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Aragens de esperança

Um provérbio português afirma que, “pela aragem, vê-se quem vai na carruagem”. Não por acaso este novo número de “Ensaio” traz aragens de esperança, por descerrar aspectos da realidade educacional e suscitar a expectativa de alterar o estado de coisas.

Com efeito, Edgar Morin (2022)MORIN, E. Réveillons-nous! Paris: Denoël, 2022., do alto dos seus 102 anos e a nos oferecer preciosas mensagens, declara que estamos na idade do ferro planetária. Criamos potência tecnológica para extinguir a espécie humana e o Planeta, todavia, somos impotentes para dominar a nossa própria potência. Assim evidenciam as guerras incessantes e simultâneas, cada vez mais sofisticadas e destrutivas, como também as violências da exploração humana, dos racismos, sexismos e outras fronteiras desenhadas em lugar de pontes. Entre as duas guerras mundiais, Freud (2011)FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. se revelava cético em relação à paz. Com a sua metanarrativa, explicava o embate entre Eros, criador, e Tânatos, destruidor, divindade da morte. De fato, quase pagou com a vida a insistência de permanecer em Viena, diante dos horrores do nazismo. Em contraponto, Morin (2022)MORIN, E. Réveillons-nous! Paris: Denoël, 2022. nos traz os horizontes da esperança na re-humanização das relações sociais. A diversidade humana é o tesouro da unidade humana, que, por sua vez, é o tesouro da diversidade humana, nos diz.

Este número de “Ensaio” traça um cenário de unidade pela Educação na diversidade de temas, perspectivas, teorias e metodologias. Os artigos aqui publicados desenham um mapa ibero-americano, mosaico elaborado com os indizíveis esforços de colegas pesquisadoras(es) de dois continentes. Não é simples fazer frente a mentalidades arcaicas, embora com roupagens pós-modernas, que desprezam a pesquisa, ignoram-na e reduzem a Educação ao total de horas-aula para turmas não raro multitudinárias, em presença ou a distância. Se for para formar educadoras(es), de preferência a distância, com preços de liquidação, para oferecer uma Educação pobre a menos aquinhoados, fechando um círculo vicioso.

O trabalho, “Determinantes da eficiência nas instituições federais de Educação profissional brasileiras”, por Paulo Henrique Nobre Parente, trata de um tema indispensável. A ele se segue o de Nibaldo Benavides-Moreno, Sebastián Donoso-Díaz e Daniel Reyes-Araya, abrindo o universo da sala de aula. É a pesquisa “ Gestión de aula de las educadoras de Educación inicial en Chile ”, realizada em escolas de alta vulnerabilidade social. Nas raízes e nas escolas “difíceis” encontramos os maiores desafios.

Em continuidade, Óscar Maureira-Cabrera, Luis Ahumada-Figueroa, Carlos Ascensio-Garrido e Wagner Bandeira-Andriola analisam o “ Liderazgo distribuído em centros escolares: cambios en la percepción de prácticas educacionales ”, também no Chile. A liderança distribuída ou compartilhada se situa no polo oposto da liderança ou chefia centralizadora, em certos ambientes sociais similar ao CEO ( chief executive officer ), como se a escola fosse uma empresa. Tangenciando a questão, Cruz Flores-Rodríguez e Miguel Martín-Sánchez, da Espanha, enfocam o “Neoliberalismo e crise na Educação ocidental. Causas, consequências e oportunidades para a mudança”. Esta visão mais ampla nos evoca a falsa metáfora do quase mercado e a escassez planejada de recursos. É oportuno lembrar aqui, no caso do Brasil, a incansável luta do Senador da Educação, João Calmon, em favor do piso mínimo de verbas para a Educação. Por ser dispositivo hoje severamente limitado, faz da Educação, como a saúde, um dos setores sociais mais vulneráveis aos cortes da execução orçamentária. É curiosa a convergência de quadrantes ideológicos opostos em favor da “liberdade” ou “potência” de poucos manejarem os orçamentos públicos, ao arrepio do povo e da mudança social.

