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Indicadores nutricionais e políticas públicas

Resumos

Durante a realização da Conferência Mundial sobre Alimentação, em 1974, os governos participantes defenderam o direito inalienável de todo homem, mulher ou criança estar livre do risco da fome e da desnutrição para o desenvolvimento de suas faculdades físicas e mentais. Quase trinta anos depois, os presentes ao Segundo Fórum Mundial de Alimentação, realizado em 1996, comprometeram-se com o conceito de Segurança Alimentar para todos e com a erradicação da fome, reduzindo-se o número de desnutridos à metade até 2015. Apesar dos esforços dispendidos, a persistir a atual taxa de redução, esta meta não será atingida, a menos que se estabeleça a Segurança Alimentar e Nutricional como política pública, especialmente em regiões com pobreza. A escolha do método mais adequado para medida de consumo de alimentos e de estado nutricional, e a avaliação dos indicadores mais adequados só será viabilizada por meio da abordagem ampla da questão. Os indicadores adotados em saúde pública podem mascarar realidades particulares atrás de valores médios, especialmente em regiões de pobreza, levando à falsas interpretações sobre estado nutricional e consumo de alimentos. Com este entendimento, o estabelecimento de políticas públicas para a Segurança Alimentar e Nutricional depende de uma ação coordenada entre estado, sociedade, academia e o setor produtivo, a fim de que estabeleça um plano efetivo de transformação da realidade.


During the World Food Conference in 1974, governments had proclaimed that "every man, woman and child has the inalienable right to be free from hunger and malnutrition in order to develop their physical and mental faculties." Almost thirty years later, participants of the World Food Summit held in 1996, pledged a common commitment to achieving food security for all, and to eradicate hunger, by reducing the number of undernourished people to half until 2015. Despite the efforts, at the average annual rate of reduction , this goal will not be attained, unless Food and Nutrition Security is adopted at a policy level, mainly under circumstances of poverty. To choose a suitable method to measure food consumption and nutritional status, and to test adequate risk indicators, a participatory and comprehensive approach is needed. Because of social discrepancies, the commonly assumed median public health risk indicators are not always valid in developing countries, since they can lead to misleading interpretation about nutritional status or food consumption observed in poor areas. To the extent that this assumption is correct, an effective screening mechanism is part of a national food policy for Food and Nutrition Security, and should be oriented by the efforts of governments, community, universities and the private sector, to reinforce an alliance to promote a coordinated action.


FOME E DESNUTRIÇÃO

Indicadores nutricionais e políticas públicas

Semíramis Martins Álvares Domene

RESUMO

Durante a realização da Conferência Mundial sobre Alimentação, em 1974, os governos participantes defenderam o direito inalienável de todo homem, mulher ou criança estar livre do risco da fome e da desnutrição para o desenvolvimento de suas faculdades físicas e mentais. Quase trinta anos depois, os presentes ao Segundo Fórum Mundial de Alimentação, realizado em 1996, comprometeram-se com o conceito de Segurança Alimentar para todos e com a erradicação da fome, reduzindo-se o número de desnutridos à metade até 2015. Apesar dos esforços dispendidos, a persistir a atual taxa de redução, esta meta não será atingida, a menos que se estabeleça a Segurança Alimentar e Nutricional como política pública, especialmente em regiões com pobreza. A escolha do método mais adequado para medida de consumo de alimentos e de estado nutricional, e a avaliação dos indicadores mais adequados só será viabilizada por meio da abordagem ampla da questão. Os indicadores adotados em saúde pública podem mascarar realidades particulares atrás de valores médios, especialmente em regiões de pobreza, levando à falsas interpretações sobre estado nutricional e consumo de alimentos. Com este entendimento, o estabelecimento de políticas públicas para a Segurança Alimentar e Nutricional depende de uma ação coordenada entre estado, sociedade, academia e o setor produtivo, a fim de que estabeleça um plano efetivo de transformação da realidade.

