do ensino superior em estabelecimentos oficias [...] deve ser interpretada restritivamente, considerando-se a escala de prioridade na aplicação dos recursos destinados à educação, que privilegia o atendimento das necessidades do ensino obrigatório, ou seja, o fundamental e, progressivamente, o médio [...]. A cláusula da gratuidade do ensino superior oficial não se estende à inscrição ao concurso vestibular, nem aos manuais de instrução (TR4 — Rio Grande do Sul — Turma 05, acórdão RIP 04286751 — decisão: 29/02/96).

Não conflita com o princípio da gratuidade do ensino público [...] a cobrança de inscrição autorizada pelo Decreto-Lei n. 532/69, desde que prevista a isenção dos candidatos carentes (TR5 — Rio Grande do Norte — turma 02, acórdão RIP 05044140, decisão: 23/03/93).

Ainda que o ensino público nos estabelecimentos oficiais seja gratuito, isso não implica não se poder cobrar uma taxa para a manutenção da alimentação prestada aos alunos. Na hipótese, é de observar-se que os recursos são gerados, em parte, pela própria escola, com sua produção pecuária e agrícola. Sem a ajuda do aluno, a Escola não terá condições de manter a alimentação. Ademais, se o aluno for carente, a Escola não cobra a taxa, a contribuição do aluno será em horas-trabalho. Tenha-se, ainda, que, no caso concreto, a taxa é no valor de R$ 300,00 por ano, e é paga de três vezes. A alimentação compreende café da manhã, almoço, jantar e lanche à noite (TRF 1ª R. — AG 01000491627 — MT — 3ª T. — Rel. Juiz Tourinho Neto — DJU 06.03.1998 — p. 246).

É certo que o ensino público nos estabelecimentos oficiais é gratuito, mas isso não implica não se poder cobrar uma taxa para a realização do concurso vestibular, tanto mais quando é concedida isenção àqueles que não têm condições econômicas de pagá-la (TRF 1ª R. — AG 01000430101 — MT — 3ª T. — Rel. Juiz Tourinho Neto — DJU 06.02.1998 — p. 297).

1. As normas do Edital regem o certame, mas apenas quando estão obedientes aos regramentos constitucionais e legais vigente a data de sua edição, pois não se pode admitir que uma norma administrativa se sobreponha 'a Constituição ou mesmo 'a Lei. 2. Garantindo a Constituição o acesso de todos ao ensino gratuito em estabelecimento publico, afigura-se irrito o Edital de Vestibular de Universidade Estadual que limita em 6.000 o numero dos que podem se inscrever gratuitamente no concurso. 3. Apelação a que se nega provimento e sentença que em reexame obrigatório se confirma. (TJ-RJ).

A liminar que proíbe a cobrança de taxa de inscrição de vestibular não acarreta grave lesão à ordem administrativa da Universidade. A concessão de liminar sem audiência da autoridade impetrada, desde que devidamente fundamentada, não caracteriza grave lesão à ordem pública. A realização do exame vestibular encarta-se na chamada atividade fim da Universidade, não prosperando o argumento de que a Universidade deve contratar terceiro, por não ter condições de realizar o seu vestibular. A não execução da medida liminar é que acarretaria grave lesão à ordem jurídica, pois deixaria de se cumprir as normas Constitucionais de garantia do ensino gratuito (art. 206, IV), a de que estipula a cobrança de taxa somente havendo lei que a defina, e a de que não se pode assumir despesa sem a devida verba orçamentária (art. 167) (TRF 5ª R. — 55.967 — RN — TP — Rel. p/o Ac. Juiz Hugo Machado — DJU 04.12.1992).

Material escolar ou programas complementares de ensino — como atividades ligadas ao ensino público — são igualmente gratuitos. A esse propósito, não se pode cobrar taxas de matrícula (TR4 — Rio Grande do Sul — turma 03, acórdão RIP 027033, decisão: 26/11/91).