Quase ratificando estas reflexões e memórias, Nataniele dos Santos Alencar, Filipe Augusto Xavier Lima e Jair Andrade de Araújo apresentam a “Análise da trajetória dos recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar de 2014 a 2020”. É marcante a redução dos repasses financeiros e do número de secretarias estaduais e municipais de Educação contempladas. Alguém desavisado diria que a fome diminuiu no País, se bem que a pandemia levasse justamente ao desemprego e à fome. Estes processos regressivos mostram que dinheiro é assunto, sim, de educadores atentos e conscientes. Para isso é preciso coragem, muita coragem, como disse o “menino” (depois revelado como Diadorim) ao também menino Riobaldo, quando atravessam a imensidão do rio São Francisco (ROSA, 2021ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2021.) em “Grande Sertão: Veredas”.

Segue-se mais um texto sobre a (des)igualdade, “ Quantitative analysis of the factors that influence approval rates in subjects of undergraduate course at a Public Education Institution in Southern Brazil ”, por Fernando Elemar Vicente dos Anjos, Márcia Helena Borges Notarjacomo, Débora Oliveira da Silva e Rodrigo Dulius. A expansão da Educação superior, em consonância com os Planos Nacionais de Educação, requer mais pesquisas como esta. Concluímos nós que nem a reprovação, nem a leniência são remédios para o fracasso estudantil.

Por sua vez, as colegas da Espanha Noelia Santamaría-Cárdaba e Suyapa Martínez-Scott oferecem-nos a análise documental “Explorando o currículo do Ensino Secundário espanhol da perspectiva da cidadania global e Educação para a sustentabilidade”. As lacunas nos documentos podem nos sugerir o contraste entre boas intenções e práticas.

Ainda sobre a Educação Superior em expansão, Geraldo Caliman apresenta neste fascículo uma dos ainda poucas pesquisas sobre um conceito-chave, o de clima escolar, e a violência em duas universidades, uma italiana e outra brasileira, em “ School climate and violence in a university environment: between prevention and promotion of cultures of peace ”. Cotejando diferentes latitudes, o autor analisa violências entre diferentes atores.

Sobre uma expressiva minoria, surge em prosseguimento “Estudantes quilombolas na Educação Superior: políticas afirmativas de acesso e permanência”, de autoria de Marina Graziela Feldmann e Andréia Regina Silva Cabral Libório. A abertura do simples acesso corresponde a um conceito de igualdade de oportunidades do século 19, quando se abriam os estabelecimentos educativos para logo expelir os “incapazes”.

A seguir, vem outro tema nodal, “ Política de evaluación y su implicancia en la labor docente de una comunidad educativa peruana ”, por María Télcida Fuentes Aranda e Luis Rolando Alarcón Llontop. O texto revela impactos positivos em três dos quatro domínios escolhidos, porém revela contrastes de luzes e sombras.

Remetendo à pandemia Covid-19, Sâmara Figueiredo de Souza e Marcelo Mocarzel estudam os arcabouços legais (e regulamentares) dos governos federal e roraimense em “Avaliação de políticas educacionais para o Ensino remoto emergencial e o pós-pandemia: um estudo a partir dos marcos legais da rede estadual de Roraima”. A falta de infraestrutura e de conhecimentos tecnológicos, apesar de ingentes esforços, na verdade foi partilhada por grande parte do mundo.

Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) é a Educação inclusiva. Alfonso Javier García González e María Rocio Bohórquez-Millán, de Sevilla, abrem as páginas para “ Percepciones docentes y familiares acerca del rol de los equipos directivos como líderes inclusivos en la Educación Primaria ”. Tais percepções sugerem necessidades de aperfeiçoamento.

Por fim, de Portugal, mais precisamente do Território Autónomo da Madeira, nos chega “Retenção escolar: crenças e práticas dos professores e a sua relação com as políticas educativas das escolas”, de autoria de Natalie Nóbrega Santos e Vera Monteiro, sediadas em Lisboa. Ainda que as taxas de repetência tenham diminuído significativamente em países lusófonos, esta ainda é vista por uma parte de nossas(os) colegas como solução para as dificuldades educativas.

Por isso mesmo, é preciso conhecer os valores que instruem as crenças, atitudes e práticas. Lá embaixo da terra ocultam-se valores implícitos ou explícitos que levam as reformas a serem reformadas pelas escolas. Num raciocínio simplista, há redes e instituições capazes de decretar o Ensino por competências quase de um dia para outro ou a tecnologização à força do Ensino aprendizagem, porque é modernoso usar caros hardware e software adquiridos. Tais imposições, como tantas outras, redundam na conservação mais ou menos velada das práticas anteriores, por se abordar a superfície e não o fundo. O mesmo se aplica a programas de recuperação e a esforços administrativos ligeiros para diminuir a repetência.