ABSTRACT

During the World Food Conference in 1974, governments had proclaimed that "every man, woman and child has the inalienable right to be free from hunger and malnutrition in order to develop their physical and mental faculties." Almost thirty years later, participants of the World Food Summit held in 1996, pledged a common commitment to achieving food security for all, and to eradicate hunger, by reducing the number of undernourished people to half until 2015. Despite the efforts, at the average annual rate of reduction , this goal will not be attained, unless Food and Nutrition Security is adopted at a policy level, mainly under circumstances of poverty. To choose a suitable method to measure food consumption and nutritional status, and to test adequate risk indicators, a participatory and comprehensive approach is needed. Because of social discrepancies, the commonly assumed median public health risk indicators are not always valid in developing countries, since they can lead to misleading interpretation about nutritional status or food consumption observed in poor areas. To the extent that this assumption is correct, an effective screening mechanism is part of a national food policy for Food and Nutrition Security, and should be oriented by the efforts of governments, community, universities and the private sector, to reinforce an alliance to promote a coordinated action.

Desde a realização da Conferência Mundial sobre Alimentação, em 1974, organizada pela FAO – Food and Agriculture Organization, órgão integrante da Organização das Nações Unidas – ONU, os governos participantes comprometeram-se a dedicar esforços para garantir o direito inalienável de todo homem, mulher ou criança estar livre do risco da fome e da desnutrição para o desenvolvimento pleno de suas faculdades físicas e mentais. Quase trinta anos depois, dados apresentados no Segundo Fórum Mundial de Alimentação em 2002 indicam que a cada ano o número de desnutridos cai oito milhões. Apesar de parecer muito, a dimensão da fome no mundo é de tal gravidade que, para que em 2015 se alcance a metade do número de desnutridos, esta taxa de redução deve ser de pelo menos 22 milhões por ano. Estes dados demonstram que todas as medidas tomadas até agora resultaram em pequeno impacto.

As razões para a pequena efetividade das iniciativas podem ser diversas. Do ponto de vista do planejamento em saúde, a implantação de um sistema que preveja o diagnóstico, para adequado mapeamento da situação e das necessidades alimentares da população, dos mecanismos e das estruturas já disponíveis para ações de intervenção, em uma perspectiva de médio e longo prazo, depende do estabelecimento de políticas públicas concebidas em uma perspectiva de continuidade, e com ampla participação da sociedade e da comunidade acadêmica.

Exemplo disso se dá na discussão sobre Segurança Alimentar, que tem orientado a agenda de governos e organizações sociais preocupadas com questões relacionadas à suficiência de suprimento de alimentos, e ampliação de sua concepção a partir do conceito de segurança nutricional. Estudos de Vigilância Nutricional e Alimentar contribuem orientando sobre as demandas nutricionais mais importantes de cada grupo social e criando possibilidades de intervenção efetivas. Desta forma, garante-se não só o acesso aos alimentos, mas também o suprimento suficiente de nutrientes e energia, o que dá adequada dimensão à proposta. O conceito sobre segurança nutricional e sua articulação com a segurança alimentar exige a confluência de várias especialidades, o que é, naturalmente, mais complexo (Lobstein, 2002), mas possibilita a ampliação da temática, com a inclusão das situações de risco derivadas de inadequações alimentares não exclusivamente determinadas por carência. A epidemia da obesidade e as elevadas taxas de doenças crônicas não transmissíveis são preocupações importantes em Saúde Pública, e acometem cada vez mais indivíduos de todos os estratos sociais. Estudo realizado em Campinas demonstrou a ocorrência de situações aparentemente paradoxais, em que se observa déficit nutricional ou excesso de peso em moradores de bolsões de pobreza (Domene e col., 1999).

As questões relativas à Segurança Nutricional foram tema de discussão do Grupo Consultivo para América Latina e Caribe em seu encontro preparatório para o Fórum Mundial de Alimentação de 1996 (World Food Summit, 1996), e foram também abordadas pela Associação Norte-americana de Nutricionistas (Olson e Holben, 2002).

No Brasil, a alteração da estrutura socioeconômica da população vem sendo acompanhada da melhoria dos indicadores de desnutrição, conforme dados obtidos nas últimas décadas (Monteiro e Conde, 2000). Apesar disso, a insuficiência alimentar ainda é preocupante, e mostra forte associação com renda e escolaridade (Marins e Almeida, 2002).Em São Paulo, a renda familiar dobrou entre os anos de 1980 e 1990, o número de famílias com baixo poder aquisitivo caiu 50%, e a escolaridade materna cresceu em 1,5 anos. Contudo, a tradução dos indicadores nutricionais e de saúde, em um país com dimensões territoriais tão grandes e diversidades regionais tão marcantes, encobre realidades locais que apresentam particularidades, com ilhas de riqueza e a continuidade de situações de risco em bolsões de pobreza, observando-se claramente a interferência do fator renda quando os dados são desagregados.