Apesar das controvérsias, fica uma certeza: ninguém poderá ser impedido de freqüentar a escola pública por não poder arcar com despesas quaisquer que sejam elas. Também é certo que não há impedimento legal para a existência de caixas escolares ou outros mecanismos que se proponham a arrecadar recursos para a instituição escolar pública. O que é vedado é a contribuição compulsória em escola pública de qualquer nível.

A gratuidade na Educação Superior

Feito o longo caminho das definições e do estabelecimento de Princípios, eis que chegamos ao ponto maior de nossa reflexão: a gratuidade na Educação Superior.

Como vimos anteriormente, não há citação de gratuidade na Educação Superior na Constituição (BRASIL, 1998) ou na LDB (BRASIL, 1996). A ela se estende o Princípio da Gratuidade em toda sua força. Talvez seja por isso que os profissionais da educação e as instituições representativas tanto se preocupam quando surge a onda de "boatos" sobre a cobrança de mensalidades para estudantes do ensino superior, ou a idéia de que estarão sujeitos a trabalhos comunitários durante ou depois de seus estudos, ou mesmo que deverão ressarcir financeiramente as instituições públicas das quais são egressos.

Frente a essas ameaças, pouco adianta dizer que há o preceito constitucional, pois ele poderá ser derrubado como vêm sendo derrubados outros tantos e não menos importantes preceitos constitucionais. Até que isso ocorra, continuaremos defendendo a submissão ao que é regular e ao que é legal.

Sob a ótica da legalidade, vamos analisar alguns acontecimentos comuns na Educação Superior, após o que poderá ficar claro que a tão famigerada "privatização" da educação já está ocorrendo, sem a ação deliberada do Banco Mundial, sobre os ombros de quem recaem todos os malefícios da atualidade.

A Educação Superior é desdobrada no art. 44 da LDB da seguinte forma:

Art. 44. A educação superior abrangerá os seguintes cursos e programas:

I - cursos seqüenciais por campo de saber, de diferentes níveis de abrangência, abertos a candidatos que atendam aos requisitos estabelecidos pelas instituições de ensino;

II - de graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo;

III - de pós-graduação, compreendendo programas de mestrado e doutorado, cursos de especialização, aperfeiçoamento e outros, abertos a candidatos diplomados em cursos de graduação e que atendam às exigências das instituições de ensino;

IV - de extensão, abertos a candidatos que atendam aos requisitos estabelecidos em cada caso pelas instituições de ensino.

Percebe-se que a chamada Educação Superior é composta de quatro espécies distintas: cursos seqüenciais (I), graduação (II), pós-graduação (III) e extensão (IV). Todos os cursos e programas, se desenvolvidos ou oferecidos por instituições públicas de ensino devem submissão ao Princípio da Gratuidade e, por tal, todos os cursos e programas deverão ser gratuitos. Em outras palavras, não poderá haver cobranças de mensalidades ou troca por serviços ou trabalhos.

Castro (1998, p. 27, grifo nosso), em seu rico estudo, apresenta mais um item que merece nosso estudo atento considerando a possibilidade de sua fronteira resvalar da criatividade de gestão para a irregularidade administrativa. Diz ele:

Quanto à oferta de cursos especiais (não-regulares) pelas instituições de ensino superior públicas, tem vingado a prática de não se criar restrições à cobrança de taxas, sob a argumentação de que estão vinculados à extensão e não ao ensino. Isso parece meio anacrônico, mas foi a solução encontrada para permitir o ingresso de recursos para as instituições, cobrando-se de quem pode pagar. Também aqui, a isenção para estudantes economicamente carentes é uma medida justa.