Mesmo que a nossa idade nem chegue perto do mestre Morin, já vimos tantas vezes e em tantos contextos estas novidades que nos lembramos sempre de outro mestre, Eurico Lemos Pires, pai da Lei de Bases do Sistema Educativo de Portugal. Num almoço, em universidade do Leste Europeu, ele nos dizia, depois de uma larga avaliação qualitativa: “Se virdes alguma coisa mudar depressa em Educação, desconfiai” (que a mudança não chegou às raízes).

Em suma, este número de “Ensaio”, se não é um farol, constitui ao menos uma nuvem de vagalumes a nos guiar por caminhos de esperança. Ter esperança não significa um pensar e um sentir ingênuos: esperar e desenhar o futuro expressa a existência de horizontes e da confiança de mudar o que precisa ser mudado. Neste sentido, compreende-se outro filósofo, Paulo Freire, em “Pedagogia da Esperança” (2020), no seu incentivo a esperançar. Tem ele razão, pois a esperança é um substantivo, palavra forte, não um enfeite da frase. Esperançar é um verbo, a expressar uma ação, palavra mais intensa que o substantivo. Se, nas relações inter-humanas, pensarmos apenas nas estratégias militares e nos armamentos sofisticados para destruir pessoas, animais, plantas e coisas, no poder de explosivos, na potência das bombas, nós murcharemos, perderemos o perfume e as cores, seremos conduzidos a uma rendição indigna. Se a noite tombou, haveremos de amanhecer, não só como um presente dos céus, mas como resultado do nosso esforço a partir da aurora que ilumina um novo dia. Sem dúvida, mais fácil de dizer que de fazer, porém fomos criados sujeitos protagonistas para isso, desde que saibamos controlar a nossa potência. A tecnologia, filha da ciência, é capaz de grandes construções e destruições. Torna os seres humanos como máquinas nas diversas revoluções industriais. Dessensibiliza, estabelece a rotina e o cansaço. Contudo, podemos desde hoje modelar o amanhã.

Ainda é Morin (2022)MORIN, E. Réveillons-nous! Paris: Denoël, 2022. que nos enuncia os princípios da esperança. Primeiro, a esperança reside no improvável. Frequentemente em momentos dramáticos e trágicos da História, os grandes acontecimentos salvadores têm sido inesperados (é claro que isso pode nos dar um frio no corpo, como receber um crédito muito difícil de pagar, vez que estamos acostumados a planejar).

Segundo, existem as capacidades e a criatividade do espírito humano, em grande parte inexploradas. Diz ele que ainda estamos na pré-História do espírito humano.

Terceiro, a esperança se fundamenta na impossibilidade de todo o sistema que transformaria a sociedade e os indivíduos em máquinas, ser eterno. Toda máquina, todo sistema social e econômico logo mostra os seus defeitos, as suas fraquezas, as suas incapacidades. Mais ainda, os sistemas são frutos de um tempo – e o tempo passa, na pós-modernidade, mais aceleradamente. Se um tufão levou à surpreendente queda do Muro de Berlim, correspondeu a um tempo e a um espaço, que escorrem pela ampulheta. Isso alterou o capitalismo. No entanto, o capitalismo, como outros sistemas não é imóvel, nem eterno. Os ventos continuam a soprar, branda ou furiosamente. O ontem não foi igual a hoje, nem podemos ter a veleidade de afirmar que o hoje se repetirá amanhã. Dificilmente se consegue frear o declínio, a mudança inexorável, a perda de legitimidade, a repetida repulsa pelas novas expectativas e esperanças da população. Não existe Estado totalitário ou autoritário que dure para sempre. É certo que lança a miséria e a violência enquanto existe, mas traz em si as sementes do seu próprio desmoronamento. Conforme o poeta Vinícius de Moraes, o amor pode ser eterno enquanto dure.

O presentismo nos mantém apegados e mirrados no hoje, sem preparar o amanhã. Enquanto isso, outros projetos, mesmo dos alegadamente desesperançados, se desenham, pois o tempo não espera – e podem ficar prontos antes dos nossos.

Referências

  • FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2020.
  • FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • MORIN, E. Réveillons-nous! Paris: Denoël, 2022.
  • ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023
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