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Aplicação de modelos matemáticos ao diagnóstico médico, tecnologia de engenharia e geofísica

DOSSIÊ CIÊNCIA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Aplicação de modelos matemáticos ao diagnóstico médico, tecnologia de engenharia e geofísica

Helmut Moritz

Universidade de Tecnologia de Graz, Graz, Áustria

Em ciência, tecnologia e medicina, as pessoas constantemente confrontam-se com a necessidade de interpretar medidas. Tal interpretação é particularmente difícil em geofísica, medicina e astrofísica. A questão, aqui, é determinar, com base nos dados medidos, parâmetros tais como densidade de massa (no ponto x) ou condutividade elétrica (x), que não podem ser medidos diretamente. Tais problemas são, em resumo, chamados inversos. Em medicina e tecnologia, freqüentemente usa-se o termo diagnóstico. Mesmo o processo de percepção sensorial nos homens e nos animais pode ser considerado um problema inverso, no qual conhecimento inequívoco pode ser obtido através de certa redundância (por exemplo, visão, audição e tato). Instrumentos poderosos, ao lado de supercomputadores, ampliam muito a gama da percepção humana e exigem a solução matemática e numérica de uma outra classe de problemas inversos. Estes podem ser considerados entre os mais urgentes dentro das pesquisas matemáticas, embora sua importância só tenha sido reconhecida de forma muito lenta.

Em 1902, o matemático francês J. Hadamard postulou que, para um problema matemático corresponder à realidade, as seguintes condições básicas deveriam ser satisfeitas:

  • a solução deve existir (

    existência);

  • a solução deve ser determinada pelos dados de forma única (

    unicidade);

  • a solução deve depender dos dados de forma contínua

    (estabilidade).

De fato, essas exigências correspondem ao determinismo ideal da mecânica clássica, que encontrou sua expressão clássica no demônio de Laplace (1740-1827): conhecendo as equações diferenciais da física e, como condições iniciais, o estado do universo (que se supõe seja exatamente mensurável e esteja disponível para o demônio), em um certo instante t = 0, o demônio altamente inteligente poderia calcular com exatidão o estado do universo em qualquer instante t posterior.

Esse determinismo ideal esteve sob ataque por diversas razões: a causalidade foi questionada pela mecânica quântica e a dependência contínua com relação às condições iniciais (estabilidade) mostrou ser problemática, mesmo para casos relativamente simples de mecânica celeste, como foi bem demonstrado pela teoria geral da dinâmica não-linear (popularmente conhecida por teoria do caos).

Durante as últimas décadas, têm-se percebido que um número crescente de questões matemáticas de relevância física são problemas formulados impropriamente (com freqüência chamados problemas mal formulados), os quais não satisfazem um (ou mais) dos critérios acima. Nesse grupo estão questões que dizem respeito à interpretação de dados medidos.

A expressão problemas impropriamente formulados pode ter sido, de início, entendida como de natureza algo pejorativa. Hoje, no entanto, tornou-se outra, livre de valoração emocional, designando um campo matemático que está atraindo cada vez mais a atenção tanto da matemática pura como da aplicada. Tem se tornado, freqüentemente, sinônimo de problemas inversos.

Para introduzir o tema, escolherei aqui um modelo matemático conceitualmente simples: sistemas de equações lineares algébricas. Assim, nosso protótipo simples será um sistema de equações lineares de forma matricial

Af = g

em que A é uma matriz dada, g um vetor dado e f um vetor desconhecido de parâmetros do sistema. Se a matriz A é quadrada e regular, então a inversão

f = A-1g

existe e fornece um vetor f unicamente definido. Se a matriz é retangular, então pode haver tanto infinitas como nenhuma solução sequer. Ainda assim, a equação f = A-1g pode existir. Nesse caso, a matriz A-1 é chamada matriz inversa generalizada, a qual, no entanto, não é geralmente estável nem definida unicamente. Tais situações, correspondendo a uma matriz retangular A, são a estrutura matemática típica de muitos problemas inversos. O caso pode também corresponder a um problema sobredeterminado, no qual existem mais equações que incógnitas. Tais casos são típicos do ajuste de erros de medida, para o qual existem métodos estatísticos padrão de estimativa (mínimos quadrados etc.).

