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Poemas sobre São Paulo

DOSSIÊ SÃO PAULO, HOJE

CEMITÉRIO DO ARAÇÁ

Quando ainda era menino,

voltava calado para casa,

interrogava teu muro alto.

Eras o melhor vizinho.

Habituado a jogar futebol

na sinuosa rua dos fundos,

estranhava que as bolas

não voltassem do teu mundo.

Você resistiu ao cerco

da cidade que cresceu

(eu também cresci)

sempre à tua volta.

Repisando nosso passado,

hoje, finalmente, te visito.

Busco meu pai enterrado

dentro do teu labirinto.

Augusto Massi

LENDO NO TREM A CAMINHO DE CASA

nascida

na beira do pântano, no meio

de gente rude, criada

para dar nome

às cabras

e cultivar terras inóspitas

daí, dizem

os filólogos, tantas metáforas

agrárias, nesta língua

em que uma página

antes de ser

página do livro que estou lendo

serão estacas

fincadas na terra

- entre elas se espalham

as ramas da parreira

língua em que feliz

é a árvore que produz; caduco

o fruto que cai; delírio se diz

do grão que brota

fora do sulco

(isto é, da lira

pois esse é o nome da linha

do rego

da vala

rasgada no chão

para o germinar das sementes)

língua que, como diz

um eminente linguista português,

seguiria ordenando guerras e colheitas

não tivesse ela própria

"cindido-se desvairadamente"

em cabos

rocas

oceanos inteiros

a ponto de parir toda uma geografia

e florescer no extremo do extremo

a ponto de florescer aqui

neste trem

nesta janela

junto às águas negras

do pinheiros

(água que me fala

tão de perto, rente à pele

dos ouvidos, fragmento

de conversa, soluço

entrecortado de trilhos

"eu me viro, eu me viro")

enquanto

a caminho de casa

folheio as páginas de um livro

SOBRE A HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA

e volta e meia, entre uma

linha e outra, estico os olhos

pelos companheiros de viagem

neste expresso metropolitano gente de todo tipo, corpo, cara, tamanho

que porta consigo seus problemas &

pacotes de fim de ano e leio, em cada um, o transeunte

de uma língua

em busca de seu destino

- cidade universitária jaguaré presidente altino transeunte como eu

prestes a descer

em qualquer ponto do caminho

até que num repente

a noite salta da outra margem

desliza sobre a água, entra pela porta

enquanto - sem tempo de fechar o livro

"cuidado com o vão

entre o trem e a plataforma"

eu piso

sem volta

do lado de fora

Alberto Martins

(Inéditos)

NOTURNO DA RUA MARQUÊS DE ITU

Começa na Praça da República

de maneira desde já oblíqua e ambígua

e vai pondo árvores abstratas

em seu caminho.

Passantes passam-lhe ao longo

e ao estreito, conhecidos meliantes

e mundanas

líricas sem escamas e sem dentes

ou de sorriso afiado como um corte,

professores de medo em uniformes

de um azul mais escuro do que o preto

da noite que dissolve esses contornos

e marginais possíveis,

impossíveis trazendo a punição na testa

como um emblema.

O uivo dolorido da polícia

estilhaça o sono nas calçadas.

A culpa pula, esconde-se na esquina,

espreita atrás do cartaz,

dá boa-noite e vai punir-se

no porão do edifício, perplexa.

A rua que se afina segue os fios

do ônibus elétrico:

transatlântico salão iluminado deslizante

caixão claro vazio baleia oca sob

a luz corrompida da lua. A rua

transporta para o lado das Perdizes,

Pacaembu, Lapa, Arvoredo, Tempo

os veículos que analisa, canaliza,

o imaginário corredor que é o ônibus

de olhares furados.

Enquanto, maliciosa, pisca a análise,

a rua calada e fria mais que a lua

vai derivando tudo para o lado

do longe e para ele ela deriva

seu

sempre

que é simplesmente um nunca.

Rubens Rodrigues Torres Filho

(Novolume. São Paulo: Iluminuras, 1997. p.77)

SEGUNDO PAPEL

a cidade é o óbvio,

o que salta aos olhos

ulula, o que brilha

e fede

a cidade é o cais

caos sob controle

outro dia de luto,

de luta, de luxo

a cidade é perder

outro sol que agride

outra lua (a cidade comporta),

mesma via

e é sempre tarde

e o lugar que falta

e o que nos prende,

perene, perece

Tarso de Melo

(Planos de fuga e outros poemas. São Paulo: Cosac Naify;

Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2005. p.70)

O VENTO NESSA CIDADE

O vento nessa cidade

vem sempre na mão contrária.

