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Romance de formação: as múltiplas variações de um gênero

Enquanto gênero e discurso literário, o romance de formação encontra-se nas suas origens vinculado ao espaço cultural de língua alemã. Nos tempos de Goethe e Hegel, a nova ideia de formação do indivíduo - a conflituosa procura de si mesmo e que finalmente chega a uma relação mais equilibrada com o mundo - estava no seu auge. Reinhart Koselleck, cujo importante ensaio “Sobre a estrutura antropológica e semântica do conceito de Bildung” foi finalmente publicado em português no ano passado, constata para a época de Goethe uma “nova religiosidade da Bildung” (Koselleck, 2020, p.134). A figura do Wilhelm Meister goethiano representava o ideal da pessoa culta não com base em características específicas e marcantes de sua personalidade, mas porque está a caminho da autodescoberta, num processo em que pode testar gradualmente habilidades e talentos. Em princípio, trata-se de uma figura literária aberta, mas comprometida com a ideia de perfectibilidade, que exemplifica a educação cultural e moral da humanidade almejada pelos intelectuais de língua alemã por volta de 1800. A germanística nacionalista do século XIX via o Bildungsroman 1 1 O termo em alemão é cunhado pelo filólogo, bibliotecário e professor universitário Karl Morgenstern já em 1819, mas ganha importância somente a partir de Wilhelm Dilthey. V. as explanações de Marcus Mazzari (em Mazzari, 2010). como um padrão narrativo que servia à autocompreensão cultural dos povos alemães.

Entretanto, com personagens como Julien Sorel (Stendhal) ou Rastignac (Balzac) não fazia mais sentido restringir o novo gênero ao ideal de uma formação baseada na filosofia da humanidade, e as protagonistas femininas das autoras britânicas Jane Austen, Charlotte Brontë e George Eliot expandiram o espectro consideravelmente. Em The Way of the World: The Bildungsroman in European Culture, publicado em 1987 pela editora Verso, de Londres, e também traduzido para o português brasileiro no ano passado, Franco Moretti apresenta as variações do romance de formação nas diversas literaturas nacionais europeias do século XIX do ponto de vista das histórias social, discursiva e narrativa. Mas já nas décadas anteriores foram publicados diversos trabalhos comparativos anglo-americanos sobre o Bildungsroman, razão pela qual a palavra alemã entrou no vocabulário técnico dos estudos literários de língua inglesa.

Nesse contexto, noticiamos para o ano passado uma extensa antologia que trata da tradição do romance de formação, das suas mais variadas manifestações na Europa e indo ao mesmo tempo muito além das fronteiras europeias, examinando o fenômeno também em relação às culturas literárias latino-americanas e africanas: Romance de Formação - Caminhos e descaminhos do herói, organizado por Marcus V. Mazzari e Maria Cecilia Marks e enfeixando 26 contribuições. O volume baseia-se em palestras realizadas alguns anos antes na Biblioteca Mário de Andrade (São Paulo) sobre o tema, agora revisadas, e trazendo ainda novos textos.

Considerando o número alto de ensaios, não se deve esperar uma abordagem teórica ou metodológica comum. Os códigos interpretativos, inspirados em história social, história de ideias, narratologia, abordagens comparatistas entre outros, alternam-se.

A grande maioria dos autores assume definições do romance de formação baseadas em caraterísticas típicas do gênero, embora essas sejam geralmente tão amplas que tendem a se aplicar ao termo mais genérico de “romance de desenvolvimento”. No entanto, isso não desvaloriza o empreendimento acadêmico, pelo contrário: a força do livro está na sua pluralidade metodológica e temática. Ao conhecer os mais variados artigos, o leitor compara obras muito diferentes em termos histórico-culturais e ganha conhecimentos que uma monografia metodologicamente uniforme dificilmente poderia oferecer.

Quase um terço dos ensaios apresenta ao público brasileiro a tradição de Bildungsroman de língua alemã, com um amplo arco traçado desde Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, e o Anton Reiser, de Karl Philipp Moritz, até os dias atuais. Um dos organizadores do volume, Marcus Mazzari, já tratou do gênero em publicações anteriores. Sempre em diálogo com os grandes nomes da crítica literária de língua alemã do século passado, como G. Lukács, W. Benjamin e, sobretudo, E. Auerbach, ele apresenta nessa coletânea sua leitura de passagens-chave dos Anos de aprendizado. Outros ensaios referem-se a Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, ao Homem sem qualidades, de Robert Musil, mas também aos aspectos paródicos do Gato Murr, de E. T. A. Hoffmann, e Felix Krull, de Thomas Mann. Valéria Sabrina Pereira e Helmut Galle discutem em que medida o “romance de deformação” está presente em O pescoço da girafa, de Judith Schalansky, romance contemporâneo alemão que já traz a designação de gênero (Bildungsroman) no subtítulo. Aliás, a edição brasileira, publicada em 2016, omite esse subtítulo e perde assim, na opinião dos dois críticos, a chance de levar os leitores da obra a refletir sobre a adequação do conceito no caso da obra em questão.