Ora! Como é possível que se permita "vingar a prática de não criar restrições à cobrança de taxas" nas atividades chamadas de extensão se estas são parte integrante da Educação Superior que está protegida pelo manto da gratuidade? Como é possível que o mesmo segmento corporativo que se insurge contra uma possível proposta de cobrança de alunos do curso superior, se permita oferecer um curso de extensão à comunidade sendo este cobrado? Além de ter sua legalidade questionada frente a ótica da gratuidade é, minimamente, incoerente para administradores que o propõem e docentes que o executam na instituição pública oficial.

A questão que se apresenta é a de que extensão não é ensino. Em tese. Devemos considerá-la como atividade de ensino, como indissociada do ensino e da pesquisa, como curso à comunidade. Se vista como atividade de ensino, sua cobrança não é permitida. Se vista como atividade fim da instituição pública de ensino, também não.

Ampliando o universo, Azanha (1998) chama atenção para algumas fundações3 3 Deixamos de tratar aqui, pelo foco do presente trabalho, dos vários tipos de fundações (fundação pública, fundação privada, fundação autárquica etc) para dedicar atenção especial às fundações de apoio. Para maiores detalhes sobre o tema fundações, veja Moreira Neto (2001, p. 256) e Carvalho Filho (2001, p. 386). municipais paulistas — Taquaritinga e Matão — autorizadas a instalar cursos superiores, que eram cobrados como se privados fossem, em flagrante desrespeito ao Princípio da Gratuidade.

O quadro se torna mais complexo quando passamos a avaliar a situação dos chamados cursos de pós-graduação.

Escolhemos, aleatoriamente, um jornal de domingo com grande circulação nacional. Na seção de cursos, encontramos cinco grandes anúncios de cursos de especialização ou MBA de três grandes instituições públicas de ensino superior. Eram mais de 40 cursos de seis departamentos ou setores das instituições públicas. Ao fazer o contato para maiores detalhes sobre os mesmos, recebemos a informação de que o Curso era ministrado pela instituição pública, que o certificado de conclusão era emitido e assinado pela instituição pública mas as mensalidades deveriam ser pagas a uma determinada Fundação de Apoio desta mesma instituição pública, responsável pela emissão da nota fiscal. Em um dos casos, o departamento da instituição pública tinha "convênio" com outra instituição privada, o que só era descoberto posteriormente, já que, como todos os anúncios, constava apenas a logomarca que espelha a tradição das instituições públicas.

Situação semelhante é encontrada quando visitamos as páginas eletrônicas de instituições públicas de ensino e, ao acessarmos o item especialização ou MBA, somos levados a páginas de fundações de apoio ou mesmo empresas privadas responsáveis pela gestão financeira do empreendimento educacional.

Outro caso que merece destaque é a propaganda onde aparece a logomarca da empresa privada em simetria com a logomarca da instituição pública de ensino, com curso a ser ministrado fora de sede da instituição pública, com professores públicos, certificado da instituição pública de ensino, com o valor do "investimento" a ser depositado em favor da empresa privada. A diferença é que este anúncio não dizia MBA, mas um MBT, mas poderia ser um MBC, MBI, MBP ou um MBx (onde x é qualquer letra do alfabeto). Ocorre que a Resolução 01/2001, do Conselho Nacional de Educação, que disciplina as pós-graduações, buscou legalizar a situação do mercado em crescimento dos MBA fazendo citação ligeira e apressada quando inclui "na categoria de curso de pós-graduação lato sensu os cursos designados como MBA (Master Business Administration) ou equivalentes" (art.6. § 1º). [...]. Esperemos, primeiro, que os MBx estejam incluídos naquilo que se pode interpretar como "equivalentes" ao MBA e, por último, que a Resolução tenha efeito retroativo, uma vez que os MBx e seus certificados são anteriores a própria Resolução 1/2001.

O que é isso, senão "privatização" da educação superior, no campo das especializações (art. 44, III)? Este é um flagrante desrespeito ao Princípio da Gratuidade do ensino público!