Nossos problemas inversos, no entanto, são usualmente do tipo subdeterminado, nos quais existem menos observações que parâmetros desconhecidos. Esse é o caso quando a densidade de massa (no ponto x) ou a condutividade elétrica (x) devem ser determinadas. Nesses exemplos, as observações não são suficientes para determinar de forma única os parâmetros desconhecidos. Precisa-se de informação adicional. Esta pode ser muito trivial, por exemplo, no caso de ser preciso determinar empiricamente uma curva a partir de um conjunto de pontos muito próximos. Então, a computação da curva se reduz a seu ajuste ou interpolação. Se o espaçamento dos valores medidos é suficientemente denso, a exigência adicional de que a curva deva ser lisa pode ser suficiente para determiná-la de forma praticamente única. Se existirem apenas uns poucos valores medidos, pode então haver um número infinito de curvas compatíveis com os valores dados. Assim, a informação adicional deverá ser muito mais detalhada e específica (por exemplo: a curva deve ser uma reta ou uma senóide).

Todo esquema matemático que produz uma solução única a partir de dados insuficientes deve incorporar alguma informação adicional (ainda que apenas o princípio de mínimos quadrados). Essa é a razão pela qual diferentes algoritmos, aplicados aos mesmos dados, podem dar respostas completamente distintas. Por exemplo, a tomografia sísmica em geofísica é um problema altamente subdeterminado e pode ser semelhante a alguns métodos computadorizados de diagnóstico em medicina. Em problemas comuns de diagnóstico, a informação adicional é dada pela experiência do médico e um bom esquema de diagnóstico deve incorporar considerável experiência médica.

O procedimento é, em princípio, muito simples e adequado. Na prática, todavia, o perigo aparece quando a informação adicional é insuficiente ou inadequada. Maiores riscos apresenta o caso de um sistema de caixa preta,; que fornece belas respostas e diagramas coloridos, mas no qual não se sabe (ou se considera desnecessário saber) que informação foi implicitamente incorporada.

Assim, para um dado método ou técnica que envolva a solução de problemas inversos, devemos ter o cuidado de sempre considerar seus limites de aplicabilidade, bem como as pressuposições conscientes ou inconscientes que fazemos ao aplicá-lo.

Nosso modelo matemático, extremamente simplificado, já exibiu características gerais importantes dos problemas inversos formulados impropriamente. Em especial, reconhecemos uma importante tarefa: deter -minar, definir ou tornar consciente a informação adicional que está implícita em um dado problema inverso.

Sob outros aspectos, nosso primitivo modelo de sistemas algébricos lineares é bastante inadequado. São necessárias estruturas matemáticas mais sofisticadas: equações diferenciais e integrais, geralmente equações funcionais lineares e não-lineares, bem como métodos espectrais e outras técnicas.

Uma conseqüência infeliz do desenvolvimento incrivelmente veloz da ciência e da tecnologia é que os diferentes campos científicos tendem a perder contato entre si. Poucos cientistas estão atentos aos desenvolvimentos que acontecem em campos científicos vizinhos. As leis da física, que valem para geofísica, astronomia, tecnologia, química, biologia, medicina etc., fornecem um caráter unificador. Isso não quer dizer que todas as leis da biologia ou mesmo do pensar e do comportamento humano se reduzam à física, mas apenas que os processos físicos nos animais são governados pelas mesmas leis e processos que regem a natureza inorgânica. Em particular, as equações diferenciais da física matemática também descrevem os processos que ocorrem dentro do corpo humano.

A maior parte da informação adicional é obtida por experimentos em condições de laboratório. Nestes, muitos parâmetros podem ser mantidos constantes e, dessa forma, os processos podem ser controlados. Por isso, sistemas tecnológicos atingiram um alto nível de sofisticação e a identificação por sistemas desenvolveu-se muito. Pode-se esperar para o futuro resultados de longo alcance em teoria inversa, com conseqüências para nosso conhecimento da natureza, ou seja, para a questão de em que medida sistemas naturais complexos podem ser descritos por dados obtidos a partir de medições.

Para um matemático, problemas inversos raramente são fáceis: comumente difíceis, às vezes insolúveis, mas sempre fascinantes. Mas não nos esqueçamos da relevância para a vida real: a vida de um paciente pode literalmente depender da possibilidade de ele passar por um raio-X ou por uma tomografia de ressonância magnética nuclear e da confiabilidade dos resultados desses exames. Exploração geofísica — pesquisa por minerais ou depósitos de petróleo — exige a solução de problemas inversos em sismologia, gravimetria e eletromagnetismo. E urgente um enfoque interdisciplinar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 1994
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