Um outro terço das contribuições trata da tradição europeia, embora nem todas estejam relacionadas ao gênero romance de formação. A contribuição, por exemplo, sobre o Dom Quixote de Cervantes não se esforça propriamente em mostrar essa conexão, consistindo antes numa introdução histórico-literária bem escrita sobre o famoso autor espanhol e sua obra principal. Algo semelhante pode ser dito do texto que trata d’Os Miseráveis ​​de Victor Hugo. No entanto, outras contribuições referem-se claramente à questão do gênero literário. Alexandre Bebiano de Almeida analisa os processos literários em A Educação Sentimental, com os quais Flaubert estabelece o imperativo estético de desromantizar o mundo, nesta variante francesa do romance de formação, o chamado “romance de desilusão”.

Paulo Bezerra, professor de literatura russa e renomado tradutor brasileiro de Dostoiévski, Gogol, Púchkin e Bakhtin, apresenta uma obra de Dostoievski que tem recebido pouca atenção nos estudos literários comparados. Trata-se de Podostro (O Adolescente), traduzido pelo próprio Bezerra e, segundo ele, o único romance do escritor russo que está diretamente ligado à tradição do romance de formação. Outros textos se debruçam sobre o romance Memoires de Deux Jeunes Mariees de Balzac, sobre o desenvolvimento do protagonista Philip Pirrip no clássico Great Expectations de Charles Dickens e sobre a trilogia Onde Está a Felicidade? de Camilo Castelo Branco, mestre do romance-folhetim português do século XIX. Mas há também textos canônicos da modernidade literária, caracterizados por elementos experimentais e autorreflexivos como Um Retrato do Artista quando Jovem de James Joyce, e que são analisados em relação a sua relevância temática, à trama e estrutura narrativas.

“As coisas absolutamente não existem, apenas formações” (Dinge giebts gar nicht, sondern nur Bildungen), anotou o jovem Friedrich Schlegel, tomado então por grande entusiasmo pelo Wilhelm Meister de Goethe, imerso em seus anos de aprendizado “filosófico”. O que fascinou os primeiros românticos alemães, com exceção de Novalis, no Bildungsroman foi precisamente a dinâmica aberta de um processo de socialização individual no qual nada parece estar predeterminado. Do ponto de vista da periferia, das literaturas pós-coloniais do Sul, essa problemática obviamente se apresenta de forma diferente. A possibilidade de passar por longos processos de autorreflexão e autoteste permanente, com o objetivo de um desenvolvimento harmonioso da personalidade, parece completamente utópica em sociedades que são caracterizadas por conflitos sociais, culturais e étnicos extremos. Entende-se que na maioria dos autores não europeus da antologia não falta uma forte dose de crítica social.

O primeiro romance publicado pela escritora moçambicana Paulina Chiziane, Balada de Amor ao Vento, é apresentado por Cintia Acosta Kütter com o título Bildungsroman feminino. Em comparação com as histórias de socialização masculinas, a autora desenvolve a questão de como o especificamente feminino nesse romance moçambicano pode ser entendido. Na sua introdução ao Bildungsroman, Ortrud Gutjahr (2010GUTJAHR, O. Einführung in den Bildungsroman. Edição epub. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010.) já diferencia as variantes masculinas e femininas do gênero literário e considera também a existência da categoria Bildungsroman feminino e “intercultural”. Em relação à África e também à América Latina, entretanto, “intercultural” não implica principalmente literatura de migração, como na Europa, mas uma narração de conflitos culturais internos que influenciam a identidade de um herói ou uma heroína.

Na coletânea em tela, Marcos Natali situa o romance Los Rios Profundos de José María Arguedas em um contexto pós-colonial. Esse romance de formação peruano tem como protagonista um adolescente que transita entre a cultura de língua espanhola dominante e a cultura indígena quíchua do país - uma dicotomia que também define o internato andino que o protagonista frequenta. Entende-se que, nesta constelação, uma reconciliação do eu com o mundo, como parece possível no final do romance moçambicano, não deve acontecer.