Mesmo em nações desenvolvidas, a questão pode assumir contornos preocupantes, a partir do entendimento de que situações de insegurança alimentar e nutricional não se restringem à falta de alimentos, e podem afetar negativamente o consumo e a saúde. Nos EUA, cerca de 10% dos domicílios, que representam uma população estimada em 33 milhões de pessoas segundo dados de 2000, estavam expostos a situações de insegurança alimentar (Olson e Holben, 2002). Na Europa, em regiões com elevado nível de renda, dados do Seneca, um dos mais relevantes estudos sobre saúde e nutrição já realizados, indicaram a necessidade de acompanhar situações de insegurança alimentar entre idosos, apesar da diminuição dos casos de desnutrição (de Groot e van Staveren, 2002).

Parece ser crescente o consenso em torno da associação entre desequilíbrio alimentar e as principais doenças com relevância em Saúde Pública (Szostak, 1994), o que reforça a importância dos estudos sobre consumo alimentar como parte de uma política de vigilância (Solomons e Valdes-Ramos, 2002). A padronização de técnicas que garantam sensibilidade e especificidade é, contudo, ainda um desafio em estudos populacionais de consumo, como constatado por pesquisadores em diferentes regiões do globo (Szostak, 1994, Robinson e col, 2001, Kaluski e col., 2002).

Muitas das iniciativas de implantação de um programa de Segurança Alimentar e Nutricional enfrentam dificuldades muito parecidas, e o conhecimento destas dificuldades pode ser útil para orientar a formulação de políticas na área. São comuns situações de escassez de recursos, que levam invariavelmente a realocações e revisões dos investimentos inicialmente previstos para o setor saúde. Outra situação que compromete a condução de políticas na área de alimentação e nutrição decorre de desarticulação das informações sobre os indicadores nutricionais, que pode determinar ausência de investimentos em projetos prioritários ou, eventualmente, duplicação de gastos. Soma-se a isto a baixa capacidade de incorporação dos resultados decorrentes dos financiamentos para a reorganização e o planejamento continuado de ações.

A abordagem da questão merece, portanto, a articulação de ações relacionadas a diferentes áreas, como a educação, o saneamento e acesso aos serviços de saúde. Para ilustrar como algumas iniciativas são efetivas, pode-se citar as ações promotoras do aleitamento materno para o combate à desnutrição: dados de Almeida e colaboradores (1999), trabalhando com crianças de Niterói, reforçaram que o aleitamento está fortemente associado com escolaridade da mãe, e propôs que é possível reduzir em 40% os baixos indicadores de comprometimento de altura com medidas de incentivo à lactação materna. O estímulo ao aleitamento como estratégia de combate à desnutrição, contudo, em regiões de pobreza extrema, é pouco efetivo para a recuperação dos indicadores nutricionais, embora contribua para diminuir as taxas de mortalidade (Briend e Bari, 1989). Estas situações demonstram inequivocamente como a academia pode colaborar para otimizar o planejamento das ações de saúde, com vistas a seu direcionamento a objetivos específicos, e com isto causar o impacto necessário sobre as demandas sociais.

O país passa por um momento estratégico para a reorganização das ações em nutrição, notadamente influenciado pelo debate em torno do Programa Fome Zero e pelo envolvimento da sociedade, ingredientes básicos para o estabelecimento de um plano de sucesso. Resta contudo ampliar a participação da academia, que não deve se omitir da reflexão, do debate, da formulação de propostas e do acompanhamento das ações.

Bibliografia

Recebido e aceito para publicação em 2 de junho de 2003.

Semíramis Martins Álvares Domene é professora titular da Faculdade de Nutrição da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2004
  • Data do Fascículo
    Ago 2003

Histórico

  • Aceito
    02 Jun 2003
  • Recebido
    02 Jun 2003
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