Fumaça, papéis e poeira

pegam carona, sem rumo

(pessoas também, se bem que elas

não se diferenciam muito

de papéis, poeira ou fumaça). O

preto, que à mão só tem dedos,

grava na sarjeta o mapa

de seu tesouro escondido,

já são vistos traços brancos,

mas vamos de olhos cerrados,

pois nessa cidade o vento

não aceita ser contestado.

Paulo Ferraz

(Evidências pedestres. São Paulo: Selo Sebastião Grifo, 2007. p.14)

ÀS MINHAS COSTAS

As portas do metrô mastigam

o ar condicionado.

Estou em trânsito, com os demais.

Percorremos a rede incorpórea

que há de permanecer.

Não se ultrapassa a linha amarela.

Nada cheira. E a escada rolante

- áspera via - até se alegoriza

ao conduzir-nos de volta ao simulacro

passageiro das avenidas.

Na saída, ponho os óculos escuros.

Sérgio Alcides

(O ar das cidades: poemas (1996-2000). São Paulo: Nankin, 2000. p.33)

A CIDADE

Por mais que insistas em recusar,

esta é, sim, a tua cidade concreta

onde tantos te ofereceram amizade

e o amigo partiu pela porta secreta.

Andaste cabisbaixo pelas calçadas

remoendo as humilhações do trabalho.

Marcaste este chão com teus passos,

dores recolhidas como um rebotalho.

Aqui nasceram os filhos, a epifania

das infâncias que sumiram passageiras.

Abriste envelopes com muito medo,

receoso daquelas notícias derradeiras.

Tu que amas a simetria permanente

viste a barriga da cidade arregaçada.

Como nas telas de Anselm Kiefer,

tens nela tuas perplexidades retratadas.

Donizete Galvão

(O homem inacabado. São Paulo: Portal, 2010. p.59)

TRENS URBANOS

Não são como os ratos

ou os vira-latas.

Nunca desviam,

os trens.

Este sempre acompanha

o rio morto vivo.

Aqui dentro, uns lutam pra dormir,

outros, pra acordar.

Uns achando que a vida

é preparação pra morte.

Outros, que a morte

é o motor da vida.

Outros não acham nada.

Sobrevivem.

Os meus botões pensam:

morte em vida é que é problema.

Cocteau pensava além: a vida

é uma queda na horizontal.

O trem para. A porta se abre.

Na falta,

qualquer rua, pra mim,

é rio.

Ruy Proença

(Visão do térreo. São Paulo: Editora 34, 2007. p.41)

Créditos dos poetas

Augusto Massi, como poeta, publicou Negativo (Companhia das Letras, 1991) e A vida errada (7Letras, 2001).

Alberto Martins é autor dos livros Uma noite em cinco atos (Editora 34, 2009) e Em trânsito (Companhia das Letras, 2010).

Rubens Rodrigues Torres Filho publicou Poros (Livraria Duas Cidades, 1989), Retrovar (Iluminuras, 1993) e Novolume (Iluminuras, 1997), entre outros.

Tarso de Melo é autor de Planos de fuga e outros poemas (São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora, 2005), Lugar algum: com uma teoria da poesia (Alpharrabio, 2007) e Exames de rotina (Editora da Casa, 2008), entre outros.

Paulo Ferraz publicou, sob o Selo Sebastião Grifo, os livros Constatação do óbvio (1999), Evidências Pedestres e Do novo nada, ambos em 2007.

Sérgio Alcides escreveu o livro de poesias Nada a ver com a lua (Sette Letras, 1996) e O ar das cidades: poemas (1996-2000) (Nankin Editorial, 2000).

Donizete Galvão publicou, em 1988, Azul navalha (T. A. Queiroz Editor), em 1999, Ruminações (Nankin Editorial) e, em 2010, O homem inacabado (Portal Editora), entre outros.

Ruy Proença é autor dos livros de poesias Pequenos Séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996) e Visão do térreo (Editora 34, 2007), entre outros.

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    Vários autores
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011
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