Frente a essas questões que se avolumam, o Ministério Público Federal realizou consulta ao órgão próprio do MEC que, após exarar parecer, por força da legislação, remeteu a consulta sobre a gratuidade dos cursos de especialização realizados por instituições públicas ao egrégio Conselho Nacional de Educação. O CNE produziu um Parecer de número 0364/2002 (BRASIL, 2002), da lavra dos Conselheiros Edson de Oliveira Nunes, Jacques Schwartzman e Roberto Cláudio Frota Bezerra. O citado parecer foi aprovado por unanimidade pela Câmara de Ensino Superior em 6 de novembro de 2002 e homologado pelo Ministro da Educação, conforme publicação em Diário Oficial da União — DOU, de 18 de novembro de 2002.

O referido Parecer conclui pela regularidade da cobrança de cursos de especialização lato sensu em instituições federais de ensino superior. No que pese a experiência dos citados Conselheiros e a riqueza de informações que compõem o Parecer, gostaríamos de apresentar nossa discordância, mesmo que isso sirva apenas para o exercício indispensável da divergência que enriquece o debate acadêmico. O parecer vota pela regularidade da cobrança a partir de uma definição arbitrária — e não consensual — de que os níveis de ensino que conferem diplomas não podem ser cobrados mas aqueles cursos que resultam em formação mais estreita, e que segundo eles conferem certificados, podem ser cobrados, informando ainda, no esforço de fundamentar tal análise e decisão, que

"i) o ensino de graduação e pós-graduação stricto sensu ministrado pelas Universidades públicas deve ser gratuito em expresso cumprimento ao dispositivo constitucional;

ii) os cursos de especialização e aperfeiçoamento, ou seja, de pós-graduação lato sensu, não se configura como atividade de ensino regular e, por conseguinte, tem-se por correta a cobrança efetuada pelas universidades públicas pelos instrumentos que, no exercício de sua autonomia constitucional definirem."

Muito se discutiria exclusivamente sobre este esforço de interpretação do CNE sobre tal assunto. Infelizmente, este não é o tema em foco, utilizando-nos apenas como mais um infeliz exemplo neste mar de controvérsias que envolvem este tema. Para que não passe "em branco", basta lembrar que os Princípios não estipulam o que pode ou o que não pode ser cobrado, eles indicam o ensino público gratuito em instituições públicas. Ponto final. Se tal distinção arbitrária fosse estendida aos demais níveis, o ensino médio em instituições públicas, que confere certificado, poderia ser cobrado. Mas viria à baila a exclusividade da distinção somente para os cursos de pós-graduação e o debate seria alimentado pelas exceções, com defesas apaixonadas e com manifestações comprometidas com a necessidade de manter-se o sistema. Fica a informação, na certeza de que ela mais conclama a debates do que encerra o assunto.

Em outra situação similar, encontramos os Mestrados Profissionalizantes. Uma dessas instituições públicas mantém um mestrado profissional onde os alunos recolhem a mensalidade à referida Fundação de Apoio, com um agravante: eles, os alunos, devem ser pessoas jurídicas!

A questão do Mestrado Profissional toma maior vulto quando analisamos a legislação que lhe dá direção: a Portaria 80/98, da CAPES, que dispõe sobre o reconhecimento dos mestrados profissionais e dá outras providências. Essa portaria extrapola as funções da CAPES. Sobre isso, escreverá Ranieri (2000, p. 181), lucidamente:

A CAPES não dispõe de funções normativas. Não foi criada com esta finalidade, muito embora na atividade de coordenação e avaliação dos cursos e programas de pós-graduação estejam implícitas funções regulamentares.

Não obstante, é freqüente a expedição de portarias, de conteúdo normativo, pelo Presidente da Fundação, com fundamento no artigo 19, II, do referido decreto (Decreto 524/92), que dispõe: 'Ao Presidente incumbe: [...].

II — aprovar os atos pertinentes ao funcionamento da CAPES.'