No que diz respeito às literaturas não europeias, obras brasileiras predominam obviamente no volume em questão. Autores brasileiros tentam, em diferentes versões do romance de formação e de desenvolvimento, abordar o problema da alteridade intracultural, característica de uma sociedade tão heterogênea em termos culturais. É o caso, por exemplo, de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, contrastado na coletânea com o Wilhelm Meister. Maria Cecilia Marks analisa a trajetória de Riobaldo como um “Wilhelm Meister do sertão”, cujo percurso de formação segue, em linhas gerais, o roteiro prototípico desde Goethe, mas isso dentro de um romance que coloca a questão da alteridade cultural, linguística e social no centro do enredo.

Gunter Karl Pressler apresenta um autor que, fora das fronteiras do Pará, sua região natal, é um tanto desconhecido. Dalcídio Jurandir, morto em 1979, chegou a publicar nove romances, todos focados no desenvolvimento do mesmo protagonista, o jovem Alfredo, oriundo da Ilha de Marajó (PA). Outras contribuições tratam de autores já canonizados, como Machado de Assis, Lima Barreto e Clarice Lispector, essa última, além da já citada Paulina Chiziane, uma das poucas romancistas escolhidas para o volume. Histórias de formação feminina ainda precisam ser descobertas.

A contribuição de Eduardo de Assis Duarte trata de um Bildungsroman proletário exemplar. No centro do enredo de Jubiabá (1935) encontra-se o jovem Antônio Balduíno, que, em um processo de socialização e amadurecimento, deixa de ser uma criança rebelde das classes populares baianas para se desenvolver e transformar-se em importante líder da classe trabalhadora em Salvador da Bahia, um defensor adulto dos direitos sociais dos favelados. Jorge Amado combina a acusação social com uma empatia bastante sentimentalista com seu herói afro-brasileiro. Seguindo a tradição do romance de folhetim, o famoso autor baiano narrou semelhantes histórias de formação socialista nas décadas de trinta e quarenta do século passado.

Em Quarup de Antonio Callado (1967) temos como protagonista um jovem padre, cujo desenvolvimento ao longo de uma década mostra-se intimamente ligado à história do Brasil entre a morte do presidente Getúlio Vargas e o golpe militar de 1964. Horst Nitschack, que trata desse romance, concentra-se especialmente no contexto histórico-político e cultural-político dos anos sessenta. Além disso, a alteridade intracultural como tópico literário também poderia ser examinada usando esse romance como exemplo. A colonização cultural do Brasil pela Europa vem diminuindo bastante desde a década de 1960; quando autores politicamente comprometidos como J. Amado e A. Callado assumem o romance de formação como um gênero universal, eles desenvolvem ao mesmo tempo suas abordagens próprias, que não dependem mais da Europa como área geográfica e cultural.

Esse entendimento também se aplica a outros escritores não europeus mencionados aqui. O que começou por volta de 1800 no âmbito da cultura alemã como narrativa prototípica da socialização de um jovem de classe média alta, com todos os seus altos e baixos, e que por muito tempo foi considerado epítome literário da humanidade ocidental, tem se mostrado um gênero altamente polifônico, desenvolvido por autores de outras partes do mundo com base em seu próprio posicionamento cultural. A coletânea testemunha esse desenvolvimento (e evolução) de forma exemplar.

Referências

  • GUTJAHR, O. Einführung in den Bildungsroman. Edição epub. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010.
  • KOSELLECK, R. Sobre a estrutura antropológica e semântica do conceito de Bildung. In: ___. Histórias de conceitos: estudos sobre a semântica e a pragmática da linguagem política e social. Trad. M. Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020. p.115-68.
  • MARKS, M. C.; MAZZARI, M. V. (Org.) Romance de Formação: Caminhos e descaminhos do herói. São Paulo: Ateliê Editorial, 2020.
  • MAZZARI, M. V. Metamorfoses de Wilhelm Meister: O verde Henrique na tradição do Bildungsroman. In: ___. Labirintos da aprendizagem. São Paulo: Editora 34, 2010. p.93-158.
  • MORETTI, F. O romance de formação. Trad. N. B. Palmeira. São Paulo: Todavia, 2020.

Nota

  • 1
    O termo em alemão é cunhado pelo filólogo, bibliotecário e professor universitário Karl Morgenstern já em 1819, mas ganha importância somente a partir de Wilhelm Dilthey. V. as explanações de Marcus Mazzari (em Mazzari, 2010).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2021
  • Aceito
    18 Jul 2021
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