É o que ocorre, por exemplo, na Portaria 80, de 16/12/98, que ao dispor sobre o reconhecimento de mestrados profissionais, fixa os requisitos e os critérios necessários, com fundamento em deliberação do Conselho Superior da CAPES, colegiado ao qual não foi conferida, legalmente, tal competência.

Na mesma Portaria, conclui-se, no artigo 6º, que os cursos desta modalidade 'possuem vocação para o autofinanciamento', que deve ser explorada por meio de iniciativa de convênios, para patrocínio de suas atividades.

Eis aí mais um problema envolvendo a cobrança por instituições públicas de ensino em flagrante desrespeito a gratuidade de ensino.

Repete-se o fato de que são as mesmas instituições (e seus membros) que lutam contra instituir-se cobrança para alunos de cursos superiores matriculados em instituições públicas. E não é exatamente isso que fazem essas instituições utilizando-se do subterfúgio das Fundações de Apoio? Não estão elas cobrando mensalidades pela sua atividade-fim que é o conhecimento transmitido pelo canal do ensino?

Mas, afinal, o que são essas Fundações de Apoio?

As Fundações de Apoio

A primeira coisa a fazer é tentar entender o que seja uma Fundação e, depois, uma Fundação de Apoio.

Uma fundação é, grosso modo, um patrimônio que se revestiu de personalidade jurídica para alcançar o fim para o qual foi criada. Fica claro que o patrimônio que se outorga personalidade jurídica deve ser bastante e suficiente para alcançar o objetivo que justifica a criação da fundação. A fundação distingue-se da autarquia por ser esta criada para desempenhar uma atividade especializada da Administração Pública.

Sobre este tema, Ranieri (2000, p. 192) escreve:

Com efeito, instituir uma fundação significa afetar patrimônio a fim determinado e dar personalidade jurídica a um determinado ente que, em nome próprio, gerenciará aquele patrimônio tendo em vista os objetivos estabelecidos pelo instituidor. [...].

Assinala Dalmo Dallari (1985, p. 8-9 apud RANIERI, 2000, p. 192) que 'do ponto de vista técnico-jurídico pode-se dizer que as chamadas fundações federais universitárias existentes no Brasil são falsas fundações, havendo uma contradição evidente em sua instituição. Com efeito, o fundo que serviu de base à sua criação é constituído unicamente pelas instituições escolares, que não produzem renda e que, pelo contrário, acarretam despesas. [...]. Mas o fundo não produz renda e pode-se dizer que não é a fundação que mantém as escolas, mas estas que mantêm a fundação. Por esse e por vários outros motivos muitos especialistas de direito administrativo sustentam que, embora tendo o nome de fundações, tais entidades são verdadeiras autarquias'.

A mesma autora, ao citar o caso das fundações municipais paulistas que cobravam como se fossem instituições privadas de ensino, questiona quanto à origem do patrimônio dessas fundações municipais. Se os fundos possuírem patrimônio de natureza pública, a fundação é pública. Diz-se, então, que a fundação é instituída e mantida pelo poder público, devendo submissão ao Princípio da Gratuidade.

Segundo Medauar (2003, p. 106), acompanhada de Moreira Neto (2001, p. 272), as fundações de apoio às instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica

são entes dotados de personalidade jurídica privada, regidos pelo Código Civil e Código de Processo Civil. Os atos de constituição, a dotação inicial e os estatutos sujeitam-se ao crivo do Ministério Público, que as fiscaliza sob o aspecto finalístico. As fundações de apoio, de regra, mantêm convênios, ajustes e contratos com as universidades ou faculdades, sem prejuízo de atividades ou serviços que possam prestar a particulares. Não integram a Administração indireta nem a estrutura das universidades ou faculdades a que propiciam apoio.

A análise mais vigorosa e a crítica mais contundente às Fundações de Apoio estão em Di Pietro (1999), quando analisa este tema no capítulo que intitulou "Da utilização indevida da parceria com o setor privado como forma de fugir ao regime jurídico publicístico".

As fundações de apoio são fundações de direito privado, criadas exclusivamente com o objetivo de atenderem às necessidades do órgão público que pretendem apoiar. Em geral, a cooperação com a Administração se dá por meio de convênio e tem-se, muitas vezes, que a fundação de apoio exerce as funções principais da instituição pública. Ao fim, a fundação de apoio passa a ser gestora dos recursos públicos próprios e específicos da instituição pública.

Escreve Di Pietro (1999, p. 216):

Em suma, o serviço é prestado por servidores públicos, na sede da entidade pública, com equipamentos pertencentes ao patrimônio desta última; só que quem arrecada toda receita e a administra é a entidade de apoio. E o faz sob as regras das entidades privadas, sem a observância das exigências de licitação para celebração de contratos e sem a realização de concurso público para a admissão de seus empregados. Essa é a grande vantagem dessas entidades: elas são a roupagem com que se reveste a entidade pública para escapar às normas do regime jurídico de direito público.

Há, ainda, o fato de o ato de instituição ser de iniciativa de "particulares" e não do poder público. Porém, muitas vezes, esses "particulares" são servidores públicos com interesses pessoais, como atividades que lhes permita renda extra que complemente os vencimentos cada vez mais defasados.

A mídia tem mostrado fundações deste tipo, jungidas as instituições a que dizem dar apoio, se aproveitarem da elevada tradição e competência para venderem serviços a órgãos públicos diversos sem a necessidade — segundo informam eles próprios — do devido procedimento licitatório, que existe para que ocorra a oportunidade da concorrência para auferir vantagens para administração pública. Apresentam-se como fundações ligadas diretamente às instituições públicas e oferecem serviços cujo valor intelectual está agregado às instituições que dizem representar, e ao seu corpo docente e de pesquisa. Vemo-las desempenhando atividades de contratação e seleção de pessoal, de formulação de planos diretores para cidades, na elaboração de concursos públicos para órgãos oficiais [...] e tudo isso oferecido com as vantagens (para elas) da dispensa de licitação! Este assunto foi estudado detalhadamente pelo Tribunal de Contas da União - TCU, cuja decisão foi publicada no DOU de 25/11/1992, e que merece leitura para quem desejar aprofundar-se na matéria.

O tema, com certeza motivado pelo grande número de questões de ordem jurídica e ética, foi disciplinado pela Lei nº. 8.958/94. A referida Lei diz que as instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica poderão contratar, por prazo determinado, instituições criadas com a finalidade de dar apoio a projetos de pesquisa, ensino e extensão e de desenvolvimento institucional, científico e tecnológico de interesse das instituições federais. Diz ainda que as instituições serão fiscalizadas pelo Ministério Público, e que os servidores públicos poderão participar dos projetos nas condições que especifica [...]. Na verdade, se quisermos utilizar o dito popular, poderíamos dizer que a lei "jogou fora o sofá"!

É, pois, um fato que cursos ministrados por instituições públicas estão sendo cobrados dos alunos por meio de diversos subterfúgios que desrespeitam o Princípio Constitucional da Gratuidade do ensino público.

Retornando a importância de existir um princípio constitucional que aponta a intencionalidade da gratuidade, lembramos Moreira Neto (2001, p. 74):

Como os princípios são normas portadoras dos valores e dos fins genéricos do Direito, em sua forma mais pura, explica-se porque a violação tem repercussão muito mais ampla e grave, do que uma transgressão de normas preceituais, que os aplicam às espécies definidas pelos legisladores, venham ou não, tais princípios, expressos explicitamente na ordem jurídica, bastando que nela sejam expressos implicitamente.

Confirmado por Mello (1991, p. 230):

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.

Como pretensa conclusão, quer nos parecer que existe uma grande incompatibilidade no meio educacional brasileiro. Temos que as instituições públicas de ensino e seus membros (gestores e docentes) resistem à proposta de discutir a possibilidade de pagamento pelos alunos da educação superior, por meio de pecúnia ou trabalho, em nome da manutenção de conquistas marcadas pela gratuidade do ensino público. Ao mesmo tempo, essas mesmas instituições públicas de ensino e seus membros (gestores e docentes) autorizam e/ou participam da realização de cursos de educação superior com pagamento por parte dos alunos, utilizando-se de vários artifícios e/ou brechas da administração pública, de forma mais específica, das fundações de apoio.

Diz-se, com alguma razão, que estes artifícios diminuem as conseqüências dos valores cada vez menores dos orçamentos das instituições públicas de ensino, que facultam ganhos extras aos professores, minorando os impactos dos vencimentos cada vez mais defasados dos servidores públicos. Mas não é possível ao administrador público a opção pela irregularidade, pela ilegalidade ou pela desobediência aos Princípios Constitucionais.

Se não há irregularidade administrativa ou ilegalidade no conjunto de atos apontados, certamente há questões de ordem ética e de coerência de discurso. Enquanto houver docentes utilizando-se deste subterfúgio para complementação salarial, teremos dificuldade de mobilizar os profissionais da educação para movimentos de reconquista do patamar histórico de poder de compra do salário docente.

Enquanto houver administradores públicos responsáveis por instituições públicas de ensino recebendo recursos de fundações de apoio que executam funções questionáveis, não haverá busca pela melhor qualidade da gestão dos recursos público e mais pressão para adequação dos orçamentos às realidades de cada instituição pública de ensino na busca do cumprimento de sua missão.

Não é possível que as instituições públicas de ensino mobilizem as massas distribuindo panfletos em defesa da garantia de ensino público gratuito e de qualidade e, com a outra mão, distribuam os boletos bancários de recolhimento dos valores pertinentes a cursos dados em suas salas, por seus docentes, com sua chancela nos certificados.

Ao que parece, é tênue a distância que separa a criatividade e flexibilidade administrativas do desvio da ética que deve pautar o processo decisório na administração dos recursos do povo depositados nos cofres públicos. Este assunto, antes de estar concluído, deve ser objeto de discussões que permitam aclarar o que é criatividade administrativa e o que é fonte alternativa de receita, o que é cobrança por instituições pública pelos serviços de ensino.

Disponível em: <www.usp.br/jorusp/arquivo/1998/jusp443/manchet/rep_res/opiniao.html >. Acesso em: 20 abr. 2004.

Disponível em: <http://www.mec.gov.br/sef/fundef/Ftp/leg/lein9394.doc >. Acesso em: 23 jun. 2005.

OLIVEIRA, R. P. O financiamento da educação. In: OLIVEIRA, R.P.; ADRIÃO, T. (Org.). Gestão, financiamento e direito à educação: análise da LDB e da Constituição Federal.

São Paulo: Xamã, 2002.

PROGRAMA DE PROMOÇÃO DA REFORMA EDUCATIVA NA AMÉRICA LATINA E CARIBE. Financiamento de la educación en America Latina. Santiago, Chile:

PREAL, UNESCO, 1998.

Recebido: 04/05/2004

Aceito para publicação em: 25/11/2004

  • AZANHA, J. M. R. P. O princípio da gratuidade do ensino público São Paulo, 1998.
  • BARROSO, L. R. Interpretação e aplicação da Constituição 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
  • BRANDÃO, C. F. LDB: passo a passo. São Paulo: Avercamp, 2003.
  • BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934. Legislação, Rio de Janeiro, 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 23 jun. 2005.
  • ______. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937. Legislação, Rio de Janeiro, 1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 23 jun. 2005.
  • ______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988 ... 2. ed. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998.
  • ______. Lei nş. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Legislação, Brasília, DF, dez. 1996.
  • ______. Parecer CNE/CES nº. 0364/2002, de 6 de novembro de 2002. Regularidade da cobrança de taxas em cursos de pós-graduação, lato sensu, com base no art. 90, da Lei nº. 9.394. Brasília, DF, 2002. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/propg/regulam/resolcne364_02htm >. Acesso em: 24 jun. 2005.
  • BRUNNER, J. J. Globalização e o futuro da educação: tendências, desafios, estratégias. In: WERTHEIN, J. Educação na América Latina: análise de perspectivas. Brasília, DF: Ed. UNESCO, 2002.
  • CARNEIRO, M. A. LDB fácil Petrópolis: Vozes, 1998.
  • CARNOY, M. Mundialização e reforma na educação: o que os planejadores devem saber. Brasília, DF: Ed. UNESCO, 2002.
  • CARVALHO FILHO, J. S. Manual de direito administrativo 8. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.
  • CASTRO, M. L. O. A educação na Constituição de 1988 e a LDB Brasília, DF: André Quicé, 1998.
  • CHRISPINO, A. Norteando a política de formação de professores: como interpretar os artigos 62 e 87 da LDB? Ensaio: avaliação e políticas públicas em educação, Rio de Janeiro, v. 8, n. 28, p. 333-350, jul./set. 2000.
  • DI PIETRO, M. S. Z. Parcerias na administração pública 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999.
  • HOUAISS, A.; VILLAR, M. S.; FRANCO, F. M. Dicionário Houaiss da língua portuguesa Rio de Janeiro: Objetiva: Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia, 2001.
  • MEDAUAR, O. Direito administrativo moderno 7. ed. São Paulo: Ed. Revistas dos Tribunais, 2003.
  • MELLO, C. B. Elementos de direito administrativo São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991.
  • MOREIRA NETO, D. F. Curso de direito administrativo 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
  • NAÇÕES UNIDAS. Declaração universal dos direitos humanos Salvador: Ed. Paulinas, CESE, 1978.
  • RANIERI, N. B. Educação superior, direito e Estado São Paulo: EDUSP, FAPESP, 2000.
  • SCHWARTZMAN, S. O fantasma do ensino pago. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 mar. 1991.
  • SILVA, J. A. Curso de direito constitucional positivo 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
  • SOUZA, A. M. Financiamento da educação na América Latina: lições da experiência. Rio de Janeiro: FGV, 2002. (PREAL Debates, n. 8).
  • SOUZA, A. M. et al. Equidade e financiamento da educação na América Latina Brasília, DF: UNESCO; Buenos Aires: IIPE, 2002.
  • TEDESCO, J. C. (Prólogo) In: SOUZA, A. M. et al. Equidade e financiamento da educação na América Latina Brasília, DF: UNESCO; Buenos Aires: IIPE, 2002.
  • WOLFF, L.; GONZALEZ, P.; NAVARRO, J. C. (Ed.). Educacion privada y política pública en America Latina. Santiago, Chile: PREAL, BID, 2002.
  • 1
    Redação da EC 14, ao art. 208 da CF: I. Ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiverem acesso na idade própria.
  • 2
    Redação da EC 14, ao art. 208 da CF: II. Progressiva universalização do ensino médio gratuito.
  • 3
    Deixamos de tratar aqui, pelo foco do presente trabalho, dos vários tipos de fundações (fundação pública, fundação privada, fundação autárquica etc) para dedicar atenção especial às fundações de apoio. Para maiores detalhes sobre o tema fundações, veja Moreira Neto (2001, p. 256) e Carvalho Filho (2001, p. 386).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Jan 2005

    Histórico

    • Aceito
      25 Nov 2004
    • Recebido
      04 Maio 2004
    Fundação CESGRANRIO Revista Ensaio, Rua Santa Alexandrina 1011, Rio Comprido, 20261-903 , Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: + 55 21 2103 9600 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: ensaio@cesgranrio.org.br